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A MÃE COMO MAU EXEMPLO : ANÁLISE DE PROCESSOS JUDICIAIS POR CRIME DE SEDUÇÃO E ESTUPRO DE FILHAS DE MÃES SOLTEIRAS OU VIÚVAS EM JACOBINA, BA

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“A MÃE COMO MAU EXEMPLO”:

ANÁLISE DE PROCESSOS JUDICIAIS POR CRIME DE SEDUÇÃO E ESTUPRO DE FILHAS DE MÃES SOLTEIRAS OU VIÚVAS EM JACOBINA, BA (1940-1970)

Tânia Mara Pereira Vasconcelos∗

Moça, formosa e insinuante, de criação, digamos a verdade, defeituosa, porque sem os freios de um pai a zelar pelos passos delicados da menina em completa

floração da puberdade, eis que, com os livres costumes da época e os trabalhos persistentes dos enleios amorosos do acusado, um abismo de sonhos fantásticos a ofuscaram. A pobre mãe porém, entre a cozinha e a sala de refeições, atendia, a tempo e a hora, a hóspedes impenitentes... (Processo-crime por sedução nº 11, de 1943 – Arguição do Promotor)

Os autos também se referem a má conduta da mãe de Jussara, vivendo maritalmente ora com um, ora com outro e recebendo visitas como prostituta (…).

Dessa forma sendo o que era e vivendo em um ambiente pernicioso, Jussara não era a moça recatada, séria, ingênua, cuja queda fosse obra de perspicaz e jeitosa captação. Mesmo assim teria razões para confiar nas “intenções sérias” que disse o acusado manter consigo? De maneira alguma. (Idem –Defesa do Advogado)

Educação defeituosa por que em plena puberdade ficou entregue aos instintos naturais da juventude, sem ao menos, infelizmente, no lar materno encontrar um espelho que refletisse o caminho do bem, um exemplo vivo daquilo que devia ser a

sua trajetória nessa fase difícil de sua existência. A pobreza jamais afastou a dignidade, nem tampouco o desvelo de pais para filhos… (…) Se cópula carnal existiu (…) foi ela resultado da perversão, da falta de educação apropriada, da ausência de fiscalização materna, dos impulsos incontidos, e jamais consequência

das “lábias” e dos enganos de um sedutor. (Idem - Sentença do Juiz)

O presente texto tem como foco a análise de processos nos quais as vítimas foram representadas legalmente por suas mães, sendo estas mulheres solteiras ou viúvas. A opção por esse recorte adveio da percepção de que essas moças foram as que estiveram mais sujeitas à desqualificação no decorrer dos processos, uma vez que a suspeição sobre sua moralidade, comum a quase todas as vítimas, era acrescida da suspeição sobre a moralidade de suas mães,o mesmo não ocorrendo com as vítimas que foram representadas legalmente pelo pai.

Na pesquisa1 que estou desenvolvendo, tive acesso até o momento a 31 processos por crime de sedução e estupro da Comarca de Jacobina2, sendo que destes, dez tiveram mães

Professora da Universidade do Estado da Bahia e doutorandaemHistóriapelaUniversidade Federal Fluminense. 1Doutorado em História na UFF; a Pesquisase propõe a analisar concepções e práticas relativas a vivências sexo-afetivas das camadas populares em Jacobina (BA), entre 1940 e 1970. A partir da análise de processos judiciais por crime de sedução e estupro procuro compreender as representações em torno da virgindade feminina e as

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como representantes legais da filhas.Dos dez processos analisados, ode Jussara contra Jonasfoi o mais significativo por conter ideias compartilhadas pelos três membros do judiciário envolvidos no caso: o promotor, o advogado e o juiz. Como podemos observar, nos trechos selecionados, todos eles relacionaram o seu comportamento a um “mau exemplo” recebido em casa. Nos demais processos analisados essa mesma afinidade discursiva não aparece; neles, a investigação do comportamento da mãe da ofendida foi feita apenas pelos advogados a partir de perguntas recorrentemente feitas às testemunhas, que seguem um padrão, do tipo: “Qual o procedimento da mãe da ofendida”? ou “A mãe da ofendida é honesta?”

Jussara tinha apenas 15 anos quando sua mãe Aurora procurou pessoalmente o juiz para dar queixa contra Jonas, comerciante, de 30 anos de idade, por ter seduzido sua filha. De acordo com o depoimento da menor, ela mantinha relações de namoro com o acusado desde os doze anos e, apesar da oposição de sua mãe, “quanto mais ele seduzia mais ela se prendia naquelas ilusões”. Jussara alegou ter feito sacrifícios a pedido de Jonas, ao longo desses três anos: apesar de ser pobre deixou dois empregos que conseguiu como secretária, tendo abandonando também um curso de datilografia, devido aos ciúmes do namorado; por conta desses “cuidados” ela teria acreditado que suas intenções com ela eram sérias. Jussara só revelou à mãe ter perdido a virgindade por que Jonas, apesar das promessas de casamento que havia feito anteriormente, mudou de atitude após desvirginá-la, tendo proposto a ela, ao invés do casamento, levá-la para o Povoado de Lapão como sua amásia, o que ela recusou. Ele teria lhe pedido para não revelar o ocorrido, sugerindo que ela alegasse ter sido “deflorada” por outro rapaz (já falecido) e, ao ser cobrado a cumprir suas promessas, teria lhe dito que não adiantava procurar a polícia porque ele tinha força com o juiz. Jussara dessa vez não obedeceu.

tentativas de normatização do comportamento das mulheres por parte do poder judiciário, bem como as resistências destas a esse processo.

2 O município de Jacobinaestálocalizadona Bahia noPiemonte da ChapadaDiamantina e possuiumahistóriamarcadapordiversosciclos de exploração do ouro. No períodoestudado, o municípioviviaum dos ciclos de redescoberta eexploraçãodesse mineral, o queproporcionoualterações de ordemeconômica e cultural, como a chegada da luzelétrica e do cinema falado. Osjornaislocaiseramosprincipaisveículos de divulgaçãode umdesejo de modernidadepreconizadopor parte da elite; neles, a exploraçãoauríferaapareciacomo a grandeoportunidade da “cidade do ouro” se desenvolver,tornando-se umacidade“civilizada”.

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Os discursos dos homens da justiça envolvidos no processo além de destacar o “mau exemplo” da mãe e o “meio viciado” em que Jussara vivia,como principais responsáveis pelo seu infortúnio, também tem em comum o fato de citarem a sensualidade ou formosura da moça.

O discurso do Promotor, por estar no lugar da acusação, procura justificar a “criação defeituosa” de Jussara devido à ausência do pai e a pobreza da mãe. Aurora, com três filhos para criar, vivia assoberbada de trabalho como dona de uma pensão humilde, frequentada por caminhoneiros; por conta disso, não teria condições de cuidar e educar corretamente a filha mais velha. O “sedutor” Jonas, era um comerciante de posses, noivo de uma moça de “boa família”. No ideal paternalista defendido, cabiam as classes superiores certo zelo pelos mais pobres. Jonas, ao contrário disso, aproveitou-se da condição da ofendida, pobre e órfã de pai, procurando “explorar e tirar vantagem do seu melhor quinhão”.

Entretanto, ao ressaltar as características de Jussara como “moça formosa e insinuante”, o discurso do promotor acaba se afinando com o do advogado, que defendeu, e com o do juiz, que absolveu o acusado. Essa forma de qualificar a ofendida, acrescida do destaque dado ao meio no qual ela vivia, colabora de alguma forma com a defesa do acusado, por reforçar implicitamente preconceitos de gênero, classe e raça. Uma mulata jovem, “formosa e insinuante”, vivendo em um “meio viciado”, com uma mãe solteira, não seria um convite à sedução praticada por Jonas, homem branco, solteiro e rico?

No discurso do advogado a “má conduta” da mãe e o “ambiente pernicioso” em que vivia teriam apenas reforçado o que Jussara já era por natureza, daí não haver razões para que ela pudesse acreditar numa proposta de casamento vinda do acusado.

O crime de sedução, instituído no Código Penal de 1940, substituindo o crime de defloramento do anterior (de 1890),pressupunha que o culpado tivesse se aproveitado da “inexperiência e justificável confiança” da vítima. Esse aspecto da lei acabaria, assim, por justificar e reforçar uma prática já existente: a avaliação do comportamento das mulheres no julgamento dos crimes em que elas próprias aparecem como vítimas. A tendência de transformar as vítimas em culpadas no decorrer dos processos é apontada por diversos autores que trabalham com processos judiciais envolvendo relações de gênero. O advogado de Jonas

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se utiliza dessa estratégia de forma contundente, associando o mau comportamento de Jussaraao de sua mãe.

Açulada pela sua exuberante sensualidade vivia aqui nas mãos da rapaziada e até de homens casados, dando curso as mais variadas libidinagens. Saia de casa a qualquer hora e voltava quando queria. Tomava parte em pic-nics fora da cidade e demorava dias ou até semanas. Pedia e recebia gorjetas dos homens. Frequentava bailes populares e voltava noite velha na companhia dos amigos da ocasião. Tinha na

própria residência o meio correspondente às inclinações, encontrando na mãe o primeiro exemplo de liberdade sexual. Era a maior atração da hospedaria de

segunda ordem que a progenitora tinha em casa. Jandira distraia os hóspedes, cantava nos joelhos deles, ouvia e contava anedotas fesceninas, beliscava e era beliscada.

A construção da imagem deJussara, feita pelo advogado, se assenta em estereótipos historicamente construídos a respeito das mulheres pobres e mestiças, primeiro em sua “natureza sensual e exuberante” que a “açulava” a viver uma sexualidade livre e, em segundo lugar, no “meio viciado” no qual vivia. Nessa construção, a natureza aparece como um elemento mais forte que o meio, uma vez que o meio era “correspondente às suas inclinações”. Ainda que não apareça claramente, a imagem da mulata sensual e degenerada é manipula no discurso (CAUFIELD, 2000, p. 289).

O “ambiente pernicioso”, termo utilizado pelo advogado, para caracterizar a pensão da mãe da Jandira, é descrito como um espaço altamente erotizado. O papel que a menor desempenharia ali, provavelmente, era fruto da imaginação fértil dele, uma vez que não encontra respaldo em nenhum dos depoimentos. A respeito de Jandira, as testemunhas, ao serem inquiridas pelo advogado, citam alguns dos comportamentos da menor,descridos por ele com certo exagero; mas em nenhum relato aparece a citação de que ela “distraia” os hóspedes da pensão, nem que sua mãe recebesse visitas como prostituta. Essa construção do advogado, com detalhes que parecem saídos de um folhetim erótico, é feita propositadamente visando associar Jandira e sua mãe à prostituição, ao insinuar que a mãe agia como uma espécie de cafetina da filha.

Esta imagem, associando o comportamento da filha ao de sua mãe, se aproxima da imagem da “degenerada nata”, discutida por Rago (1991) na obra Os Prazeres da Noite, ao analisar o discurso médico e jurídico do século XIX, que relacionava a prostituição com hereditariedade e destino. As teorias científicas surgidas na Europa e reproduzidas no Brasil

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pelos médicos atestavam a inferioridade da mulher, considerada biologicamente mais frágil que o homem. A prostituição era vista como uma alteração do “quadro normal” da mulher. Rago destaca a importância do pensamento de CesareLombroso na construção desse discurso, para quem há uma diferença genética entre a “mulher normal” e a prostituta, esta última sendo vista como uma “mulher inacabada”, louca moral, criminosa, comparada ao louco mental na sua identidade psicológica.

A argumentação do advogado foi aceita pelo juiz que, na sentença que absolveu o acusado,utilizaum discurso bastante similar. Embora isso não seja uma novidade nesse tipo de processo, não podemos descartar a hipótese apontada pela ofendida que, de fato, o acusado tivesse mesmo “força com o juiz”. Considero essa hipótese plausível por que no depoimento de Jussara prestado no fórum o juiz lhe fez perguntas um tanto capciosas, que normalmente são feitas apenas pelos advogados.

O processo de Jussara contra Jonas se destaca dos demais por evidenciar uma grande diferença social entre a vítima e o acusado. Esse fato é mencionado no processo por diferentes testemunhas, sendo que uma delas relata que Jonas teria oferecido dinheiro à mãe de Jussara para que ela desistisse do processo.

Dos dez processos analisados em apenas dois os acusados contrataram um advogado para defende-los.Nos demais, eles foram defendidos por defensores públicos, evidenciando não possuir recursos para pagar a um advogado, o que indica que nesses casos a diferença social entre o casal, se havia, não era tão significativa. Além de Jonas, outro que contratou um advogado particular foiMarcos, que em 1940 foi acusado de estuprar a namorada Celma. Esse último,entretanto, declarou a profissão de alfaiate, sendo provavelmente menos abastado queJonas, que era comerciante.

É interessante observar que apenas nesses dois processesas mães das ofendidas foram acusadas de prostituição.No caso da mãe de Celma, algumas testemunhas dão a entender que ela de fato vivia da prostituição. Já no caso da mãe de Jussara, as testemunhas que a desqualificaram, apontaram que ela teria tido ao longo da vida vários parceiros sexuais;no entanto, a afirmação de que ela “recebia visitas como prostituta” feita pelo advogado não aparece em nenhum depoimento,sendo utilizada por eleprovavelmente com o objetivo de comprovar que a acusação contra seu cliente se tratava de uma armação com a finalidade de

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tirar alguma vantagem econômica dele. Tanto que finaliza sua argumentação afirmando: “Jandira e a mãe urdiram uma perigosa fantasia, cujos dias, com o julgamento, estão contados”.

Analisando comparativamente é possível observar outras semelhanças entre as histórias das filhas de mães solteiras ou viúvas, não sendo possível tratar de todas elas nas dimensões desse texto. Um dado que aparece em 50% desses processos é o fato de a mãe se opor à relação da filha com o acusado e, apesar disso, os dois continuarem se encontrando às escondidas. Ele aparece no processo de Jussaracontra Jonas, como vimos, e em mais quatro processos de sedução: de Maria contra Ricardo (1945), de Valdete contra João (1946), de Lindalva contra Antonio (1948) e de Noêmia contra Clovis (1956). Em alguns deles a mãe relatou ao delegado ter castigado fisicamente a filha visando coibir o namoro. Aurora, mãe de Jussara, na queixa que prestou na delegacia afirmou que sabia do namoro da filha e “muito a aconselhava para que terminasse esse namoro, chegando a castigá-la algumas vezes”. Jeruza, mãe de Noêmia também afirmou na delegacia que quando soube que sua filha ainda estava namorando o acusado, mesmo após sua proibição “tão aborrecida ficou que além de bater-lhe, ainda mordeu-lhe num braço, tendo depois passado a aconselhar Noêmia...” O aborrecimento de Jeruza devia-se principalmente ao fato de o acusado ser casado.De acordo com as testemunhas Clóvis havia se casado civilmente alguns meses antes de ter “deflorado”Noêmia, por ter também “deflorado” outra menor, tendo sido forçado pela família dela a casar-se, porém, deixou a esposa logo após o casamento.

Como nos casos de Jerusa e Aurora a oposição das mães ao namoro das filhas, coincide com o fato dos acusados serem homens comprometidos com outras mulheres ou de possuírem um histórico de sedutores. De acordo com informações contidas nos processos, Jonas era noivo,Clóvis e João eram casados, Antonio vivia com uma mulher, mas segundo Lindalva prometia que ia deixa-la para viver com ela, e Ricardo, apesar de não ter outra namorada, segundo uma testemunha, já “havia praticado uns três defloramentos”. A proibiçãodo namoro desuas filhas com esses homens, se dando as vezes de forma agressiva, talvez ocorresse como uma tentativa desesperada de evitar que estas também se tornassem mães solteiras, passando pelas dificuldades que elas bem conheciam, numa sociedade extremamente discriminatória com as mulheres que não se enquadravam do modelo exigido.

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Os advogados dos acusados utilizavam essa informação como uma forma de desqualificar a crença na promessa de casamento por parte das ofendidas, sendo comum fazerem perguntas a elas do tipo: “Sua mãe acreditava que as intenções do acusado eram sérias?”Vejamos o exemplo do processo de Lindalva contra Antonio:

(...) não sabem (as testemunhas), de ciência, nem mesmo de ouvida, da existência de formal compromisso de casamento entre o acusado e a vítima; é a própria Lindalva quem afirma que sua mãe não levava a sério o namoro dito existente entre ela e o acusado.(Processo-crime por sedução nº 86, de 1948)

O fato de o acusado ser comprometido com outra mulher ou possuir um histórico de sedutor, também era usado pelos advogados para desqualificar o delito de sedução com base na alegação da promessa de casamento. Vejamos mais um trecho da defesa de Jonas: “Pelas suas próprias declarações (de Jussara), as alegadas promessas de casamento nunca saíram dentre eles. Além disso, o acusado sempre gostou de uma môça, sua parenta. Circunstância do conhecimento de Jussara”. O advogado de Ricardo, que também era acusado de desordeiro, desqualifica a crença de Maria com base no histórico do rapaz: “Não se pode admitir que sabendo da vida pregressa do acusado, tivesse qualquer resquício de confiança, se é que houve, na sua promessa de casamento”(Processo-crime por sedução, nº 13, de 1945).

É interessante como na maioria dos processos não há a preocupação por parte dos advogados em defender a ausência de culpa dos acusados no desvirginamento das ofendidas, muitas vezes afirmadas no depoimento deles próprios, nem mesmo de desmentir que estes tenham feito promessas de casamento a elas. Para tentar provar a inocência dos acusados, a defesa costumava investir na desmoralização da mulher, buscando detalhes de sua vida que a desqualificassem enquanto uma “moça honesta” e assim, merecedora de defesa por parte da justiça. De acordo com as hierarquias de gênero vigentes no modelo defendido, no qual prevalecia uma dupla moral sexual, apareciacomo natural e moralmente aceitável que os homens, mesmo sendo comprometidos, desfrutassem dos prazeres “oferecidos” por moças pobres e mestiças, principalmente quando elas não tinham um pai para “defender a sua honra”.

O fato de dez processos,(dos 31 encontrados) serem impetrados por mulheres sozinhas, sendo oito solteiras e duas viúvas, procurando “defender a honra” das suas filhas, ao

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mesmo tempo que pode significar uma afirmação do modelo sexista vigente, paradoxalmente,demonstratambém um inconformismo com ele. Enfrentar uma Justiça, lenta, burocrática e masculina, lutando contra um homem, muitas vezes de uma classe social superior,estando sujeitas a todo tipo de discriminação, não devia ser nada fácil para essas mulheres pobres e, em sua maioria, analfabetas (oito das dez mães). Os motivos que as levaram a enfrentar essas adversidades podem ser os mais diversos, entretanto, o fato representa, de algum modo, a crença de que a justiça tinha o papel de defender suas filhas.

As dez vítimas representadas judicialmente pelas mães, eram aparentemente as mais pobres e as de cor mais escura (apenas uma foi classificada como branca). Observando atentamente os discursos contidos nos documentos é possível perceber que essas moças e suas mães foram as que mais sofreram constrangimentos ao longo dos processos judiciais que enfrentaram. Os discursos relativos à moral dessas mulheres tendiam a ser os mais desfavoráveis, isso por parte dos advogados, de alguns juízes eaté mesmo de alguns promotores e das próprias testemunhas de acusação, indicadas por elas próprias.

A desmoralização das mulheres,que no decorrer dos processos iam se transformando de vítimas em culpadas, se embasava geralmente em preconceitos de gênero, classe e raça, uma vez que as moças pobres e sem a proteção de um homem, mesmo quando se esforçavam para tentar provar um “comportamento recatado”, geralmente esbarravam em condições concretas que as distanciavam do modelo ideal, possível apenas para as mulheres de elite. O fato de trabalharem fora, frequentarem festas de rua, andarem desacompanhadas, e ainda serem filhas de mães solteiras ou viúvas, era utilizado nos discursos como elementos de suspeição de sua moralidade.

Referências bibliográficas

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Referências

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