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JOHNATAN RAZEN FERREIRA GUIMARÃES COORDENADAS DO POSSÍVEL: O LUGAR DA VIOLÊNCIA E A LEGITIMIDADE DA OCUPAÇÃO DE TERRAS NA ADI 2.213-0

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Academic year: 2019

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FACULDADE DE DIREITO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: DIREITO, ESTADO E CONSTITUIÇÃO

JOHNATAN RAZEN FERREIRA GUIMARÃES

COORDENADAS DO POSSÍVEL: O LUGAR DA VIOLÊNCIA E A LEGITIMIDADE DA OCUPAÇÃO DE TERRAS NA ADI 2.213-0

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA FACULDADE DE DIREITO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: DIREITO, ESTADO E CONSTITUIÇÃO

JOHNATAN RAZEN FERREIRA GUIMARÃES

COORDENADAS DO POSSÍVEL: O LUGAR DA VIOLÊNCIA E A LEGITIMIDADE DA OCUPAÇÃO DE TERRAS NA ADI 2.213-0

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Direito da

Universidade de Brasília como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Evandro Charles Piza Duarte

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COORDENADAS DO POSSÍVEL: O LUGAR DA VIOLÊNCIA E A LEGITIMIDADE DA OCUPAÇÃO DE TERRAS NA ADI 2.213-0

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Direito da

Universidade de Brasília como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Evandro Charles Piza Duarte

O candidato foi considerado _______________ pela banca examinadora.

______________________________________________ Professor Doutor Evandro Charles Piza Duarte

Orientador

______________________________________________ Professor Doutor Menelick de Carvalho Netto

Membro

______________________________________________ Professor Doutor René Marc da Costa Silva

Membro

______________________________________________ Professora Doutora Camila Cardoso de Mello Prando

Membro Suplente

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Apesar de carregar meu nome como autor, é absolutamente ilusório desconsiderar que esta dissertação é produto de um esforço coletivo que supera em muito o ato da escrita. Por isso, agradeço a todas as pessoas que participaram direta ou indiretamente da produção desta pesquisa, não apenas diante de um dever de gratidão, mas em reconhecimento ao fato de que sem elas este trabalho não seria possível.

Apontando diretamente algumas pessoas, gostaria de prestar meus agradecimentos aos meus pais e familiares por todo o apoio que me ofereceram. Agradeço também ao professor Evandro por ter me recebido como orientando. Sem seu engajamento, paciência e livros emprestados esta saga não chegaria a um fim. Agradeço ao professor Joaze Bernardino Costa e à professora Débora Diniz, que durante as matérias cursadas no mestrado me ofereceram não apenas suas lições, mas também exemplos de atuação profissional. À Gabriela Rondon, querida companheira, agradeço pelo carinho com que acolheu todas as dúvidas e inconstâncias que marcaram meu trajeto. Seu trabalho sempre foi uma inspiração e deixo aqui registradas a admiração e apreço que tenho por ela.

Aos amigos João Gabriel, Rafael de Deus e Eduardo Borges, companheiros com os quais compartilhei minhas primeiras experiências na docência, deixo meu obrigado, na certeza de que guardarão com tanto carinho quanto eu a memória das reuniões, textos, avaliações e encontros com estudantes; tudo mais difícil diante do desafio auto-imposto de incorporar em nossa prática as críticas que desenvolvemos nos anos de graduação. Gostaria de mencionar ainda o trabalho das funcionárias da secretaria de pós-graduação, cujo empenho é fundamental para o funcionamento da faculdade e a quem agradeço pelo atendimento sempre gentil, prestativo e amigável.

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A corrente impetuosa é chamada de violenta Mas o leito do rio que a contém Ninguém chama de violento.

A tempestade que faz dobrar as bétulas E tida como violenta E a tempestade que faz dobrar Os dorsos dos operários na rua?

Sobre a Violência,

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Esta dissertação analisa a aplicação da categoria violência pelo Supremo Tribunal Federal como um descritor para a ocupação de terras – estratégia de luta adotada por movimentos sociais de trabalhadores rurais sem terra na reivindição pela reforma agrária. Proponho que no pensamento político de matriz liberal a violência é constituída como um rótulo negativo que implica no esvaziamento do conteúdo político de uma ação. Assim, a definição de um ato como violento ou não é uma decisão submetida à dinâmica das relações de poder e não um dado objetivo da realidade. Dessa forma, examino a descrição da ocupação de terras como um ataque violento ao direito de propriedade que perpassa a decisão do STF na ADI 2.213-0 em sede cautelar. Para que se possa evidenciar a arbitrariedade na definição da violência no conflito agrário, realizo uma breve análise sobre os principais diplomas legais que regularam a apropriação fundiária na história brasileira e as políticas públicas de reforma agrária. Com base nas reflexões de Frantz Fanon, Slavoj Žižek e Walter Benjamin discuto a postura refratária das instituições estatais às demandas formuladas por grupos historicamente excluídos dos espaços oficiais de disputa política no Brasil.

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This thesis analyzes the application of the category violence by the Brazilian Constitutional Court as a descriptor for the land occupation – strategy adopted by social movements of rural landless workers in the struggle for land reform. I propose that in the political thought of liberal matrix violence is constituted as a negative label which implies voiding the political content of an action. The definition of an act as violent or not is a decision subject to the dynamics of power relations and not an objective fact of reality. Thus, the description of land occupation as a violent attack on property rights, that permeates the Supreme Court decision in the ADI 2213-0, is examined. In order to highlight the arbitrariness in the definition of violence in the agrarian conflict, a brief analysis of the key legislation that regulated the land ownership and public policy of land reform in Brazilian history is carried out. Based on the reflections of Frantz Fanon, Slavoj Žižek and Walter Benjamin, the refractory attitude of state institutions to the

demands made by historically excluded groups from the official spaces of political dispute in Brazil is discussed.

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Esta disertación de maestría analiza la aplicación por el Supremo Tribunal Federal de la categoría violencia como descriptor para la ocupación de la tierra – estrategia adoptada por movimientos sociales de trabajadores rurales sin tierra en la lucha por reforma agraria. Propongo que en el pensamiento político de matriz liberal la violencia está constituida como una etiqueta negativa que implica debilitar el contenido político de una acción. La definición de un acto como violento o no es una decisión sujeta a la dinámica de las relaciones de poder y no un hecho objetivo de la realidad. Por lo tanto, examino la descripción de la ocupación de tierras como un violento ataque contra los derechos de propiedad que se impregna en la decisión del STF en la Acción Directa de Inconstitucionalidad nº 2.213-0, en sede provisional. Con el fin de poner de relieve la arbitrariedad en la definición de la violencia en el conflicto agrario, se lleva a cabo un breve análisis de la legislación clave que regula la propiedad de la tierra y la política pública de la reforma agraria en la historia de Brasil. Sobre la base de las reflexiones de Frantz Fanon, Slavoj Žižek y Walter Benjamin se analiza la actitud refractaria de las instituciones del Estado a las demandas hechas por grupos históricamente excluidos de los espacios oficiales de disputa política en Brasil.

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Introdução ... 11

1. A violência do direito de propriedade e a violência proprietária ... 18

1.1. Notas sobre o conflito na história legal da terra ... 19

1.1. 1. O regime sesmarial : o controle sobre trabalho e terra ... 20

1.1.2. A lei de terras: exclusão negra e controle migratório ... 23

1.1.3. O século da Lei de Terras: organização popular e repressão ... 26

1.1.4. A questão fundiária na ditadura civil-militar ... 29

1.1.5. Redemocratização e o conflito contemporâneo ... 31

1.2. Violência no campo: repressão pública e privada... 35

1.2.1. A tese dos dois “Brasis” ... 35

1.2.2. A tese do desenvolvimento desigual e combinado ... 37

1.2.3. Violência entre o público e o privado ... 39

2. Um conceito de mil faces ... 46

2.1. Introdução: A violência como uma construção em disputa ... 46

2.2. A constituição colonial do direito de propriedade e a violência no campo ... 52

2.2.1. Hierarquia e conflito: A colonialidade do poder ... 53

2.2.2. A violência do colonizador e a violência do colonizado ... 55

2.2.3. Violência e Construção de subjetividades ... 57

2.2.4. Constituição negativa e positiva dos sujeitos ... 58

2.2.5. Racismo como bloqueio ao reconhecimento ... 61

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2.2.8. Filosofia da história para uma crítica ao materialismo dialético ... 66

2.2.9. Violência absoluta e efeito terapêutico ... 70

2.2.10. A porta estreita da promessa messiânica ... 74

2.3. À guisa de conclusão: Respostas erradas e perguntas erradas ... 81

3. Violência e legitimidade: uma análise dos significados da ocupação de terras ... 82

3.1. A mística das resistências ... 82

3.1.1. A revolução contra os relógios: O salto na história ... 83

3.1.2. Consciência histórica e luta social na América Latina ... 86

3.2. Legitimação da violência proprietária e neutralização da história ... 91

3.2.1. Política fundiária no governo FHC: O Estado como mediador ... 93

3.2.2. O lugar do Judiciário: O STF como legitimador da política ... 100

3.3. O que significa perguntar sobre a legitimidade? ... 108

Conclusão ... 113

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Introdução

O período de redemocratização do Brasil e a década subsequente foi um dos momentos de maior articulação das lutas populares camponesas na história do Brasil, com a criação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e de inúmeras outras organizações de trabalhadores rurais construindo uma mobilização de proporções nacionais. Também nesses anos, se testemunharam as chacinas de maior repercussão na opinião pública do país, os massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, em que as elusivas ligações entre as instituições do poder público e os proprietários da terra apareceram como o vislumbre de uma realidade ocultada sob o verniz da história oficial.

Como um dos resultados desse movimento ondular de avanço das lutas progressistas e subsequente recrudescimento da violência conservadora, se impôs a resposta do governo federal, capitaneado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. O intelectual ligado ao pensamento político-econômico de esquerda nos anos 1960 e 1970 e que em 1994 seria eleito por um partido social-democrata para promover as medidas neoliberais supostamente necessárias para a estabilização e desenvolvimento econômicos do país. A partir de 1996, o governo de Fernando Henrique assumiu a tarefa de levar adiante a promessa de reforma agrária com que diversos governos antecessores já haviam flertado de alguma maneira.

Para promover a reforma da estrutura fundiária, que se mostrava uma instável fonte de conflitos, alinhada aos compromissos ideológicos do governo, foi implementado um pacote de políticas públicas por meio de regulamentações ministeriais, decretos e medidas provisórias. O mais compreensivo desses instrumentos normativos foi a Medida Provisória 2.027-40, de 29 de junho de 2000, sucessivamente reeditada e hoje vigente sob o nº MP 2.183-56, que alterou artigos da Lei 4.504/64, o Estatuto da Terra, e da Lei nº 8.629/93, que regulamenta os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária. Questionando a constitucionalidade da MP, foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal (STF) duas Ações Direta de Inconstitucionalidade (ADI), a ADI nº 2.213-0, impetrada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e a ADI nº 2.411-6, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), apensada à primeira.

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redação da MP. Dentre elas, concentro-me especificamente no questionamento à

modificação do artigo 2º, §§ 6º ao 9º, da Lei nº 8.629/93. Com a redação conferida pela MP 2.183-56 a regulamentação sobre a reforma agrária prevista pela constituição passar a viger com o seguinte conteúdo:

“Art. 2º A propriedade rural que não cumprir a função social prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos termos desta lei, respeitados os dispositivos constitucionais.

(...)

§ 6o O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.

§ 7o Será excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem, já estando beneficiado com lote em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse benefício na condição de inscrito em processo de cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público ou privado em fase de processo administrativo de vistoria ou avaliação para fins de reforma agrária, ou que esteja sendo objeto de processo judicial de desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e bem assim quem for efetivamente identificado como participante de invasão de prédio público, de atos de ameaça, seqüestro ou manutenção de servidores públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de quaisquer outros atos de violência real ou pessoal praticados em tais situações.

§ 8o A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos.

§ 9o Se, na hipótese do § 8o, a transferência ou repasse dos recursos públicos já tiverem sido autorizados, assistirá ao Poder Público o direito de retenção, bem assim o de rescisão do contrato, convênio ou instrumento similar.” (Brasil, 1993).

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(Partido dos Trabalhadores, 2002) e que as medidas voltadas a proibir o repasse de recursos visam estrangular financeiramente os movimentos de trabalhadores rurais. Nas duas ADIs os autores pedem ao STF a suspensão cautelar dos efeitos da Medida Provisória, que foi negada pelos ministros em julgamento preliminar.

Participaram da sessão os ministros Marco Aurélio, Moreira Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello – na condição de relator – Carlos Velloso, Ilmar Galvão, Maurício Corrêa e Nelson Jobim. Em relação aos parágrafos que discuto neste trabalho, apenas os ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio votaram contra o entendimento majoritário do tribunal. O primeiro por entender que a proibição da vistoria em terras ocupadas pelo prazo de dois anos, sem exceções, significaria um bônus injustificado ao proprietário. O segundo vota a favor do deferimento da liminar do PT e Contag, argumentando que as medidas impedem aquilo que entende ser um exercício de direito natural; a ocupação de terras improdutivas.

A demanda de reconhecimento das ocupações de terras como uma ferramenta de ação política legítima e eficaz, avançada pelo partido dos trabalhadores na inicial da ADI, remete a uma discussão clássica da Teoria do Direito: a possibilidade de um direito à resistência. Nesse debate, os conceitos chave são violência, política e direito, importando as relações entre seus conteúdos, que se reconfiguram constantemente no decorrer da história. O que se encontra em disputa é a possibilidade de um agir localizado além das fronteiras do direito constituído – pois reclama a capacidade de opor-se e revogar esse mesmo direito – mas que tenha um conteúdo jurídico, gerando efeitos na ordem normativa.

A luta dos trabalhadores Sem Terra encontra-se exatamente nessa região limítrofe do direito, pois a ocupação de terras, segundo os argumentos do PT, teria esse duplo caráter. Seria uma estratégia de ação que se encontra fora do direito, fora das possibilidades de atuação política prevista pela estrutura institucional da democracia constitucional brasileira. No entanto, seria também uma ferramenta para a realização de direitos já constituídos e não implementados. Correntes teóricas como o Direito Achado na Rua1 sustentam que a luta organizada dos movimentos sociais cumpre um papel na

reinterpretação das normas, emprestando uma dinamicidade ao conteúdo dos direitos

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que são declarados pelo Estado. Outras tendências como a reflexão produzida entre o camponeses do movimento zapatista no México afirmam as comunidades como instâncias criadoras do direito na medida em que os exercem, em uma práxis contínua2.

De qualquer forma, subsiste nas práticas contestadoras o pressuposto de que da ação direta podem surgir direitos. As lutas pela fruição desses direitos são encampadas e pensadas por todo o mundo, borrando os limites entre o direito e a política, desafiando os limites predeterminados pela ordem estabelecida para a participação popular. Os fenômenos que ocorrem nessas regiões fronteiriças entre a norma e o fato são, em geral, ignorados pelo direito, que tende a ocupar-se mais da reprodução de sua própria dogmática, segura nas ditas situações de normalidade. Ao fazê-lo, entretanto, ocultam-se as escolhas, os condicionamentos históricos, os compromissos políticos.

Romper o tradicional silêncio em relação ao que não se encontra seguramente dentre do domínio da norma requer, entretanto, cuidados. Não cabe à academia decidir sobre necessidade ou a validez moral de um ato de resistência. Se a ação política organizada pode desafiar o direito vigente almejando instituir um novo direito é uma questão que foge à dimensão do dever-ser. Pouca valia tem a tentativa da teoria de opor

-se ao fato de que a resistência existe como fenômeno, assim como existem as revoluções, guerras civis e regimes de exceção. Rejeitar ou corroborar sua validade podem ser puros exercícios de arrogância acadêmica. É preciso, no entanto, pensá-la,

compreender seus efeitos e causas e, finalmente, enfrentar a questão leninista: o que fazer?

O Supremo Tribunal Federal não tem o poder de definir como os trabalhadores Sem Terra guiarão suas práticas políticas, pois não pode banir por despacho uma ação que se desenrola contra o próprio direito. No entanto ele é instado a decidir. Sua responsabilidade decorre do fato de que é oferecida ao direito, no âmbito das democracias constitucionais, a prerrogativa de imbuir de legitimidade ou de rejeitar como ato criminoso os atos performativos dos agentes no espaço público.

Assim, a decisão do STF pode consolidar as organizações camponesas como violadoras da lei e, dessa forma, legitimar a mobilização da violência repressiva do Estado contra elas. Ou reconhecer a existência de uma situação de fato mais profunda

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que a aparente violência dos movimentos sociais contra o direito de propriedade, que demanda o enfrentamento político de suas causas não de suas consequências. Olhar para além da forma aparente não é ignorar a forma como os fenômenos emergem na realidade, nem assumir a premissa de uma separação completa entre forma e conteúdo. Pelo contrário, é buscar entender porque os fenômenos emergem naquela forma e o que isso diz sobre o conteúdo da mensagem.

A demanda para que seja oferecido um tratamento jurídico diferenciado para a ação direta de movimentos sociais como o MST põe em questão a necessidade e a possibilidade de pensarmos um direito de resistência hoje. As particularidades da questão fundiária no Brasil nos obrigam a abordar de forma reflexiva as teorias sobre a resistência mais assimiladas ao direito, pois a exigência do pacifismo desconsidera as relações de violência já existentes em várias formas. Delimitar o conjunto das ações possíveis no espaço do diálogo pacífico com as instituições pode funcionar como um mecanismo para impedir ações efetivas contra uma estrutura de dominação já estabelecida. No mesmo sentido está a exigência do recurso à ordem constitucional, uma ordem que não está imune a perpetuar e alimentar relações de opressão.

Neste trabalho pretendo promover uma análise da categoria violência que é utilizada para descrever as ocupações de terras enquanto fenômeno, destacando as repercussões políticas de seu uso e abordando criticamente seus efeitos na decisão do STF sobre o pedido de jurisdição cautelar na ADI 2.213. A pergunta que faço é como a relação entre violência e política que permeia as argumentações dos ministros no caso afeta a permeabilidade do STF a reivindicações populares por direitos? Em primeiro lugar, proponho que o discurso construído em torno das duas categorias, violência e política, deve ser localizado historicamente de forma a evidenciar como um consenso forçado sobre o que significa legitimidade foi tecido. Assim, com o intento de contribuir para a reflexão sobre a estrutura fundiária e as relações de poder que a permeiam e legitimam, no primeiro capítulo faço uma análise dos principais instrumentos legais que deram forma jurídica ao direito de propriedade no Brasil, a partir da revisão da bibliografia historiográfica sobre o direito agrário.

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objetivo do trabalho descreve-los exaustivamente, me concentro apenas nestes que são centrais. Além disso, sendo um dos objetos do julgamento na ADI 2.213-0 a ocupação de terras por movimentos sociais de trabalhadores rurais, ao retomar as histórias de resistência no campo abordo principalmente aquelas que remetem mais diretamente à formação desses movimentos. Sendo assim, a história aqui contada não faz jus a todas as experiências populares de luta no campo. Notadamente ficaram de fora as lutas de indígenas, quilombolas e outros grupos tradicionais. Não o faço por não reconhecer nesses grupos o potencial de ruptura ou acreditando haver uma linha clara entre a sua luta e a dos movimentos camponeses de acesso a terra. Registro aqui estas ausências esperando que possam ser futuramente supridas em outros trabalhos.

Como consequência das notas históricas que serão apresentadas, procuro desenvolver a ideia de que o Estado brasileiro participou ativamente do processo constitutivo da estrutura fundiária atual e das relações socioeconômicas dialeticamente entretecidas a ele. Rejeito, assim, a ideia segundo a qual a situação conflituosa no campo seja resultado de contingências locais, as quais teriam permitido a continuidade de supostos bolsões de arcaísmo a serem enfrentados pela ação externa de um Estado modernizador. Afasto-me, portanto, do que sugere parte significativa do pensamento político e social brasileiro de fins do século XIX em diante. Dessa forma, o que pretendo no capítulo é localizar a luta pela terra dentro de seu contexto, demonstrando que o direito de propriedade não é uma instituição humana natural e necessária, mas um constructo social e contingente. Além disso, procuro apontar que sua construção é resultado de interesses políticos e econômicos diante dos quais não se podem inferir serem qualitativamente mais racionais ou pacíficos do que projetos alternativos que a ela resistem e resistiram. Diante da necessidade de complexificar a reflexão da violência como uma categoria capaz de afetar profundamente o modo como os fenômenos são percebidos e problematizados, passo ao capítulo seguinte.

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STF, apontando seu caráter ideologizado e as premissas e consequências que são ocultadas em um uso descuidado desse conceito.

Apresento ainda a produção de Frantz Fanon sobre a violência inscrita nas sociedades coloniais para contrapor o discurso que Žižek aponta como sendo o suporte à violência institucionalizada que a descreve como um dado cotidiano da normalidade. Em seguida, proponho uma aproximação teórica entre o pensamento fanoniano sobre as possibilidades do que aqui será tratado como violência absoluta e as reflexões de Walter Benjamin sobre uma ordem de violência que não ponha nem mantenha o direito, mas o deponha. Assim, discorro sobre o conceito benjaminiano da violência divina, bem como suas consequências para uma abordagem da filosofia da história. Ambas as noções, tanto da possibilidade de uma violência de conteúdo político, quanto a dimensão histórica fenômenos sociais, serão importantes para uma crítica da atuação do STF na ADI 2.213.

Finalmente, no terceiro capítulo trato das formas pelas quais movimentos sociais, poder executivo e STF descrevem a luta pela terra com o objetivo de refletir sobre como essas descrições determinam a utilização da categoria violência que por sua vez é uma ferramenta discursiva para a delimitação das possibilidades de ação no mundo. Em primeiro lugar, trato das narrativas históricas construídas por movimentos sociais de luta pela terra, apontando seu papel na formação de representações sobre si e sobre o mundo que se contrapõem às narrativas oficiais e dão força às mobilizações populares.

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1.

A violência do direito de propriedade e a violência proprietária

A questão proposta pelos autores da ADI em relação à legitimidade das ocupações de terras como ferramenta de ação política é pouco discutida nas 171 páginas que compõem o acórdão do STF sobre o pedido liminar. Se comparada com a questão formal suscitada, relativa à competência do poder executivo federal para editar medidas provisórias, a discussão sobre violência e legitimidade desaparece do julgamento. Esse fato é sintomático: a aparente ausência do tema não significa que ele não seja importante para o resultado final da atividade jurisdicionária da Corte. Apenas os ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence chegam a sugerir que a criminalização das ocupações deveria ser de alguma forma problematizada. Entretanto, quanto aos demais ministros, a brevidade nas considerações sobre o tema sugere a existência de pressupostos que lhes parecem sob a forma de truísmos que dispensam discussões.

Alguns desses pressupostos podem ser inferidos das escolhas de palavras pelos ministros, daquilo que falam e sobre aquilo que se calam. Na ementa redigida pelo relator, são explicitadas algumas formulações que aparecem apenas de maneira lateral ou subentendida durante os votos. Duas delas são importantes para a crítica que será desenvolvida neste trabalho. A primeira é a de que a proteção do direito de propriedade é um pilar central para a tarefa de manutenção da paz social pelo direito. A segunda é que apenas o recurso à autoridade da Lei e das instituições do Estado pode ser meio apto à demanda por direitos3.

A necessidade de submeter noções como direito de propriedade e paz social a inquirição, na medida em que são centrais para a definição do que é violento e, portanto, deve ser excluído do ambiente da política, será trabalhada no próximo capítulo. Nesta primeira seção do trabalho, proponho uma breve análise de como a atuação legiferante do Estado foi central para a construção da ideia de direito de propriedade, de forma a

3Por exemplo, o ministro relator dispõe que “O respeito à lei e à autoridade da Constituição da República representa condição indispensável e necessária ao exercício da liberdade e à prática responsável da cidadania, nada podendo legitimar a ruptura da ordem jurídica [...]” e que “A necessidade de respeito ao império da lei e a possibilidade de invocação da tutela jurisdicional do Estado – que constituem

valores essenciais em uma sociedade democrática, estruturada sob a égide do princípio da liberdade –

devem representar o sopro inspirador da harmonia social, além de significar um veto permanente a qualquer tipo de comportamento cuja motivação derive do intuito deliberado de praticar gestos

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apontar que a associação entre essa forma de apropriação da terra e um quadro de harmonia social não corresponde à experiência histórica brasileira.

1.1. Notas sobre o conflito na história legal da terra

Desde o fim dos anos de 1970, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) recolhe informações sobre a violência contra trabalhadores e trabalhadoras do campo. Os arquivos da CPT, publicados na forma de cadernos desde 1985, formam um retrato dos conflitos agrários no país durante as últimas décadas (CPT, 2013). Os protagonistas das histórias de vida e morte no interior do país são diversos: indígenas, quilombolas, posseiros, ribeirinhos, e outras populações pauperizadas e excluídas. Os relatos da exploração que sofrem e de suas ações de resistência se espalham pelo mapa do Brasil seguindo os movimentos da chamada fronteira agrícola. O avanço dos latifúndios e da agricultura mecanizada em escala industrial é a outra face do apagamento histórico desses povos. O que os dados registrados pela CPT nos mostram são as últimas quatro décadas de um processo centenário de exploração e extermínio.

As consequências socioeconômicas atuais da distribuição da terra e de outros meios de produção no campo decorrem da construção do direito de propriedade no Brasil desde suas origens na legislação colonial. A constituição das terras brasileiras como um bem juridicamente apropriável se inicia em tratados ratificados pelo poder papal que serviram como suporte jurídico para que os reinos ibéricos repartissem as terras do continente latino-americano, a despeito dos povos que o habitavam4. Nas

colônias portuguesas que viriam a ser unificadas para formar o Brasil, o direito imperial projetava sobre as terras o título de propriedade da coroa, de modo que os reis portugueses detinham sua propriedade, podendo vende-la ou doá-la(NOZOE, 2006).

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1.1.1. O regime sesmarial : o controle sobre trabalho e terra

No processo de povoamento das terras brasileiras, a coroa portuguesa dispôs da terra distribuindo-a entre seus colonos na forma de sesmarias, um instituto jurídico medieval português transplantado para a colônia(NOZOE, 2006). O regime sesmarial remonta ao período seguinte à expulsão dos regentes muçulmanos da península ibérica. Para enfrentar a escassez de alimentos e mão de obra, a baixa produtividade das terras agrícolas e na tentativa de ocupar as terras abandonadas, o recente Estado português tomou para si a tarefa de regular e aplicar as regras consuetudinárias para a distribuição da terra, consolidando as práticas costumeiras na forma do regime sesmarial. Em nome do rei se distribuíam parcelas de terra destinadas à exploração familiar, as sesmarias – pequenas propriedades rurais a que os camponeses se encontravam ligados pela obrigação de cultivar, sob pena de expropriação (LIMA, 1990).

Esse discurso historiográfico sobre o direito agrário no Brasil, que assume a submissão dos territórios portugueses nas Américas ao regime fundiário lusitano como o ponto inicial da nossa história territorial, tem nos aspectos sociais do processo de colonização seu ponto cego. Ao construírem uma narrativa sobre o domínio da terra apenas do ponto de vista legal, autores como Ruy Cirne Lima(LIMA, 1990) ou João Octaviano Lima Pereira (PEREIRA, 1932) excluem do processo de ocupação territorial sua dimensão social e o caráter violento do processo de colonização como uma conquista de terras previamente ocupadas por outros povos. Ao naturalizar a expansão do direito português sobre a colônia, essa narrativa historiográfica oculta que o extermínio da população nativa foi fundamental para a construção ficcional do direito de propriedade. Além disso, o discurso historiográfico focado apenas nas espécies legislativas também ignora que as adaptações e as discrepâncias entre o direito oficial e as práticas de apropriação da terra eram elementos indispensáveis para a funcionalidade do sistema colonial.

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subjugação dos povos indígenas que habitavam o território. A dimensão oculta pela narrativa jurídica da apropriação das terras é o papel da violência exercida pelo Estado português, que conquistou militarmente as terras e tomou para si o papel de administrar e garantir a colonização do território, imprimindo de modo permanente na estrutura socioeconômica da colônia as marcas do extermínio legitimado pela ordem legal.

De forma consistente o Estado foi um agente ativo no processo de expansão da apropriação privada de terras que tinha como contraparte a destruição das formas tradicionais de fruição territorial. Desde o princípio da colonização a propriedade da terra se dá pela transferência do poder público para entes privados. Uma das condicionantes para a distribuição de sesmarias era a declaração do donatária de que dispunha dos meios necessários para explorá-la e defende-la, de modo que um dos principais critérios para o assenhoramento das terras brasileiras era a influência política junto à corte portuguesa e o poder econômico dos colonos (FAORO, 2001). As terras do norte e do nordeste do território, regiões mais produtivas no início do domínio português, eram distribuídas em porções substancialmente maiores que as terras do sul e sudeste, mais distantes e de aproveitamento menos intenso. As regiões mais ricas de Bahia e Pernambuco eram distribuídas principalmente entre a nobreza, que se favorecia dos recursos acumulados pela Corte, enquanto as terras onde hoje estão os estados do sudeste eram divididas entre lavradores que lidavam com terra com seus próprios recursos e escravos.

Entretanto, o vasto território brasileiro tinha características que dificultavam a adaptação do instituto português à realidade local. No pequeno reino ibérico, o regime sesmarial tinha como objetivo principal a ocupação de propriedades abandonadas por seus antigos donos, parcelas pequenas de terra que demandavam uma força de trabalho reduzida, doadas diretamente pela coroa. Quando foi trazido para o Brasil e regulamentado em 1521 nas ordenações manuelinas, o regime das sesmarias passou a ser administrado pela figura interposta de capitães-donatários, que recebiam o comando

(23)

JR, 2012).

Não se deve considerar, entretanto, que o descompasso entre a forma jurídica importada da metrópole e as formas concretas que a apropriação da terra tomou signifique uma disfuncionalidade do sistema colonial. Os interesses na distribuição da terra eram distintos: enquanto no pequeno e populoso reino lusitano, de território recém

-conquistado, era imperativo ocupar as terras com indivíduos nacionais e fazê-las produzir, a ocupação demográfica das colônias nas Américas era irreal. Nas possessões atlânticas, o principal interesse na apropriação do solo era a necessidade de restrição do acesso aos meios de produção – a terra e os recursos naturais – de forma a possibilitar o controle das populações nativas e a exploração do trabalho compulsório. Essa reconfiguração do direito de propriedade como instrumento para a gestão da mão-de

-obra torna-se desde o início da formação das instituições públicas nas Américas um elemento de continuidade.

Luiz Felipe de Alencastro (ALENCASTRO, 2000) chama a atenção para o fato de que a afirmação jurídica do domínio colonial português não era uma garantia da efetiva exploração econômica das colônias. Nas diversas regiões onde a coroa portuguesa tentou impor seus direitos de domínio, teve que enfrentar a rebeldia dos colonos ou das populações nativas para inserir os territórios conquistados nas malhas do circuito colonial metropolitano. No caso das colônias na América, havia a necessidade de, em um primeiro momento usar a mão-de-obra indígena, sendo para isso necessário retirar os nativos de seu espaço e submetê-los a um regime de expropriação dos meios de produção. Mais tarde, a inserção do mercado regional no circuito comercial do atlântico se baseou no embaraço da escravidão indígena e pela implantação do trabalho compulsório dos negros africanos, que deveriam igualmente ser excluídos do acesso à terra.

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propriedades e as regiões intocadas do interior, onde as populações indígenas ainda eram vistas como representando uma ameaça constante. Assim, as sesmarias se concentravam principalmente nas zonas de colonização mais consolidada, mais populosas e com organização administrativa melhor delineada, enquanto as terras tomadas em posse predominavam na fronteira econômica (NOZOE, 2006).

Apesar de existir fora do sistema proprietário das sesmarias, o apossamento era uma prática tolerada pela administração colonial, sendo protegida pela legislação em observância ao princípio tradicional de que o trabalho é fato gerador de direitos sobre a terra (LIMA, 1990). Os dois sistemas conviveram de maneira complementar, porém conflituosa, até 1822, quando, às vésperas da independência do Brasil, a Mesa de Desembargo do Paço, o órgão administrativo baseado no Rio de Janeiro que então era o responsável pelo registro de terras, decide suspender a doação de sesmarias. As razões para o fim do instituto jurídico das sesmarias não são totalmente conhecidas5, no

entanto, o certo é que a partir de 17 de junho de 1822 deixou de existir um regulamento jurídico sobre a política de terras no país, situação de se manteve até 1850, quando foi promulgada a lei 601/50, a lei de terras.

No intervalo entre o fim do regime sesmarial e a entrada em vigor da lei de terras, nenhum marco legal incidia sobre a aquisição privada de terras. Nesse período a posse passou a principal forma de aquisição de domínio sobre imóveis rurais. Contudo, esse momento de hegemonia do apossamento não significou a transformação da pequena propriedade rural em norma. Enquanto dividiam lugar com as sesmarias, a principal característica da posse é que sua precariedade limitava o tamanho das propriedades, que só podiam ser mantidas em razão da sua exploração direta. Sem um regulamento jurídico próprio, as sesmarias tornaram-se elas mesmas posses. A prática costumeira perdeu assim o elemento da produtividade como central e a formação de grandes latifúndios baseados no apossamento de terras foi generalizada(LIMA, 1990). Assim, essa fase áurea para o regime de posses não significou uma mudança significativa da distribuição de terra e poder no campo, sendo mantidas a forma escravista de produção e o foco na monocultura agroexportadora (STAUT JR, 2012).

1.1.2. A lei de terras: exclusão negra e controle migratório

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Com a promulgação da lei de terras foi estabelecido o conceito de terras devolutas, definidas como aquelas que não haviam ainda sido apropriadas por particulares e que a partir de então estariam sobre o domínio do governo imperial. A lei estabelecia que essas terras só poderiam ser transferidas para o domínio privado mediante transações de compra e venda e também estabeleceu regras para a validação dos títulos já distribuídos, assim como para a transformação da posse mansa e pacífica em propriedade (LIMA, 1990). Percebe-se nos discursos em prol de sua aprovação que a lei de terras foi uma estratégia legislativa modernizadora, uma tentativa de mudança do regime no qual o apossamento ainda era a forma mais comum de aquisição de domínio para outro no qual a apropriação contratual fosse a regra. Uma das intenções dos legisladores do império, animados pelo ímpeto positivista e capitalista, era que a terra deixasse de ser um privilégio ou dádiva concedida pelo poder real e passasse a ser mercadoria (STAUT JR, 2012).

Essa transição foi um passo em direção à inserção da economia rural brasileira em um projeto de expansão capitalista de abrangência global, racionalizando a distribuição de terras e conferindo garantias nas relações estabelecidas entre a produção rural e o capital financeiro e industrial urbano. A reconfiguração jurídica da terra como propriedade privada alienável foi essencial para o desenvolvimento de formas contratuais e creditícias, como as hipotecas, que passaram a poder tomar a terra como garantia do crédito, essencial para permitir os investimentos em infraestrutura requeridos pelo crescimento da produção agrícola, principalmente da cultura do café, do fim do século XIX em diante (GASSEN, 1994). O interesse sobre a terra foi deslocado, assim, de sua capacidade produtiva para seu valor enquanto reserva patrimonial.

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imigrantes fossem capazes compra-las antes de alguns anos de trabalho assalariado. Os

recursos apurados dessa forma serviriam então para financiar a contratação de novos trabalhadores no exterior, garantindo um equilíbrio entre a distribuição das terras a explorar e a quantidade de mão de obra disponível no mercado nacional(CARVALHO, 2003).

A transição da massa trabalhadora no campo, do trabalho compulsório para o assalariado, trouxe ainda um novo problema: como evitar que a população de ex

-escravos se tornasse proprietária de terras? A questão de como dispor da multidão negra em solo brasileiro se colocava desde o auge dos debates sobre nacionalidade, na primeira metade do século XIX. Mesmo entre as vozes antiescravistas, a exclusão dos negros parecia ser uma necessidade para a formação do Estado nacional 6

(DOMINGUES, 2005). No rígido esquema de controle social que subordinava negros cativos e libertos, é notório que a Lei de Terras haja sido promulgada duas semanas após a Lei Eusébio de Queirós, que impôs o fim oficial do tráfico de escravos (MENDES, 2009).

A importação da mão-de-obra branca e exclusão territorial da população negra são facetas indissociáveis de um projeto de embranquecimento do país que se tornou política institucional a partir do século XIX. Apesar de aparecer explicitamente no discurso inclusive de notórios abolicionistas7 é nos silêncios da lei que a questão racial

será tratada. Manuela Carneiro Cunha (CUNHA, 2009) mostra como a política legislativa em relação à escravidão era desenhada com o objetivo declarado de manter as relações escravocratas, mesmo sem instituí-las positivamente. Um exemplo da divisão do controle social sobre os negros que existia entre o Estado e as elites proprietárias era gestão das cartas de alforria.

Cunha sustenta que ao contrário do que acreditavam alguns cronistas do Brasil

6 Dois mecanismos exemplares das formas de controle sobre as populações subordinadas do Brasil e que se prestaram a esse projeto são descritos por Petrônio Domingues: O incentivo à emigração negra de volta à África e o emprego desproporcional de soldados negros na Guerra do Paraguai. Sobre o Primeiro, Petrônio aponta que mais de 2 mil vistos de saída do país foram distribuídos a escravos libertos entre 1820 e 1868. Além disso, sugere que há evidências de que a deportação em massa dos negros era pensada seriamente como uma possibilidade pelas elites do império. Quanto à guerra, estima-se que após o confronto a população negra no país havia sido reduzida em 57% (DOMINGUES, 2005)

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novecentista, não existia obrigação legal de distribuição de cartas de alforria mediante pagamento. Por outro lado, essas mesmas cartas poderiam ser revogadas por ingratidão dos negros libertos em relação aos antigos mestres. Esse pequeno arranjo de entre norma e lacuna seria característico da estrutura de compartilhamento do poder sobre a população negra. Principalmente desde a revolta do Haiti em 1791, o controle dos negros enquanto um grupo demográfico constituía uma questão elementar para a sociedade colonial, assombrada com a imagem de uma população majoritariamente negra (CUNHA, 2009). A dinâmica entre os silêncios e as intervenções legais operou na construção de formas jurídicas aptas a permitir o embranquecimento da nação e manter subordinados os negros, ainda que libertos.

Durante os mais de 100 anos em que vigorou, a lei terras foi, na prática, um instrumento legal para a defesa da forma específica de propriedade representada pelas grandes propriedades monocultoras. A fragilidade da estrutura burocrática e a conivência do poder público não eram capazes de evitar que os latifúndios se apossassem das terras circunvizinhas, frequentemente recorrendo à expropriação violenta de trabalhadores rurais pobres e comunidades tradicionais. Por outro lado, o Estado se mostrou eficiente na defesa dos títulos de propriedade, nem sempre verdadeiros, apresentados pelos latifundiários (CARVALHO, 2003). A rejeição do sistema de posse em favor da aquisição monetária jogou na ilegalidade formas de ocupação da terra que não se encaixavam nos moldes do mercado de imóveis rurais.

Apesar de a lei prever o reconhecimento jurídico de terras destinadas costumeiramente ao uso comum, essa proteção não abarcava as terras de ocupação permanente. Havia um benefício claro para os grandes pecuaristas, que faziam uso das terras comunais para desenvolver suas atividades. Entretanto, o regime de venda das terras devolutas excluía, na prática, o reconhecimento da propriedade de indígenas e quilombolas sobre suas terras. O modelo de propriedade construído pela lei de terras e pelas políticas agrárias implementadas nos seu período de vigência privilegiaram a apropriação privada e individual, limitada pela barreira econômica à formação de uma classe de pequenos produtores rural, causando a exclusão sistemática das populações camponesas e a formação de um quadro crônico de concentração fundiária (GERMANI, 2008).

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Na passagem do século XIX para o século XX, revoltas camponesas como a rebelião de Canudos, no interior da Bahia, e do Contestado, no Paraná e santa Catarina, foram os momentos culminantes das tensões entre os grandes proprietários rurais e o campesinato. Elas são representativas do compromisso assumido pelo Estado brasileiro com os interesses do latifúndio. Nos dois movimentos populares, a insurgência contra a estrutura fundiária e a subordinação do trabalho rural foi enfrentada como um conflito político que colocava em risco a ordem social. Em Canudos, quatro excursões militares foram enviadas antes que o arraial fosse finalmente invadido e destruindo. Na época, as estimativas do exército apontavam uma população de aproximadamente 25 mil pessoas em Canudos, a grande maioria morta na invasão ao arraial. Em contestado, a resistência contra as expropriações realizadas pelo governo e por empresas estrangeiras foi sufocada também pela atuação das forças armadas, que utilizaram inclusive a aviação militar, matando entre cinco e oito mil camponeses (HERMANN, 2006).

A partir do final dos anos de 1920, grupos partidários de esquerda, principalmente o Partido Comunista Brasileiro, reconheceram a importância da organização política camponesa, dedicando-se à formação de associações sindicais no campo. Em 1932 foi criado o primeiro sindicato de trabalhadores rurais do Brasil, em Campos, no Estado do Rio de Janeiro (WELCH, 2006). O embrião de um dos mais importantes movimentos sociais do campo no Brasil, as Ligas Camponesas, surge poucos anos depois, nos anos 40 com a organização de camponeses que não conseguiram formar sindicatos rurais e uniram-se, com participação de membros Partido Comunista Brasileiro, em ligas. Esse primeiro ensaio de mobilização foi abortado em 1948, quando o PCB foi forçado à clandestinidade (NETTO, 2007).

Animadas pela luta de camponeses arrendatários em Pernambuco – os foreiros – as ligas ressurgem em meados dos anos de 1950, mais organizadas, com uma rede de articulação mais ampla. Sua versão original, dos anos 40, era formada por núcleos isolados, sem uma frente urbana que pudesse denunciar a violência contra o movimento no campo, o que os deixava vulneráveis aos ataques dos proprietários de terras. Novamente articulado por membros do PCB, a segunda geração das ligas tinha estrutura centralizada em polos regionais, de modo que a liderança do movimento se encontrava fora dos focos de conflitos (WELCH, 2006).

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exploravam a terra pertencente a um latifundiário em troca de um pagamento, foi importante para a caracterização das demandas do movimento, modelo para as lutas camponesas no futuro. A luta dos foreiros era necessariamente pelo reconhecimento de um direito de propriedade. Elide Bastos(BASTOS, 1984) sugere a interpretação de que os foreiros se mobilizavam para manter os domínios pela terra que carregava a marca de seu trabalho. O valor demandado não era a terra como mercadoria, mas o trabalho despendido. A diferença é sutil apenas na aparência: o tratamento da terra na forma de mercadoria, como foi estabelecido pela lei de terras é condição necessária para o avanço do modelo capitalista rural forjado a partir de 1850. Não apenas a utilização da terra como valor, a fim de financiar a atividade produtiva, dependia de seu caráter reificado, mas a legitimidade do laço jurídico entre o proprietário e a propriedade dependia de sua desvinculação em relação ao trabalho (GASSEN, 1994).

As ligas são representativas do grau de tensão social no campo em meados dos anos de 1960. Em sua ala mais radical, as ligas rejeitavam a possibilidade de mudanças na estrutura agrária do país, baseada na exploração do trabalho camponês, por meio de reformas legais conduzidas pelo Estado. Depois de 1961, após a batalha da Baía dos Porcos e coroação da vitória da revolução socialista cubana, a proposta de radicalização do movimento tornou-se hegemônica entre as ligas. Elas deixam a militância legal e pacífica em segundo plano e passam a concentrar seus esforços na organização de focos de guerrilha armada. No nordeste do Goiás surge o primeiro campo de treinamento. Uma unidade com grande autonomia dentro da organização das ligas, formada por estudantes secundarista, Universitários e trabalhadores rurais de Pernambuco e Goiás(BASTOS, 1984).

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Arraes afirmava-se ideologicamente simpático às demandas da população

rural, contudo, o protagonismo assumido pelas organizações de trabalhadores rurais começava a ameaçar a ordem social. Insatisfeitos com progressos oferecidos pelo governo aos trabalhadores sindicalizados, que beneficiavam apenas os assalariados rurais, camponeses das ligas passaram à ocupação de engenhos abandonados e terras devolutas como forma de pressionar por uma reforma na distribuição de terras. A resposta do governo pernambucano é a defesa da propriedade e a desocupação. Para fazer frente às ligas, proprietários rurais se armam e formam grupos de repressão. No ano de 1963 os conflitos atingem seu grau máximo, com a ocupação de terras, greves, assassinato de lideranças sindicais e camponesas, espancamentos de trabalhadores pelas milícias de proprietários rurais (BASTOS, 1984).

1.1.4. A questão fundiária na ditadura civil-militar

Apesar dos conflitos que marcaram o período, poucas alterações significativas foram feitas à lei de terras durante sua vigência. Uma delas foi a autorização da desapropriação mediante indenização de terras consideradas de interesse público, incluída na lei após o movimento revolucionário de 1930 que levou Getúlio Vargas ao poder, sem, no entanto, modificar a estrutura fundiária do país. A legislação imperial só foi substituída em 30 de novembro de 1964 pela Lei n. 4.504, o Estatuto da Terra, produzido pela ditadura civil-militar que governava o país e que foi um dos primeiros códigos de uma série de instrumentos legais dedicados a moldar a estrutura econômico

-financeira do país durante o regime repressivo. De modo surpreendente, em termos legislativos o estatuto apresentava importantes avanços, instituindo o cadastramento de propriedades, criando mecanismos legais para a desapropriação para fins de reforma agrária, além da estrutura administrativa para gerir a política de reforma agrária.

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“democrática e cristã”, noção usada por esses mesmos grupos como uma alternativa contra a opção dita socialista de Goulart (BRUNO, 2013).

Assim, a estratégia adota pelos grandes proprietários de terras foi questionar o conceito de reforma agrária, sustentando que os problemas no campo eram uma questão rural e não agrária. Com isso procuravam afirmar que a atuação estatal deveria focar-se

em uma política econômica para beneficiar os produtores rurais e que o problema não era a exclusão do trabalhador rural da propriedade da terra (BRUNO, 2013). Esse foi o discurso que guiou a pratica dos governos militares. Após o fim do governo do General Humberto de Alencar Castelo Branco, o projeto de uma reforma agrária que significasse uma alteração efetiva na distribuição de terras foi definitivamente abandonado. Os principais eixos da política agrária foram a modernização do campo – significando mecanização da produção e disponibilização de crédito – e a colonização, deslocamento das massas de trabalhadores rurais para as zonas de fronteira agrícola. Os grandes beneficiários da ação governamental foram os latifundiários: no período que compreende a ditadura militar e o período democrático anterior a constituição de 1988, cresceu a concentração de terras e, com ela, os conflitos no campo (GERMANI, 2008).

Dos dois grandes objetivos do Estatuto da Terra, a modernização da agricultura e a reforma agrária, apenas o primeiro foi de fato encampado pelo governo. Transformar a fazenda em empresa rural foi o principal foco das políticas públicas dedicadas ao campo. O principal efeito dessas políticas, voltadas principalmente para a disponibilização de crédito, foi tornar a propriedade rural um investimento atrativo para o capital industrial e urbano concentrado no centro-sul do país. Com os incentivos fiscais oferecidos pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), as elites capitalistas de raízes industriais se colocaram entre os maiores proprietários de terras no Brasil. Assim, as mesmas empresas que estavam na vanguarda do desenvolvimento industrial, protagonizando disputas trabalhistas contra o operariado urbano, praticavam no interior do país formas de trabalho análogas à escravidão (OLIVEIRA, 2001).

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camponesas foram desarticuladas mediante a prisão de seus principais líderes (BASTOS, 1984). Agindo contra a lei e contra as garantias constitucionais dos camponeses, a ditadura militar criminalizou tentativas de organização dos trabalhadores rurais e defendeu os interesses de latifundiários e empresas agropecuárias. Na implementação forçada de seu projeto de colonização do interior, os governos militares colocaram seu aparato repressivo à disposição das empresas que administravam a construção das colônias agrícola no Norte e no Centro-Oeste, contra posseiros e indígenas que ocupavam as terras supostamente disponíveis (BRASIL, 2014).

1.1.5. Redemocratização e o conflito contemporâneo

O fim da ditadura civil-militar em 1985 não muda significativamente a repressão violenta no campo. Nesse ano foi aprovado o 1º Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), previsto no Estatuto da Terra desde 1964, anunciado em um congresso de trabalhadores rurais. Como reação, proprietários rurais criaram a União Democrática ruralista (UDR), organização dedicada à defesa dos interesses dos latifundiários no congresso brasileiro, mas que também advogava pelo que seus membros chamavam de autodefesa contra invasores (MEDEIROS, 1996). A UDR foi a principal protagonista da violência no campo no fim do século XX, promovendo assassinatos de lideres camponeses, indígenas e defensores de direitos humanos ligados à causa da reforma agrária (BRASIL, 2014). Conivente com a ação violenta da UDR, o governo federal pouco fez para tirar o PNRA do papel. A estrutura burocrática para sua implementação foi desarticulada e ao fim do governo de José Sarney, de um milhão e quatrocentas mil famílias previstas como beneficiárias do plano, apenas 140 mil haviam sido assentadas.

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Ao lado de organizações ligadas à igreja católica, como o Comitê Indígena Missionário (CIMI) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e entidades sindicais como a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), o MST participou do processo constituinte que se iniciou com o fim da ditadura. Ao bloco defensor da reforma agrária se opunha uma aliança ampla de grupos ligados aos latifundiários, a Frente Ampla da Agropecuária (FAAP) (BUTTÒ, 2009). A polarização do debate na Assembleia Nacional Constituinte está expressa no texto constitucional nos artigos dedicados à reforma agrária.

O artigo 184 representa um avanço ao estabelecer o dever de cumprimento da função social da propriedade, definida no artigo 186 como uma conjunção entre a dimensão econômica de sua exploração e as dimensões ambiental, trabalhista e social. Entretanto, o artigo 185 cria um obstáculo à efetivação da reforma agrária ao determinar que as propriedades produtivas sejam insuscetíveis de desapropriação. Em razão desse conflito entre comandos constitucionais, apenas o aproveitamento econômico é atualmente utilizado como argumento para a desapropriação de terras para fins de reforma agrária, mas ainda de forma imperfeita, pois a indefinição sobre o sentido da expressão propriedade produtiva também é um instrumento discursivo usado para que o poder público deixe de implementar uma política de distribuição de terras consistente (QUINTANS, 2009).

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Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o aparato burocrático era infenso às demandas das populações rurais e parte da equipe econômica do governo defendia que a solução para os conflitos agrários eram projetos para a inclusão dos trabalhadores do campo na força de trabalho disponível nas cidades (MARTINS, 2003). Herdeiro da situação calamitosa entregue pela ditadura e ignorada pelos governos democráticos sucessivos, Fernando Henrique tentou promover reformas tímidas que reduzissem as tensões no campo sem mudar profundamente a estrutura fundiária no país. Com esse objetivo foi instituída uma política de assentamentos que tinha como foco principal a regularização das posses já existentes e ocupação de terras na fronteira agrícola, no Norte e Centro-Oeste, mas que seguia um modelo repressivo nas regiões de ocupação estabelecida como o Nordeste e o Sudeste (MARTINS, 2003).

Uma conjuntura de fatores como a militarização promovida pela UDR, a omissão do Estado na investigação e punição dos crimes cometidos contra as populações rurais, e o abandono sentido pelas famílias assentadas nos programas do governo federal, aliadas ao fortalecimento das organizações camponesas como o MST, a ocorrência de conflitos no campo teve um crescimento que se manteve por toda a década. Em 1995, em um dos 440 conflitos ocorridos naquele ano, onze pessoas morreram e centenas ficaram feridas na desocupação da fazenda Santa Elina, no município de Corumbiara/RO. Na ocasião, policiais e pistoleiros foram acusados de matar e torturar em cumprimento do mandado de reintegração de posse expedido pela justiça estadual de Rondônia (Mesquita, 2002).

No ano seguinte ocorreu o massacre de Eldorado de Carajás, no Pará, que resultou em 20 mortos e 51 feridos. Novamente os responsáveis portavam a farda e a responsabilidade do Estado. A barbaridade dos casos e a flagrante participação de agentes públicos fizeram com que esses casos repercutissem na imprensa e o tema da violência no campo ganhou dimensão nacional e passou a integrar os debates públicos. Na mesma época, cresceu o número de ocupações de terras em todas as regiões do país, assim como se notabilizou a utilização da tática de ocupação de prédios públicos pelo MST (MEDEIROS; LEITE, 2004).

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Eldorado dos Carajás. A marcha teve grande repercussão e reuniu em torno de si as principais forças de oposição ao governo da época. Além da questão fundiária, a marcha também se apresentou como um protesto contra o programa de privatizações levado a cabo pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. Por suas dimensões e caráter ideológico, o MST se tornou a principal força antagônica ao governo fora do congresso.

A esperança de concretização da reforma agrária se reacendeu em 2002, quando Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente pelo Partido dos Trabalhadores, uma legenda de esquerda nascida durante a redemocratização, oriunda de organizações ligadas à igreja e ao movimento sindical. Entretanto, os resultados apresentando pelos governos petistas nos últimos 12 anos são desanimadores. Lula e sua sucessora Dilma Rousseff não foram capazes de enfrentar a resistência dos latifundiários organizados no congresso para a promoção de uma reforma agrária nos moldes exigidos pelos movimentos sociais. Ao invés disso, deram continuidade ao projeto do antecessor Fernando Henrique para uma reforma assistida pelo mercado, baseada principalmente na oferta de crédito.

Durante o primeiro mandato de Lula foi lançado o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária. Novamente o plano teve poucos impactos e a maior parte dos recursos destinados à reforma agrária foi aplicado nos assentamentos já existentes. O resultado dessa política se expressa no número de famílias assentadas. Em 2010, ao final dos oito anos de governo Lula, as metas do 2º PNRA, estabelecidas para o final de 2006, ainda não haviam sido atingidas (MATTEI, 2013). O governo de Dilma Rousseff não teve resultados melhores, sendo considerado pelos movimentos sociais do campo como um dos piores na questão agrária. Nos quatro anos de seu primeiro governo, o número de famílias assentadas atingiu uma baixa histórica enquanto os conflitos no campo disparam (CPT, 2013).

Nos últimos 20 anos, a tentativa de promover uma reforma agrária guiada pelos princípios do mercado se mostrou fracassada. Não houve mudança significativa na concentração de terras, que se manteve acima de 0,8, medido o índice de Gini8 (MATTEI, 2013). A violência no campo também não foi reduzida, mesmo com a

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política conciliatória assumida pelo PT. A luta pela posse da terra continua viva, agravada pelo fracasso do Estado em demarcar e proteger terras indígenas e quilombolas, pelo impacto de grandes obras de infraestrutura capitaneadas pelo governo e pela conivência das autoridades policiais e judiciárias com a violência direcionada contra os trabalhadores rurais.

1.2. Violência no campo: repressão pública e privada

Os séculos de colonização do território brasileiro contam uma narrativa da participação do Estado na formação da estrutura de distribuição fundiária atual e seu compromisso na manutenção dos caracteres fundamentais dela. O papel das instituições de governo na permanência da violência no campo sugere que o fenômeno não pode ser abordado sob o enfoque apenas das relações de produção locais, mas compreendido a partir de sua inserção no modelo capitalista nacional. Ainda mais importante é a conclusão de que a dimensão do compromisso assumido pelo Estado sugere que diante da dinâmica de poder na qual se insere, a imparcialidade das normas e das instituições jurídicas não pode ser pressuposta.

1.2.1. A tese dos dois “Brasis”

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Pensar o Brasil como um amálgama de realidades inconciliáveis não é um trunfo pioneiro de Oliveira Viana, que foi precedido pelas teses do evolucionismo racial e do determinismo geográfico de autores como Silvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha (ORTIZ, 1994). No entanto, coube a Viana construir a imagem de um Estado modernizador capaz de superar as cisões internas da sociedade brasileira que finca raízes duradouras no pensamento social e político brasileiro. Essa tese é hoje um dos fundamentos da presunção de que as instituições do Estado, notadamente o poder judiciário, são representantes de um projeto modernizador que nunca foi plenamente realizado e que, assim, tem acesso a uma racionalidade imparcial frente aos conflitos políticos que se desenvolvem fora delas.

Assumindo como premissa a existência de uma ordem social baseada no domínio privado exercido por oligarquias locais em oposição a uma ordem moderna tutelada pelo Estado como pacificador e modelador da comunidade política, importantes nomes do pensamento brasileiro dedicaram-se a compreender os problemas do país segundo uma chave que opunha as relações sociais de produção no campo, consideradas retrógradas, àquelas travadas no espaço urbano, regido pela norma modernizadora do Estado. Essa compreensão foi central para a intelectualidade brasileira de esquerda e foi o centro de importantes debates ocorridos nos anos 1960 e 1970 (DEMIER, 2007).

Opor as estruturas atrasadas do patriarcalismo rural ao dinamismo do capitalismo industrial urbano foi uma chave analítica tanto para os teóricos do PCB quanto para os intelectuais vinculados à Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) e ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), por exemplo. Apesar de o primeiro pensar a dimensão política da sociedade brasileira e o segundo, a econômica, a proposta de ambos era que o desenvolvimento econômico brasileiro dependia da criação de uma burguesia nacional que fosse capaz de promover a inclusão política da população e a universalização de direitos civis. Nesse intento, as principais forças contrárias seriam as classes privilegiadas por privilégios quase aristocráticos e a burguesia internacional desejosa de manter a dependência do país (DEMIER, 2007).

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irrestrito de privilégios no Brasil. Entre um país moderno, dinâmico e rico e um país retrógrado e empobrecido. A conjugação entre o capitalismo vicejante nas capitais e na costa e o sistema semifeudal no interior apareceram no pensamento social e econômico como uma das grandes dificuldades a serem superadas no caminho para o desenvolvimento econômico do país.

É importante ressaltar que essa divisão nunca foi, de fato, geográfica. Ao menos não nos termos da geografia oficial. Sob diversas formas e em distintos graus, as relações sociais coloniais, supostamente residuais e circunscritas aos grotões do interior, permaneceram como parte da realidade do povo brasileiro na cidade e no campo, das favelas nas metrópoles aos latifúndios nas zonas rurais. De norte a sul do país modos de viver tradicionais e arcaicos se mantém ao lado de subjetividades assimiladas às demandas do capitalismo contemporâneo, o que não impediu que essa complexidade fosse reduzida na oposição cidade/campo. Assim, não faltaram políticas públicas que se propusessem a desfazer o atraso crônico doBrasil profundoe assumissem a tarefa messiânica delevar cultura aos cantos esquecidos da nação. Essas ideias atravessam políticas agrárias, de saúde, educação e desenvolvimento econômico que foram as bandeiras de sucessivos governos na história brasileira.

1.2.2. A tese do desenvolvimento desigual e combinado

A noção de que a relação entre essas duas realidades constitui uma oposição inconciliável foi desafiada em diversos trabalhos, sendo tributária da teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Leon Trótsky. O potencial crítico da teoria de Trótsky está na inserção da categoria totalidade em sua reflexão sobre as relações de produção na Rússia do começo do século XX e no resto do mundo. Segundo o teórico marxista Michel Löwy, o capitalismo como visto por Trótsky teria a capacidade de reunir em torno de si todas as outras formas de produção, destruindo algumas e incorporando outras, transformando o mundo inteiro em um grande organismo unitário (LÖWY, 1995).

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