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MANUFATURAS DO VAZIO: FOTOGRAFIAS DA FÀBRICA GRÒBER E DA USINA CENTRAL BARREIROS EM PERSPECTIVA DE 1910 A 1940

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MANUFATURAS DO VAZIO: FOTOGRAFIAS DA FÀBRICA GRÒBER E DA USINA CENTRAL BARREIROS EM PERSPECTIVA DE 1910 A 1940

Kerolayne Correia de Oliveira1 Universidade Federal de Pernambuco

correiakerol@hotmail.com

Resumo

A fotografia foi largamente utilizada como uma importante ferramenta da classe dominante. Amalgamada a esta, a fotografia reproduziu, através de símbolos de dominação, suas ideologias. Faces das relações de poder e controle do patronato impulsionado pela industrialização, tanto em Girona quanto na Zona da Mata, são explicitadas através de imagens fotográficas, ainda que de forma diferente, mas, ainda assim, correlatas. O presente artigo busca articulações entre as representações da indústria têxtil e da usina de modo a expandir reflexões sobre as ausências, tão recorrentes, principalmente no segundo espaço.

Introdução

A fotografia, mesmo após décadas do seu surgimento, continuou carregando as mesmas amarras que a ligou às classes dominantes em meados do século XIX. Seus altos custos de produção só a permitiam estar a serviço do Estado e das elites. Juntos, eles se empenharam em encontrar formas cada vez mais rebuscadas de dominação dos corpos e das mentes em prol de um modelo social e econômico cada vez mais ditado pelos interesses do capital. Paulatinamente, um projeto visual em moldes burgueses foi arquitetado e, tão logo, cristalizou-se. Um dos seus pilares foram as instituições psiquiátricas, onde a fotografia atuou, através da medicina, como um instrumento de desejo por controle dos sujeitos desviantes. Outra frente foi manifesta no colo do judiciário, como destaca John Tagg (2005), onde a realidade forjada através da fotografia dava vazão para o aprisionamento dos corpos desviantes. Esteve também intrinsecamente alinhada às classes dominantes em seus estúdios fotográficos; alimentou imaginários através souvenirs regados a exotismo; e esteve presente, enquanto uma preciosa

1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. É

bolsista CNPq. Está sob orientação da Profa. Dra. Christine Dabat. Membra da linha de pesquisa (CNPq): Poder e relações sociais no Norte e Nordeste: Trabalho e Ambiente na história das Sociedades Açucareiras.

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ferramenta, em empreitadas imperialistas e colonialistas, registrando manifestações do racismo espalhadas pelo globo.

Os arquivos cresceram junto com os Estados. Foram alimentados por essas narrativas e alimentaram, em contrapartida, a sociedade da qual faziam parte. Os silêncios se tornaram elementos fundantes sem os quais os acervos não poderiam existir enquanto tais. Os silêncios através desses indícios, tão eloquentes para Marc Bloch (1997), aguardam para serem desnaturalizados, problematizados. Uma das suas faces é a ausência de trabalhadores dentro dos seus ambientes de trabalho nos registros fotográficos. Este esvaziamento insiste em passar despercebido por entre o enfileiramento do maquinário fabril em perspectiva que foi, em contrapartida, tão celebrado pelas classes detentoras dos meios de produção. Essas imagens de ode aos novos materiais empregados em larga escala após a revolução industrial -- ferro, vidro e aço -- são protagonistas nas representações internas das fábricas, em alguns momentos. Em outros, disputam espaço com imagens onde o proletariado aparece: asseado e em pose.

Nas “fábricas no campo” do Brasil, como pontua Sidney Mintz (2010), a situação se torna ainda mais perceptível: o proletariado pouco ou nada aparece. As usinas estão, ou foram, completamente esvaziadas para o momento da tomada fotográfica. O fotógrafo contempla aparentemente sozinho as faces da “civilização”. Onde estão os sujeitos que conduzem o “progresso”? Porque importamos um modelo de produtividade mas não suas representações?

Para encontrarmos caminhos que conduzem a perguntas cada vez melhores, as fábricas têxteis aparecem na presente pesquisa a fim de ampliarmos nossos olhares sobre as representações do proletariado fabril. Apesar das suas especificidades, compartilham de algumas questões, sobretudo no que diz respeito às estratégias de aliciamento e controle dos sujeitos. A fotografia, nada inocente, mas, ao contrário, parte atuante nesse cenário, como vimos, pode ser pensada como um elo aglutinante de realidades em comum. Portanto, buscou-se pensar através das imagens de dois diferentes arquivos: a Europeana, fruto de um projeto de digitalização e compartilhamento de arquivos produzidos pela União Europeia; e as que integram a Coleção Benício Dias, salvaguardadas pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), e virtualmente disponibilizadas através da Villa Digital.

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“A cidade é um palco sem atores”2: A manufatura de um projeto visual, os materiais e as formas de ver

Marx destacou, em 1867, os processos que levaram à expropriação do povo do campo de sua base fundiária e a construção das amarras que os prenderam a uma posição servil onde, consequentemente, se tornaram vendedores de si mesmos. “Mantenha os cottagers pobres e os manterá laboriosos” (MARX, 1988, p. 7).

Ele continua:

O roubo dos bens da Igreja, a fraudulenta alienação dos domínios do Estado, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpadora e executada com terrorismo inescrupuloso da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Eles conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram a base fundiária ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado livre como os pássaros (MARX, 1988, p. 12).

Os pássaros, para continuar citando a metáfora empregada por Marx, livres, se viram cada vez mais tolhidos. Propositalmente distanciados das suas suas terras, modos e vidas costumeiros “[...] não conseguiam enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condição” (MARX, 1988, p. 12), constituindo uma massa vulnerável e predisposta a ser engaiolada pelo capital em ascensão. Livres como pássaros, o povo expropriado e transformado em proletariado se viu cercado por outra paisagem: não mais o campo, mas empilhamentos de ferro bruto que se erguiam sobre suas vistas como grande montanhas. Agora, “condenado e comer o pão do suor do seu rosto” (MARX, 1988, p. 1), afirma-se sobre o proletariado o mito do pecado original: “E desse pecado original data a pobreza da grande massa que até agora, apesar de todo seu trabalho, nada possui para vender senão a si mesma, e a riqueza dos poucos, que cresce continuamente, embora há muito tenham parado de trabalhar” (MARX, 1988, p. 1). Sobre esta condição se constrói, a partir das classes dominantes, a noção de “civilização” e “progresso”, cujos esforços que aqui caminham conjuntamente aos de Marx, há cerca de 150 anos, buscam

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desnaturalizar essas relações de dominação com base na expropriação de sujeitos por outros sujeitos.

Assim como lembra Gramsci (1988), a superestrutura econômica desempenha uma influência decisiva na superestrutura cultural, onde atuam os intelectuais. Nesse aspecto, Gramsci aponta para os literatos, artistas e filósofos como parte ativa dos intelectuais. É, sobretudo através destes, que imaginários são cristalizados e formas de ver são instituídas. Gramsci nos lembra, sobre a velha classe territorial, que mesmo após a perda da sua supremacia econômica, ela segue conservando “[...] por muito tempo uma supremacia político-intelectual, e é assimilada como ‘intelectuais tradicionais’ e como camada dirigente pelo novo grupo que ocupa o poder” (GRAMSCI, 1988, p. 17).

Nas fábricas, o maquinário assume o centro das atenções; o proletariado, quando aparece, é coadjuvante das suas proezas. As armações, que se arrastam por grandes galpões, em perspectiva, aguardam pacificamente o momento em que, orgulhosas, transformarão tão bem a matéria prima que lhes é confiada para o enriquecimento dos seus donos e “progresso” da nação. Em ambiente externo, canos contorcidos são isolados contra o céu, não sendo necessário, dessa forma, o esforço em disputar atenção com qualquer outro elemento na paisagem. Nos chãos, ramificam-se, abrindo espaço para os trens e seus trilhos. Nas ruas, o vidro reveste os grandes prédios e cobrem as vitrines.

André Rouillé, sobre a fotografia, diz:

Os lugares, as datas, os usos, os dispositivos, os fatos: tudo comprova que a invenção da fotografia se insere na dinâmica da sociedade industrial nascente. Foi ela que ia segurou as condições de seu aparecimento, que permitiu o seu desdobramento, que a modelou, que se serviu dela. Criada, forjada, utilizada por essa sociedade, e incessantemente transformada acompanhando suas evoluções, a fotografia, no decorrer de seu primeiro século, como destino maior conheceu apenas o de servir, de responder às novas necessidades de imagens de uma sociedade. De ser uma ferramenta. Pois, como qualquer outra, essa sociedade tinha necessidade de um sistema de representação adaptado ao seu nível de desenvolvimento, ao seu grau de tecnicidade, aos seus ritmos, aos seus modos de organização sociais e políticos, aos seus valores e, evidentemente, à sua economia. Na metade do século XIX, a fotografia foi a melhor resposta para todas essas necessidades. Foi o que a projetou no coração da modernidade, e que lhe valeu alcançar o papel de documento, isto é, o poder de equivaler legitimamente às coisas que ela representava (ROUILLÉ, 2009, p. 31).

No cerne dessas questões, ainda segundo Rouillé, está a forja de novos modos de ver pautados pela racionalidade que adveio com a modernidade. A fotografia tornou-se produto e instrumento do expansionismo e da urbanização (ROUILLÉ, 2009). “Em outras

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palavras, a partir da metade do século XIX, a fotografia introduz, nas imagens, valores análogos àqueles que, por toda parte, estão transformando a vida e a sensibilidade dos habitantes das grandes cidades industriais” (ROUILLÉ, 2009, p. 41). Na esteira, paulatinamente, as imagens passam a aludir a um crescente fetichismo burguês: foi atribuída às máquinas, através desses registros, um alto grau de independência estética. Nesses, a força proletária que opera o maquinário cotidianamente não é fundamental para a consolidação desse ideal de modernidade capitalista. Os trabalhadores, neste cenário, são relegados à protagonistas. É nesse contexto que o esvaziamento toma forma e se torna recorrente nesses registros. O silêncio passa a ser expressivamente parte dessas representações.

Eni Puccinelli Orlandi (2007) destaca o silêncio enquanto parte essencial dos discursos, isto é, só nos aproximaremos dos sentidos que eles carregam se levarmos em consideração o não-dito. Podemos expandir a discussão para abarcar também as fotografias, sobretudo porque ela é sempre um recorte do tempo e do espaço, uma escolha, como nos lembra Boris Kossoy (2009). As imagens fotográficas são mais ausências do que presenças, sobretudo para o proletariado como pontua Rouillé, constatando que

[...] a fotografia só vê na cidade o cenário de poder, os monumentos que fixam o passado, e as grandes obras urbanas que o projetam no futuro. Mas os homens, os operários, os contramestres, os transeuntes, os flanadores, etc. mesmo parados, estão ausentes, ou quase, das fotografias. A cidade é um palco sem atores (ROUILLÉ, 2009, p. 45).

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Figura 1 e 2: Maquinário no interior da Fàbrica Gròber. Fotografias de Carles Battle Ensesa, 192?.

Luz, técnica e ausência: esta é a fórmula para o fabrico dessas imagens. Elas são uma ode à “civilização” e ao “progresso” -- que nunca contemplava o proletariado --, mas também, e sobretudo, a disciplina, a ordem, ao controle. Michelle Perrot, sobre isso, afirma que o que está em jogo é o

[...] controle das matérias-prima [...], o controle dos produtos em qualidade e quantidade, o controle dos ritmos e dos homens. A máquina é um instrumento de disciplina cujos efeitos precisam ser vistos concretamente: materialmente no espaço remodelado da fábrica e no emprego do tempo, fisicamente ao nível do corpo do trabalhador, de que história tradicional das técnicas nos fala tão pouco (PERROT, 2017, p. 20).

Figura 3 e 4: Maquinário no interior da Fàbrica Gròber. Fotografia de Joseph Thomas Biggas, 192?.

Ainda sobre essas imagens, Michelle Perrot, retomando Jeremy Bentham (1748-1832), discorre sobre o método que foi desenvolvido com a finalidade de resolver um problema disciplinar na prisão, um problema de fiscalização, um problema do ver. O panopticon (1791), ao mesmo tempo, antecedeu e previu a fotografia. Através dele, segundo a autora, “o inspetor ‘ver sem ser visto’” (PERROT, 2017, p. 55). E continua: “Só o seu olhar, e a consciência que os presos têm dele, bastam para fazer com que reine a ordem. A visibilidade e a vigilância também são os princípios da disciplina nas fábricas” (PERROT, 2017, p. 55). As fotografias tomadas no interior da Gròber remetem a essas

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formas do ver dominantes. Mais do que um registro do interior da indústrias, essas imagens eram instrumentos de afirmação de classe.

A Gròber foi erguida, por Cristóbal Grober, em 1890, sobre o espaço de um antigo convento em Girona, tornando-se uma das mais importantes indústrias têxteis da cidade. A Gròber SA, durante a década de 1910, chegou a empregar mais de 1500 trabalhadores; em 1942, cerca de 1700, cuja mão de obra era majoritariamente feminina. Sobre regência de outra família a partir de 1919, os Portabellas, a fábrica passou por um incêndio, em 1939, sendo reconstruída em 1940. Suas atividades declinaram na década de 1970, após a explosão de uma caldeira que custou quatro vidas.3 Posteriormente, foi transposta para Bescanó. Especializou-se em lã, nas primeiras décadas, botões, rendas, fitas e elásticos.

Durante as primeiras décadas do século XX, a fábrica contou com a atuação de alguns fotógrafos que, mais tarde, vão compor o acervo da prefeitura de Girona, do qual provém os registros aqui presentes. O primeiro, Carles Battle Ensesa (1888-1994), foi um renomado engenheiro de Girona; o segundo, Joseph Thomas Biggas (1852-1910), foi um arquiteto, fotogravurista e impressor catalão, fazendo também parte da Sociedade Heliográfica Espanhola.

As domestic system, como Michelle Perrot denomina as unidades econômicas que aliciavam núcleos familiares, tende a se multiplicar no período de industrialização. Nelas, pais, mães e seus filhos são peça-chave na indústria têxtil. A família, inserida na dinâmica de produção, seria responsável, portanto, pela instrução dos seus filhos no mundo do trabalho fabril, sobretudo os pais (PERROT, 2017). Associado a isso, havia uma forte preocupação com o futuro de uma nação em construção. O trabalho seria, nesse cenário, um importante pilar da moralidade. Os mais novos aprenderiam desde cedo e os adultos entrariam em uma rotina metódica que garantiria a ordem civilizacional necessária para o progresso. “A fábrica deve constituir sua própria disciplina” (PERROT, 2017, p. 63): Silêncio, limpeza, submissão e pontualidade.

3 Informações disponíveis em: <

https://blog.europeana.eu/2019/10/fabrica-grober-the-rise-and-fall-of-an-industrial-landmark-in-girona/> Acesso em: 15 de set. 2020.

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Figura 5: Mulheres e crianças posam para fotografia no interior da Fábrica Gròber. Fotografia de Joseph

Thomas Biggas, 1910.

Mulheres, crianças e ordem. A fábrica Gròber aproxima-se dos escritos de Michelle Perrot, e as imagens tomadas no seu interior tornam-se iluminadas pela autora. A forte herança dos estúdios, ainda cronologicamente tão perto a ponto de ser inevitável produzir imagens fotográficas sem remetê-los, influencia a pose das mulheres e crianças das fábricas. Elas quase apresentam ao espectador seu instrumento de trabalho, tão íntimo a ponto de se encostarem levemente (Figura 5). A mulher em questão é, na verdade, uma garota. Ela encara a câmera por mais tempo que a mulher da sua esquerda, também muito jovem. Esta, por sua vez, perde a nitidez que eternizaria seu rosto. Existem outros rostos na imagem. Eles se espalham por entres as máquinas: alguns mais nítidos que outros. O longo tempo de exposição que requeriam os registros no período, exigiam imobilidade. E ele é um luxo burguês. O tempo do proletário é ditado pelas máquinas que controlam a produção. Perrot, sobre isso, afirma:

O contramestre pode regular até o ritmo de trabalho pela máquina. A máquina, portanto, pelo viés do saber, introduziu um tipo de disciplina mais sutil. Por outro lado, ela contribuiu para fixar o trabalhador, colado ao seu lugar na oficina. Pouco a pouco, impondo seu ritmo, ela se torna a senhora do jogo e tende a substituir o contramestre. Com ela, não é mais necessário o olhar (PERROT, 2017, p. 68).

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Figura 6: Força de trabalho feminino no interior da Fábrica Gròber. Fotografia Fotografia de Joseph

Thomas Biggas, 1910.

Em alguns cenários o olhar se torna obsoleto; em outros contextos, ele ainda está presente. Em meio ao ritmo proletário eternizado na fotografia (Figura 6), de cabeças de mulheres que sobem e descem como ondas, um olhar punge4: o segundo homem (em pé, à direita) encara o primeiro, aquele que porta a câmera. Ele, escapando da ditadura do ritmo operário, se mantém firme e ganha o privilégio da nitidez que o confere, neste momento fugaz, prestígio.

Suas roupas, melhores e mais bem limpas do que as descritas por Engels (2010), podem indiciar o caráter solene do possível “dia da foto”. Apesar da perda da nitidez, é possível perceber algumas das suas expressões. Em um misto de seriedade e atenção, denotam a atipicidade do momento: o olhar masculino e desconhecido que as observam e registram.

A constituição de uma força de trabalho alimentada por camponeses expropriados, antes economicamente autônomos, abastecem as engrenagens do capital para voltarmos a Marx (1988). A destruição dos meios de produção rural, isto é, os ofícios domésticos, é a chave do motor que rege todo o sistema. Entretanto, esse processo, desde sua gênese, excedeu a Europa. As histórias dos continentes se cruzam motivadas por interesses necessários para impulsionar o modo de produção capitalista. A destruição e dominação é o elo aglutinante da história formação do proletariado. Nesse sentido, Marx afirma:

A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da

4 Roland Barthes (1984), teorizando sobre a imagem fotográfica, em A câmera clara, destaca o punctum

como um elemento construtivo da imagem, e de caráter subjetivo, que se destaca dentre os demais. Este seria, portanto, um forte e inevitável ponto de atenção; algo que fere; que punge.

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conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva. De imediato segue a guerra comercial das nações européias, tendo o mundo por palco (MARX, 1988, p. 20).

O Brasil precisa seguir um modelo

O Brasil, enquanto colônia portuguesa, foi palco da acumulação primitiva, onde a Zona da Mata pernambucana desempenhou um papel destacável. Remetendo as sesmarias, sistema colonial de divisão de terras para exploração, Christine Dabat explicita a configuração da estrutura fundiária que ainda persiste na Zona da Mata. O sistema, cuja preferência era dada à mão de obra escravizada, desenhou quem tinha o acesso às terras e a quem, consequentemente, esse acesso foi negado. O Estado, nesse cenário, nas palavras de Christine Dabat, “[...] se reservava direitos de intervenção, numa estreita e perene ligação entre a classe dominante e os poderes públicos” (2012, p. 66). O minifúndio, espaço que restou para os trabalhadores, era insuficiente para alimentá-los, o que os levava, consequentemente, a vender sua força de trabalho (DABAT, 2012). O monopólio da terra foi fundamental para o controle do patronato sobre a mão de obra local. Na esteira, surge a morada como

[...] uma resposta suficiente, enquanto não se tinha os caminhões e rede rodoviária adequados ao transporte pendular dos trabalhadores. Pois, morando nos engenhos, eles eram imobilizáveis em permanência e, dispondo de pequenos lotes para culturas, podia-se diminuir uma quantia inferior ao mínimo vital o salário pago (teoricamente) em espécie (DABAT, 2012, p. 90).

Inúmeros trabalhos foram desenvolvidos destacando as permanências nas relações que se estabeleceram na Zona Canavieira de Pernambuco. Peter Eisenberg (1977) aponta para as inúmeras modernizações no campo que, em contrapartida, não transformaram efetivamente as relações que ali se estabeleceram, ainda oriundas da escravização. Segundo o autor, a abolição foi um processo praticamente indolor à antiga aristocracia rural, pois a demanda pela mão de obra barata foi rápida e eficientemente suprida.

Forjava-se, portanto, no seio de uma sociedade regida por uma forte herança escravista, um modelo de “progresso” às custas de desumanas condições de trabalho. Ela caminhava, e se tornava efetiva, em paralelo a concentração fundiária e a monocultura da

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cana que estreitavam as mobilidades e atuações desses trabalhadores. Seus corpos, ao contrário do discurso patronal que buscavam naturalizar suas péssimas condições de saúde e desvinculá-las das consequências do eito, como explicita José Marcelo (2012), denotam às péssimas condições de vida que eram exigidos pela agroindústria açucareira. Outro fator importante para entender melhor as dinâmicas de produção imagética nesse cenário, é fundamental continuar pensando através das contribuições de José Marcelo (2020). Segundo ele, para funcionar, o complexo dessas indústrias no campo não precisariam de formas mais incisivas de contenção, como muros e arames farpados. Através do controle dos recursos naturais, a organização social do interior dos engenhos, com limitado acesso a órgãos de proteção ao trabalhador e ao movimento sindical, associado a uma economia própria, fechada, e ao uso desenfreado e impune da violência, seria possível conter a classe trabalhadora (FERREIRA FILHO, 2020). Esses processos, segundo o autor, forjaram um domínio secular da paisagem que não apenas se relacionavam no espaço mas eram, sobretudo, parte integrante dele. Portanto,

A dimensão espacial da plantation impõe à sua análise um ponto de vista mais holístico, que incorpore tanto elementos físicos naturais, quanto estruturais e sociais. A partir desse espaço -- ao mesmo tempo condição, meio e produto de sua própria existência -- os engenhos se proliferaram enquanto domínios territoriais instituídos para, por meio do controle absoluto sobre os corpos, garantir lucros ao setor agroindustrial (FERREIRA FILHO, 2020, p. 43).

Nesse sentido, José Marcelo Ferreira afirma que “[...] os elementos constituintes do espaço (incluindo os trabalhadores, engenhos, usinas, as instituições, o suporte ecológico, as infraestruturas...) devem ser encarados como estados ou condições das coisas, e não como as coisas mesmas” (FERREIRA, FILHO, 2016, p. 21). Portanto, “Seus valores não são dados em função deles mesmos, mas do seu papel no interior de um conjunto-contexto. Tomados isoladamente eles apenas têm valor como simples objeto, mas o seu valor como dado social vem de sua existência relacional” (FERREIRA, FILHO, 2016, p. 21). Podemos transpor a mesma lógica para pensar também as fotografias. Ou melhor, as ausências nessas fotografias.

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Figuras 7 e 8: Interior da Usina Central Barreiros. Fotografias: Benício Dias, 1939.

Todas as estratégias do patronato para controlar as vidas dos trabalhadores do campo contaminavam também as representações. Afinal, a câmera esteve, como vimos, na mão da classe dominante. O discurso do atraso que buscava ser superado em meio a um modelo de modernização controverso exclui das paisagens internas aqueles que não se adequam ao esperado pelo olhar patronal. O projeto de “sociedade moderna” manifestou-se em associação à um projeto estético. Eis o paradoxo que essas imagens explicitam: os trabalhadores eram fundamentais, mas seu espaço era renegado; sua imagem, encoberta. Seus corpos e modos de vidas eram incompatíveis com o imaginário gestado. Era preferível, portanto, escondê-los.

Figura 9: Trabalhadores no interior da Usina Central Barreiros. Fotografia: Benício Dias, 1939.

Em um espaço de dominação secular como a Zona da Mata, essas imagens também atuam como face da violência inerente à região. Segundo Bourdieu (1992), o campo do simbólico faz parte do exercício do poder e das estratégias de dominação, sendo fundamental para sua consolidação e perpetuação. Nesse aspecto, a teatralidade, presente

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nas representações da Fábrica Gròber e também na da Usina Central Barreiros, é recorrente onde o controle patronal se estabelece e fotografias são produzidas. Os trabalhadores (Figura 9) aludem ao transporte de sacas de açúcar. O controle dos seus corpos evidencia-se: rígidos, esperam o momento da tomada das suas imagens.

A representação da “modernidade” no Brasil

Para continuarmos na perspectiva do controle patronal, Michele Perrot destaca que

As grandes empresas não limitam seu controle ao perímetro da fábrica. Elas tentam estendê-lo à vida cotidiana dos trabalhadores, através de todo um conjunto de instituições e uma política de ordenamento do espaço, chegando até a constituição de verdadeiras cidades industriais (PERROT, 2017, p. 69).

É também neste cenário que se constroem as vilas operárias no nordeste do país. Telma de Barros Correia (1998) de Emanuel Moraes de Lima (2017) evidenciam aspectos do aliciamento de núcleos de famílias sertanejas e, em paralelo, a construção de aspectos moralizantes que garantiriam a perpetuação de linhagens mais aptas para o trabalho e para o projeto, da perspectiva da classe dominante, de nação. A moral construía-se através e para o trabalho fabril. O controle do patronato excedia o horário de trabalho, contaminando vários aspectos da rotina dos operários, incluindo o lazer e a religiosidade (SANTOS, 2017).

As representações, em contrapartida com o que geralmente acomete o trabalho canavieiro, contemplam esses trabalhadores ainda que sobre uma forte estética que indicia aspectos da sua dominação, como vimos: mantém-se o ângulo panóptico, os grandes e médios planos, a força de trabalho continua sendo representada conforme o ritmo do capital, a teatralização, os olhares desconfiados.

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Figura 10: Trabalhadores no interior da Companhia União Mercantil. Fotógrafo desconhecido, 192?.

Todavia, aparecem. Não apenas aparecem, como suas imagens também circulam. A fotografia acima (Figura 10) é um cartão postal. Ou seja, a imagem foi o produto de um desejo de dar a ver e ser visto. Ao tornar-se pública, as fotografias difundem ideologias, consolidam estereótipos e, sobretudo, hierarquizam o que deve ser visto e, consequentemente, lembrado.

Considerações finais

As imagens, como nos alerta Peter Burke (2017), falam sempre mais sobre quem as produz do que sobre quem elas narram. O ver não se manifesta de forma dissociada aos interesses da classe dominante. Pelo contrário, projetos artísticos são partes fundamentais sem os quais projetos de dominação não poderiam eficientemente executados. As ausências, nesse cenário, explicitam interesses da classe patronal. Em Girona, com a Fábrica Gròber, elas se manifestam de duas formas. A primeira, os materiais advindos com a revolução industrial são enaltecidos. Essas representações compuseram a cena artística das primeiras décadas do século XX. A segunda, grandes planos e planos médios apresentam maquinários enfileirados sem a presença humana, induzindo que máquinas funcionavam autonomamente, ou seja, sem trabalho proletário. Em contrapartida, quando os trabalhadores aparecem, o olhar panóptico se impõe sobre as representações teatralizadas e o desejo por controle da classe patronal evidencia-se. As capturas denunciam o ritmo operário que marcavam seus corpos com a falta de nitidez, tornando suas presenças quase fantasmagóricas.

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Na Zona da Mata de Pernambuco, as representações teatralizadas se perdem na expressiva quantidade de ausências. As fotografias da Gròber e da Usina Central Barreiros se cruzam: são composições plásticas, recorrentes no meio artístico, que valorizam o maquinário, símbolo da “modernidade” e do “progresso”, sem a força que os opera. Os trabalhadores, indesejados pelo olhar patronal, tem seus corpos silenciados dessas representações. Em paralelo, um ideal de modernidade atrelada a consolidação de uma moralidade conferiam aos trabalhadores têxteis sua representação. Suas imagens não apenas eram feitas, como também eram veiculadas através de cartões postais.

Essas ausências e presenças explicitam a prática fotográfica como não apenas uma escolha calculada, mas como parte de um projeto que sustentavam as relações de poder no campo. Explicitam também um paradoxo da aristocracia latifundiária: a necessidade da mão de obra, mas sua concomitante negação.

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Referências

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