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Gênero, semblante e gozo aproximações e diferenças

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Academic year: 2021

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1 Gênero, semblante e gozo ‒ aproximações e diferenças

Marcus do Rio Teixeira Por ocasião da vinda de Judith Butler ao Brasil comentei numa rede social os protestos e a polêmica em torno da autora:

Todos viram as imagens de intolerância ou até mesmo de barbárie, com direito a boneca sendo queimada, numa alusão ao passado cruel de caça às bruxas. As redes reagiram com indignação (justa, diga-se de passagem). Porém, o que chama a atenção é que dentre os que utilizaram as redes para se manifestar, nenhum ‒ pelo menos dos que eu pude ver ‒ usou a palavra para comentar o pensamento da filósofa. Todos frisaram sua carreira acadêmica, seu reconhecimento, inclusive lembrando que os bárbaros que queimaram sua imagem não a leram. Pois, bem, e os que leram, por que não comentam? Uma vez que frisam que a autora é uma excelente filósofa, por que não dizem porque concordam com suas teses? Sendo psicanalistas, consideram tais teses coerentes com a teoria psicanalítica? Se acham que sim, por que, de que forma? Não vale recorrer ao clichê de que as críticas à psicanálise são sempre bem-vindas. Ao defender a autora deixando de comentar suas ideias, esses intelectuais correm o risco de recair no mesmo erro de seus opositores brutos, que querem impedi-la de falar por um posicionamento ideológico, sem discutir seu pensamento. Já que nos opomos à barbárie, deveríamos discutir, não é verdade?1

Pouco tempo depois, C. Dunker postou nos comentários um link para o texto A diferença sexual de Butler e Lacan: Gênero, espécie e família2, escrito em parceria com R. Cossi. Agradecendo o que considerei um interesse em debater o tema, escrevi um comentário sobre o texto gentilmente postado, que intitulei A diferença entre Butler e Lacan acerca da diferença sexual3. A este os autores responderam com outro texto, Psicanálise sem gênero?4 É esse texto que aqui comento, dando por encerrada minha participação. Gostaria de ressaltar, porém, que o simples fato de tais textos terem sido produzidos já constitui, no meu entender, um dado positivo. Afinal, a minha postagem inicial, ao contrário do que comentam os autores, não era uma simples “reação de reticência”5 mas um

1 TEIXEIRA, M. R. Postagem no Facebook

https://www.facebook.com/profile.php?id=100010840664355 em 14/11/2017.,

2 DUNKER, C. e COSSI, R. A diferença sexual de Butler a Lacan: Gênero, espécie e família. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722017000100404&lng=en&nrm=iso&tlng=pt Acesso em 15/11/2017

3 TEIXEIRA, M. R. A diferença entre Butler e Lacan acerca da diferença sexual. Disponível em: http://www.agalma.com.br/wp-content/uploads/2017/12/Oitava-aula-do-curso-Os-gozos-2017.pdf 4 DUNKER, C. e COSSI, R. Psicanálise sem gênero? PDF Acesso em 12/12/2017.

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2 inequívoco chamamento ao debate em contraposição ao que denominei a barbárie daqueles que pretendiam silenciar a fala da filósofa.

Para mim foi uma surpresa ver que os autores que se dispuseram de boa vontade ao debate tenham adotado um tom beligerante na sua resposta. Ao longo do seu artigo minhas colocações são contempladas com termos como “ridículo”, “vexatório”, “inconsequência teórica”, “ingênua alienação provinciana”, etc., numa estranha concepção de como deve ser um debate entre pares. Logo de início meus comentários são criticados por terem sido feitos, segundo os autores, “[...] ao modo de um parecerista, recenseando momentos em que lemos Lacan corretamente ou onde nos equivocamos”6. Não percebo o motivo da sua ressalva. Afinal, ao ler um texto que se apresenta como

trazendo contribuições a uma determinada teoria, é de se esperar que se compare e se discuta até que ponto esse texto realmente contribui ou entra em contradição com a teoria. Certamente não se espera que se considere o texto isolado da teoria à qual remete incessantemente. Nesse ponto, Dunker e Cossi, pela sua carreira acadêmica, têm muito mais experiência do que o autor e se esperaria que acolhessem tais ressalvas teóricas com naturalidade, refutando-as sem se sentirem ofendidos. Sem me alongar mais nesse assunto, vejamos em que consiste o principal ponto de discordância, que dá o título ao seu artigo. Dunker e Cossi assim resumem sua tese:

Afirmamos que os “semblantes imaginários ou dêixicos performativos”, situados no primeiro andar das fórmulas da sexuação como “homem” e “mulher”, aproximam-se da concepção de gênero em Butler, que os define como performativos. Isso abriria uma pesquisa possível que é tentar mostrar como a noção de performativo pode enriquecer o conceito lacaniano de semblante.7 Lembram ainda que Lacan reconheceu na noção de identidade de gênero teorizada por Robert Stoller uma equivalência em relação ao seu conceito de semblante: “É por isso que se afastarmos o conceito de gênero, apesar de ele ter sido proposto por um psicanalista como Robert Stoller, nos tornamos cegos para sua presença como problema de leitura para Lacan.”8 E ainda: “Lembremos

como Lacan comenta as teses de Stoller, o psicanalista que criou o conceito gênero.”9

Já perdi a conta de quantas vezes citei o comentário de Lacan sobre Stoller no seu Seminário 18, De um discurso que não fosse semblante ‒ inclusive no texto comentado pelos autores. Fiz questão de ressaltar em todas as ocasiões a equivalência feita por Lacan entre o seu conceito de semblante e a identidade de gênero [gender identity] de Stoller. Portanto, a minha crítica não incide sobre o

6 DUNKER, C. e COSSI, R. Psicanálise sem gênero? Op. cit., p. 1. 7 Id., ibid., p. 2.

8 Id., ibid., p. 3. 9 Id., ibid., p. 7.

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3 conceito de semblante em si, mas sobre a leitura dos autores, que toma as identidades de gozo, toda fálica ou não-toda fálica, como semblantes ‒ ou seja, parecer-homem ou parecer-mulher, na acepção lacaniana que consta no Seminário 18. Não se trata, portanto, de eliminar o conceito de semblante da teoria lacaniana, como os autores alegam, mas de mostrar que esse componente da sexuação pertence à dimensão do Imaginário, que ele não determina as escolhas de gozo, às quais Lacan confere um papel central na sua teoria da sexuação. O que eu afirmo é que, a rigor, as possibilidades de se situar ante a função fálica não trazem implícitas formas de se apresentar para o pequeno outro, enquanto parecer-homem ou parecer-mulher, que é como Lacan define os semblantes masculino e feminino. A resposta dos autores à minha crítica é que eu não levei em consideração o primeiro andar das fórmulas da sexuação, e que nesse andar Lacan teria expressado que homens e mulheres são semblantes. Vejamos seu argumento. “Aqui fica claro como Teixeira entende de modo parcial a teoria da sexuação em Lacan, reduzindo-a às fórmulas da sexuação e subsequentemente aos grafemas lógicos do seu segundo andar. Ele não leva em conta que para ler as fórmulas é preciso contar com o primeiro andar onde do lado esquerdo posiciona-se o semblante ‘homem’ e o do lado direito está ‘mulher’.”10

Ora, o quadro elaborado por Lacan abaixo das suas fórmulas da sexuação ‒ chamado de primeiro andar pelos autores ‒ descreve o funcionamento da sexualidade entre aqueles que Lacan chama de seres sexuados, ou seja, aqueles que se situam em relação à função fálica  x nas duas possibilidades definidas acima do quadro como todo fálico ou não-todo fálico. Soler faz uma descrição que considero muito precisa desse quadro: “O que ele escreve na parte inferior? É bastante simples, creio eu: ele tenta dar conta do que torna possível a relação [relation] sexual, ou seja, o corpo a corpo sexual, ainda que não exista a relação [rapport] sexual.” 11

Essa descrição do quadro como dizendo respeito à relation sexuelle (relação sexual), ao corpo a corpo, como ela chama, o diferencia das fórmulas propriamente ditas, que dizem respeito ao rapport sexuel (razão ou proporção entre os sexos). Ou seja, o quadro parte do princípio de que aqueles que são denominados como homens ou mulheres assim se definem pelas posições que assumem em relação à função fálica. Isso não significa que Lacan estabeleça declinações ou tipos da diferença sexual, dispostos entre o “[...] primeiro andar da sexuação (a diferença de semblantes), o segundo

10 DUNKER, C. e COSSI, R. Psicanálise sem gênero? Op. cit., p. 2.

11 SOLER, C. Lecture commentée du Séminaire Encore. Paris: Hôpital Sainte-Anne, oct. 1999/ juin 2000 p. 111 (transcrição não relida pela autora). Tradução minha para o trecho citado.

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4 andar (a diferença e não proporcionalidade entre gozo fálico e não-todo-fálico) e o terceiro andar (onde se escreve a diferença com a fantasia)”12.

Não compreendo essa menção a um “gozo não-todo-fálico” ‒ o x mencionado nas fórmulas da sexuação como não-todo é um x indeterminado que designa aquela ou aquele que se situa ante a função fálica como não-todo. Não é o gozo. Para Lacan, o gozo é fálico ou é “além do falo”13. Não

existe “gozo não-todo-fálico” na teoria lacaniana. Mas, enfim, o quadro ou primeiro andar não constitui uma declinação, categoria ou tipo da diferença sexual na teoria de Lacan. Ele supõe que os seres sexuados se situam em duas posições de gozo ‒ logo, na diferença sexual ‒ descrevendo a partir daí os movimentos do desejo e do gozo para aqueles que se situam em ambas as posições.

Nesse quadro, portanto, o desejo é teorizado a partir das identidades sexuais enquanto desejo de homem e desejo de mulher. É isso que representam os vetores emitidos a partir do lado dito masculino e do lado dito feminino em nítida dissimetria de pontos de partida e objetos. Ou seja, exatamente o contrário do que afirma Sam Miell no seu texto Zizek está errado sobre algumas coisas: “Que não haja significante da diferença sexual no inconsciente significa que, como Tim Dean escreve: ‘a diferença sexual não organiza ou determina o desejo sexual’.”14

É fácil perceber que o autor se baseia em enunciados como o desejo é o desejo do Outro, que constam dos primeiros anos do ensino de Lacan. Como sabemos, tais enunciados se aplicam ao sujeito, sem distinção de sexo. A conceituação do desejo presente no quadro das fórmulas representa uma abordagem diversa, na qual o desejo é definido a partir da diferença sexual. Agradeço a Dunker a postagem desse texto no meu perfil da rede social com a indicação de que este representava uma prévia da resposta dos autores.

O dito quadro diz que para alguém que se situa, por exemplo, na posição masculina ou toda-fálica, a forma de tomar o outro como seu objeto do desejo e do gozo é enquanto objeto a, o que põe em destaque a dimensão da fantasia. “(...) esse S só tem a ver, enquanto parceiro, com o objeto a inscrito do outro lado da barra. Só lhe é dado atingir seu parceiro sexual, que é o Outro, por intermédio disto, de ele ser a causa de seu desejo. A este título, como o indica alhures em meus gráficos a conjunção apontada desse e desse a, isto não é outra coisa senão fantasia.” 15 Mas observem que não é dito

12 DUNKER, C. e COSSI, R. Psicanálise sem gênero?Op. cit., p. 5.

13 LACAN, J. O Seminário, Livro 20, mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 (3a edição). p. 80.

14 MIELL, S. Zizek está errado sobre algumas coisas. Disponível em: http://desacato.info/zizek-esta-errado-sobre-algumas-coisas/ Acesso em: 21/11/2017.

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5 em momento algum como esse ser sexuado, dito homem, se apresentará para parecer-homem, ou seja, como ele se situará enquanto semblante.

A teoria da sexuação de Lacan postula duas identidades de gozo, das quais as fórmulas da sexuação constituem a escrita lógica. O chamado primeiro andar mostra como aqueles que se situam em cada uma dessas posições, ditos homem e mulher, se dirigem a seus objetos do desejo e do gozo no exercício da sua sexualidade. Mas nem as fórmulas nem o dito primeiro andar nos indicam como eles se apresentam um ante o outro como parecer-homem e parecer-mulher. Por isso Soler frisa a ausência de qualquer juízo de atribuição na teoria da sexuação de Lacan.

Insisto em tornar sensível o esforço feito por Lacan para formular uma diferença que não decorre do juízo de atribuição, isto é, que não funciona de acordo com a forma – os homens são isto e as mulheres são aquilo –, forma esta em que se manifestam todas as ideologias sobre a questão, e que sempre supõe, por trás da atribuição, a referência a uma substância.16

Portanto, como vimos, mesmo considerando o quadro abaixo das fórmulas, como querem os autores, isso não coloca em relevo a dimensão do semblante, como eles pretendem. Isso significa negar a importância do semblante na sexuação? De forma alguma. Trata-se do componente imaginário da sexuação, que, embora não seja determinante, possui uma grande importância. Concordo com Melman quando ele se refere a esse componente imaginário.

É um fator muito importante, pois comanda de algum modo, na espécie humana, tudo o que tem a ver com o desfile sexual, que como sabemos é muito importante, muito decisivo. E é assim que há um certo número de traços que se pode celebrar, que se pode denunciar, seja o machismo, de um lado, ou seja a sedução, do outro. E que, naturalmente, derivam essencialmente das modalidades, eu diria próprias a uma cultura, de se dar em representação na manifestação dessa identidade sexual.17

Esse não é um componente determinante na sexuação, mas um aspecto a ser construído pelo sujeito uma vez estabelecida sua escolha de gozo e que dependerá das condições sociais, culturais e da história de cada sujeito. De onde esse sujeito colherá os elementos imaginários que possibilitem situar- se no parecer-homem ou parecer-mulher? Do seu entorno familiar, da cultura, dos costumes e, nos dias de hoje, da mídia, das redes sociais, etc. O que mostra que a sexuação não se dá de forma

16 SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 225.

17

MELMAN, C. Uma calça para dois: o ideal da paridade no mundo industrial. 14/5/2008 [tradutor: Sérgio Rezende] Disponível em: <www.tempofreudiano.com.br>. Acesso em: 12 maio 2013.

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6 isolada, como se preocupam em frisar Dunker e Cossi: “Quando Teixeira reduz a sexuação a suas fórmulas, ele presume que elas podem operar no vazio, sem nenhuma antropologia de base, sem nenhuma tradução aos usos locais da língua, sem nenhuma paridade com o plano dos discursos (onde nasce o conceito se semblante)18.”

Note-se que se entendermos dessa forma o semblante como o componente imaginário da identidade sexual a discussão sobre a psicanálise “com gênero” ou “sem gênero” se tornaria dispensável: uma vez que o próprio Lacan estabeleceu uma equivalência entre o seu conceito de semblante e a identidade de gênero, tal como teorizada por Stoller, o gênero já estaria presente na teoria lacaniana. Observem, porém, um detalhe importante: ainda que Lacan faça essa equivalência, semblante e identidade de gênero continuam mantendo suas diferenças teóricas. Ambos são imaginários, porém o semblante, tal como é definido por Lacan, pressupõe o Real ‒ tanto na acepção de real do corpo quanto de real do gozo ‒, assim como o Simbólico da função fálica, logo da castração.

Já o gênero, cuja definição mais conhecida e amplamente citada é aquela que é fornecida por Butler em Problemas de gênero, “O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura regulatória altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”19, supõe que o mais próximo que se poderia chegar de uma identidade sexual seria uma construção estritamente imaginária, de caráter performativo, baseada na repetição de condutas, gestos, etc. Os dois termos mantêm no mínimo esta diferença crucial: enquanto o semblante para Lacan só faz sentido articulado ao Real e ao Simbólico, o gênero prescinde de tais dimensões.

É por esse motivo que considero que o gênero, longe de contribuir para enriquecer a compreensão da sexuação do ponto de vista da psicanálise ‒ “Isso abriria uma pesquisa possível que é mostrar como a noção de performativo pode enriquecer o conceito lacaniano de semblante, bem como o conceito de ‘diferença sexual’ em Lacan, como de fato aprofundamos em trabalhos anteriores”20 ‒ na

verdade a faz retroceder a um plano de condutas, comportamentos, estritamente imaginário. E não porque considere Foucault ou Butler como “inimigos”, vamos falar sério.

Por isso o argumento de que o próprio Lacan importava conceitos de outras teorias, invocado para justificar a introdução do gênero na teoria lacaniana, não procede. “(...) Lacan não cessa de trazer conceitos de outros corpus teóricos. A ideia de que uma teoria é uma raça pura que não deve ser

18 DUNKER, C. e COSSI, R. Psicanálise sem gênero? Op. cit., p. 3.

19 BUTLER, J. Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 69.

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7 misturada, traduzida ou comparada é de grande ingenuidade epistemológica”21. Fico muito grato que

Dunker e Cossi mostrem que têm conhecimento de que Lacan se apropriava de conceitos dos mais diversos campos do saber. Porém, ao fazê-lo, como os autores e todos os demais sabem, ele os modificava, subvertia, retendo da sua definição original apenas o que lhe interessava e acrescentando novos sentidos.

Como era insuspeito de ter algum tipo de ingenuidade epistemológica, Lacan não ignorava que o linguista, por exemplo, não reconheceria o conceito sausseureano de significante naquilo que representa o sujeito para outro significante. Por isso dizia que não se ocupava da linguística, mas da linguisteria22. Na perspectiva da sua teoria dos discursos, seu procedimento extrai algo do discurso universitário e o faz funcionar no discurso psicanalítico.

Já o procedimento daqueles que preconizam a introdução da noção de gênero na teoria psicanalítica é não apenas diferente, mas exatamente o inverso. Trata-se de manter a noção de gênero intacta, com um funcionamento idêntico àquele que possuía na teoria de origem. Dessa forma é a teoria psicanalítica que deve se modificar para se adaptar ao termo importado. Do ponto de vista da teoria dos discursos, trata-se de passar do laço social analítico para o laço social universitário. Daí decorre a necessidade de questionar a todo custo as identidades sexuais para estar de acordo com a crítica de Butler ao que a autora entende como identidade sexual na teoria lacaniana: “Entenda-se identidade sexual como conjunção necessária entre tipo de semblante, modalidade de gozo e forma de fantasma. É esta conjunção que Butler critica como paradigma heteronormativo e genital compulsório.”23.

Daí também o esforço incessante em negar a diferença sexual, culminando na noção de uma “diferença sexual real”, baseada na forma confusa como Zizek entende a teoria da sexuação em Lacan.

Segundo Zizek [...], o cerne do problema reside no fato de que Butler não leva em conta que, para Lacan, em seus seminários tardios, a diferença sexual nunca pode ser propriamente simbolizada ou traduzia em uma norma simbólica que fixa a identidade sexual do sujeito. O sexual começa a ser confrontado cada vez mais com o Real, de tal maneira que, em um movimento, aliás bastante butleriano, acaba por se colocar como sucedâneo do sentido e da significação, como se Lacan invertesse a ideia inicial de que toda significação é sexual, em toda sexualidade é indutora

21 Id., loc. cit.

22 LACAN, J. O Seminário, Livro 20, Mais, ainda...op. cit., p. 22. 23 DUNKER, C. e COSSI, R. Psicanálise sem gênero? Op. cit., p. 4.

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8 de significação. [...] A diferença sexual deixa de ser uma duplicação da diferença significante e passa a ser referida a uma experiência não-identitária de gozo.24

É contra essa leitura que eu argumento no meu artigo, o que leva os autores a afirmarem que eu nego as dimensões real e imaginária da diferença sexual: “Mas voltemos ao argumento de Teixeira de que a diferença sexual em Lacan não é real nem comporta imaginário.”25 Sinceramente, não sei de onde extraíram elementos para concluir que eu afirmo que a diferença sexual na teoria de Lacan diria respeito unicamente à dimensão do Simbólico. O que eu critico é a noção zizekiana de uma “diferença sexual real”, que Dunker e Cossi subscrevem. Vejamos como Zizek define a sua noção:

[...] ela [Butler] equipara silenciosamente a diferença sexual à norma simbólica heterossexual que determina o que é ser um “homem” ou uma “mulher”, ao passo que, para Lacan, a diferença sexual é real no sentido de que não pode jamais ser devidamente simbolizada, transposta/traduzida na norma simbólica que estabelece a identidade sexual do sujeito [...] a afirmação de que a diferença sexual é “real” equivale à afirmação de que ela é “impossível” ‒ impossível de simbolizar, de formular como uma norma simbólica.26

Critiquei extensamente em outro texto27 essa ideia de que a diferença sexual para Lacan seria real, no sentido de “impossível de simbolizar, de formular como uma norma simbólica”. Zizek não leva em consideração que Lacan parte de um dado que independe do Simbólico e do Imaginário: “Que o sexo é real, não há a menor dúvida. E sua própria estrutura é o dual, o número dois. O que quer que pensemos, existem apenas dois, os homens e as mulheres.”28 Mas isso não significa que para ele a

diferença sexual seja impossível de ser simbolizada, como toda a sua teoria da sexuação testemunha ‒ as passagens são inúmeras. A diferença sexual concerne ao Real, sim, mas só tem sentido para os seres da linguagem porque é traduzida no Simbólico, além de assumir no exercício da sexualidade um aspecto que diz respeito ao Imaginário. Já a “diferença sexual real” de Zizek é uma extrapolação extravagante da teoria da sexuação, uma diferença sexual que nada tem a ver com o sexo.

Os autores insistem não somente em adotar tal noção como também em aproximá-la da noção formulada por Butler de uma “diferença sexual pulsional”. “Apesar de Butler nunca ter estabelecido tal aproximação, a ideia de diferença sexual pulsional nos parece ser compatível com a diferença

24DUNKER, C. e COSSI, R. A diferença sexual...op. cit.,

25 DUNKER, C. e COSSI, R. Psicanálise sem gênero? Op. cit., p. 4.

26ZIZEK, S. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo, 2016. p.

292.

27 TEIXEIRA, M. R. Oitava aula do curso Os gozos na teoria e na clínica psicanalíticas. Disponível em: http://www.agalma.com.br/wp-content/uploads/2017/11/A-diferen%C3%A7a-entre-Butler-e-Lacan-acerca-da-diferen%C3%A7a-sexual.pdf

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9 sexual real de Lacan, inassimilável pela linguagem, irredutível ao corpo e ao social”.29 Diante do meu comentário de que a expressão “diferença sexual pulsional” constitui um oxímoro, sou brindado pelos autores com os seguintes mimos:

O ódio à política leva o sujeito a afirmar algo realmente ridículo. Qual parte de “Três ensaios sobre a sexualidade” ou de “A organização genital infantil” teremos que citar para lembrar que Freud associa o modo passivo da pulsão com a feminilidade e o ativo com a masculinidade? Ou que toda libido é masculina?”30

Devo confessar que fiquei curioso para conhecer quais citações de Freud sustentariam a tese butleriana de uma “diferença sexual pulsional”. Pois, se as pulsões sempre se dirigem a objetos parciais, como destacou Lacan ‒ a cujas formulações teóricas eu avisei que iria me restringir na minha crítica inicial ‒, objetos estes que seriam os mesmos para todos os seres falantes, independentemente do sexo anatômico, simbólico ou imaginário, não haveria como tomar as pulsões como fundamento para pensar uma nova teoria da diferença sexual.

Este, aliás, é um dos grandes problemas da teoria freudiana, segundo importantes leitores de Freud: como passar da sexualidade regida pela anarquia pulsional e seus objetos parciais à sexualidade que se dirige a um outro, uma pessoa (ainda que o gozo continue tomando objetos parciais).

Mas Freud tem uma grande dificuldade em passar do gozo infantil e perverso – que concerne sempre a um objeto – ao gozo genital, que vai concernir a uma pessoa. Ele passa por isso muito rapidamente, mas percebemos bem que ele não consegue fazer junção entre um gozo objetal – que a teoria chamou de gozo parcial – e a escolha de uma pessoa. 31

Sabemos que os pós-freudianos encontraram uma solução para esse problema na noção de pulsão genital, que sintetizaria as pulsões parciais. Sabemos também como Lacan criticou duramente tal noção. O mesmo Lacan, aliás, falou em “sujeito acéfalo” da pulsão. O que torna ainda mais difícil pensar uma noção de diferença sexual com base na pulsão: sem sujeito de um lado, apenas com partes destacáveis do corpo, do outro. Daí a minha afirmação de que “diferença sexual pulsional” é um oxímoro. Para minha surpresa, os autores insistem em afirmar que é possível extrair uma noção de diferença sexual a partir da pulsão. Tal afirmação ainda resta a ser demonstrada, certamente com um argumento melhor do que a oposição freudiana atividade/passividade.

29 DUNKER, C. e COSSI, R. A diferença sexual de Butler a Lacan...op. cit. 30 DUNKER e COSSI, Psicanálise sem gênero? Op. cit., p. 6.

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10 Há ainda uma discussão sobre preferências bibliográficas que poderia até ser divertida, não fosse o tom hostil. Dunker e Cossi apontam que a expressão identidades de gozo, à qual eu faço referência, não é uma criação de Lacan, mas de leitores seus. “Teixeira pratica o mesmo erro que aponta em nós e que supõe em Butler. Coloca palavras no texto de Lacan, que ele nunca empregou, por exemplo, ‘identidade de gozo’. Ainda que Soler e Melman o façam, ambos reconhecem que o ponto de partida é que ‘não há identidade sexual’.”32

Recebo com muita satisfação essa precisão teórica. Afinal, não é outro o meu intuito ao longo do texto senão mostrar que ao se atribuir a Lacan posições teóricas que nele não se encontram se incorre no risco de confundir a posição teórica do autor com a de quem o lê. Não se trata de almejar ingenuamente uma leitura “neutra”, mas de checar se determinada leitura se sustenta nas teses comentadas, eventualmente contribuindo para sua ampliação ou se apresenta pontos de contradição que enfraquecem a própria argumentação, empobrecendo a teoria comentada e fazendo retroceder seus avanços. Não é outra senão essa a origem do modo “parecerista” dos meus comentários.

Noto, contudo, que os autores não recebem com a mesma satisfação as minhas observações quando aponto vários trechos do seu artigo em que atribuem explicitamente a Lacan posições butlerianas. Aliás, mostram-se bastante contrariados com o meu comentário de que isso pode induzir o leitor neófito a pensar que Lacan e Butler dizem a mesma coisa, apenas empregando termos diferentes. Dizem que “O comentário é sem pé nem cabeça” e afirmam que seu objetivo é “[...] mostrar justamente onde e porque há uma diferença entre autores e onde eles se aproximam”33. Bem, não

vejo qual o motivo da irritação, já que os autores declaram explicitamente sua opção por ler a teoria psicanalítica segundo uma perspectiva foucaultiana-butleriana. Nesse sentido, apontar os trechos onde eles o fazem não é senão reconhecer o que eles próprios se declararam dispostos a fazer. Ressaltando ainda que qualificar teorizações de Lacan como butlerianas é muito mais do que simplesmente mostrar como os dois autores se aproximam ‒ o que comumente é feito com um recuo prudente, com cautela, no condicional ‒ mas significa emitir um juízo, afirmar que Lacan emprega conceitos “exatamente como quer Butler”34.

Os autores citam ainda outro texto meu, Notas sobre a teoria do gênero e a psicanálise35, onde discuto posições de Butler expressas no seu famoso livro Problemas de Gênero, para dizer: “Lendo pejorativamente ‘Problemas de gênero’, ele afirma [...] Frases sem sentido à luz do livro seguinte de

32 DUNKER, C. e COSSI, R. Psicanálise sem gênero? Op. cit., p. 4. 33 Id., ibid., p. 2.

34 DUNKER, C. e COSSI, R. A diferença sexual de Butler a Lacan...op. cit.

35 TEIXEIRA, M. R. Notas sobre a teoria do gênero e a psicanálise. Disponível em: http://www.agalma.com.br/artigossite/notas-sobre-a-teoria-do-genero-e-a-psicanalise-2/

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11 Butler, ‘Bodies that matter’.” 36 Fico honrado em tê-los como leitores de outro texto que não os menciona, mas não entendo qual o critério acadêmico para afirmar que uma crítica às ideias de uma autora expressas em um determinado texto tornam-se “sem sentido” porque a autora mudou sua posição em alguns pontos em outro texto que não é objeto do comentário.

Quanto aos autores citados por mim, devo dizer que os cito justamente porque os considero referências importantes na leitura de Lacan, mais do que ‒ sem nenhuma ofensa ‒ Dunker e Cossi. Aqueles que se destacam como leitores de Lacan traçam trilhas que nos auxiliam a percorrer a sua teoria. Considero os argumentos de tais autores para falar de identidades de gozo mais consistentes do que aqueles de Dunker e Cossi para negá-las. Em tempo: dizer que tais autores reconhecem que o ponto de partida é que não há identidade sexual desconsidera a parte principal da sua tese, onde se afirma que no “ponto de chegada”, ou seja, no período final do ensino de Lacan, ele fornece os elementos teóricos para definir tais identidades.

Noto também que Dunker e Cossi observam, muito corretamente, que não conheço alguns dos autores do meio acadêmico e feminista norte-americano por eles citados: “Como se a pessoa nunca tivesse lido Gayle Rubin [...]”37. Têm toda razão. De fato, “a pessoa” não costuma frequentar esses

autores. Sendo o tempo um recurso limitado, infelizmente, temos que escolher quais autores vamos ler. Acredito que essas escolhas definem nossos pontos de vista ‒ tanto teóricos quanto políticos. Deve significar algo o fato de constarem da minha bibliografia autores relevantes de diferentes escolas do meio psicanalítico, que têm como referência a clínica, e não autores do meio universitário que afirmam que a psicanálise é uma “teoria feminista manqué” (sic) ou que “Lacan é um teórico queer avant la lettre”. Quem sabe isso se deva à minha “ingênua alienação provinciana”.

Há um momento estranho no texto, no qual Dunker e Cossi partem das minhas críticas à noção de gênero em Butler e por um caminho tortuoso chegam às manifestações de grupelhos de extrema-direita contra a filósofa. Até então o texto seguia na linha de tentar refutar minhas críticas, dentro do que se espera de um debate intelectual, ainda que num tom descortês. Eu estava disposto até mesmo a aceitar que os meus questionamentos ao seu entendimento do que Lacan denomina ao-menos-um “confirmam e não desmentem nosso argumento”38. Claro. Mas nesse ponto os autores sobem o tom.

A discussão sobre Butler leva psicanalistas a explicitarem posições e a argumentarem como entendem a teoria psicanalítica da sexualidade. Mas depois disso a crítica escorrega para a mais uma confusão semelhante a que escutamos na porta do SESC em São Paulo. Enquanto

36 DUNKER, C. e COSSI, R. Psicanálise sem gênero? Op. cit., p. 7. 37 Id., loc. cit.

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12 se o boneco de Judith Butler, cercado por cruzes exorcistas repetia-se que “ela não é séria, ela é apenas uma forma de ideologia de gênero, ela tem um programa político”. Os adeptos da Psicanálise sem Gênero, aqueles que se acreditam seguros e confortáveis “dentro da psicanálise”, sem contato ou contaminação ideológica alguma, cujo único argumento crítico é “você não entendeu corretamente o que Lacan disse” ficarão contentes com a sentença final [segue citação do texto]39

Pouco antes eles afirmam:

Contudo devíamos aprender que a leitura que parte da identidade esperada para os sujeitos participa do mesmo caminho, na história da psicanálise, que levou ao entendimento das homossexualidades como formas patológicas.

Ora, a patologização das homossexualidades não é efeito apenas da má leitura ou falta de rigor, mas está sobredeterminada pela participação da psicanálise em políticas discursivas, internas e externas aos textos de Freud ou de Lacan. Imaginar que a psicanálise seria imune a determinação ideológica de seus conceitos é sancionar desavisadamente políticas que já estão em curso. Os mesmos que querem uma Escola sem Partido, advogam uma Psicanálise sem Gênero.40

Devo dizer que repudio com veemência qualquer tipo de associação entre críticas teóricas feitas no contexto de um debate psicanalítico e posições homofóbicas e fascistoides. Na postagem que suscitou esse debate eu frisava o quanto é importante marcar uma distinção em relação à barbárie daqueles que queimam efígies e pedem censura. Tenho chamado a atenção dos leitores contra um procedimento, frequente em discussões sobre o tema do gênero nas redes sociais, que consiste em associar as críticas às teorias do gênero com a homofobia. Isso desvia o debate das ideias para desqualificar o interlocutor. O julgamento é sumário: a contestação das teorias que empregam a noção de gênero é prova suficiente de que o autor se coloca do lado do preconceito, da discriminação e da violência contra homossexuais, travestis e transexuais. Isso atrai a hostilidade dos leitores contra sua pessoa e serve para intimidar outros possíveis adversários teóricos. Assim, o debate intelectual é transformado numa caça às bruxas ‒ que todos afirmam repudiar.

Sinceramente, não creio que seja esta a intenção dos colegas no presente debate. Quero crer que tenha sido apenas uma mera construção de texto infeliz sem a intenção de difamar e caluniar publicamente um colega. Mas se Dunker e Cossi afirmam que “Os mesmos que querem uma Escola sem Partido, advogam uma Psicanálise sem Gênero”, os leitores ‒ sobretudo eu, que tenho meu texto

39 DUNKER, C. e COSSI, R. Psicanálise sem gênero? Op. cit., p. 6. 40 Id., ibid., p. 5.

(13)

13 comentado ‒ têm o direito de saber quem são “os mesmos” que militam em grupos homofóbicos e ao mesmo tempo criticam teoricamente a noção de gênero na teoria psicanalítica.

Referências

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