• Nenhum resultado encontrado

Clarice Lispector. Círculo do Livro Capa: Adalberto Cornavaca Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Clarice Lispector. Círculo do Livro Capa: Adalberto Cornavaca Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap"

Copied!
337
0
0

Texto

(1)

A

A

m

m

a

a

ç

ç

ã

ã

n

n

o

o

e

e

s

s

c

c

u

u

r

r

o

o

Clarice Lispector

Círculo do Livro Capa: Adalberto Cornavaca

Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap www.portaldetonando.com.br/forumnovo/

(2)

“Criando todas as coisas, ele entrou em tudo. Entrando em todas as coisas, tornou-se o que tem forma e o que ê informe; tornou-se o que pode ser definido; e o que não pode ser definido; tornou-se o que tem apoio e o que não tem apoio; tornou-se o que é grostornou-seiro e o que é sutil. Tornou-se toda espécie de coisas: por isso os sábios chamam-no o real.”

Vedas (Upanichade)

P

P

r

r

i

i

m

m

e

e

i

i

r

r

a

a

p

p

a

a

r

r

t

t

e

e

:

:

C

C

o

o

m

m

o

o

s

s

e

e

f

f

a

a

z

z

u

u

m

m

h

h

o

o

m

m

e

e

m

m

Um

Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se dorme. O modo como, tranqüilo, o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu. Até que mais profundamente tarde também a lua desapareceu.

Nada agora diferenciava o sono de Martim do lento jardim sem lua: quando um homem dormia tão no fundo passava a não ser mais do que aquela árvore de pé ou o pulo do sapo no escuro.

Algumas árvores haviam ali crescido com enraizado vagar até atingir o alto das próprias copas e o limite de seu destino. Outras já haviam saído da terra em bruscos tufos. Os canteiros tinham uma ordem que procurava concentradamente servir a uma simetria. Se esta era discernível do alto da sacada do grande hotel, uma pessoa estando ao nível dos canteiros não descobria essa ordem;

(3)

entre os canteiros o caminho se pormenorizava em pequenas pedras talhadas.

Sobretudo numa das alamedas o Ford estava parado há tanto tempo que já fazia parte do grande jardim entrelaçado e de seu silêncio.

No entanto, de dia a paisagem era outra, e os grilos vi-brando ocos e duros deixavam a extensão inteiramente aberta, sem uma sombra. Enquanto o cheiro era o seco cheiro de pedra exasperada que o dia tem no campo. Ainda nesse mesmo dia Martim ficara de pé na sacada procurando, com inútil obediência, não perder nada do que se passava. Mas o que se passava não era muito: antes de começar a estrada que se perdia em suspensa poeira de sol, apenas o jardim nada mais que contemplável; compreensível e simétrico do alto da sacada; emaranhado quando se fazia parte dele — e esta lembrança o homem há duas semanas guardava nos pés com aplicação cuidadosa, conservando-a para um uso eventual. Por mais atenção, no entanto, o dia era inescalável; e como um ponto desenhado sobre o mesmo ponto, a voz do grilo era o próprio corpo do grilo, e nada informava. A única vantagem do dia é que na extrema luz o carro se tornava um pequeno besouro que facilmente alcançaria a estrada.

Mas enquanto o homem dormia o carro se tornava enorme como é gigantesca uma máquina parada. E de noite o jardim era ocupado pela secreta urdidura com que o escuro se mantém, num trabalho cuja existência os vaga-lumes inesperadamente traem; certa umidade também denunciava o labor. E a noite era um elemento em que a vida, por se tornar estranha, era reconhecível.

Foi nessa noite que, atingindo o hotel vazio e adormecido, o motor do carro se sacudiu. Lentamente o escuro se pusera em movimento.

Em vez de acordar e diretamente ouvir, foi através de um sono ainda mais profundo que Martim passou para o outro lado da escuridão e ouviu o ruído que as rodas fizeram cuspindo areia seca. Depois seu nome foi pronunciado, destacado e limpo, de algum modo agradável de se ouvir. Era

(4)

o alemão quem falara. No sono Martim fruiu o som do próprio nome. Em seguida o arrebatado grito de uma ave, cujas asas haviam sido espantadas na sua imobilidade, esse modo como o espanto parece com a grande alegria.

Quando o silêncio se refez dentro do silêncio, Martim adormeceu ainda mais longe. Embora no fundo do sono alguma coisa ecoasse difícil, tentando se organizar. Até que, sem nenhum sentido e livre do incômodo de precisar ser compreendido, o ruído do carro se refez na sua memória com as minúcias mais finamente discriminadas. A idéia do carro despertou um aviso suave que ele não entendeu de pronto. Mas que já espalhara pelo mundo um vago alarme, cujo centro irradiador era o próprio homem: “assim, pois, eu”, pensou seu corpo se comovendo. Continuou deitado, remotamente gozando.

Há duas semanas aquele homem viera para o hotel, en-contrado no meio da noite quase sem surpresa, de tal modo a exaustão tornava tudo possível. Era um hotel vazio, só com o alemão e o criado, se criado era. E durante duas semanas, enquanto Martim recuperava as forças num sono quase ininterrupto, o carro continuara parado numa das alamedas, com as rodas enterradas na areia. E tão imóvel, tão resistente ao hábito de incredulidade do homem e ao seu cuidado em não se deixar ludibriar, que Martim terminara finalmente por considerá-lo à sua disposição.

Mas a verdade é que já naquela noite de pés cambaleantes — quando ele enfim se deixara cair meio morto numa cama verdadeira com verdadeiros lençóis — já naquele instante o carro representara a garantia da nova fuga, caso os dois homens se mostrassem mais curiosos pela identidade do hóspede. E este tombara confiante no sono como se ninguém jamais conseguisse tirar de sua firme garra, que prendia apenas o lençol, a roda imaginária de um volante.

O alemão, no entanto, nada lhe havia perguntado e o criado, se o era, mal o olhara. A relutância com que o tinham aceito não vinha da desconfiança, mas do fato do hotel não ser mais hotel havia muito tempo — há tanto tempo quanto

(5)

estava inutilmente à venda, explicara-lhe o alemão, e, para não ter um ar suspeito, Martim balançara a cabeça sorrindo. Enquanto não tinham construído a estrada nova, era por ali que passavam os carros, e o casarão isolado não poderia estar melhor situado como pouso forçado para pernoites. Quando a nova estrada fora traçada e asfaltada a cinqüenta quilômetros dali, desviando para longe o curso de passagem, o lugar todo morrera e não havia mais motivo de alguém vir a precisar de hotel na zona agora entregue ao vento. Mas apesar da indiferença aparente dos dois homens a obstinada procura de segurança de Martim se ancorara naquele carro sobre o qual também as aranhas, tranqüilizadas pela imobilidade envernizada, haviam executado o aéreo trabalho ideal.

Era esse carro que em plena noite se desenraizara com rouquidão.

Dentro do silêncio de novo intacto, o homem agora olhou estupidamente o teto invisível que no escuro era tão alto quanto o céu. Largado de costas na cama, tentou num esforço de prazer gratuito reconstituir o ruído das rodas, pois enquanto não sentia dor era de um modo geral prazer que ele sentia. Da cama não via o jardim. Um pouco de bruma entrava pelas venezianas abertas, o que se denunciou ao homem pelo cheiro de algodão úmido e por uma certa ânsia física de felicidade que a cerração dá. Fora apenas um sonho, então. Cético, embora, ele se ergueu.

Nas trevas nada viu da sacada, e nem sequer adivinhou a simetria dos canteiros. Algumas manchas mais negras que o próprio negrume indicaram o provável lugar das árvores. O jardim não passava ainda de um esforço de sua memória, e o homem olhou quieto, adormecido. Um ou outro vaga-lume tornava mais vasta a escuridão.

Esquecido do sonho que o guiara até a sacada, o corpo do homem achou bom se sentir saudavelmente de pé: é que o ar suspenso mal alterava a escura posição das folhas. Ali, pois, deixou-se ficar, dócil, atordoado, com a sucessão de quartos desocupados atrás de si. Sem emoção aqueles

(6)

quartos vazios repetiam-no e repetiam-no até se apagarem aonde o homem já não se alcançava mais. Martim suspirou dentro de seu largo sono acordado. Sem insistir demais, tentou atingir a noção dos últimos quartos como se ele próprio se tivesse tornado grande demais e espalhado, e, por algum motivo que já esquecera, precisasse obscuramente se recolher para talvez pensar ou sentir. Mas não conseguiu, e estava muito aprazível. Assim ele ficou, com o ar cortês de um homem que levou uma pancada na cabeça. Até que — como quando um relógio pára de bater e só então nos adverte que antes batia — Martim percebeu o silêncio e dentro do silêncio a sua própria presença. Agora, através de uma incompreensão muito familiar, o homem começou enfim a ser indistintamente ele mesmo.

Então as coisas passaram a se reorganizar a partir dele próprio: trevas foram sendo entendidas, ramos começaram lentamente a se formar sob o balcão, sombras se dividiram em flores ainda irresolutas — com os limites ocultos pelo viço imóvel das plantas, os canteiros se delinearam cheios, macios. O homem grunhiu aprovando: com certa dificuldade acabara de reconhecer o jardim que nessas duas semanas de sono constituíra em intervalos a sua irredutível visão.

Foi nesse momento que uma lua desfalecida perpassou uma nuvem em grande silêncio, em silêncio derramou-se sobre pedras calmas, desaparecendo em silêncio na escuridão. A cara enluarada do homem se dirigiu então para a alameda onde o Ford estaria imóvel.

Mas o carro desaparecera.

O corpo inteiro do homem subitamente despertou. Num relance astuto seus olhos percorreram a escuridão toda do jardim — e, sem um gesto de aviso, ele se virou para o quarto em leve pulo de macaco.

Nada porém se mexia no oco do aposento que de escuro se tornara enorme. O homem ficou resfolegando atento e inutilmente feroz, com as mãos avançadas para o ataque. Mas o silêncio do hotel era o mesmo da noite. E sem limites visíveis, o quarto prolongava no mesmo exalar-se a escuridão

(7)

do jardim. Para se despertar o homem esfregou várias vezes os olhos com o dorso de uma das mãos enquanto deixava a outra livre para a defesa. Foi inútil sua nova sensibilidade: nas trevas os olhos totalmente abertos não viram sequer as paredes.

Era como se o tivessem depositado solto num campo. E enfim ele acordasse de um longo sonho do qual haviam feito parte um hotel agora desmanchado num chão vazio, um carro apenas imaginado pelo desejo, e sobretudo tivessem desaparecido os motivos de um homem estar todo expectante num lugar que também este era expectativa.

De real só lhe restou a sagacidade que o fizera dar um pulo para indistintamente se defender. A mesma que o levava agora a raciocinar com inesperada lucidez que se o alemão ti-vesse ido denunciá-lo levaria algum tempo para ir e voltar com a Polícia.

O que ainda o deixava temporariamente livre — a menos que o criado tivesse sido encarregado de vigiá-lo. E nesse caso o criado, se o era, estaria neste mesmo instante à porta daquele mesmo quarto com o ouvido atento ao menor movimento do hóspede.

Assim pensou ele. E findo o raciocínio, ao qual chegara com a maleabilidade com que um invertebrado se torna menor para deslizar, Martim mergulhou de novo na mesma ausência anterior de razões e na mesma obtusa imparcialidade, como se nada tivesse a ver consigo mesmo, e a espécie se encarregasse dele. Sem um olhar para trás, guiado por uma escorregadia destreza de movimentos, começou a descer pela sacada apoiando pés inesperadamente flexíveis na saliência dos tijolos. Na sua atenta remotidão o homem sentia perto da cara o cheiro malévolo das heras quebradas como se nunca o fosse esquecer. Sua alma agora apenas alerta não distinguia o que era ou não importante, e a toda operação ele deu a mesma consideração escrupulosa. Num pulo macio, que fez o jardim asfixiar-se em suspiro retido, ele se achou em pleno centro de um canteiro — que se arrepiou todo e depois se fechou. Com o corpo advertido o

(8)

homem esperou que a mensagem de seu pulo fosse transmitida de secreto em secreto eco até se transformar em longínquo silêncio; seu baque terminou se espraiando nas encostas de alguma montanha. Ninguém ensinara ao homem essa conivência com o que se passa de noite, mas um corpo sabe.

Ele esperou um pouco mais. Até que nada aconteceu. Só então tateou com minúcia os óculos no bolso: estavam inteiros. Suspirou com cuidado e finalmente olhou em torno. A noite era de uma grande e escura delicadeza.

Dois

Aquele homem andou léguas deixando o casarão cada vez mais para trás. Procurou andar em linha reta e às vezes se imobilizava um segundo agarrando com cautela o ar. Como andava nas trevas não poderia sequer adivinhar em que direção deixara o hotel. O que o guiava no escuro era apenas a própria intenção de andar em linha reta. O homem bem poderia ser um negro, tão pouco lhe servia a claridade da própria pele, e ele só sabia quem era pela sensação em si próprio dos movimentos que ele próprio fazia.

Com a mansidão de um escravo, ele fugia. Certa doçura o tomara, só que ele vigiava a própria submissão e de algum modo a dirigia. Nenhum pensamento perturbava sua marcha constante e já insensível, senão de vez em quando a idéia mal aclarada de que talvez estivesse andando em círculos, com a desconcertante possibilidade de se achar de novo diante das paredes do hotel.

Sempre, além do chão que os passos alcançavam, era a escuridão. Já caminhara horas, o que pôde calcular pelos pés grossos de cansaço. Só descobriria aonde se delineava o horizonte quando o dia raiasse e dissolvesse as brumas. Como a escuridão ainda se mantinha tão colada aos olhos inutilmente abertos, terminou por concluir que escapara do hotel não de madrugada, mas em plena noite. Tendo dentro de si o grande espaço vazio de um cego, ele avançava.

(9)

Já que não precisava de olhos, experimentou andar de olhos fechados, pois numa precaução generalizada ele economizava o que podia. De olhos cerrados pareceu-lhe que rodava em torno de si próprio numa tontura não de todo desagradável.

À medida que caminhava o homem sentia nas narinas aquela aguda falta de cheiro que é peculiar a um ar muito puro e que se mantém distinta de qualquer outra fragrância que também se possa sentir — e isso o guiava como se seu único destino fosse encontrar-se com o mais fino do fundo do ar. Mas seus pés tinham a milenar desconfiança da possibilidade de pisar em alguma coisa que se mova — os pés apalpavam a moleza suspeita daquilo que aproveita a escuridão para existir. Pelos pés ele entrou em contato com esse modo de ceder e poder ser moldado que é por onde se entra no pior da noite: na sua permissão. Não sabia onde pisava, se bem que através dos sapatos que se haviam tornado um meio de comunicação, ele sentisse a dubiedade da terra.

O homem nada poderia fazer senão esperar que a primeira penumbra lhe revelasse um caminho. Enquanto isso poderia dormir no chão que, distanciado pelas trevas, lhe pareceu inalcançável. Já não mais atiçado pelo perigo, desaparecera a sagacidade que lhe seria agora apenas um entrave. E de novo o embrutecimento suave o dominava. O chão era tão longe que, abandonando o corpo, este por um instante experimentou a queda no vácuo. Mal porém tocara numa terra que aos pés se esquivara, e esta instantaneamente se desencantou em algo resistente, cujas duras rugas estáveis pareciam as do céu da boca de um cavalo. O homem estirou as pernas e encostou a cabeça. Agora que se imobilizara, o ar afiara-se e doía extremamente limpo. O homem não estava com sono mas no escuro não sa-beria o que fazer da grande vigília. Além do mais não tinha assunto.

A essa altura já se havia habituado à música estranha que de noite se ouve e que é feita da possibilidade de alguma coisa piar e da fricção delicada do silêncio contra o silêncio.

(10)

Era um lamento sem tristeza. O homem estava no coração do Brasil. E o silêncio fruía a si mesmo. Mas se a brandura era o modo como se ouvia a noite, para a noite a brandura era a sua própria espada, e na brandura a noite toda estava contida. O homem não se deixou enfeitiçar pela delícia que sentiu na suavidade; adivinhava que léguas além a escuridão sabia que ele estava ali. Manteve-se pois em espreita, tendo sob um perfeito controle os meios de comunicação da noite.

Várias vezes tentou se ajeitar numa posição mais confortável. Tomava um cuidado impessoal consigo mesmo como se fosse um embrulho. Mas embaixo era o chão definitivo, em cima a única estrela, e o homem se sentia acordado pelas duas coisas acordadas na escuridão. A cada movimento seu, o rosto ou as mãos encontravam algo enérgico que depois de empurrado voltava em leve golpe contra ele. Apalpou com dedos sábios: era um galho.

Um instante a mais, no entanto, e rudemente o sono o assaltou na posição mais inesperada: com uma das mãos protegendo os olhos e a outra mantendo afastada a folhagem áspera.

O homem dormiu com atenção durante horas. Exatamente as horas que durou a formação de um pensamento, qualquer que tivesse sido, pois ele não podia mais se alcançar sem ser através da agudez do sono. Do momento em que fechara os olhos a vasta idéia inarticulável começou a se formar — e tudo funcionou tão perfeito que ela encheu, sem hiato e sem precisar recuar uma só vez para se corrigir, o sono de que ele precisava para pensar. Enquanto dormia não gastava do pouco que ele se tornara, mas sacava de alguma coisa como de sua raça de homem, o que era indistinto e satisfatório. Através dessa coisa feita de rugido ele atingia muito: sua boca estava grossa de boa e nutritiva saliva. Assim, quando o último passo de seu futuro se completou, Martim mexeu-se na dureza do chão. Não abrira ainda os olhos mas ao sentir o próprio entorpecimento reconheceu-se, e com relutância entendeu que estava acordado.

(11)

Na verdade sobre as finas pálpebras já sentira com dor o grande peso do dia.

Mas numa desconfiança sem motivo inteligível ele aparentemente achou mais prudente comunicar-se com a situação através do tato: de olhos fechados, deslizou dedos graduais pela terra que agora, em sinal promissor, que ele não entendeu mas aprovou, lhe pareceu menos fria e menos compacta. Com esta garantia primária, abriu afinal os olhos.

E uma claridade bruta cegou-o como se ele tivesse rece-bido na cara uma onda salgada de mar.

Estonteado, de boca aberta, aquele homem estava infantilmente sentado no meio de uma extensão deserta que se perdia de vista para todos os lados. Era uma luz estúpida e seca. E ele estava sentado como um boneco imposto no meio daquela coisa que se impunha.

O lugar onde se achava era longe de ser confuso como no escuro seus pés dormentes haviam imaginado. Inquietado, seu corpo não soube se havia ou não de sentir prazer nessa descoberta. Com cautela constatou as poucas árvores dispersas pela distância. O infinito chão era seco e avermelhado. Não se tratava de um mato como ele calculara pelo galho que lhe batera no rosto. Tinha por acaso adormecido perto de um dos raros arbustos do descampado.

Sentado, olhava no entanto em guarda: é que se o silêncio faz parte natural da escuridão, ele não contara com a veemente mudez do sol. Sempre experimentara o sol com vozes. Manteve-se pois imóvel para não assustar o que quer que fosse. Era um silêncio como se fosse acontecer alguma coisa que um homem não percebe, mas as poucas árvores se balançavam e os bichos já tinham desaparecido.

Sabiamente levando em conta a própria limitação que o tornava mais indefeso que um coelho, ele então esperou de cabeça erguida como se uma atitude de isenção o tornasse in-visível. Também isso ninguém lhe ensinara. Mas em duas semanas aprendera como é que um ser não pensa e não se mexe e no entanto está todo ali. Depois, com a minúcia da

(12)

prudência, começou a olhar quase sem mover a cabeça, apenas inclinando-a imperceptivelmente para trás, a fim de tornar mais largo o seu campo de visão.

E o que Martim viu foi uma estendida planície vagamente em subida. Muito além começava um declive suave que, pela graça de suas linhas, prometia deslizar para um vale ainda invisível. E no fim do silêncio do sol, havia aquela elevação ado-çada pelo ouro, mal discernível entre brumas ou nuvens baixas, ou talvez pelo fato do homem não ter ousado pôr os óculos. Ele não sabia se era montanha ou apenas névoa iluminada.

Garantido então pela vastidão da distância que afastava qualquer iminência, o homem foi aos poucos trazendo o olhar para o que o rodeava de um modo mais pessoal.

Na extensão calma, um ou outro arbusto empalhado pela imobilidade final do sol. Espalhadas, algumas árvores rígidas. Uma ou outra rocha maior se erguia perpétua.

Então o homem desfez a tensão do corpo: não havia perigo. Tratava-se de uma extensão tranqüila e leal, toda à superfície de si mesma. E sem nenhuma armadilha — senão a curta e dura sombra que se cavava junto de cada coisa que ali tinha sido posta. Mas não havia perigo. Na verdade nem se poderia imaginar que aquele lugar tivesse um nome ou fosse sequer conhecido por alguém. Era apenas o grande espaço vazio e inexpressivo onde, por conta própria, erguiam-se pedras e pedras. E aquela claridade enérgica que o alarmara não passava da outra face do silêncio. Mesmo assim, em extrema franqueza, tanto a claridade quanto o silêncio olhavam de cara exposta para o céu.

O silêncio do sol era tão total que seu ouvido, tornado inútil, experimentou dividi-lo em etapas imaginárias como num mapa para poder gradualmente abrangê-lo. Mas logo depois da primeira etapa o homem começou a rolar no infinito, o que o sobressaltou em advertência. O ouvido, tornando-se mais modesto, tentou pelo menos calcular em que terminaria o silêncio; em casa? em algum bosque? e o que seria mesmo a mancha ao longe — uma montanha ou

(13)

apenas o escurecimento que vem do acúmulo de distâncias? Seu corpo doía.

Mas pondo-se de pé o homem inesperadamente retomou toda a estatura do próprio corpo. O que lhe deu automatica-mente certa empáfia como se, ao erguer-se, ele tivesse inaugurado o descampado. E apesar dos ombros curvos, sentiu-se dominando a extensão e disposto a segui-la. Embora estivesse cego pela luz: ali nenhum de seus sentidos lhe valia, e aquela claridade o desnorteava mais do que a escuridão da noite. Qualquer direção era a mesma rota vazia e iluminada, e ele não sabia que caminho significaria avançar ou retroceder. Na verdade, em qualquer lugar onde o homem experimentou se pôr de pé, ele próprio se tornou o centro do grande círculo, e o começo apenas arbitrário de um caminho.

Mas desde que, há duas semanas, aquele homem experimentara o poder de um ato, parecia também ter passado a admitir a estúpida liberdade em que se achava. Sem um pensamento de resposta, pois, suportou imóvel o fato de ele ser o único próprio ponto de partida.

Então, como se contemplasse pela última vez antes de partir o lugar onde sua casa fora incendiada, Martim olhou o grande vazio ensolarado. Ele bem viu. E ver era o que podia fazer. O que fez com certo orgulho, de cabeça erguida. Em duas semanas tinha recuperado um orgulho natural e, como uma pessoa que não pensa, tornara-se auto-suficiente.

Em breve seus passos pausados e repetidos formaram uma marcha monótona. Milhares de passos ritmados que o aturdiram e o levaram por eles mesmos para a frente, entorpecido, agigantado pelo cansaço, agora avançando com um ar de idiota contente. Até que, se parasse, cairia. Mas avançava cada vez mais poderoso. À medida que o tempo passava, o sol ficava mais redondo.

Fora para o lado do mar que aquele homem pretendera ir, antes mesmo de ter encontrado por feliz acaso o hotel. Mas — sem mapa, conhecimento ou bússola — embrenhara-se terra adentro. Ora como se qualquer caminho terminasse fatalmente em costa aberta, o que era uma verdade, mas

(14)

difícil de ser atingida por pés; ora como se na realidade ele não tivesse a menor pretensão de ir a algum lugar determinado. Depois, com a continuação aplainadora de noites e dias — e aliar-se à continuação, grudando a esta o corpo inteiro, havia-se tornado o secreto objetivo desde que ele fugira — com a continuação de noites e dias o homem terminara por esquecer o motivo pelo qual quisera encontrar o mar. Quem sabe, talvez não fosse por nenhum motivo de ordem prática. Talvez fosse apenas para que, chegando finalmente ao mar, num instante de obscura beleza, ali ele tivesse chegado.

Qualquer porém que tivesse sido o motivo, esquecera-o. E andando sem parar, o homem coçou violentamente a cabeça com duros dedos: tinha um gosto danado de ter esquecido. O que não impedia que mesmo agora — se na semivigília dos passos ele fechava os olhos cuja umidade a luz já secara — mesmo agora a visão do antigo desejo se concretizasse. Quando cerrou os olhos viu de súbito água verde a se rebentar em penhascos e a salgar-lhe o rosto quente. Então passou a mão pelo rosto e sorriu misteriosamente ao sentir a barba dura apontar, o que também era alguma coisa promissora e satisfatória; sorriu numa careta de falsa modéstia, e apressou ainda mais os passos. Guiava-o a suavidade dos brutos, a mesma que faz com que um bicho ande bonito.

Mas às vezes, àquele corpo que os passos haviam tornado mecânico e leve, um mar deserto já nada mais dizia. E procurando em si, só Deus sabe para quê, o contato com um desejo mais intenso — ele conseguiu ver o mar cheio da extrema altura dos mastros e do estertor das gaivotas! gaivotas de entranhas gritando seu hálito de sal, o alvoroçado mar dos que partem, a maré que leva adiante. Eu te amo, disse seu olhar para uma pedra, porque o súbito mar de gritos perturbava profundamente suas próprias entranhas, e desse modo ele olhou a pedra.

Um quilômetro além o homem porém já esquecera essa forma de mar, cujo esforço de invenção na verdade o deixara exausto. E tropeçando apressado nos cascalhos, estendeu em

(15)

grande apelo os braços para o desejo de um mar noturno, cujo rumor desenrolaria enfim a espessura que existe no silêncio.

Seus ouvidos ocos tinham sede, e o rumor primário do mar seria o que menos comprometeria o modo cauteloso como ele se tornara apenas um homem caminhando. Porque estendera abruptamente os braços, perdeu o equilíbrio e quase caiu — seu coração pulou em espanto várias vezes. A vida inteira aquele homem tivera medo de um dia levar uma queda numa ocasião solene. Pois havia de ser naquele momento que, perdendo a garantia com que um homem fica sobre dois pés, ele se arriscou à penosa acrobacia de voar desajeitado. Boquiaberto, olhou em torno porque certos gestos se tornam aterrorizantes na solidão, com um valor final neles mesmos. Quando um homem cai sozinho num campo não sabe a quem dar a sua queda.

Pela primeira vez desde que se pusera a caminhar, ele parou. Já não sabia sequer ao que estendera os braços. No coração sentia a miséria que existe em levar uma queda.

Recomeçou então a andar. Mancar dava uma dignidade a seu sofrimento.

Mas com a interrupção ele perdera uma velocidade essencial que então procurou compensar substituindo-a por uma espécie de violência íntima. E como precisava ter à frente algo que o esperasse — de novo o mar se rebentou em fúria num penhasco.

Chegar um dia ao mar era, porém, algo de que ele agora só usava a parte de sonho. Não pensava um instante sequer em agir de modo a que a visão feliz se tornasse uma realidade. Nem mesmo se soubesse que passos o levariam ao mar, ele agora os daria — tanto fora aos poucos se descartando com sabedoria instintiva de tudo o que pudesse mantê-lo entravado por um futuro, pois futuro é faca de dois gumes, e futuro molda o presente. Com o correr dos dias também outras idéias tinham ficado gradualmente para trás como se, à medida em que o tempo não definindo o perigo o tornasse maior, o homem fosse se despojando do que pesa. E

(16)

sobretudo do que ainda pudesse mantê-lo preso ao mundo anterior.

Até que agora — sem nenhum desejo, cada vez mais leve, como se também a fome e a sede fossem um desprendimento voluntário de que ele estava começando aos poucos a se envaidecer — até que agora ele avançava enorme no campo, olhando ao redor de si com uma independência que lhe subiu em prazer grosseiro para a cabeça, e começou a tonteá-lo em felicidade. “Hoje deve ser domingo” — chegou mesmo a pensar com certa glória, e domingo seria o grande coroamento de sua isenção.

Hoje deve ser domingo! pensou com súbita altivez como se o tivessem ofendido na honra.

Tratava-se de seu primeiro pensamento claro desde que deixara o hotel. Na verdade, desde que fugira, era o primeiro pensamento que não tinha mera utilidade de defesa. De início, aliás, Martim até não soube o que fazer com ele. Apenas agitou-se à novidade, e coçou-se voraz sem parar de andar. Então, aprovando-se com ferocidade e acompanhando o pensamento com um encorajamento rouco, repetiu: hoje deve ser domingo.

Aparentemente devia ser mais uma constatação indireta de si próprio do que do dia da semana, pois, sem parar um segundo de caminhar, ele completou o radiante e seco olhar ao que acabara de chamar de “domingo” com um apalpamento desajeitado dos bolsos. Sem nenhuma razão, senão a do próprio cansaço, estava caminhando cada vez mais depressa. Na verdade agora mal conseguia se acompanhar. E excitado nessa competição com seus próprios passos — olhou em torno com inocente deslumbramento, a cabeça fervendo de sol.

Sem contar os dias passados não havia motivo para achar que seria domingo. Martim então parou, um pouco embaraçado pela necessidade de ser compreendido, da qual ele ainda não se livrara.

(17)

existência limpa e estrangeira. Cada coisa estava no seu lugar. Como um homem que fecha a porta e sai, e é domingo. Além do mais, domingo era o primeiro dia de um homem. Nem a mulher fora criada. Domingo era o descampado de um homem. E a sede, libertando-o, dava-lhe um poder de escolha que o inebriou: hoje é domingo! determinou categórico.

Então sentou-se numa pedra e muito teso ficou olhando. O olhar não esbarrou em nenhum obstáculo e errou num meio-dia intenso e tranqüilo. Nada o impedia de transformar a fuga numa grande viagem, e estava disposto a fruí-la. Olhava.

Mas há alguma coisa numa extensão de campo que faz com que um homem sozinho se sinta sozinho. Sentado numa pedra, o fato final e irredutível — é que ele estava ali. Então, com súbito desvelo, sacudiu amoroso a poeira do paletó. De um modo obscuro e perfeito ele próprio era a primeira coisa posta no domingo. O que o tornava precioso como uma semente, ele tirou um fiapo do paletó. No chão sua sombra preta e definida delimitava sem engano favorável até onde ele era. Ele mesmo era o seu primeiro marco.

Se bem que, além de tentar se limpar por mera questão de decência, o homem não pareceu ter a menor intenção de fazer alguma coisa com o fato de existir. Estava era sentado na pedra. Também não pretendia ter o menor pensamento sobre o sol.

Era nisso pois que dava a liberdade. Seu corpo grunhiu com prazer, o terno de lã lhe dava pruridos no calor. A ilimi-tada liberdade o deixara vazio, cada gesto seu repercutia como palmas na distância: quando ele se coçou, esse gesto rolou diretamente para Deus. A coisa mais desapaixonadamente individual acontecia quando uma pessoa tinha a liberdade. No começo você é um homem estúpido tendo a mais a grande solidão. Depois, um homem que levou uma bofetada na cara e no entanto sorri beato porque ao mesmo tempo a bofetada lhe deu de presente uma cara que ele não suspeitava. Depois, aos poucos, você começa, sonso, a fazer casa e a tomar as primeiras

(18)

intimidades impudicas com a liberdade: você só não voa porque não quer, e quando se senta numa pedra é porque em vez de voar sentou-se. E depois?

Depois, como agora, o que Martim sentado experimentava era uma orgia muda na qual havia o virginal desejo de aviltar tudo o que é aviltável; e tudo era aviltável, e esse aviltamento seria um modo de amar. Estar contente era um modo de amar; sentado, Martim estava muito contente.

E depois? Bem, só mesmo o que aconteceria depois é que iria dizer o que aconteceria depois. Por enquanto o homem fugido ficou sentado na pedra porque se quisesse poderia não se sentar na pedra. O que lhe dava a eternidade de um pássaro pousado.

Depois do quê, Martim se ergueu. E sem questionar o que fazia, ajoelhou-se diante de uma árvore seca para examinar seu tronco: não parecia mais precisar de raciocinar para resolver, tinha-se desembaraçado disso também. Tirou pois um pedaço de casca meio solta, esmigalhou-a entre os dedos com uma atenção um pouco afetada, agindo como diante de um público. E tendo sido este o seu estudo do modo peculiar como aquilo que se desconhece se organiza, Martim ergueu-se como a uma ordem e continuou a marcha.

Foi mais além que estacou diante do primeiro passarinho.

Desenhado na grande luz estava um passarinho. Como Martim estava livre, essa foi a questão: na luz o passarinho. Com o zelo minucioso a que já estava se habituando, ele se pôs incontinenti a trabalhar gulosamente com esse fato.

O passarinho negro estava pousado num ramo baixo, à altura de seus olhos. E impedido de voar pelo olhar abrutalhado do homem, mexia-se cada vez menos à vontade, tentando não encarar o que estava para lhe acontecer, alternando nervosamente o apoio do corpo numa ou noutra pata. Assim os dois ficaram se defrontando. Até que com mão pesada e potente o homem pegou-o sem machucá-lo, com a bondade física que tem uma mão pesada.

(19)

O pássaro tremia todo na concha da mão sem ousar piar. O homem olhou com uma curiosidade grosseira e indiscreta a coisa na sua mão como se tivesse aprisionado um punhado de asas vivas. Aos poucos o pequeno corpo dominado deixou de tremer e os olhos miúdos se fecharam com uma doçura de fêmea. Agora, contra os dedos extremamente auditivos do homem, somente a batida diminuta e célere do coração indicou que a ave não morrera e que o aconchego a resignara enfim a descansar.

Espantado com a perfeição automática do que lhe estava acontecendo, o homem rosnou olhando para o pequeno bicho — a satisfação fê-lo rir, alto, com a cabeça inclinada para trás, o que fez sua cara defrontar o grande sol. Depois deixou de rir como se isso tivesse sido uma heresia. E compenetrado com sua tarefa, a mão semicerrada deixando de fora apenas a cabeça dura e aguda da ave, o homem recomeçou a andar com muita força tomando conta do companheiro. A única coisa que nele pensava era o ruído dos próprios sapatos ecoando na cabeça que o sol agora tranqüilamente incendiava.

E em breve, com a seqüência dos passos, de novo o gosto físico de estar andando começou a tomá-lo, e também um prazer mal discernido como se ele tivesse ingerido uma droga afrodisíaca que o fizesse querer não uma mulher, mas responder ao tremor do sol. Nunca estivera tão perto do sol, e andava cada vez mais depressa segurando à frente de si a ave como se fosse levá-la antes que o correio fechasse. A vaga missão o inebriava. A leveza que vinha da sede de repente tomou-o em êxtase:

— É, sim! alto e sem sentido, e parecia cada vez mais glorioso como se fosse cair morto.

Olhou em torno de si para o círculo perfeito que, num horizonte estarrecido, o céu de luzes fazia ao se unir a uma terra cada vez mais suave, cada vez mais suave, cada vez mais suave... A suavidade incomodou o homem com um prazer de cócega, “é, sim!”, e ele livre, libertado pelas suas próprias mãos — pois de súbito pareceu-lhe que fora isso o

(20)

que lhe sucedera há duas semanas.

Então repetiu com inesperada certeza: “é, sim!” Cada vez que dizia essas palavras estava convencido de que aludia a alguma coisa. Fez mesmo um gesto de generosidade e largueza com a mão que segurava o passarinho, e magnânimo pensou: “eles não sabem a que estou me referindo”.

Depois — como se pensar tivesse se reduzido a ver, e a confusão de luz tivesse tremido nele como em água — ocor-reu-lhe em refração confusa que ele mesmo esquecera ao que aludia. Mas estava tão obstinadamente convencido de que se tratava de algo da maior importância, embora tão vasto que já não lhe era mais discernível, que respeitou com altivez a pró-pria ignorância e aprovou-se feroz: “é, sim”.

— Você não sabe mais falar?!

O homem estacou boquiaberto. Como se lhe tivesse sido jogado à frente, reviu o rosto impaciente, de mulher que uma vez assim o interpelara só porque ele não lhe respondera. Da primeira vez a frase soara como uma frase entre outras — en-quanto bondes se arrastavam e o rádio ininterrupto tocava e a mulher sem cessar ouvia o rádio com desfastio e esperança, e ele um dia quebrara o rádio enquanto os bondes se arrastavam, e no entanto o rádio e a mulher nada tinham a ver com a minuciosa raiva de um homem que provavelmente já tinha em si o fato de que um dia teria que começar pelo exato começo, ele que agora começava pelo domingo.

Mas desta vez a simples frase irritada, ao soar no vermelho silêncio do descampado, fê-lo estacar com tal perplexidade que o passarinho acordou mexendo asas aflitas na sua mão. Aparvalhado, Martim olhou-o, espantado de ter um pássaro na mão. A embriaguez do sol fora subitamente cortada.

Sóbrio, ele olhou com modéstia a coisa na sua mão. Depois olhou o descampado dominical com suas perdas silenciosas. Estivera dormindo profundamente enquanto andara e pela primeira vez acordava. E como se nova onda de

(21)

mar se rebentasse contra as rochas, a claridade se impôs. O homem olhou dócil o passarinho. Sem comando próprio, seus dedos agora inocentes e curiosos deixaram-se obedecer aos movimentos extremamente vivos da ave, e abriram-se inertes: o pássaro voou numa faísca de ouro como se o homem o tivesse lançado. E empoleirou-se inquieto na pedra mais alta. De lá olhava o homem, piando sem cessar.

Por um instante paralisado, Martim olhou-o e olhou as próprias mãos, que, vazias, o olhavam atônitas. Recuperando-se, porém, correu furioso para o passarinho, e assim o perseguiu por algum tempo, o coração batendo de cólera, os sapatos impacientes tropeçando nos pedregulhos, a mão se arranhando numa queda que fez uma pedrinha rolar em vários pulos secos até emudecer...

A quietude que se seguiu foi tão oca que o homem pro-curou ouvir ainda um último baque da pedra para calcular a profundidade do silêncio onde ele a lançara.

Até que uma vaga de grande luz desfez a tensão da expectativa, e Martim pôde olhar a mão. Esta ardia, e o sangue porejava fino. Esquecido da perseguição, muito interessado agora, seus lábios secos chuparam o arranhão com uma avidez de carinho como uma pessoa que está só. Ao mesmo tempo que lhe despertou a sede, o sangue na boca deu-lhe uma atitude guerreira que logo em seguida passou.

Quando o homem enfim ergueu os olhos, o passarinho perturbado o esperava como se só tivesse lutado porque pretendia ceder. Martim estendeu a mão ferida e pegou-o com uma firmeza sem esforço. Dessa vez a ave agitou-se menos e, reconhecendo o antigo abrigo, acomodou-se para adormecer. Com o leve peso a carregar, o homem continuou sua marcha entre pedras.

— Não sei mais falar, disse então para o passarinho, evi-tando olhá-lo por uma certa delicadeza de pudor.

Só depois pareceu entender o que dissera, e então olhou face a face o sol. “Perdi a linguagem dos outros”, repetiu então bem devagar como se as palavras fossem mais

(22)

obscuras do que eram, e de algum modo muito lisonjeiras. Estava serenamente orgulhoso, com os olhos claros e satisfeitos.

Então o homem se sentou numa pedra, ereto, solene, vazio, segurando oficialmente o pássaro na mão. Porque alguma coisa estava lhe acontecendo. E era alguma coisa com um significado.

Embora não houvesse um sinônimo para essa coisa que estava acontecendo.

Um homem estava sentado. E não havia sinônimo para nenhuma coisa, e então o homem estava sentado. Assim era. O bom é que era indiscutível. E irreversível.

É verdade que aquela coisa que lhe estava acontecendo tinha um peso a se suportar — ele bem reconheceu o peso familiar. Era como o peso dele próprio. Embora fosse alguma coisa ímpar: aquele homem parecia não ter mais nada equivalente a pôr no outro prato da balança. Vagamente ele conhecia isso. No seu antigo apartamento às vezes tivera esse incômodo misturado com prazer e atenção — que sempre resultará em alguma decisão que nada tinha a ver com o sentimento embaraçador. Nunca o sentira, é verdade, com essa nitidez final de descampado. No que era ajudado pela própria sombra que o delimitava sem equívocos no chão.

Aquela coisa que ele estava sentindo devia ser, em última análise, apenas ele mesmo. O que teve o gosto que a língua tem na própria boca. E tal falta de nome como falta nome ao gosto que a língua tem na boca. Não era, pois, nada mais que isso.

Mas, a essa coisa, uma pessoa ficava um pouco atenta; e ficar atenta a isso, era ser. Assim, pois, no seu primeiro domingo, ele era.

O que, no entanto, começou a ficar um pouco intenso. O homem então se mexeu inconfortável na pedra, respondendo fisicamente à imaterialidade da própria tensão, como faz uma pessoa que se perturbou. E se assim fez era porque, embora não se conhecesse, era familiar a ele mesmo a ponto de saber

(23)

como responder. Isso porém não bastou. Olhou então ao redor, como quem procura o contraponto de uma mulher. “Mas não havia um sinônimo sequer para um homem sentado com um pássaro na mão.

Então, paciente e digno, esperou que a coisa passasse sem que ele ao menos a tocasse.

É que aquele homem sempre tivera uma tendência a cair na profundidade, o que um dia ainda poderia levá-lo a um abismo: por isso sabiamente tomou a precaução de abster-se. Sua contenção, à crosta facilmente quebrável da profundidade, lhe deu o prazer da contenção. Sempre fora um equilíbrio difícil, o seu, o de não cair na voracidade com que vagas e vagas o esperavam. Todo um passado estava apenas a um passo da extrema cautela com que aquele homem procurava se manter apenas vivo, e nada mais — assim como o animal brilha apenas nos olhos, mantendo atrás de si a vasta alma intocada de um animal. Então, sem tocá-la, ele se dispôs a esperar impassível que a coisa passasse.

Antes que passasse, ele involuntariamente a reconheceu. Aquilo — aquilo era um homem pensando. . . Então com infinito desagrado, fisicamente atrapalhado, ele se Lembrou no corpo de como é homem pensando. Homem pensando era aquilo que, ao ver algo amarelo, dizia com esforço deslumbrado: essa coisa que não é azul. Não que Martim tivesse chegado propriamente a pensar — mas o reconhecera como se reconhece na forma das pernas imóveis o possível movimento. E mais que isso ele reconheceu: essa coisa na verdade estivera durante toda a fuga com ele. Fora apenas por desleixo que quase a deixara agora se alastrar.

Então, sobressaltado, como se em alarme tivesse reconhecido a volta insidiosa de um vício, teve tal repugnância pelo fato de ter quase pensado que apertou os dentes em dolorosa careta de fome e desamparo — virou-se inquieto para todos os lados do descampado procurando entre as pedras um meio de recuperar a sua potente estupidez anterior que para ele se havia tornado fonte de orgulho e domínio.

(24)

Mas o homem estava perturbado: então não seria uma pessoa capaz de dar dois passos livres sem cair no mesmo erro fatal? pois o velho sistema de inutilmente pensar, e de mesmo comprazer-se em pensar, tentara voltar: sentado na pedra com o passarinho na mão, por descuido até prazer ele tivera. E, se se descuidasse um minuto mais, recuperaria numa só golfada sua existência anterior: quando pensar fora a ação inútil e o prazer apenas vergonhoso. Desamparado, mexeu-se na pedra quente: parecia procurar um argumento que o protegesse. Precisava defender o que, com enorme coragem, conquistara há duas semanas. Com enorme coragem, aquele homem deixara enfim de ser inteligente.

Ou fora-o realmente alguma vez? a dúvida feliz fê-lo pis-car os olhos com grande esperteza — pois se ele conseguisse se provar que nunca tinha sido inteligente, então se revelaria também que seu próprio passado fora outro, e se revelaria que alguma coisa no fundo dele próprio sempre fora inteiro e sólido.

“Na verdade”, pensou então experimentando com cuidado esse truque de defesa, “na verdade apenas imitei a inteligência assim como poderia nadar como um peixe sem o ser!” O homem se mexeu contente: imitei? mas sim! Pois se, imitando o que seria ganhar o primeiro lugar no concurso de estatística, ele ganhara o primeiro lugar no concurso de estatística! Na verdade, concluiu então muito interessado, apenas imitara a inteligência, com aquela falta essencial de respeito que faz com que uma pessoa imite. E com ele, milhões de homens que copiavam com enorme esforço a idéia que se fazia de um homem, ao lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a idéia que se fazia de mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforço sobre-humano a própria cara e a idéia de existir; sem falar na concentração angustiada com que se imitavam atos de bondade ou de maldade — com uma cautela diária em não escorregar para um ato verdadeiro, e portanto incomparável, e portanto inimitável e portanto desconcertante. E enquanto isso, tinha alguma coisa velha e pobre em algum lugar inidentificável da casa, e a gente dorme inquieta, o

(25)

desconforto é a única advertência de que se está copiando, e nós nos escutamos atentos embaixo dos lençóis. Mas tão distanciados estamos pela imitação que aquilo que ouvimos nos vem tão sem som como se fosse uma visão que fosse tão invisível como se estivesse nas trevas que estas são tão compactas que mãos são inúteis. Porque mesmo a compreensão, a pessoa imitava. A compreensão que nunca fora feita senão da linguagem alheia e de palavras.

Mas restava a desobediência.

Então — através do grande pulo de um crime — há duas semanas ele se arriscara a não ter nenhuma garantia, e passara a não compreender.

E sob o sol amarelo, sentado numa pedra, sem a menor garantia — o homem agora se rejubilava como se não com-preender fosse uma criação. Essa cautela que uma pessoa tem de transformar a coisa em algo comparável e então abordável, e, só a partir desse momento de segurança, olha e se permite ver porque felizmente já será tarde demais para não compreender — essa precaução Martim perdera. E não compreender estava de súbito lhe dando o mundo inteiro.

Que era inteiramente vazio, para falar a verdade. Aquele homem rejeitara a linguagem dos outros e não tinha sequer começo de linguagem própria. E no entanto, oco, mudo, rejubilava-se. A coisa estava ótima.

Então, para começo de conversa, a pessoa se sentava na pedra do domingo.

E de tal modo, com perverso gosto, o homem se sentia agora longe da linguagem dos outros que, por um atrevimento que lhe veio da segurança, tentou usá-la de novo. E estranhou-a, como um homem que escovando sóbrio os dentes não reconhece o bêbedo da noite anterior. Assim, ao remexer agora com fascínio ainda cauteloso na linguagem morta, ele tentou por pura experiência dar o título antigamente tão familiar de “crime” a essa coisa tão sem nome que lhe sucedera.

(26)

também a voz da palavra não era sua. Então, finalmente con-vencido de que não seria capturado pela linguagem antiga, ele experimentou ir um pouco mais longe: sentira por acaso horror depois de seu crime? O homem apalpou com minúcia sua memória. Horror? e no entanto era o que a linguagem esperaria dele.

Mas também horror se tornara palavra de antes do grande pulo cego que ele dera com o seu crime. O pulo tinha sido dado. E o salto fora tão grande que terminara se transformando no único acontecimento com o qual ele podia e queria lidar. E até os motivos do crime haviam perdido a importância.

A verdade é que o homem com sabedoria abolira os mo-tivos. E abolira o próprio crime. Tendo certa prática de culpa, sabia viver com ela sem ser incomodado. Já cometera anteriormente os crimes não previstos pela lei, de modo que provavelmente considerava apenas dureza da sorte ter há duas semanas executado exatamente um que fora previsto. Uma boa educação cívica e um longo treinamento de vida o haviam adestrado a ser culpado sem se trair, não seria uma tortura qualquer que faria com que sua alma se confessasse culpada, e muito seria necessário para fazer um herói finalmente chorar. E quando isso acontece é um espetáculo deprimente e repugnante que não suportamos sem nos sentirmos traídos e ofendidos; quem nos representa é imperdoável. Acontece que, por circunstâncias especiais, em duas semanas aquele homem se tornara um duro herói; ele representava a si mesmo. A culpa não o atingia mais.

“Crime”? Não. “O grande pulo” — estas sim pareciam palavras dele, obscuras como o nó de um sonho. Seu crime fora um movimento vital involuntário como o reflexo do joelho à pancada: todo o organismo se reunira para que a perna, de súbito incoercível, tivesse dado o pontapé. E ele não sentira horror depois do crime. O que sentira então? A espantada vitória.

Fora isso: ele sentira vitória. Com deslumbramento, vira que a coisa inesperadamente funcionava: que um ato ainda

(27)

tinha o valor de um ato. E também mais: com um único ato ele fizera os inimigos que sempre quisera ter — os outros. E mais ainda: que ele próprio se tornara enfim incapacitado de ser o homem antigo pois, se voltasse a sê-lo, seria obrigado a se tornar o seu próprio inimigo — uma vez que na linguagem de que até então vivera ele simplesmente não poderia ser amigo de um criminoso. Assim, com um único gesto, ele não era mais um colaborador dos outros, e com um único gesto cessara de colaborar consigo mesmo. Pela primeira vez Martim se achava incapacitado de imitar.

Sim. Naquele instante de espantada vitória o homem de repente descobrira a potência de um gesto. O bom de um ato é que ele nos ultrapassa. Em um minuto Martim fora transfi-gurado pelo seu próprio ato. Porque depois de duas semanas de silêncio, eis que ele muito naturalmente passara a chamar seu crime de “ato”.

É verdade que a sensação de vitória lhe durara apenas uma fração de segundo. Logo depois ele não tivera mais tempo: num ritmo extraordinariamente perfeito e lubrificado, seguira-se o profundo entorpecimento de que ele tinha precisado para que nascesse esta sua inteligência atual. Que era grosseira e esperta como a de um rato. Nada além disso. Mas pela primeira vez utensílio. Pela primeira vez sua inteligência tinha conseqüências imediatas. E de tal modo se tornara posse total sua que ele pudera habilidosamente especializá-la em garanti-lo, e em garantir sua vida. Tanto que instantaneamente passara a saber como fugir como se tudo o que tivesse feito até agora na vida diária não tivesse sido senão ensaio indistinto para a ação. E então aquele homem se tornara finalmente real, um rato verdadeiro, e qualquer pensamento dentro dessa inteligência nova era um ato, embora rouco como de voz ainda nunca usada. Era pouco o que ele era agora: um rato. Mas enquanto rato, nada nele era inútil. A coisa era ótima e profunda. Dentro da dimensão de um rato, aquele homem cabia inteiro.

Sim; tudo isso se seguira ao crime a um tal ponto de perfeição que Martim não tivera sequer tempo de pensar no que fizera. Mas antes — durante uma fração de segundo —

(28)

antes a vitória. Porque um homem um dia tinha que ter a grande cólera.

Ele a tivera. E pela primeira vez, com candura, admirara-se a si mesmo como um menino que se descobre nu ao espelho. Aparentemente, com o acúmulo de pensamentos de bondade sem a ação da bondade, com o pensamento de amor sem o ato de amor, com o heroísmo sem o heroísmo, sem falar de certa crescente imprecisão de existir que terminara se tornando o impossível sonho de existir — aparentemente aquele homem terminara por esquecer que uma pessoa pode agir. E ter descoberto que na verdade já tinha involuntariamente agido, dera-lhe de repente um mundo tão livre que ele se estonteara na vitória.

Aquele homem não se questionara sequer se havia quem pudesse agir sem ser por intermédio de um crime. O que teimosamente sabia, apenas, é que um homem tinha que ter um dia a grande cólera.

— Eu era como qualquer um de vocês, disse então muito subitamente para as pedras pois estas pareciam homens sentados.

Dito isto, Martim de novo mergulhou num silêncio total como meditação. Estava rodeado de pedras. O vento que so-prava ardente transpassava-o como ao descampado. Oco e tranqüilo, ele olhou a luz oca e tranqüila. O mundo era tão grande que ele estava sentado. Por dentro tinha o vazio ressonante de uma catedral.

— Imaginem, recomeçou então inesperadamente quando estava certo de que nada mais tinha a lhes dizer, imaginem uma pessoa que tenha precisado de um ato de cólera, disse para uma pedra pequena que o olhava com um rosto calmo de criança. Essa pessoa foi vivendo, vivendo; e os outros também imitavam com aplicação. Até que a coisa foi ficando muito confusa, sem a independência com que cada pedra está no seu lugar. E não havia sequer como fugir de si porque os outros concretizavam, com impassível insistência, a própria imagem dessa pessoa: cada cara que essa pessoa olhava repetia em pesadelo tranqüilo o mesmo desvio. Como

(29)

explicar a vocês — que têm a calma de não ter futuro — que cada cara tinha falhado, e que esse fracasso tinha em si uma perversão como se um homem dormisse com outro homem e assim os filhos não nascem. “A sociedade estava tão chata”, como disse minha mulher — lembrou-se o homem sorrindo com muita curiosidade. Havia um erro e não se sabia onde estava. Uma vez eu estava comendo num restaurante, contou o homem animando-se de súbito. Não, não, estou mudando de assunto! descobriu surpreendido, pois seu pai é que sempre tivera certa tendência a mudar de assunto e mesmo na hora de morrer havia virado o rosto para um lado.

— Imaginem uma pessoa, continuou então, que não tinha coragem de se rejeitar: e então precisou de um ato que fizesse com que os outros a rejeitassem, e ela própria então não pudesse mais viver consigo.

O homem riu com os lábios ressecados ao usar o truque de se mascarar sob o título de outra pessoa, o que no momento lhe pareceu muito bom como golpe de esperteza; então ficou satisfeito como sempre que conseguia enganar alguém. Talvez tivesse vaga consciência de que estava representando e se vangloriando, mas fingir era uma nova porta que, no primeiro esbanjamento de si mesmo, ele podia se dar ao luxo de abrir ou fechar.

— Imaginem uma pessoa que era pequena e não tinha força. Ela na certa sabia muito bem que toda a sua força reu-nida, tostão por tostão, só seria suficiente para comprar um único ato de cólera. E na certa também sabia que esse ato teria que ser bem rápido, antes que a coragem acabasse, e teria mesmo que ser histérico. Essa pessoa, então, quando menos esperava, executou esse ato; e nele investiu toda a sua pequena fortuna.

Bastante espantado com o que acabara de pensar, o homem se interrompeu com curiosidade: “então foi o que aconteceu?” Era a primeira vez que lhe ocorria.

É verdade que até agora ele não tivera sequer tempo de pensar no seu crime. Mas, abordando-o enfim neste instante, abordara-o de um modo que faria com que nenhum tribunal

(30)

o reconhecesse. Estaria ele descrevendo seu crime como um homem que pintasse num quadro uma mesa — e ninguém a reconhecesse porque o pintor a pintara do ponto de vista de quem está embaixo da mesa?

Que é que aquele homem, em duas semanas apenas, terminara por fazer do próprio crime?

Ainda se perguntou com uns restos de escrúpulo: “foi isso mesmo o que me aconteceu?” Mas um segundo depois era tarde demais: se esta não era a verdade, passaria a sê-la. O homem sentiu com alguma gravidade que este instante era muito sério: de agora em diante era unicamente com esta verdade que ele passaria a lidar.

O que lhe escapou era se explicara desse modo seu crime porque assim realmente acontecera — ou se porque todo ele estava pronto para esse tipo de realidade. Ou, mesmo, se estaria dando falsas razões por mera esperteza de fugitivo que se defende. Mas um longo passado de embotamento tendencioso não lhe permitia ainda saber em que lugar de si seus dedos sentiriam a veia responder como esta responde quando se toca na verdade do sonho. E por enquanto ele era alguém ainda muito recente, de modo que tudo o que disse não somente lhe pareceu ótimo, como ele caía deslumbrado apenas pelo fato de ter conseguido caminhar sozinho.

Na verdade, nesse instante, sua única ligação direta com o crime concreto foi um pensamento de extrema curiosidade: “como é que isso pôde acontecer a mim?” Sentia-se inferior aos acontecimentos que ele criara com o crime. Pois rebentara com seu hábito de vida, infelicidade que só costuma acontecer com os outros. E de súbito não eram somente palavras que lhe tinham acontecido. Martim estava sinceramente espantado pelo fato da desgraça também o ter atingido e — mais que isto — que ele estivesse por assim dizer à altura dela. Tinha certa vaidade de enfim lhe ter acontecido o crime até então apenas dos outros.

O homem continuou a olhar a mesa de baixo para cima — e o que importava é que ele a reconhecia. É verdade que a

(31)

fome também tornava qualquer esforço seu muito penoso; as pedras, no entanto, aguardavam intransigentes um prosseguimento. Então, para fazê-lo repousar, sua cabeça sabiamente se enevoou um pouco.

Depois do quê, Martim recomeçou mais devagar e pro-curou pensar com muito cuidado pois a verdade seria diferente se você a dissesse com palavras erradas. Mas se você o disse com as palavras certas, qualquer pessoa saberá que aquela é a mesa sobre a qual comemos. De qualquer modo, agora que Martim perdera a linguagem, como se tivesse perdido o dinheiro, seria obrigado a manufaturar aquilo que ele quisesse possuir. Ele se lembrou de seu filho que lhe dissera: eu sei por que é que Deus fez o rinoceronte, é porque Ele não via o rinoceronte, então fez o rinoceronte para poder lo. Martim estava fazendo a verdade para poder vê-la.

Oh, é bem possível que ele estivesse mentindo para as pedras. Sua única inocência, ao lado do hábito tendencioso de mentir, estava em que ele ignorava em que ponto exato estava a sua mentira. Então, diante dessa ambigüidade, sua cabeça defensivamente se enevoou ainda mais. E, por um pequeno truque que trouxera de antes do grande pulo, ele se tornou um ingênuo.

Refeito, então, recomeçou o seu sermão para as pedras: — Com um ato de violência essa pessoa de quem estou falando matou um mundo abstrato e lhe deu sangue.

E isso ele disse com a resignação estóica de quem já deu um jeito de fazer com que a ênfase não esteja mais em mentir ou falar a verdade. Aquele homem acabara de se desprender definitivamente. Depois do quê, ficou muito satisfeito olhando. A coisa estava ficando cada vez melhor. De baixo para cima, ele reconhecia cada vez mais a mesa.

E agora, sentado na pedra com um passarinho na mão, com a boca seca de sede, com os olhos ardendo — depois de seu crime, aquele homem nunca mais precisaria de nenhuma revolta. Desta hora em diante teria a oportunidade de viver

(32)

sem fazer o mal porque já o fizera: ele era agora um inocente. Quem sabe se com seu crime impremeditado nem pretendera ir tão longe. Mas também isso lhe viera: ele se tornara um inocente. E, por Deus, jamais pretendera tanto: mas também se livrara de uma certa piedade sufocadora pois ele agora já não era mais um culpado — “se é que você está me entendendo”, pensou com fatuidade compenetrada, pois ele se livrara da grande culpa materializando-a. E agora, que enfim fora banido, estava livre. Ele era enfim um perseguido. O que lhe dava todas as possibilidades dos que se desesperam. “Matei vários coelhos numa só cajadada”, disse.

As grandes e pequenas pedras esperavam. Martim estava muito confiante porque, não sendo seu auditório mais inteligente que ele, se sentiu à vontade. Aliás aquele homem nunca tivera auditório, por estranho que parecesse. É que nunca se lembrara de organizar sua alma em linguagem, ele não acreditava em falar -- talvez com medo de, ao falar, ele próprio terminar por não reconhecer a mesa sobre a qual comia. Se agora falava é que não sabia para onde ia, nem sabia o que ia lhe acontecer, e isso o colocava no próprio coração da liberdade. Sem mencionar o fato de que a sede o excitava como um ideal.

Além do mais, o auditório improvisado não tinha cultura, e ele então abusou dele assim como se habituara sadiamente a abusar de um inferior e a ser abusado por superiores. Sua própria falta de cultura sempre o encabulara, ele costumara fazer interminavelmente uma lista sempre renovada dos livros que pretendera ler mas sempre aparecia obra nova e isso o embaraçava, ele que não dava sequer conta dos jornais; pretendera até se aprofundar em “psicologia coletiva” já que sempre lidara com números e já que sempre fora um homem que facilmente imitava a inteligência: mas nunca tivera tempo, sua mulher o arrastava para o cinema, para onde ele ia com alívio.

As pedras esperavam. Algumas eram arredondadas e mortas como pedras da lua; eram de algum modo vesgas, pacientes aquelas crianças. Mas as outras eram pedrarias do

(33)

sol e olhavam direto. “Como jóias”, pensou, pois ele sempre tivera uma tendência geral a comparar coisas com jóias. As pedras esperavam a continuação do que ele começara a pensar. De vez em quando elas tinham um relance de extrema vida que transmitia ao homem um doloroso impulso de felicidade vazia. ‘‘Acho”, pensou ele de repente, “que até morrer serei sempre muito feliz.”

O sol lhe doía fundo na cabeça, e o homem se forçou de novo a falar porque sentira em si uma dura facilidade — como quando se tem alguma coisa a dizer embora não se saiba de que modo, mas quando esse mínimo de inspiração nos dá força para a busca difícil. Mesmo ele queria falar porque não há uma lei que impeça um homem de falar. E por enquanto o que fascinava Martim era qualquer ausência de impedimentos. Além do mais, ele bem sabia que o mundo era tão grande que em breve ele seria mesmo obrigado a se restringir. As pedras esperavam, vindas de todas as partes para a conspiração — para a qual ele trazia, como um viajante, as últimas notícias. Umas pedras eram pequenas e infantis, outras grandes e pontudas, todas sentadas no comício da inocência. Era um auditório desigual onde se misturava infância e maturidade.

— Infância e maturidade, disse-lhe então de repente. No entanto houve uma época em que o mundo era liso como a pele de uma fruta lisa. Nós, os vizinhos, não a mordíamos porque seria fácil morder, e havia tempo. A vida naquele tempo ainda não era curta. E enquanto isso — as árvores cresciam. As árvores cresciam como se não houvesse no mundo senão árvores crescendo. Até que o sol escureceu, gente se aproximou, poços se multiplicaram e os mosquitos saíam do coração das flores: estava-se crescendo. Era-se maduro. Era mais rico e amedrontador, de algum modo tornou-se muito mais “vale a pena”. As noites tornaram-se mais longas, pai e mãe foram renegados, havia uma sede ruim de amor. O reinado era o do medo. E não bastava mais ter nascido: era o heroísmo nascendo. Mas a eloqüência soava mal. As pessoas se chocavam no escuro, toda luz desorientava cegando, e a verdade só servia para um dia.

(34)

Todas as nossas dificuldades esbarravam logo com uma solução. Estávamos perdidos com as soluções que nos antecediam, para falar a verdade o mundo nos antecedia a cada passo. Em poucos segundos uma idéia se tornava original: quando víamos uma fotografia com sombra e luz e paralelepípedos molhados pela chuva, exclamávamos unânimes e cansados: esta é muito original. Tudo estava profundo e podre, pronto para o parto, mas a criança não nascia. Não digo que não era bom — era ótimo! mas era como se a pessoa só pudesse olhar, e sábado de noite seria aquele inferno de vontade generalizada se não houvesse pôquer. No entanto nada parava jamais, trabalhava-se mesmo de noite. O poder tornara-se grande; as mãos inteligentes. Todos eram poderosos, todos eram tiranos e eu nunca deixei ninguém pisar no meu pé, minha astúcia se tornou grande com auxílio de certa prática. Embora houvesse os que, apesar de maduros, tinham — “tinham como uma lepra a infância devorando o peito”.

Esta última frase o homem disse com vaidade porque lhe pareceu que organizara com alguma perfeição as palavras. Certamente o que fez Martim experimentar essa perfeição foi o fato de suas palavras terem de algum modo ultrapassado o que ele quisera dizer. E, embora se sentindo ludibriado por elas, preferiu o que dissera ao que realmente pretendera dizer, por causa do modo muito mais certo como as coisas nos ultrapassam. O que também lhe deu, no mesmo instante, uma impressão de fracasso; e de resignação ao modo como acabara de se vender a uma frase que tinha mais beleza que verdade. A primeira coisa que ele estava esbanjadoramente comprando com seu novo dinheiro era um público — mas este já o forçara a uma verdade organizada. O que o desapontou com alguma curiosidade. É que só uma vez, anteriormente, ele falara: tinha bebido e fizera um discurso numa casa alegre onde as mulheres também pareciam jóias sentadas porque já era de madrugada e o trabalho terminara, e elas eram infantis e maduras.

— Sim, embora houvesse os que tinham a infância no peito, como se somente na memória estivesse o nosso futuro

Referências

Documentos relacionados

O Museu Digital dos Ex-votos, projeto acadêmico que objetiva apresentar os ex- votos do Brasil, não terá, evidentemente, a mesma dinâmica da sala de milagres, mas em

nhece a pretensão de Aristóteles de que haja uma ligação direta entre o dictum de omni et nullo e a validade dos silogismos perfeitos, mas a julga improcedente. Um dos

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Tratando-se de uma revisão de literatura, o presente trabalho utilizou-se das principais publicações sobre as modificações de parâmetros técnicos observados em corredores,

Devido ao reduzido número de estudos sobre fatores de risco para PI, optou-se por utilizar como categorias de referência as de menor risco para o BPN, conforme apontado pela

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

*-XXXX-(sobrenome) *-XXXX-MARTINEZ Sobrenome feito por qualquer sucursal a que se tenha acesso.. Uma reserva cancelada ainda possuirá os dados do cliente, porém, não terá