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V Encontro Nacional da Anppas 4 a 7 de outubro de 2010 Florianópolis - SC Brasil

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Regimes de propriedade comum e livre acesso:

aspectos sobre a constituição

das territorialidades da pesca no baixo Solimões – Manacapuru, Amazonas.

Antonio Carlos Witkoski (Universidade Federal do Amazonas – UFAM/Brasil) Dr. em Sociologia, Pesquisador e Professor do Dpto. de Ciências Sociais/UFAM acwitkoski@uol.com.br Pedro Rapozo (Universidade Federado do Amazonas – UFAM/Brasil ) Mestre em Sociologia , Pesquisador do Núcleo de Socioeconomia da UFAM.

pedro_rapozo@hotmail.com

Resumo

O estudo discorre sobre as relações de trabalho na pesca comercial e de subsistência em comunidades rurais na região do Baixo Solimões em Manacapuru/AM, a partir da constituição de territorialidades enquanto veículo para compreender o uso e a apropriação comum dos recursos pesqueiros em áreas comumente denominadas de livre acesso dos lagos e do Rio Solimões. Neste sentido, o interesse perpassa pela relação entre a apropriação dos recursos pesqueiros, a formação das territorialidades e a dimensão social dos conflitos estabelecidos pela posse em lugares que geralmente são naturalizados como espaços de uso comum aos recursos disponíveis.

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Dimensões constitutivas da pesca e da produção de territorialidades

As mudanças históricas e socioambientais que marcam o modo de vida das comunidades rurais do estado do Amazonas indicam o desenvolvimento particular de condições sociais singulares à constituição dos agrupamentos humanos na Amazônia. Pois, englobam dimensões complexas de apropriação social dos recursos naturais, trajetórias de vida, assim como dimensões materiais e imateriais da constituição organizacional das sociedades locais, bem como processos de territorialização e, sobretudo, mudanças decorrentes nas atividades de trabalho desenvolvidas, envoltos numa dinâmica característica do mundo rural amazônico.

Neste contexto, a pesca destaca-se como umas das principais atividades desenvolvidas, configurando elementos de mediação nas relações entre os indivíduos locais quanto ao uso e apropriação dos recursos pesqueiros, representações do mundo, do trabalho e das mudanças ocasionadas pelo desenvolvimento do setor comercial na região da Amazônia e de sua intensificação no setor econômico nacional.

A importância do desenvolvimento e aperfeiçoamento da pesca, praticados pelos habitantes das várzeas e terras-firmes da região, demonstra a capacidade de articulação de um modo de vida muito singular, onde o domínio do saber prático considera a dinâmica da vida nos rios da Amazônia, na sazonalidade dos seus períodos hidrológicos, e nas transformações que atendem aos interesses dos homens como agentes sociais interessados que se apropriam destes e de outros recursos disponíveis.

O processo histórico e socioeconômico vivenciado pelos grupos sociais rurais locais, no que se refere ao uso dos recursos pesqueiros, pode ser compreendido a partir das transformações político-sociais ocorridas neste processo, sobretudo, no decorrer do século XX, com as estratégias de intervenção político-econômica na Amazônia, aliado ao discurso desenvolvimentista (RUFFINO, 2004, SILVA, 1996).

Assim, as alterações que marcam o desenvolvimento do setor pesqueiro na Amazônia articulam, de um lado, os processos e projetos de intervenção do modo de produção capitalista que levaram ao desencadeamento da pesca comercial na região e, de outro, pelas transformações culturais do modo

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de vida, das representações sociais1 do mundo e da própria pesca enquanto atividades constituintes da vida dos grupos sociais locais.

A maior procura pelo desenvolvimento do trabalho na pesca comercial, para além de ser eminentemente uma atividade de subsistência das comunidades rurais, vem marcando profundamente as transformações socioeconômicas do trabalho desenvolvido nas comunidades rurais do estado do Amazonas, onde grande parte de seus moradores, nas últimas décadas, sobretudo, com o maior incentivo do Estado nacional neste setor, passaram a se dedicar prioritariamente como atividade profissional, sendo o objetivo principal garantir uma renda mensal a partir da exploração comercial dos recursos pesqueiros em determinados locais da região.

É claro que estas atividades acabaram implicando em outras questões pertinentes ao mundo social da vida local. A demarcação dos espaços sociais na pesca comercial e de subsistência entre os agentes envolvidos fora um dos elementos atenuantes, pois acabou criando conflitos sociais pelo acesso aos recursos pesqueiros e a (re) configuração das relações de trabalho na atividade pesqueira, sobretudo, advindos da crescente exploração da mão-de-obra do trabalhador rural na pesca comercial, sendo reflexos deste processo e articulado à vida dos sujeitos envolventes neste contexto.

Estas mudanças são perceptíveis quando se trata da questão que envolve a pesca comercial. Na região do Baixo rio Solimões está localizada uma área denominada Costa do

Pesqueiro no Município de Manacapuru/AM, onde a pesca comercial na maioria das comunidades

vem se desenvolvendo ao longo das ultimas décadas enquanto principal atividade profissional entre os sujeitos locais. A intensificação da comercialização na pesca realizada nos lagos da região e, sobretudo, no rio Solimões, vem delineando a profissionalização do setor econômico pesqueiro entre os indivíduos que a possuem como única fonte de renda para além das outras atividades complementares que garantem a subsistência do modo de vida rural.

1 “Compreendemos que a representação social é „uma forma de conhecimento socialmente elaborada e compartilhada, que tem um objetivo

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O lócus desse espaço social tem apresentado, de forma latente e manifesta, inúmeros conflitos sociais pela posse e uso dos recursos ictiofaunísticos envolvendo diferentes tipos de pescadores das comunidades locais.2 Esses conflitos vêm delineando a constituição de territorialidades onde a demarcação pela apropriação de diversas áreas de pesca comercial e de subsistência é mediada –

2“Ao estudar uma comunidade, vemo-nos diante de uma grande variedade de problemas. A questão é saber se todos são igualmente

centrais para compreendermos o que confere a um grupo de pessoas um caráter específico – o caráter de comunidade” (ELIAS e SCOTSON, 2000, P. 165).

Figura 01 – Localização geográfica da Costa do Pesqueiro. Fonte: RAPOZO, 2010

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ainda que de modo incipiente – pelas normas instituídas através do Estado3 como mediador que regula o acesso aos recursos pesqueiros, através de acordos de pesca, manejos, proibições de determinadas espécies e locais, sobretudo nos lagos. De maneira geral, estas ações são pautadas sob uma política de Estado específica que trata de questões pontuais sobre as formas de apropriação dos recursos pesqueiros.

Por outro lado, grande parte das áreas de livre acesso destinadas a apropriação comum possuem delimitações locais especificas, fugindo das instâncias normativas destas áreas, sobretudo ao longo do rio Solimões, estando há décadas se constituindo como territórios específicos de pescadores comerciais onde a apropriação comum dos recursos pesqueiros não considera somente o livre

acesso como elemento estruturante da pesca, e sim os acordos locais entre os sujeitos deste

processo a partir dos mecanismos de controle e acesso dos espaços nos rios e demais ambientes.

3 “O Estado pode ser entendido como um conjunto de instituições especializadas em expressar um dado equilíbrio e uma condensação de

forças favorável a um grupo e/ou classe social. Ele assegura a unidade de qualquer sociedade dividida em interesses, particularmente de classes, mas também estamentais, pois garante o monopólio (centralizada ou descentralizadamente) do uso da força nas mãos do grupo, da classe ou do estamento” (BOCAYUVA E VEIGA, 1992).

Figura 02 – O uso das redes de arrasto potencializou a pesca comercial nas últimas décadas, territorializando os espaços e dando maior poder de captura aos pescadores nos ambientes de rio .

Fonte:RAPOZO, 2010.

Figura 03 – O desenvolvimento das atividades da pesca comercial nas comunidades rurais impulsionou o trabalho profissional na captura do pescado.

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Embora sejam aparentemente homogêneo e indiviso, os rios apresentam marcas, locais e territórios definidos e defendidos pelos pescadores durante suas atividades. Reconhecer a existência dos territórios pesqueiros e identificar a estratégia de uso e defesa dos mesmos pode auxiliar na elaboração de normas para o seu manejo constituindo-se em um importante instrumento de gestão das pescarias, minimizando conflitos em áreas de livre acesso.

Para Maldonado (2000) a pesca é uma das formas sociais em que a percepção específica do meio físico é da maior relevância, não só para a ordenação dos homens nos espaços sociais como também para a organização da própria produção e para a reprodução da tradição pesqueira, tanto em termos técnicos como em termos simbólicos.

Os territórios também são flexíveis dados a sua apropriação, o que significa dizer que esta flexibilidade fornece argumentos para a (re) configuração de espaços de uso comum, como no caso dos rios. Espaços de uso comum são pensados aqui como elementos constitutivos da realidade social local quanto ao uso dos recursos de forma delimitada e socialmente controlada, através de mecanismos que garantem a gestão e manejo das áreas de pesca assim como impõem as normas e sanções estabelecidas para a regularidade das ações individuais e coletivas.

Neste sentido os rios, ou melhor, os pontos específicos de pesca, são pensados também como

territórios abertos, pois se situam entre o privado e o público a partir do uso de seus recursos e da

maneira que, não um agrupamento humano, mas diversos grupos sociais com o mesmo interesse podem estabelecer regras ou leis internas de conduta que garantem ao mesmo tempo o uso e o controle dos recursos (BEGOSSI, 2004). Contudo, em seu aspecto mais fundamental, a territorialidade humana produz um leque de expressões sociais muito amplas de tipos de territórios, cada um com suas particularidades socioculturais.

Mas como é possível pensar em territórios pesqueiros em áreas específicas como rios, por exemplo, que, diferente dos lagos e de outros ambientes mais privados, do ponto de vista de seu uso por comunidades locais, pertencem do ponto de vista jurídico à União? Os processos de territorialização comportam elementos que fogem das instâncias legais e muito menos jurídicas quando se tratam de espaços de uso comum, e que se tornam uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação explícita depende de contingências históricas (LITTLE, 2002).

Para os grupos sociais rurais em áreas de várzea da Amazônia brasileira, a racionalidade no uso dos recursos permeia a utilização dos espaços, territórios e lugares de vida, compreendidos através do saber local. Esta dimensão conflui para a predisposição das atividades produtivas em seu mundo

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compartilhado, nas relações sociais e na reprodução material e simbólica dos seus meios de vida. Estes fatores, tão importantes e singulares, somente nas últimas décadas estão sendo vistos como legítimos para pensar o uso sustentável dos recursos naturais disponíveis, e assim, criar soluções alternativas e estratégicas que possibilitem modelos heterogêneos de apropriação, gestão participativa e parcimônia eqüitativa no uso dos recursos naturais.

O significado do mundo que constitui as representações dos espaços destinados ao uso dos recursos pesqueiros é tão complexo quanto sua delimitação física. A captura do pescado não é reproduzida de maneira irracional, e sim constituída de uma racionalidade onde as atividades são desenvolvidas em locais específicos. Neles a pesca é realizada através do conhecimento adquirido pelos pescadores quanto aos locais e espécies possíveis de captura, considerando, sobretudo as representações sobre o ambiente socialmente apropriado. Desta forma, instituem regras de acesso e controle, sobretudo quando se fala na comercialização, sendo explicitamente diferenciado o trato dado aos ambientes onde são regulados o uso de determinados apetrechos e os modelos de pesca utilizadas. Dentre os aspectos levantados, a questão dos regimes de propriedade privada e coletiva de porções territoriais dos rios e lagos da região são exemplos atuais sobre a intensificação da pesca, sobre-exploração dos recursos disponíveis e mudanças configurativas das relações de trabalho local.

Regimes de propriedade comum e livre acesso: A constituição das territorialidades da

pesca

Na tentativa de compreender como estes fenômenos se apresentam na realidade da pesca na Costa do Pesqueiro, procuramos uma interpretação a partir dos modelos de uso e apropriação dos recursos configurados pelos conceitos delineados sobre o regime de propriedade comum (FEENY et alii, 2001), dentre eles o de livre acesso, contrapondo-os com a realidade local, onde os espaços e recursos naturais de uso comum são regulados por meio de elementos que demarcam os fatores constitutivos, produzindo territorialidades e mecanismos de controle internos, determinando o regime de apropriação entre os sujeitos envolvidos.

O debate quanto à racionalização no uso dos recursos naturais vem sendo amplamente discutida nas últimas décadas, sobretudo quando se fala nos limites de sobre-exploração do ambiente pelo homem. Dentre estes estudos, The tragedy of the commons publicado por Garrett Hardin em 1968 se configura como um marco na discussão pertinente sobre o manejo de recursos de propriedade comum. Na medida em que estabelecia um diálogo com as ciências sociais e econômicas junto às

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ciências da natureza4, Hardin (1968) propunha que os recursos comuns deveriam ser privatizados ou definidos como propriedades públicas para as quais direitos de acesso e uso deveriam ser concedidos (FEENY et alii, 2001).

Neste sentido, o autor parte do pressuposto de que as condições estabelecidas pela apropriação comum e em sociedade dos recursos disponíveis é um fator condicional à competitividade, maximização dos lucros ou renda obtida, levando a um desgaste incomensurável do ambiente e seus recursos, neste caso, devendo ser mediado por mecanismos que permitam a coerção e controle, elementos que só poderiam ser destacados na fundamentação de que a propriedade privada dos recursos e a gestão administrativa do Estado nacional seriam os fatores que possibilitariam a conservação. Os debates acerca das teorias elaboradas sobre este contexto estimularam uma compreensão de seu processo, já que o próprio Hardin (1968) fora obrigado a admitir posteriormente5 que suas considerações iniciais necessitariam de uma revisão acerca daquilo que indicava como as soluções para uma gestão dos recursos naturais de uso comum.

Por outro lado, o debate se consolidaria a partir de questões além das configuradas na proposta iniciada por Hardin (1968) e demais intelectuais da época, contextualizados num período em que florescia dentro do feudo intelectual da elite nas cientistas naturais, participantes dos movimentos ambientalistas nos Estados Unidos entre as décadas de 60 e 70. Estes aspectos caracterizavam o campo politicamente conservador dos representantes das ciências naturais, sobretudo dos biólogos conservacionistas, que defendia uma crítica veemente à destruição ambiental causada como reflexo da Segunda Guerra mundial nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, atribuindo a culpa à irracionalidade das sociedades (GOLDMAN, 2001).

A crença na substituição das instituições comunais e da forma de uso dos recursos comunais de maneira descompromissada e tradicional, para uma passagem à propriedade privada e por maiores imposições governamentais, se apresentava como um discurso fortemente consolidado e que reverteria as ações de depredação dos recursos na visão conservacionista6.

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É claro que análise proferida por Hardin (1968) subjaz a um debate por ele popularizado, mas contido em estudos anteriores encontrados em Gordon (1954) e Scott (1955) acerca dos debates teóricos quanto às questões relacionadas ao uso comum dos recursos naturais.

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Para uma compreensão mais aprofundada dos argumentos gerados pelo artigo publicado pelo autor, ver Hardin (1978). Political requirements for preserving our common heritage. In: BROKAW, H.P. (Ed.) Wildlife and America.Washington, D.C. Council on Environmental Quality, PP. 310-317.

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A visão conservacionista, segundo Goldman (2001), possuía suas raízes no discurso político anglo-americano de que as comunidades e propriedades de uso comum – advindas da dimensão feudal do século XIV – constituíam-se como os maiores obstáculos à produtividade agrícola, consolidando uma visão antiprogressista onde, a crença na propriedade privada e a permissão individual de uso das terras convertidas de bens comum se tornariam fator comercialmente relevante. Para isso se acreditava no direito pela posse individual e na desestruturação das instituições tradicionais que regulamentavam o uso comum a fim de se obter a privatização das áreas de uso dos recursos.

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Contudo, a visão determinista hoje é substituída pela diversidade de trabalhos que contestaram a pressuposição teórica de Hardin (1968), demonstrando que a possibilidade do manejo, diálogo e da racionalização dos recursos em regime de propriedade comum podem se configurar como sucesso em algumas situações7, considerando a realidade em questão, já que, em inúmeros casos, o próprio Estado criou políticas e mecanismos de incentivos fiscais que colaboraram para a devastação ambiental, como no caso da Amazônia e a ocorrência de desterritorialização de comunidades tradicionais por meio da expansão da grande propriedade privada, da propriedade pública e dos grandes projetos de desenvolvimento (DIEGUES, 2001).

No sentido de compreendermos a questão expostas sobre os regimes de propriedade comum, Feeny et alii (2001) apresentam quatro categorias de direito de propriedade fundamentados enquanto regimes de acesso ao uso comum e a forma como são manejados os recursos naturais. As concepções desenvolvidas, segundo o autor, compartilham características importantes em suas formas de uso, geralmente sendo demarcado pela exclusividade ou controle de acesso e pela subtração, ou seja, a capacidade que cada usuário possui de subtrair parte da prosperidade do outro, gerando, por vezes, a rivalidade e divergências no que tange à racionalização individual ou coletiva da apropriação dos recursos. Estes regimes são: o livre acesso, a propriedade privada, a propriedade comunal e, por fim a propriedade estatal.

O livre acesso para Feeny et alii (2001) corresponde à ausência de direitos de propriedade bem definidos, neste caso, o acesso aos recursos não é regulado, estando livre ou aberto a qualquer indivíduo ou grupo social. A propriedade privada enquanto um dos regimes de apropriação é caracterizada pelo direito de exclusão de terceiros sob a exploração e na regulação da exploração dos recursos, delegando aos indivíduos ou grupos de indivíduos, o direito de uso.

A propriedade comunal, ou propriedade comum, é marcada pelo manejo dos recursos aplicados por uma ou mais comunidades entre usuários interdependentes, neste caso, os seus usuários criam mecanismos de inclusão e exclusão sob direitos de fato (geralmente consuetudinários) de apropriação, regulando a participação de seus membros, equilibrando o acesso e o uso dos recursos.

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Segundo Diegues (2001), a literatura recente tem registrado e analisado um número considerável, no mundo inteiro, de formas comunitárias de acesso a espaços e recursos que têm assegurado um uso adequado e sustentável dos recursos naturais, desta forma conservando o ecossistema e gerando modos de vida socialmente mais equitativos, mesmo que não sejam necessariamente difundidos e amplamente bem sucedidos.

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E a propriedade estatal consolida a situação onde os direitos aos recursos são alocados pelo governo vigente que toma decisões em relação aos recursos e ao nível e natureza da exploração8.

Em todo caso, a análise pretendida aqui se interessa por dois dos aspectos apresentados: a constituição das formas de territorialização da pesca demarcadas pelas condições do livre acesso aos ambientes geralmente constituídos em espaços no rio Solimões, e na propriedade comum dos ambientes onde a pesca é regulada de forma a possuir mecanismos de controle ao acesso dos recursos pesqueiros, como em determinados pontos de pesca e nos lagos.

É necessário compreender que estas dimensões configuram um dos lados relevantes do debate sobre a questão de produção das territorialidades na pesca, pois demarcam as fronteiras políticas das relações de apropriação social dos recursos pesqueiros a partir dos modelos adotados. Ambos os regimes incidem de acordo com a mesma perspectiva, possuem como objetivo utilizar os ambientes aquáticos para uma das dimensões da reprodução do modo de vida local, através da pesca para a subsistência ou para a comercialização.

O contexto em debate subjaz ao fato de que as formas sociais de apropriação comum dos lagos e do rio Solimões na Costa do Pesqueiro em Manacapuru, constituem-se sobre os mecanismos de manutenção das atividades pesqueiras de subsistência e principalmente da pesca comercial, sejam elas mantidas através de conteúdos jurídico-formais ou tradicionalmente impostos, de fato, como acontecem na maioria dos casos.

Os ambientes possuem singularidades diferenciadas, logo, existem formas distintas de uso de acordo com sua finalidade, estas interpretações são possíveis pela atribuição à dimensão simbólica que constituem as representações sociais dos indivíduos, ou seja, a maneira como reconhecem, delimitam e utilizam os ambientes, sendo elementos sociais fundamentais para a consolidação de territórios de pesca em ambientes polivalentes.

Por um lado, o livre acesso na apropriação dos recursos pesqueiros se apresenta como a possibilidade de uso das áreas informais do rio, onde a pesca é realizada de forma aberta aos indivíduos em geral sob o manuseio de apetrechos de pesca diferenciados e altamente eficazes em seu processo de captura, diferenciada das áreas onde ocorrem regimes de organização comum da

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Para Feeny et alii (2001), a categoria de propriedade estatal pode ser aplicada em relação ao uso dos recursos onde seu acesso pode ser público respeitando os direitos igualitários, como as rodovias e parques, ou de acordo com sua natureza, podem ser destinados a outros fins, já que o Estado regula a imposição coercitiva dos modelos de apropriação, como no caso das Reservas de Desenvolvimento Sustentáveis e Unidades de Conservação.

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pesca, como nos lagos ou pontos de pesca em geral, permitindo somente aos usuários estabelecidos o seu acesso.

Para Mackean & Ostrom (2001) os regimes de propriedade comum se referem à correlação dos arranjos de direito de propriedade sob os quais grupos de usuários dividem direitos e responsabilidade sobre o uso dos recursos apropriados. Partir do ponto de vista do termo propriedade é ligá-lo às dimensões institucionais da sociedade e não às qualidades naturais geralmente atribuídas aos fenômenos naturais que advêm sob a base comum9 dos recursos. A saber, que, para os autores, os regimes de propriedade historicamente surgem em situações onde as demandas por recursos são muito elevadas para possibilitar o livre acesso, tornando-se necessária a criação de direitos de propriedade, na mesma medida que os fatores adicionais a divisão dos recursos acabam se tornando indesejáveis. Como no caso da região da Costa do Pesqueiro que, ao longo das ultimas décadas com a intensificação da pesca comercial, sobretudo, no Rio Solimões, passou a se tornar cada vez mais repartido em regimes territoriais da pesca comercial, contrapondo a ideia de espaço livre para a pesca.

Afirmar que os recursos naturais são disponíveis ao uso social ou ao livre acesso dos indivíduos, em geral, significa compreender que o processo de apropriação perpassa por uma inter-relação dos usos do mesmo ambiente de base comum por determinados grupos sociais. Contudo, o fato de se estabelecerem comunais não significa que sejam livres de acesso à todos, mas limitados à um grupo específico de usuários, pressupondo mecanismos de controle e regulação da apropriação.

Para Ostrom (1990), os regimes que regulamentam o sentido de propriedade comum permeiam sobre alguns princípios, tais como a demarcação de fronteiras socialmente delimitadas; os mecanismos que regulam a ordem social interna; a gestão e controle monitorado do uso dos recursos pelos comunitários; as sanções aplicadas à desobediência de normas reguladoras; a resolução dos possíveis conflitos através dos mecanismos de mediação; e o reconhecimento socialmente estabelecido dos direitos de organização em comum acordo.

Desta forma, entende-se que propriedade comum, na verdade, é propriedade privada compartilhada (MACKEAN & OSTROM,2001), pois seus regimes de direito ao acesso se caracterizam pelos elementos e mecanismos cruciais à sua manutenção compartilhados entre os membros usuários. É

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Base comum de recursos é compreendido de forma diferente do regime de apropriação comum, pois associado suas qualidades físicas e biológicas, possui duas importantes características que as distinguem: a dificuldade do desenvolvimento de instrumentos de exclusão dos potenciais indivíduos beneficiários, a solução para as dificuldades encontradas demandam custos, logo abre possibilidades para o uso predatório dos bens comuns caso não exista mecanismos de conservação e manejo consolidados. Por outro lado, as unidades de recursos utilizadas antes por indivíduos comuns, deixam de estar disponíveis (MACKEAN & OSTROM, 2001).

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claro que, no processo de estruturação e dinâmica dos recursos socialmente apropriados, podem existir ineficiências quanto ao discurso produzido, como no caso dos regimes de territorialidades apresentados na pesca, possuindo fraquezas e, em muitas vezes, levando ao conflito como última relação de possibilidade de mudanças drásticas mediadas pelos mecanismos de controle que nem sempre se apresentam de forma eficaz.

As territorialidades da pesca comercial e de subsistência revelam que os lagos e rios, enquanto propriedades comuns de acesso a determinados grupos na realidade, são formas de privatização por meio do direito sobre os recursos socialmente utilizados. No entanto, sem dividi-los em pedaços ou fragmentos espacialmente separadas – apesar de ocorrer formas de divisão representativas ao mundo em comunidade – acabam oferecendo a viabilidade de obtenção de renda ou lucro de acordo com o trabalho socialmente necessário para a reprodução da vida local.

Territórios pesqueiros e conflitos sociais da pesca

A captura dos popularmente conhecidos peixes-lisos na região – os grandes bagres, bastantes comercializados no local, revelam a exploração considerável em relação aos outros peixes. A dimensão de descarte ou de exploração, com a freqüente diminuição de espécies que possuem um bom preço no mercado da pesca, apresenta também o reflexo destas contradições, o conflito no uso destes territórios é um exemplo encontrado nas afirmações dos pescadores da comunidade.

Para interpretarmos a produção social de territorialidades enquanto elementos que demarcam regimes de propriedade comum (em contraposição à ideia do livre acesso) nos ambientes espacializados pelos sujeitos envolvidos, verificamos como o conflito se expressa entre o relato dos pescadores, tomando como referência pontos de pesca considerados importantes entre os pescadores da Costa do Pesqueiro. Os pontos de pesca se apresentam como espaços delimitados onde a atividade ocorre obedecendo determinadas regras instituídas por mecanismos de controle simbólico dos recursos pesqueiros, em geral são estabelecidos para indicar o tipo de pesca desenvolvida (pesca comercial e/ou pesca de subsistência) e as formas de captura.

A regiões da Costa do Laranjal – um ambiente de rio, e do lago do Tamanduá – um ambiente lacustre, localizados nas imediações da Costa do Pesqueiro, são exemplos do contraste que revela o uso dos recursos pesqueiros e as relações estabelecidas entre os agentes envolventes e o sistema de apropriação comum dos recursos que, estando diferenciados da área de livre acesso onde a pesca é livremente praticada – em geral, nos determinados pontos onde o rio Solimões não é

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apropriado de forma privada por uma ou mais comunidades. Estes locais possuem normas específicas de acesso, pertencentes somente aos seus grupos de pescadores, ocorrendo muitas vezes conflitos pela disputa à captura do pescado nestes ambientes, nos discursos encontramos a preocupação com os problemas que envolvem a pesca comercial e a importância desta atividade para os moradores, já que os casos se configuram diferenciados dado o ambiente de pesca, uma região de rio e uma região de lagos.

No caso do lago do Tamanduá a preocupação com as relações estabelecidas no uso deste ambiente demonstra a história dos conflitos, muitas vezes através de agressão e violência física, indo da descrença na opinião dos moradores em relação as possibilidades de mudanças,à crise com o desgaste dos recursos pesqueiros.

[...] há um estrago nos lago hoje, e por causa disso houve até ameaça de morte (ocorrida em 2005, segundo o entrevistado)...nós reivindicava por casa desse lago aí (Lago do Tamanduá)..por causa da documentação dele...eu juntei a turma e levei lá num dia que teve um problema, só que o cara lá tava com uma espingarda e queria atirar em nós... desde desse dia pararam a intervenção do lago...acho que os lago tudo vão se acabar! O lago é importante demais porque é dele que a gente sobrevive na época de seca, mas o pessoal faz baderna lá (Pescador e morador de uma comunidade local ).

Muitas vezes o conflito apresenta agentes exteriores que acirram a disputa no uso dos recursos. Em Nossa Senhora das Graças, comunidade localizada na Costa do Pesqueiro, a pesca no lago Tamanduá é conflituosa por indicar uma particularidade muito característica, a comunidade utiliza o lago para a obtenção de alimento na maioria dos períodos sazonais. Mas o lago também possibilita o uso de outros agentes, neste caso pescadores de outras comunidades que entram no lago sem a autorização dos moradores da comunidade e realizam arrastões com grandes redes para pesca comercial, esta prática revela, na fala dos moradores, uma preocupação latente que tem haver com a própria legitimidade de uso do território do lago ao mesmo tempo em que caracteriza os de fora como agentes de conflito no processo de apropriação dos recursos.

[...] o lago (referindo-se ao Lago do Tamanduá) ta faltando preservar, porque em as criança né, elas precisam comer, ta faltando uma união muito grande, tem gente daqui que levava os outros pescadores de outras comunidades, do Manaquiri (município vizinho) pra pegá peixe aqui...existem muito problema de comida. E as vezes num tem peixe, e a gente não se une, nos lutava de primeiro mas hoje não, tem mais de 8 ano atrás, antes era bom...você pegava todo tipo de peixe agora você vai lá no lago e só pega aqueles bodó magro... deveria haver uma fiscalização melhor pra preservar os peixes pequeno, porque todo ano estraga (Pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças, localizada na Costa do pesqueiro).

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[...] lá no lago é um problema, os pessoal do Manaquiri (município vizinho à Manacapuru) entram no Tamanduá pra pescar e o lago é pra despensa, tem problema, eles acham que num pode proibir mas a gente qué porque é bom pra nós...nós tem filho né? Eles precisa comer” (Pescador e morador da comunidade local na região da Costa do Pesqueiro) .

A fala dos moradores locais expressa a particularidade no uso do lago, mas explicita a relação com o território vivido e pertencente ao modo de vida comunitário. O lago pode ter uma dimensão comercial para agentes externos a comunidade, mas para os moradores pode representar sua delimitação, a história de vida associada a apropriação e transformação do espaço em comunidade, a associação com a reprodução material da vida, enfim, levando a elementos muito além da comercialização e trazendo para si a representação do lugar de vida.

No caso da Costa do Laranjal, pelo fato da pesca ser exercida no rio e sem a delimitação visível de uma comunidade – contudo, não sendo identificado como uma área em que ocorra o livre acesso da pesca, e sim a apropriação entre comuns de um determinado espaço social – o conflito se dá pelas regras de uso e pelo maior número de pescadores que identificam a área como um importante ponto para a pesca comercial.

[...] a pesca aqui na frente da comunidade num é muito boa não, mas pra outras áreas como lá no laranjal é bom... lá é bom de fera. (Pescador e morador local na região da Costa do Pesqueiro).

Nas afirmações dos agentes envolvidos verificamos os elementos que apontam para o desgaste dos recursos pesqueiros associados ao conflito e a identificação dos pescadores de outras comunidades.

“lá no Laranjal eu já vi mais de 100 lanço, lá tinha conflito uns três anos atrás porque o pessoal do IBAMA foi lá com eles” (A. P. M. 51 anos, pescador e morador da comunidade Nossa Senhora das Graças – Costa do Pesqueiro).

“onde nós pesca sempre tem conflito com o pessoal da comunidade do pesqueiro aqui de perto, eles sempre querem impedir nós de pescá la no Laranjal(Pescador e morador local).

A dimensão do conflito revela a apropriação dos recursos pesqueiros e a competição comercial que se apresenta muitas vezes de maneira nem um pouco amistosa, e sim tolerável segundo os pescadores das comunidades na Costa do Pesqueiro. A compreensão deste fenômeno representa também os interesses pessoais das comunidades quanto ao aproveitamento dos recursos,

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principalmente nos períodos hidrológicos de maior relevância na captura do pescado, ocorridos na vazante e na seca dos rios e lagos.

[...] na época da seca tem muita ambição, todos querem manda, é que na seca num dá pra pescá aí na frente (da comunidade) e tem que ir pra lá (Costa do Laranjal) e eles (os moradores e pescadores do local) ficam com raiva (Pescador e morador local).

O uso dos recursos pesqueiros apresenta uma diversidade de informações que nos possibilita pensar o mundo do trabalho da pesca considerando a percepção e o saber construído na prática da atividade pesqueira. Os espaços de uso comum dos recursos que possibilitam a produção e a reprodução da vida material e simbólica nas comunidades do Baixo Rio-Solimões compreendem a representação dos territórios da pesca como territórios resignificados pelo mundo ordinário, estes são mantidos e (re)construídos pelo habitus comunitário, na formação de um ethos, ou seja, de um modo de vida que impulsiona a ação coletiva.

A construção social dos territórios de uso das comunidades enquanto pontos de pesca ou territórios

abertos estão relacionadas não apenas com as condições naturais/biológicas, mas, sobretudo com as

condições sócio-históricas. Neste sentido, para que os pescadores tenham acesso aos recursos disponíveis nos ambientes aquáticos é preciso considerar a organização social do trabalho, as implicações nas relações sociais internas dos grupos de trabalhadores da pesca, a apropriação racional e social dos recursos naturais, a dimensão cultural do imaginário que constitui a pesca, a relação entre a pesca e o mercado da pesca inserido no modo de produção capitalista desenvolvido na Amazônia, os apetrechos que otimizam a captura para a comercialização e os projetos de desenvolvimento econômicos e políticos adotados em condições históricas situadas e datadas que repercutem no modo de vida do camponês amazônico.

Os conflitos destinam-se à compreensão de um mundo que insere apenas aqueles que possuem seus domínios, a relação com os pontos de pesca são marcados pela relação de sociabilidade entre os pescadores sejam harmoniosas ou conflituosas elas indicam um domínio aberto dos territórios da pesca, onde existem leis de uso, umas delas é o auto-reconhecimento e o reconhecimento do outro

de fora ou de dentro que legitima-se perante o sentimento de pertença, e está diretamente articulado

com a indivisão do mundo sensível e material.

O uso dos ambientes identificados como territórios pesqueiros apresentam-se preponderantemente como finalidade comercial – apesar de demonstrarmos a importância da finalidade de subsistência da pesca. Constatou-se um modo particular e significativo da representação demarcada destes locais,

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verificamos e identificamos os conflitos que pertencem a dimensão de apropriação social dos recursos pesqueiros através dos rios e lagos destinados à captura do pescado. As relações sociais de produção implementadas na pesca podem ser compreendidas através do desenvolvimento das tecnologias utilizadas que, sobretudo, são reflexos marcantes das políticas econômicas adotadas na inserção do modo de produção capitalista na Amazônia por meio da atividade pesqueira.

A construção da vida no mundo rural amazônico considera todos esses fatores a partir da diversidade dos ambientes e da sociodiversidade cultural, onde é possível pensar que, nas atividades produtivas desenvolvidas no mundo rural, a dimensão da indivisibilidade entre trabalho e vida é exercida de maneira não comparável com a sociedade dita moderna, pois possui nuanças muito alem do que imaginamos. Para as sociedades rurais amazônicas todas as atividades exercem uma função importante e complementar no processo de reprodução dos meios de existência, fazendo parte de seu mundo vivido. Aqui o uso dos saberes locais se reproduzem de múltiplas formas frente à sazonalidade dos ciclos hidrológicos e neste caso refletem a plasticidade de apropriação dos recursos aquáticos, delineando os espaços estabelecidos à utilização destes ambientes.

Para os grupos sociais rurais da Amazônia a racionalidade no uso dos recursos permeia a utilização dos espaços, territórios e lugares de vida, compreendidos através dos saberes locais. Esta dimensão conflui para a predisposição das atividades produtivas em seu mundo compartilhado nas relações sociais e na reprodução material e simbólica dos seus meios de vida. Estes fatores, tão importantes e singulares, somente nas últimas décadas estão sendo vistos como legítimos para pensar o uso sustentável dos recursos naturais disponíveis, e assim, criar soluções alternativas e estratégicas que possibilitem modelos heterogêneos de apropriação, gestão participativa e parcimônia eqüitativa no uso dos recursos naturais.

Repensando territorialidades: dimensões interpretativas sobre o controle ao acesso

dos recursos pesqueiros

A constituição dos mecanismos de reprodução social dos territórios incide sobre a capacidade de manter o uso comum dos recursos pesqueiros de acordo com as possibilidades encontradas quanto à gestão das áreas ocupadas. Contudo, a diferenciação entre as áreas de livre acesso particularmente encontradas em determinadas porções do rio onde não se pressupõe a apropriação das comunidades locais, e as áreas de propriedade comum onde acontecem uma acentuada demarcação dos lagos e pontos de pesca restritos aos sujeitos de um mesmo grupo, são evidentes e demonstram aspectos diferenciados sobre o controle ao acesso dos recursos disponíveis.

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A atividade da pesca se configura não só pela captura do pescado, mas também pela apropriação e formas de uso onde é realizada, permitindo uma reconfiguração social do ambiente envolvente quanto à sua finalidade. Desta forma, implica sobre alguns parâmetros de compreensão e de acordo com a maneira que é realizada e, sobretudo, daquilo que ela reflete, como a organização do trabalho, a demarcação social das áreas, as representações sobre o ambiente apropriado, as formas de uso através do manuseio de apetrechos específicos e os conflitos destinados à interpretação das práticas de pesca comercial enquanto decorrência da intensificação da competitividade nos rios e lagos comunitários.

A capacidade de gestão das territorialidades nas áreas de pesca corresponde a determinados fatores, tais como a comercialização, e se estruturam por meio de normas locais comunitárias que medeiam e demarcam o acesso a espaços circunscritos à indivíduos específicos, ocorrendo geralmente em casos onde a participação das instituições governamentais é menos acentuada, estas geralmente tendem a aparecer conforme se estabelecem latências quanto às relações indicadas pelos conflitos e, sobretudo, em lugares muito particulares, como nos lagos onde ocorrem manejos comunitários, diferente das áreas apropriadas nos rios.

A apropriação dos recursos pesqueiros realizada pelos moradores das comunidades locais possibilita o uso de determinados espaços transformados em territórios de pesca onde o uso deste ambientes não se constitui numa delimitação puramente física, mas numa demarcação social dos lugares, onde a captura revela a ocorrência da concentração de pescado, estando envolto por sistemas de apropriação dos recursos mediados por mecanismos de acesso ao controle da pesca, visando garantir a manutenção dos estoques e da própria atividade.

A demarcação social das áreas de pesca incide sob as condições variáveis de captura nas zonas territorialmente definidas ou fixas. Contudo, as fronteiras que delimitam o acesso aos recursos pesqueiros entre um lago ou rio, ou ainda entre vários espaços no mesmo rio ou lago, condizem com a definição física dos ambientes comuns apropriados, estando a pescaria sujeita às inconstâncias de seu processo produtivo, ou seja, da captura do pescado, haja vista a movimentação dos cardumes e as condições de uso que ora restringem os sujeitos envolvidos, ora permitem maior possibilidade de sucesso de acordo com a localização destes agentes.

Nos ambientes evidenciados, onde a pesca possui maior intensidade quanto a sua captura, sobretudo para fins comerciais, a tendência ao zoneamento ou territorialização é mais abrangente e consolidada pelos sujeitos locais, ocorrendo maior controle e eficácia nas áreas de pesca do que em

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áreas onde o livre acesso da pesca comercial– mesmo em se tratando dos mesmos ambientes, como o rio Solimões – é muitas vezes significado de conflitos e de disputas demarcadas pela competitividade.

A organização do sistema de territorialização da pesca, por exemplo, através da criação de pontos de

pesca, ou da regulamentação da divisão em áreas definidas como ocorre na pesca de vez nas águas

do rio Solimões e nos lagos apropriados pelas comunidades local, evidencia mecanismos que possibilitam a mediação social dos conflitos entre os agentes internos a este processo. Contudo, só se demonstram pela existência da atividade comercial loca. Desta forma, criando maneiras especificas de uso – para além da existência de acordos firmados no campo jurídico-representativo do Estado e das instituições competentes, como o IBAMA – sendo racionalizados os recursos para determinados fins sob o ambiente apropriado, pressupondo uma gestão local geralmente marcada por acordos verbais ou consuetudinários, demonstrando, neste caso, preocupação com a atividade desenvolvida e com os recursos pesqueiros.

A discussão sobre os regimes de propriedade comum e de uso social dos recursos disponíveis de forma “livre” implicam em aspectos que circundam a constituição da noção de territorialidades, pois se configuram enquanto elementos cruciais no debate quanto às formas de apropriação dos recursos pesqueiros, já que apresentam dimensões bastante específicas quanto ao modo de uso dos recursos em áreas geralmente consideradas livres de qualquer controle e regulação, logo, existindo mecanismos que delineiam de forma prática os tipos de pescaria existentes em cada lugar, sejam rios ou lagos, estando os indivíduos sujeitados às sanções aplicáveis.

Não significa dizermos que inexistem áreas de livre acesso nas pescarias, principalmente porque sua ocorrência em grandes áreas abertas dos rios é evidente, contudo apresentando pouca expressividade já que as melhores áreas consideradas perfeitas para a prática da pesca comercial estão em regime de territorialização, sendo apropriadas por comunidades ou grupos de pescadores em determinados locais.

Os regimes de propriedade definidos pela territorialização da pesca comercial e de subsistência contrariam os argumentos de Hardin (1968) em torno da pressuposição de que todos os recursos explorados na forma de regimes de propriedade comum necessariamente implicariam sob as condições de livre acesso, e que este processo induziria ao passar do tempo na extinção ou sobreexploração dos recursos. A natureza coletiva da propriedade não implica necessariamente a condição de livre acesso, ainda que os ambientes e seus recursos em questão sejam considerados

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como patrimônios da União. Porém, não invalidamos a existência de que, recursos em ambientes onde não haja mecanismos de controle e que ocorra sobre-exploração em um local específico, possam indicar as condições analíticas da tese apresentada por Hardin (1968).

Para Vieira e Weber (2002), as modalidades de acesso e controle do acesso aos recursos pressupõem, na maioria dos casos, a regulação múltipla das formas de uso do ambiente, sendo exemplos a criação de regras e instituições baseadas em costumes, o cultivo de mitos ou representações, a instauração de direitos coletivos ou de direitos históricos pela posse e uso do ambiente.

Estes aspectos refletem os modelos de apropriação dos recursos pesqueiros, a forma como são representados indica maior ou menor grau de controle sobre as áreas transformadas pela pesca comercial no rio, e pelo uso comunitário dos lagos na pesca de subsistência. Contudo, compreender as condições diferenciadas da formação dos territórios de pesca e sua condição de territorialização frente à apropriação comum de seus recursos por determinados grupos, torna-se fator fundamental na constituição dos mecanismos de controle ao acesso das áreas, e do desenvolvimento da atividade nos ambientes disponíveis. Sua constituição requer o entendimento das formas de interpretação do uso dos recursos e a maneira como são representados material e simbolicamente pelos indivíduos que deles compartilham. Esta relação, entre sociedade e ambiente, indica o importante papel do comportamento humano na tomada de decisões e escolhas sobre o processo de apropriação social dos recursos.

Esta dinâmica pode ser interpretada se considerarmos, como um dos elementos gerais, a instituição do processo organizacional destes grupos sociais, permitindo uma abordagem sobre os aspectos socioeconômicos subjacentes às transformações decorrentes das dinâmicas naturais e sociais, como aponta Vieira e Weber (2002), delimitando os fatores de escolha e de apropriação dos recursos, mediante a internalização dos sistemas de valores e representações quanto ao ambiente envolvente. Os modelos de apropriação, enquanto uma das dimensões válidas de interpretação sobre o uso dos recursos, indicam a correlação dos fatores estruturantes do meio de vida das sociedades, sobretudo, o modo de vida em comunidades rurais, já que transparecem os acordos e as normas de classificação do mundo, das coisas, dos homens e das relações sociais. A instituição destes sistemas de valores e de representações compartilhadas pelos membros de determinadas sociedades demonstram o gradiente de importância e interdependência do ambiente envolvente e socialmente reconfigurado.

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Contudo, a permanência das atividades desenvolvidas e dos modelos de apropriação dos recursos pesqueiros requerem uma compreensão dos valores ambientais e socioeconômicos estipulados para a prática da pesca, considerando as possibilidades de manejos e acordos intercomunitários e interinstitucionais dos lagos e até mesmo das áreas interpretadas como de livre acesso, constituída pelos rios, neste caso o rio Solimões.

Os territórios, socialmente construídos para a prática pesqueira, possibilitam não só a constituição das identidades comunitárias e as relações de sociabilidade, mas também indicam o quão necessário se tornam os diálogos entre os agentes locais em relação ao uso e conservação dos recursos apropriados de forma comum, compartilhando responsabilidades e regularizando normas coletivas de acesso e uso conforme as regras estabelecidas localmente.

A participação da sociedade civil no que tange à mediação do uso dos recursos pesqueiros, e do incentivo às políticas públicas e de Estado para a pesca, é fundamental na medida em que ocorre maior abertura para o diálogo nos espaços institucionais. A mediação representativa das colônias, cooperativas e associação de pescadores se torna inerente à execução deste processo, já que possuem acentuada visibilidade, sendo cada vez mais cruciais à consolidação de uma política nacional para a pesca em águas interiores do país.

Não podemos invalidar o fato de que as contradições sociopolíticas no ambiente deste debate incitam oposições tendencialmente favoráveis a uma ou a outra estratégia de correlação das forças entre os agentes deste processo, já que está em jogo no campo a disputa, a mediação dos recursos apropriados e os custos e incentivos comerciais dados ao setor pesqueiro nas últimas décadas. Desta forma, é necessário considerar as externalidades ambientais e socioculturais que constituem a base da economia familiar da pesca comercial e de subsistência das sociedades rurais em geral, nas dimensões do setor econômico nacional e no plano de desenvolvimento pretendido para a atividade pesqueira.

As mudanças decorrentes do cenário atual da pesca, considerando, como foco de análise, a questão das territorializações dos recursos pesqueiros em áreas de apropriação comum, podem indicar futuramente maior ou menor comprometimento a partir de uma refuncionalização das instituições públicas quanto à gestão dos recursos em voga.

No entanto é crucial delimitar este debate a partir do cenário que inclua os agentes sociais interdependentes neste processo – pescadores artesanais e comerciais, representações populares do setor pesqueiro, agentes de comercialização e setores institucionais do governo - considerando

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maior e acentuada participação da sociedade civil e, organizando, na esfera pública, uma ampla discussão – como vem acontecendo com os fóruns e congressos regionais e nacionais para o futuro da pesca nacional - sobre as viabilidades de gestão e das formas de apropriação comum dos recursos pesqueiros.

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