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Ilha da Devoção : um documentário etnográfico compartilhado 1

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Academic year: 2021

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“Ilha da Devoção”: um documentário etnográfico compartilhado1

Fernando Firmo2

Resumo: Este trabalho discute a produção de um filme etnográfico compartilhado, “Ilha da Devoção”, que trata dos festejos religiosos (homenageando Senhor dos Passos e Nossa Senhora dos Navegantes) realizados anualmente pelos moradores da ilha de Bom Jesus, localizada ao fundo da Baía de Todos os Santos, Bahia.

Palavras-chave: documentário compartilhado, etnografia, festas religiosas na Bahia,

Durante a realização de meu trabalho de campo na ilha de Bom Jesus, Baía de Todos os Santos, Bahia, um ilhéu, Luís Henrique, me propôs realizarmos juntos uma pesquisa que pudesse resultar na produção de um documentário enfatizando, i) a tradicionalidade de uma festa louvando os padroeiros da localidade (Senhor dos Passos e Nossa Senhora dos Navegantes) e ii) a importância cultural de tal evento3. Nos encontramos pela primeira vez em finais de agosto de 2013. Luís Henrique tornou-se meu melhor amigo no local. Solteiro e sem filhos, divide seu tempo entre seu ganha pão (tortas doces e salgadas para festas) e seus afazeres na igreja. Ele é responsável pela coordenação da equipe que cuida da decoração do templo nos dias mais importantes de Bom Jesus: a festa em homenagem aos padroeiros. Nos primeiros meses de nossa pesquisa construímos o argumento do filme e criamos uma mise en scéne para o mesmo. O interessante destes primeiros meses foi acompanhar os preparativos da festa que ocorrem o ano todo. Entre 27 de dezembro de 2013 a 14 de janeiro de 2014, minha estadia mais prolongada, gravei entrevistas (focadas nas memórias sobre os festejos) e filmei os principais ritos da festa religiosa em questão. Nestes primeiros meses de campo fui atencioso com os antigos ilhéus ao ouvir suas histórias relacionadas a festa. Essas primeiras visitas, realizadas até dezembro, sem portar equipamentos para o registro audiovisual, levou-me a estreitar relações com pescadores, veranistas, moradores locais e os “guardiões da cultura local” e compor uma cartografia

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

2 Professor Adjunto do Departamento de Antropologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia. 3 Agradeço a Capes os recursos financeiros para a realização desta pesquisa no âmbito do Programa Nacional de Pós-Doutorado, PNPD/Capes. Agradeço também ao Núcleo de Pesquisa ObservaBaía/UFBA, pela estrutura disponibilizada.

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da festa que me permitiu, junto com Luís Henrique, elaborar a mise en scéne do filme. De fato, os equipamentos foram ligados para realizar a filmagem apenas na época da festa. Mesmo assim, ainda titubeei até sentir que as pessoas estavam a vontade com filmadora, gravador, microfone e máquina fotográfica. Grande parte das entrevistas foram gravadas no dia anterior ao início da festa, pois nos dias em que aconteceram festejos, meu parceiro na realização do filme estava cercado de obrigações relacionadas a estes ritos. Na medida do possível, registrei os eventos e a preparação dos mesmos. Ademais, ao final de cada dia de trabalho, me sentava com colegas de campo (e pessoas entrevistadas e filmadas) e projetava as imagens produzidas. Meu objetivo nessa hora era compartilhar impressões e recolher sugestões, críticas, sobre o material gravado.

Portanto, existe um processo compartilhado de filmagem (ou melhor do que e quem é filmado), e de socialização das imagens, no qual atores-sujeitos filmados contam suas histórias acerca do que foi filmado, dizem o que e como veem as imagens captadas pelo pesquisador. Tal posicionamento inspira-se nas trilhas deixadas por Jean Rouch em filmes como Eu um negro (1958), Crônica de um verão (1960), Jaguar (1967) e Pouco a pouco (1971), para citar apenas alguns dos mais de cem filmes produzidos por ele (durante mais de meio século de trabalho no continente africano). Os filmes citados, são parte do corpus da chamada “antropologia compartilhada” que, do meu ponto de vista, pode ser entendida como uma série de ensinamentos, dos quais destaco: o contato preliminar com o grupo a ser filmado, estabelecer relações de proximidade com os sujeitos de uma pesquisa, criação de uma mise en scéne, participação de membros do grupo como colaboradores e/ou co-autores dos filmes, conhecimento das técnicas de montagem e filmagem e, o feedback (projeção e devolução do material para o grupo filmado).

Na produção do filme sobre os festejos religiosos da ilha de Bom Jesus, partindo desta perspectiva, coloquei-me como um parceiro que poderia auxiliar na condução do projeto local de transformar a festa em filme. E neste contexto, “parceria” significou mais do que um mero compartilhamento de dados: significou compartilhar o próprio processo de elaboração de uma etnografia visual. Das cenas registradas, passando pela montagem dos planos, a eleição das entrevistas e do que é significativo no conteúdo das mesmas, existe um processo coletivo de produção. Luís Henrique, além de ter se tornando meu amigo, é co-autor do documentário Ilha da Devoção, pois foi ele quem indicou as pessoas a serem entrevistadas, ajudou na realização de grande parte das entrevistas, na montagem do vídeo e na elaboração de um pós-roteiro. Antes do início das filmagens, elegemos que

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nosso produto final teria uma introdução e quatro capítulos, que correspondem aos ritos mais importantes da festa: Lavagem, Acompanhamento, Benção das Canoas e Subida.

A lavagem acontece no dia 01 de janeiro e corresponde a limpeza da igreja realizada pelos próprios ilhéus seguida de um cortejo carnavalesco, com a filarmônica, pela ilha. Trata-se, como muitos afirmam, da parte profana da festa, onde devotos cantam, dançam e organizam a casa para homenagear seus santos.

Nove dias depois, ocorre a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, que se inicia às 05:00 da manhã com uma alvorada e queima de fogos. Em seguida, Nossa Senhora dos Navegantes sai da igreja em procissão, é colocada em um barco, e viaja até a capital baiana, onde acontece uma missa na igreja de Nossa Senhora de Conceição da Praia em louvor a Nossa Senhora dos Navegantes. Após a realização da missa, ocorre o famoso acompanhamento: centenas de embarcações se juntam ao “barco da santa” e seguem em procissão marítima até a ilha de Bom Jesus para devolver Nossa Senhora dos Navegantes à igreja.

No dia seguinte, ocorre a Benção das Canoas. Os ritos de abertura são os mesmos: alvorada e fogos. No final do dia os santos da igreja saem em procissão terrestre até o porto. Por se tratar de uma ilha que vive basicamente da pesca, é tradição durante a festa os pescadores levarem seus barcos para o cais na intenção de serem benzidos pelo pároco.

O último dia da festa é marcado pela subida que consiste em devolver os padroeiros aos seus respectivos nichos dentro da igreja. Durante a festa, as imagens desceram de seus altares, ficaram mais próximas de seus devotos, saíram pelas ruas da ilha, pelas águas da Baía de Todos os Santos. 18:00 horas o sino badala pela última vez na ilha anunciando a Subida. Um lamento é entoado. O coletivo presente se entristece. Choros tomam conta da acústica do espaço. Por todo o lado que se olha, um semblante cabisbaixo, de alguém assistindo um ente querido partir, predomina. No decorrer do canto (Hino ao Senhor dos Passos), Nossa Senhora dos Navegantes que está na entrada da igreja, se encontra com Senhor dos Passos e o leva até seu nicho, no altar central. Uma chuva de pétalas de rosas marca o caminho feito por Nossa Senhora dos Navegantes para acompanhar a subida de Senhor dos Passos. Ao gravar estas cenas, privilegiei uma abordagem de perto e de dentro com minha câmera, trabalhando com uma objetiva macro, buscando as expressões faciais

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que denotavam a tristeza que os ilhéus estavam sentindo ao verem a subida de Senhor dos Passos e Nossa Senhora dos Navegantes, santos tratados como entes da família.

Estes ritos totalizaram cinco horas de material audiovisual. No entanto, em certas ocasiões alguns fatores externos comprometeram a qualidade de algumas imagens. Cito um exemplo: durante a gravação do rito a Benção das Canoas uma chuva repentina nos surpreendeu. Além disso, em outros festejos tive que disputar um lugar com videomakers

caseiros, querendo captar cada lugar ou evento para divulgar em suas redes sociais e nelas

se autoafirmarem e dizerem com suas imagens: eu estava lá.

Quando mostrei estas filmagens, sugeri que fizéssemos uma chamada pública na ilha para que os videomakers locais nos apresentassem seus materiais produzidos a partir de tecnologias e aparelhos distintos como celulares, tablets e câmeras portáteis. Ao contar estes imprevistos e colocar em pauta a incorporação do material caseiro no documentário, ouvi de Luís Henrique que não se deveria misturar imagens tão distintas, pois isto poderia interferir na qualidade estética de nosso filme que tinha uma função importante: construir uma narrativa sobre a história do festejo em homenagem ao padroeiro e padroeira e sua importância cultural. Compreendi este ponto de vista de Luís Henrique e chegamos a um consenso de ajustar demandas pela estética, pela representação de uma realidade cultural, com as questões antropológicas ligadas, sobretudo, ao processo de produção do vídeo.

As entrevistas foram gravadas nos dias que antecederam o início da festa e totalizam sete horas. Sobre este ponto é de importante frisar um dado relevante. O fato de que sou o próprio realizador dos registros imagéticos e sonoros deve ser lembrado, pois em vários momentos de filmagem, havia uma demanda redobrada de minha capacidade como antropólogo: além de ter de demostrar atenção ao entrevistado e ao que estava sendo dito, devia dar atenção também aos equipamentos. Hartmann (2003: 11) faz uma boa descrição relacionada a esta questão, em seu texto sobre como contar histórias com imagens: “houve momentos em que o narrador era privilegiado e o foco da câmera (ou o enquadramento ou o som) acabava perdido e houve outros momentos em que o registro sugava minha atenção e eu só viria a compreender a totalidade do que estava sendo narrado e perceber detalhes da performance ao assistir, posteriormente, as imagens”. Entretanto, quero deixar claro que o conhecimento do funcionamento de meu equipamento, associado às noções de fotografia que adquiri nos últimos anos, me possibilitou minimizar a perda de material audiovisual que decorre desta sobrecarga de funções.

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Por tudo isso, quero ressaltar a importância de uma preparação técnica por parte do antropólogo/antropóloga, que deve conhecer, com profundidade e antes de ir à campo, as características, capacidades e limitações do equipamento que irá utilizar, como indicou Rouch (1997) e Hartmann (2003). Além do preparo técnico, para garantir uma qualidade mínima de captação de imagens/sons, creio que outro fator importante é a manutenção de um controle, dentro do possível, ainda em campo, do que já foi registrado. A visualização integral do material registrado, junto com as pessoas filmadas, pode evitar que se volte para casa com uma boa história mostrada apenas do ponto de vista do antropólogo, em imagens fora de foco, com falhas no som, etc.

Logo após a captação audiovisual enfrentamos o problema da construção de uma narrativa. Problema, aliás, que se inicia antes mesmo do registro imagético e sonoro. Pois, enquanto na linguagem escrita esta narrativa toma forma basicamente através da escolha de palavras, da combinação entre elas e da pontuação utilizada, que confere ritmo ao texto, na linguagem audiovisual a narrativa é construída não apenas com palavras, escritas e faladas, mas também com sons, cores, enquadramentos, velocidades de imagem e, mais importante, através da combinação de todos estes elementos em sequências de imagens que são montadas lado a lado. A multiplicidade de elementos, presentes e possíveis, neste processo é que confere à edição um papel importante quando se quer contar uma história com imagens. O importante a reter aqui é a noção de que a montagem dá forma, por meio de uma construção narrativa, ao que se deseja contar, visando aquele que vai ver/escutar. (Hartmann, 2003: 06).

Assim, é durante a montagem que nos deparamos com múltiplas possibilidades de disposição dos elementos de uma pesquisa antropológica num produto audiovisual. É no momento da edição que a questão de como construir uma narrativa com imagens torna-se mais premente. Que instrumentos utilizar na construção de um discurso coerente – e atraente, afinal, visa um público – que permita a tornar visível/compreensível o universo, das diversas narrativas registradas? Como incluir a análise antropológica neste processo de criação de narrativas com imagens? (Hartmann, 2003). Assim como a ideia do que se quer contar norteia a realização dos registros, também é fundamental que, no momento de seleção do material, seja estabelecido um argumento que teça o fio condutor para a organização do material bruto. No caso desta pesquisa, o argumento foi construído antes mesmo da filmagem e da montagem do filme por Luís Henrique e eu: uma história sobre a tradicionalidade dos festejos em homenagem aos padroeiros e sua importância cultural.

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Juntos montamos o filme intercalando uma sequência, a cada capítulo, de entrevistas com imagens da festa, estas últimas focalizando, sobretudo, a participação dos entrevistados nos diferentes ritos do evento em questão. Além disso, acrescentamos no filme reflexões sobre seu processo de produção que foram feitas durante a montagem. Por fim, decidimos de forma coletiva o título – “Ilha da Devoção” – que faz referência ao apelido da ilha.

Com esta postura, cada vez mais tento me aproximar do método elaborado por Jean Rouch, levando a sério a participação dos atores-sujeitos no processo de produção e a co-autoria. Pois, assim como coloca o autor: “conhecimento não é mais um segredo roubado para ser mais tarde consumido nos templos ocidentais de conhecimento. É o resultado de uma busca interminável, onde etnógrafos e etnografados se encontram num caminho que alguns de nós já chamam de antropologia compartilhada” (Rouch, 2003: 185).

Minha contribuição como antropólogo ou minha “antropologia compartilhada”, reside no fato de desenvolver a pesquisa apresentada aqui levando em consideração não apenas minhas questões teóricas ou epistemológicas, mas de valorizar os projetos locais e levar a cabo tal empreendimento estabelecendo um diálogo intelectual com o sujeito que me sugeriu a realização deste estudo. Nosso principal objetivo com o filme “Ilha da Devoção”, é criar uma verdade no cinema, capaz de expressar uma identidade coletiva, que se perpetua ano a ano, a cada edição dos festejos locais em homenagem a Nossa Senhora dos Navegantes e Senhor dos Passos. Além disso, estamos focalizados na criação de um banco audiovisual composto de fotografias (históricas e contemporâneas), imagens sobre a festa e entrevistas, que terá grande utilidade na ilha, pois servirá para pesquisas escolares e acadêmicas, como fonte de dados para a produção de material de divulgação sobre a festa e como documentos relativos a tradicionalidade da festa (os depoimentos, as fotografias antigas, as imagens presentes).

Realizar uma pesquisa preliminar com o grupo a ser filmado, estabelecer parcerias, criar uma mise en scéne, ter conhecimento do equipamento a ser utitlizado para “cine-etnografar”, compartilhar os dados no calor de seu registro, retornar com o produto final, realizar uma exegese sobre o processo que guiou a feitura de um filme compartilhado, e eu acrescentaria, em tempos atuais, colaborar para a realização de projetos de pesquisa locais, eis aí um caminho que dever ser sempre lembrado para se praticar a boa etnografia, baseada na parceria e nas relações de amizade.

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Referências

Gervaiseau, Henri Arraes. Flaherty e Rouch: a invenção da tradição. In: Revista Devires: cinema e humanidades, v.6, n.1, jan/jun, p.92-108, 2009.

Hartmann, Luciana. Do vídeo etnográfico ou de como contar histórias com imagens. In: Anais do XXVII Encontro da ANPOCS – GT: usos da imagem em Ciências Sociais, p1-14, v.1, 2003.

Rouch, Jean. The camera and man. In: Hockings, Paul. Principles of visual anthropology. Berlin/ New York: Mouton de Gruyter, 2003.

______. Poesia, dislexia e a câmera na mão. In: Revista Cinemais, n.8 nov/dez, p7-34, 1997.

Filmografia:

Eu, um negro. 1958. Direção e realização: Jean Rouch. Coleção Vídeo Filmes, n.08. 2006

1 DVD (72 min).

Crônica de um verão. 1960. Direção e realização: Jean Rouch. Coleção Vídeo Filmes,

n.01. 2006 1 DVD (72 min).

Jaguar. 1967. Direção e realização: Jean Rouch. Coleção Vídeo Filmes, n.09. 2006 1

DVD (72 min).

Pouco a pouco. 1971. Direção e realização: Jean Rouch. Coleção Vídeo Filmes, n.09.

Referências

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