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Processo 14049/18.3T8LSB.L1-2 Data do documento 17 de dezembro de 2020 Relator Jorge Leal

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA | CÍVEL

Acórdão

DESCRITORES

Compra e venda > Venda de coisa alheia > Automóvel > Ampliação

SUMÁRIO

I. A eventual não apreciação, pelo tribunal a quo, de factos que se considere indispensáveis para o julgamento do litígio, consubstancia, não propriamente a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, mas fundamento para a intervenção do tribunal ad quem na fixação da matéria de facto, ampliando-a se para tal tiver no processo elementos bastantes, ou anulando a sentença para que essa ampliação seja efetuada pelo tribunal a quo, se a Relação não dispuser dos elementos necessários para esse efeito (art.º 662.º n.º 2 al. c), in fine, do CPC).

II. Essa ampliação da matéria de facto só deverá ser efetuada quando se reportar a factos relevantes para a decisão do pleito, atenta a configuração com que ele se apresente ao tribunal ad quem.

III. O negócio de compra e venda de automóvel furtado é nulo, por falta de legitimidade do vendedor (art.º 892.º do Código Civil).

IV. No caso referido em III, o vendedor (ainda que tenha vendido de boa-fé) não pode opor ao comprador de boa-fé o disposto no art.º 291.º do CC, isto é, uma hipotética consolidação na esfera jurídica do vendedor (e do comprador) da propriedade do automóvel, por via tabular.

V. O disposto no art.º 291.º do Código Civil não é oponível ao proprietário que não tenha intervindo no primeiro negócio viciado, no negócio que está na base do subsequente encadeamento negocial afetado pela nulidade primordial.

VI. In casu, a autora/compradora, confrontada com a apreensão da viatura em benefício do verdadeiro proprietário, não poderia prevalecer-se da proteção conferida pelo art.º 291.º do CC, nada mais lhe restando do que invocar, perante a vendedora, a nulidade do contrato que com esta celebrara.

TEXTO INTEGRAL

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

(2)

RELATÓRIO

Em 12.6.2018 LL instaurou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra G –Automóvel, S.A.

A A. alegou, em síntese, que em 06.11.2015 comprou à R. uma viatura automóvel, marca BMW, pelo preço de € 40 800,00. Sucede que no dia 31.01.2018 o referido veículo foi apreendido, por ter sido furtado na Suíça, estando a decorrer o respetivo processo-crime. A R. prometeu devolver à A. o preço do negócio, mas até agora nada fez. A A. tem tido despesas e transtornos, vendo-se obrigada a alugar um veículo para substituir o aludido BMW.

A A. terminou formulando o seguinte petitório:

“Nestes termos e nos mais de direito, que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, deve a presente acção ser julgada procedente, por provada e, em consequência, ser o negócio jurídico celebrado entre A. e R. ser declarado nulo, condenando-se a Ré a devolver à Autora o preço pago, no valor de €40.800,00 (quarenta [mil] e oitocentos euros) acrescida de juros vencidos e vincendos, contados à taxa legal, desde 06.11.2015 até efetivo e integral pagamento.

Mais deverá a Ré ser condenada, a título de danos emergentes, a pagar à Ré [A.] a quantia de € 9.840,00 (nove mil, oitocentos e quarenta euros), a que acresce a importância mensal de €2.460,00 (dois mil, quatrocentos e sessenta euros) até à data em que ocorrer a restituição à Autora da totalidade do preço pago pela aquisição do veículo de matrícula 82-QA-61.

A R. contestou, suscitando, como questão prévia, a pendência do aludido processo-crime, defendendo que se tratava de causa prejudicial, devendo a instância ser suspensa nos termos e para os efeitos do art.º 272.º n.º 1 do CPC. Alegou que adquiriu o veículo de boa-fé, em Espanha, a quem se apresentou como seu proprietário, descrevendo os pormenores do negócio celebrado com o vendedor, João (…) de seu nome. Considerou que não tendo sido posto em causa o negócio celebrado entre a R. e o João (…), a venda consolidou-se na esfera jurídica da R., pelo que a venda posterior por si efetuada à A. não podia ser nula. Impugnou os danos alegados pela A..

A R. terminou a contestação concluindo pela improcedência da ação, por não provada, e consequente absolvição dos pedidos.

Realizou-se audiência prévia, na qual se considerou não existir a invocada relação de prejudicialidade entre a ação e o mencionado processo-crime, proferiu-se saneador tabelar, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

Realizou-se audiência final e em 12.02.2020 foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:

“Face ao exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e, consequentemente:

A) Condeno a R. a pagar à A. a quantia de 40.800,00€ (quarenta [mil] e oitocentos euros) acrescido de juros vencidos e vincendos, contados à taxa legal, desde 06-11-2015, até efectivo e integral pagamento. B) Absolvo a R. do mais peticionado pela A..

Custas por A. e R. na proporção de 1/5 para a A. e 4/5 para a R. Valor: 50.640,00€”.

(3)

A R. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões (as quais, infelizmente, praticamente se limitam a reiterar o teor das alegações):

DA NULIDADE DA DECISÃO

1.º Na sentença o douto tribunal a quo deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

2.º No caso em apreço o tribunal a quo julgou “Mostra-se provado que o veículo automóvel em causa não era da titularidade da R. vendedora, por ter sido furtado ao seu titular, que não teve qualquer intervenção na venda efectuada à A., pelo que estamos perante venda de coisa alheia.”

3.º Pese embora a ora recorrente compreenda o princípio subjacente à decisão, segundo o qual “ninguém pode transferir para outro um direito que o não tenha como seu.”, o tribunal a quo deixou de se pronunciou sobre questões de facto que poderiam impor uma decisão diversa da que foi proferida.

4.º O tribunal a quo não apreciou nomeadamente em que circunstâncias o ora recorrente adquiriu o veículo, se essa aquisição foi feita de boa fé, há quanto tempo ocorreu essa aquisição, se entre a aquisição e a data da propositura da presente decorreu mais de 3 anos, e se a referida acção foi sujeita a registo. 5.º Pese embora a ora recorrente, tenha alegado na contestação os factos que infra se descrevem, o tribunal a quo absteve-se de se pronunciou sobre esses factos, o tribunal nada disse, não os considerou provados, nem não provados, simplesmente não tomou posição, não podendo entender-se que estava dispensado de o fazer em virtude da solução de direito que entendeu ser a aplicável ao caso, foram alegados os factos seguintes:

“Como alegado pela A., a R. é uma sociedade comercial que se dedica ao comercio automóvel, quer seja através da compra e venda, quer seja através da consultoria automóvel, esta última vertente do negócio assenta numa espécie de mediação automóvel.”

“No âmbito da sua actividade no dia 8 de Abril 2015 a R. foi contactada por João (…) com o propósito deste lhe vender o seu veículo automóvel da marca BMW, modelo 520d Xdrive, com número de quadro (…);” “Depois de analisar a proposta apresentada por João (…), verificar o seu estado de conservação e de tentar apurar o estado do veículo através do seu número de quadro junto do concecionário da marca, cf. doc. 1 que se junta, considerou a proposta apresentada um bom negócio e decidiu comprá-lo por 40.000,00€, cf. doc. 2 que se junta”

“Refira-se que o veículo encontrava-se registado a favor do vendedor (João …) e estava matriculado em Espanha, livre qualquer ónus ou encargos, cf. docs 3 que se junta.”

Em virtude daquele negócio translativo da propriedade a R. passou a ser legítima proprietária e possuidora do veículo em causa nestes autos;”

“Veículo esse que a 27 de Abril de 2015 declarou na alfandega de Lisboa e para o qual requereu matrícula, liquidando as suas obrigações fiscais, cf. doc. 4 a 6 que se juntam.”

“Assim, dúvidas não restam que a R. de Boa-fé adquiriu o veículo em acusa a quem se encontrava inscrito no registo como seu proprietário e por ele pagou o preço que lhe foi solicitado.”

(4)

Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) emitida pela Alfandega de Lisboa a 27/04/2018 até o momento em que foi vendido à A.;”

“No dia 28 de Outubro de 2015 a R. no exercício da sua actividade vendeu o veículo à A. pelo preço de 40.800,00€, facto que apresentou a registo no dia 02/11/2015, requerendo o registo inicial do veículo e em acto continuo registou a favor da A., cf. doc. 7 que se junta.”

6.º Por estas razões entende a ora recorrente que o tribunal a quo violou o disposto no art.º 608 nº 2 do Código do Processo Civil, o qual impõe que “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

7.º Assim, estando o tribunal a quo obrigado a pronunciar-se quanto as questões que lhe foram colocadas, ao não fazê-lo, violou o comando imposto pelo art.º 618 nº 1 al. d), que dispõem que é nula a sentença que “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, nulidade que desde já se argui para os devidos efeitos legais.

IMPUGNAÇÃO MATÉRIA DE FACTO

Factos que deveriam ser dados como provados

8.º O Tribunal a quo na apreciação que fez sobre a matéria de facto, nada diz sobre os factos que infra se descrevem, pese embora se tenha produzido prova suficiente sobre estes factos, os quais deveriam ter sido dados como provados.

9.º A ora recorrente alegou que “Como alegado pela A., a R. é uma sociedade comercial que se dedica ao comercio automóvel, quer seja através da compra e venda, quer seja através da consultoria automóvel, esta última vertente do negócio assenta numa espécie de mediação automóvel.”, “No âmbito da sua actividade no dia 8 de Abril 2015 a R. foi contactada por João (…) com o propósito deste lhe vender o seu veículo automóvel da marca BMW, modelo 520d Xdrive, com número de quadro (…);

10.º Os factos supra mencionados deveria ter sido dados como provados, conforme resulta da certidão junta pelo Ministério público em 8/03/2019, com referência neste processo nº (…).

11.º A ora recorrente alegou também que “Depois de analisar a proposta apresentada por João (…), verificar o seu estado de conservação e de tentar apurar o estado do veículo através do seu número de quadro junto do concecionário da marca, cf. doc. 1 que se junta, considerou a proposta apresentada um bom negócio e decidiu comprá-lo por 40.000,00€, (…)“

12.º O facto referido supra deveria ter sido dado como provado, conforme resulta do documento junto aos autos com a contestação numerado como doc. 2, documento esse que não foi impugnado pelo ora recorrido, bem como da certidão junta pelo Ministério público em 8/03/2019, com referência neste processo nº (…).

13.º A ora recorrente alegou ainda que “Refira-se que o veículo encontrava-se registado a favor do vendedor (João …) e estava matriculado em Espanha, livre qualquer ónus ou encargos, (…)

14.º O facto referido supra deveria ter sido dado como provado, conforme resulta do documento junto aos autos com a contestação numerado como doc. 3 documento esse que não foi impugnado pelo ora recorrido, bem como da certidão junta pelo Ministério público em 8/03/2019, com referência neste processo

(5)

nº (…).

15.º A recorrida alegou que “Veículo esse que a 27 de Abril de 2015 declarou na alfandega de Lisboa e para o qual requereu matrícula, liquidando as suas obrigações fiscais, (…)”

16.º O facto referido supra deveria ter sido dado como provado, conforme resulta dos documentos juntos aos autos com a contestação numerados como doc. 4 a 6, documentos esses que não foi impugnados pelo ora recorrido, bem como da certidão junta pelo Ministério público em 8/03/2019, com referência neste processo nº (…).

17.º “No dia 6 de novembro de 2015 a R. no exercício da sua actividade vendeu o veículo à A. pelo preço de 40.800,00€, facto que apresentou a registo no dia 02/11/2015, requerendo o registo inicial do veículo e em acto continuo registou a favor da A.”

18.º Os factos referidos supra deveriam ter sido dados como provados, conforme resulta do documento junto aos autos com a contestação e numerado como doc. 7, bem como dos documentos nº 1 e 2 juntos com a petição inicial, todos estes documentos não foram impugnados por nenhuma das partes.

19.º Assim, em face do supra exposto dúvidas não restam que os factos alegados pela ora recorrente devem ser dados como provados nos termos que infra se descrevem:

20.º A R. é uma sociedade comercial que se dedica ao comercio automóvel”, “No âmbito da sua actividade no dia 8 de Abril 2015 a R. foi contactada por João (…) o qual tinha como propósito vender o seu veículo automóvel da marca BMW, modelo 520d Xdrive, com número de quadro (…).

21.º Depois de analisar a proposta apresentada por João (…), verificar o seu estado de conservação e de tentar apurar o estado do veículo através do seu número de quadro junto do concessionário da marca, considerou a proposta apresentada um bom negócio e decidiu comprá-lo por 40.000,00€.

22.º O veículo encontrava-se registado a favor do vendedor (João …) e estava matriculado em Espanha. 23.º Veículo esse que a 27 de Abril de 2015 declarou na alfandega de Lisboa e para o qual requereu matrícula, liquidando as suas obrigações fiscais.

24.º No dia 6 de novembro de 2015 a recorrente no exercício da sua actividade vendeu o veículo de matrícula (…) à recorrida pelo preço de 40.800,00€, facto que apresentou a registo no dia 02/11/2015, requerendo o registo inicial do veículo e em acto continuo registou a favor da A.

IMPUGNAÇÃO MATÉRIA DE DIREITO

25.º A ora recorrente não se pode conformar com a decisão, uma vez que considera que o veículo em causa não só não era um bem alheio à data do negócio, como não estavam reunidos os pressupostos que permitiram declarar nulo negócio.

26.º Entende a ora recorrente que, estando em causa um pedido de nulidade relativo à compra e venda de um veículo automóvel, em virtude de alegadamente ter sido vendido um bem alheio, teriam que estar verificados os pressupostos constantes do art.º 291 nº 1 e 2 do Código Civil, para que a nulidade pudesse proceder, o que não ocorre no caso vertente. Por conseguinte, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, violou o disposto no art.º 291 nº 1 e nº 2, art.º 874 ambos do Código Civil, art.º 6 nº 1 al. a), ex. vi, art.º 5 do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro (Código Registo Automóvel) e art.º 7 do DL n.º 224/84, de 06 de Julho (Código do Registo Predial), ex. vi. art.º 29 do Código do Registo Automóvel.

(6)

actividade no dia 8 de Abril 2015 foi contactada por João ..., o qual tinha como propósito vender-lhe o seu veículo automóvel da marca BMW, modelo 520d Xdrive, com número de quadro (…).

28.º Depois de analisar a proposta apresentada por João ... e verificar que o veículo se encontrava registado a favor do vendedor (João ...), decidiu de boa-fé comprá-lo.

29.º Na sequência dessa aquisição o veículo foi colocado à venda no stand da recorrente até ao momento em que foi vendido ao recorrido, o que veio a ocorrer no dia 6 de novembro de 2015, facto que foi apresentado a registo no dia 02/11/2015.

30.º Até a data da propositura da presente acção (12/06/2018), ninguém veio suscitar a nulidade da venda ocorrida entre João ... e a ora recorrente, nem mesmo o recorrido a suscita nos presentes autos, sendo certo que a venda em discussão nos presentes autos é posterior aquela, razão pela qual considera a recorrente que a propriedade do veículo se consolidou na sua esfera jurídica, em virtude de se tratar de uma transação a título oneroso de um bem móvel sujeito a registo realizada de boa fé há mais de 3 anos, sem que tenha sido requerida a sua nulidade.

31.º Em virtude do supra exposto, a recorrente considera que a propriedade do veículo (…), se consolidou na sua esfera jurídica, e por essa razão, no momento em que vende o veículo ao recorrido (06/11/2015) detinha a propriedade.

32.º Acresce que, mesmo entendendo-se que o ora recorrido poderia requerer a nulidade da venda em discussão nos presentes autos sem questionar a validade do anterior negócio, no qual a recorrente adquiriu a propriedade do veículo há mais de 3 anos, não se compreende que estando a presente acção sujeita a registo (facto do conhecimento oficioso do tribunal e condição essencial para que a nulidade pudesse proceder) e não tendo sido registada, não pode a nulidade afectar a venda efectuada pela ora recorrente, cf. dispõe o art.º 291 nº 1 e 2 do Código Civil, sendo este o sentido em que deve ser interpretado e aplicada a referida disposição legal.

A apelante terminou pedindo que, sendo dado provimento ao recurso, fosse julgada nula a sentença e, se assim não se entendesse, fosse a sentença substituída por outra que absolvesse a recorrente do pedido. Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais. FUNDAMENTAÇÃO

As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes:

Nulidade da sentença; impugnação da matéria de facto; nulidade do contrato de compra e venda. Primeira questão (nulidade da sentença)

A apelante alega que a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, na modalidade aí primeiramente referida, isto é, falta de pronúncia sobre questões que o tribunal deveria apreciar.

O art.º 607.º n.º 2 do CPC estipula que “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

(7)

deduzidos, de todas as causas de pedir e de todas as exceções invocadas, assim como de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (cfr. José Lebre Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, p. 737). Como já notava Alberto dos Reis, tal exigência não é desrespeitada se o tribunal não se ocupar com todas as considerações, argumentos ou razões produzidas pelas partes para sustentarem a sua pretensão. O que importa é que o tribunal decida a questão posta (Código de Processo Civil anotado, volume V, Reimpressão, 1984, Coimbra Editora, p. 143; na jurisprudência, v.g., STJ, 02.7.2020, 167/17.9YHLSB.L2.S2, consultável, bem como todos os acórdãos adiante citados, em www.dgsi.pt).

In casu, o pedido formulado pela A. era a declaração de nulidade do contrato de compra e venda de um determinado automóvel, celebrado entre a A. e a R., a consequente condenação da R. na restituição à A. do preço que esta entregara à R. e a condenação desta no pagamento de uma indemnização à A.. A causa de pedir era, no essencial, a circunstância de o veículo vendido pela R. à A. ser um veículo furtado, razão por que o veículo foi apreendido à A. no âmbito de um processo-crime. Por conseguinte, a R. vendera coisa alheia, sendo o contrato nulo.

Na contestação a R., além do mais, alegou que adquirira a viatura de boa-fé, a quem se apresentara como seu dono, tendo as sucessivas transações da viatura ocorrido de forma que a propriedade da viatura se consolidou na esfera jurídica da R., pelo que a venda posterior efetuada à A. não podia ser nula.

Vejamos.

A sentença pronunciou-se sobre os pedidos pecuniários formulados, julgando procedente o pedido de restituição do preço e improcedentes os pedidos indemnizatórios. A procedência do pedido de restituição do preço teve por base a consideração, pelo tribunal a quo, de que a venda objeto da causa (contrato de compra e venda de viatura automóvel celebrado entre a A. e a R.) constituía venda de coisa alheia, nos termos e com as consequências previstas nos artigos 892.º e 894.º n.º 1 do Código Civil. Isto é, a determinação da restituição do preço teve necessariamente por base a nulidade do negócio. Assim o entendeu, aliás, a apelante, conforme resulta das suas alegações. Porém, a verdade é que na sentença o tribunal a quo, por lapso ou por considerar que tal seria desnecessário, acabou por omitir, no dispositivo da sentença, expressa declaração de nulidade do dito negócio. Ora, tal declaração foi pedida pela A. e deve figurar na sentença, sob pena de ficar incompleta e dar origem a dificuldades desnecessárias na posterior transcrição registral do assim decidido.

Nesta parte, existe, efetivamente, vício que deve ser suprido por esta Relação, nos termos da regra da substituição prevista no art.º 665.º do CPC.

Quanto ao mais:

A R. alega que o tribunal a quo não se pronunciou sobre “as questões de facto que poderiam impor uma decisão diversa da que foi proferida” (conclusão 3.ª).

Desenvolvendo a sua ideia, a apelante aduz que “[o] tribunal a quo não apreciou nomeadamente em que circunstâncias o ora recorrente adquiriu o veículo, se essa aquisição foi feita de boa fé, há quanto tempo ocorreu essa aquisição, se entre a aquisição e a data da propositura da presente decorreu mais de 3 anos, e se a referida acção foi sujeita a registo” (conclusão 4.ª).

(8)

indevidamente esquecidas pelo tribunal a quo, com a consequente nulidade da sentença por omissão de pronúncia:

Como alegado pela A., a R. é uma sociedade comercial que se dedica ao comercio automóvel, quer seja através da compra e venda, quer seja através da consultoria automóvel, esta última vertente do negócio assenta numa espécie de mediação automóvel.”

“No âmbito da sua actividade no dia 8 de Abril 2015 a R. foi contactada por João (…) com o propósito deste lhe vender o seu veículo automóvel da marca BMW, modelo 520d Xdrive, com número de quadro (…);” “Depois de analisar a proposta apresentada por João (…), verificar o seu estado de conservação e de tentar apurar o estado do veículo através do seu número de quadro junto do concecionário da marca, cf. doc. 1 que se junta, considerou a proposta apresentada um bom negócio e decidiu comprá-lo por 40.000,00€, cf. doc. 2 que se junta”

“Refira-se que o veículo encontrava-se registado a favor do vendedor (João …) e estava matriculado em Espanha, livre qualquer ónus ou encargos, cf. docs 3 que se junta.”

“Em virtude daquele negócio translativo da propriedade a R. passou a ser legítima proprietária e possuidora do veículo em causa nestes autos;”

“Veículo esse que a 27 de Abril de 2015 declarou na alfandega de Lisboa e para o qual requereu matrícula, liquidando as suas obrigações fiscais, cf. doc. 4 a 6 que se juntam.”

“Assim, dúvidas não restam que a R. de Boa-fé adquiriu o veículo em acusa a quem se encontrava inscrito no registo como seu proprietário e por ele pagou o preço que lhe foi solicitado.”

“O veículo foi trazido para o stand da R. em Lisboa e nele permaneceu em exposição titulado pela Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) emitida pela Alfandega de Lisboa a 27/04/2018 até o momento em que foi vendido à A.;”

“No dia 28 de Outubro de 2015 a R. no exercício da sua actividade vendeu o veículo à A. pelo preço de 40.800,00€, facto que apresentou a registo no dia 02/11/2015, requerendo o registo inicial do veículo e em acto continuo registou a favor da A., cf. doc. 7 que se junta.”

No fundo, a apelante entende que o tribunal a quo não se pronunciou acerca do por si expendido na contestação acerca da questão da consolidação da propriedade sobre o veículo na esfera jurídica da apelante.

Ora, na sentença o tribunal a quo verteu o seguinte (os negritos e sublinhados são nossos): “FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A A. peticiona seja a R. condenada a devolver à A. o preço pago, no valor de 40.800,00€ (quarenta e oitocentos euros) acrescido de juros vencidos e vincendos, contados à taxa legal, desde 06-11-2015 até efectivo e integral pagamento.

Resulta da matéria provada que as partes celebraram um contrato de compra e venda que teve como objecto mediato o veículo automóvel.

A compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, tendo como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço - arts. 874º e 879º do Código Civil.

(9)

É um princípio geral nos negócios que ninguém pode transferir para outro um direito que o não tenha como seu.

Este princípio traduz a impossibilidade do adquirente obter qualquer direito se nenhum direito pertence ao transmitente, nem obter mais direitos do que ele tinha.

Mostra-se provado que o veículo automóvel em causa não era da titularidade da R. vendedora, por ter sido furtado ao seu titular, que não teve qualquer intervenção na venda efectuada à A., pelo que estamos perante venda de coisa alheia.

Com efeito, tal ocorre quando o alienante vende algo que lhe não pertence, e advém da circunstância de o mesmo carecer de legitimidade para a realizar, conforme se dispõe no artigo 892º Código Civil.

Dispõe o art. 894º, nº 1, do Código Civil que, estando o comprador de boa-fé, no caso de venda de bens alheios, o mesmo tem direito a exigir a restituição integral do preço, independentemente da perda, deterioração ou diminuição do valor daqueles bens.

Nada nos autos permite concluir que a A. soubesse que o veículo não era da titularidade da R., aliás a própria R. alega que desconhecia tal circunstância, assim sendo há que concluir que a A. compradora actuou com boa-fé, pelo que tem direito a que a R. lhe devolva o valor do preço por si pago, acrescido de juros contados desde a data do pagamento do preço”.

Parece-nos evidente que o tribunal a quo considerou irrelevantes as razões de facto aventadas pela R. na contestação para sustentar (sem invocação de qualquer norma jurídica) que a titularidade do direito de propriedade sobre o veículo, furtado, se consolidara na sua esfera jurídica. Para o tribunal a quo, a circunstância de o veículo ter sido furtado ao seu titular obstava a que, por algum modo, a R. ficasse legitimada para transmitir à A., por meio do aludido contrato de compra e venda, o direito de propriedade sobre o veículo. Daí a aplicabilidade, ao caso vertente, do disposto no art.º 892.º e, consequentemente, do disposto no art.º 894.º n.º 1 do CC.

De resto, como se verá adiante, para a procedência da ação é irrelevante saber “em que circunstâncias o ora recorrente adquiriu o veículo, se essa aquisição foi feita de boa fé, há quanto tempo ocorreu essa aquisição, se entre a aquisição e a data da propositura da presente decorreu mais de 3 anos, e se a referida acção foi sujeita a registo.”

Quanto à eventual não apreciação, pelo tribunal a quo, de factos que se considere indispensáveis para o julgamento do litígio, tal consubstancia, não propriamente a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, mas fundamento para a intervenção do tribunal ad quem na fixação da matéria de facto, ampliando-a de motu proprio se para tal tiver no processo elementos bastantes, ou anulando a sentença para que essa ampliação seja efetuada pelo tribunal a quo, se a Relação não dispuser dos elementos necessários para esse efeito (art.º 662.º n.º 2 al. c), in fine, do CPC).

Essa será questão a apreciar em sede de impugnação da matéria de facto.

Em suma, com a ressalva da apontada omissão, no dispositivo, de declaração expressa da nulidade do contrato, no mais improcede a arguição de nulidade da sentença deduzida pela apelante.

Segunda questão (impugnação da matéria de facto) O tribunal a quo deu como provada a seguinte Matéria de facto

(10)

1. Em 06-11-2015, A. e R. acordaram que a segunda vendia à primeira que por seu turno comprava, o veículo automóvel da marca BMW, modelo 520d Xdrive, com a matrícula (…) pelo preço de 40.800,00€ (quarenta mil e oitocentos euros).

2. Na sequência do acordado, a A. pagou à R. a quantia de 40.800,00€ (quarenta mil e oitocentos euros) e a R. entregou à A. o veículo automóvel da marca BMW, modelo 520d Xdrive, com a matrícula (…).

3. No dia 31-01-2018, o referido veículo foi apreendido à ordem do Proc. nº (…), a correr termos na 5ª Secção do DIAP de Lisboa por ter sido furtado, na Suíça, conforme consta do Sistema Schengen.

4. A R. não pagou qualquer quantia à A..

5. A R. não entregou à A. veículo de substituição.

6. Por despacho de 16-12-2019, proferido no Proc. nº (…), a correr termos na 5ª Secção do DIAP de Lisboa, foi ordenada pelo Ministério Público a devolução do referido veículo automóvel ao seu proprietário.

Na sentença enunciaram-se os seguintes Factos não provados

a. O gerente da R. comprometeu-se a disponibilizar à Autora uma viatura de substituição.

b. O gerente da R. comprometeu-se a devolver à A. o montante por esta pago pela aquisição do referido veículo.

c. A A. necessita, diariamente, de se deslocar a supermercados, farmácias, hospitais, na área da sua residência, bem como para Lisboa e Sacavém, para auxiliar o marido no seu negócio.

d. A A. despende mensalmente a quantia de 2.000,00€ (dois mil euros) pelo aluguer de veículo automóvel. O Direito

Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

In casu, a apelante insurge-se contra a circunstância de o tribunal a quo não se ter pronunciado sobre alguns factos que a apelante alegara na contestação e que a apelante considera que eram relevantes para a decisão do litígio, conduzindo à improcedência da ação.

Esses factos, segundo a apelante, estão provados por documentos e são os seguintes: 1. A R. é uma sociedade comercial que se dedica ao comercio automóvel”;

2. “No âmbito da sua actividade no dia 8 de Abril 2015 a R. foi contactada por João (…) o qual tinha como propósito vender o seu veículo automóvel da marca BMW, modelo 520d Xdrive, com número de quadro (…)”;

3. “Depois de analisar a proposta apresentada por João (…), verificar o seu estado de conservação e de tentar apurar o estado do veículo através do seu número de quadro junto do concessionário da marca, considerou a proposta apresentada um bom negócio e decidiu comprá-lo por 40.000,00€”;

(11)

4. “O veículo encontrava-se registado a favor do vendedor (João …) e estava matriculado em Espanha”; 5. “Veículo esse que a 27 de Abril de 2015 declarou na alfandega de Lisboa e para o qual requereu matrícula, liquidando as suas obrigações fiscais”;

6. “No dia 6 de novembro de 2015 a recorrente no exercício da sua actividade vendeu o veículo de matrícula (…) à recorrida pelo preço de 40.800,00€, facto que apresentou a registo no dia 02/11/2015, requerendo o registo inicial do veículo e em acto contínuo registou a favor da A.”

Os factos ora em causa foram alegados pela R. na sua contestação.

Porém, na decisão de facto o tribunal a quo não se pronunciou acerca deles – a não ser quanto à realização do negócio entre a A. e a R., que deu como provada.

Estaria, pois, em causa a necessidade de ampliação da matéria de facto.

Porém, essa ampliação só deverá efetuar-se quando se reporte a factos relevantes para a decisão do pleito, atenta a configuração com que ele se apresenta à Relação.

Com efeito, nos termos do n.º 2, alínea c), do art.º 662.º do CPC, sob a epígrafe “Modificabilidade da matéria de facto”, a Relação deve, mesmo oficiosamente, “[a]nular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.

Ora, como se verá adiante, a propósito do regime da venda de coisa alheia, nenhum dos factos em falta é relevante para a decisão do pleito. Com uma ressalva: conforme bem fez notar a R., no registo automóvel foi inscrita a aquisição da propriedade da viatura sub judice a favor da A.. Ora, as decisões finais das ações que tenham por fim, principal ou acessório, a extinção de algum dos direitos sujeitos a registo, estão sujeitas a registo, logo que transitem em julgado (artigos 5.º n.º 1 alíneas a), g) e l), 6.º, alíneas a) e c) do Dec.-Lei n.º 54/75, de 12.02 – Registo de Propriedade Automóvel, com as alterações publicitadas). Sendo certo que os tribunais estão obrigados a promover o registo dessas decisões (cfr. art.º 8.º-B n.º 3, al. a). do Código do Registo Predial, ex vi art.º 29.º do Dec.-Lei n.º 54/75).

Assim, é conveniente que essa atividade registral fique a constar, expressamente, da decisão de facto, sendo certo que se encontra documentada a fls 19 destes autos (documento n.º 7 junto com a contestação).

Pelo exposto, procede parcialmente a impugnação da decisão de facto e, consequentemente, adita-se à matéria de facto provada o seguinte ponto

2.a. “A propriedade do veículo supra referido em 1 e 2 foi objeto dos seguintes registos, na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa:

Registo de propriedade com ap. (…), em 02/11/2015, a favor de “G Automóvel Lda, R (…) Lisboa Registo de propriedade com ap. (…), em 02/11/2015, a favor de LL, (…) Alcabideche.”

Terceira questão (nulidade da compra e venda de viatura automóvel realizada entre a A. e a R.)

Como é sabido, na ordem jurídica portuguesa a transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as exceções legais (art.º 408.º n.º 1 do Código Civil).

(12)

CC).

Assim, o contrato de compra e venda é, nos termos da definição legal, “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço” (art.º 874.º do CC).

A compra e venda tem, como efeitos essenciais, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa, a obrigação de pagar o preço (art.º 879.º do CC).

Ora, se assim é, a aludida transmissão da propriedade sobre a coisa pressupõe que o vendedor é titular desse direito. Vale o princípio do brocardo latino nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet, ninguém pode transferir mais direitos do que aqueles que tem.

Assim se compreende o disposto no art.º 892.º do Código Civil, segundo o qual “[é] nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso.” In casu, provou-se que a R. vendeu à A. um veículo que tinha sido furtado na Suíça. Esse veículo veio a ser apreendido no âmbito do processo crime aberto em Portugal e, por despacho proferido pelo Ministério Publico, foi determinada a sua devolução ao seu proprietário.

Não se provou, nem foi alegado, que a A. tivesse conhecimento, à data da celebração do negócio, da verdadeira proveniência do veículo. Pelo contrário, resulta dos factos alegados e provados que a A. agiu de boa fé. Por isso, é irrelevante que a R., aquando da celebração da compra e venda com a A., tivesse atuado de boa-fé, ou seja, na ignorância, justificada, de que a viatura em causa havia sido subtraída ilicitamente ao seu proprietário. Com efeito, a boa fé do vendedor só releva face ao comprador doloso (2.ª parte do art.º 892.º do CC).

Assim, a A. tinha legitimidade para invocar, como invocou, a nulidade da compra e venda realizada.

Em consequência dessa nulidade a A., compradora de boa fé, tem direito à restituição integral do preço, “ainda que os bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuído de valor por qualquer outra causa” (n.º 1 do art.º 894.º do CC). Está-se aqui em presença de uma especialidade, face à regra geral do n.º 1 do art.º 289.º do CC, nos termos da qual “[t]anto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.

Para obstar à procedência da ação, a apelante invoca o teor do art.º 291.º do CC. Este artigo tem o seguinte teor:

“Inoponibilidade da nulidade e da anulação

1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.

2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio.

3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.”

(13)

retroativo da declaração da nulidade do negócio, face aos negócios subsequentes que nele se encadearam. Assim, protege-se os interesses de terceiros e a segurança do tráfico jurídico.

Contudo, essa proteção só abrange, cumulativamente:

a) Os terceiros que subadquiriram os direitos sobre os bens objeto do negócio declarado nulo, de boa fé, isto é, na data da celebração do seu negócio desconheciam, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável;

b) Negócios que tenham por objeto bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo;

c) Situações em que o registo da aquisição do direito pelo terceiro seja anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio e, além disso, a ação de nulidade ou de anulação não seja proposta dentro do prazo de três anos posteriores à conclusão do negócio.

É uma modalidade de aquisição de direitos por via tabular.

Porém, a jurisprudência tem vindo a defender que esta norma não é oponível ao proprietário que não tenha intervindo no primeiro negócio viciado, no negócio que está na base do subsequente encadeamento negocial afetado pela nulidade ou anulabilidade primordial.

Tal entendimento tem na sua base a ideia de que, perante o proprietário que não tenha tido intervenção no ato que aparentemente transmitiu o seu direito a outrem, o negócio não é nulo, mas ineficaz. Perante o verdadeiro proprietário da coisa, a venda celebrada entre terceiros é, como res inter alios acta, ineficaz ou inexistente. Daí que a nulidade prescrita no art.º 892.º do CC apenas se refere às relações entre o vendedor e o comprador de coisa alheia (cfr. v.g., Paulo Olavo Cunha, “Venda de bens alheios”, ROA, ano 47, 1987, vol II, p.p. 464 e 465; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, volume II, 2.ª edição, 1981, Coimbra Editora, p. 168; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume III, 2016, 11.ª edição, Almedina, p. 99).

Assim, segundo já dizia o STJ em 1979, “[a]o dono da coisa é indiferente que o acto subsista ou se anule e, assim, não havendo em relação a ele qualquer nulidade a invocar, não é de observar o mencionado art. 291º do C.C.” (acórdão de 13.12.1979, in BMJ n.º 284, p. 184, citado por Paulo Olavo Cunha no suprarreferido artigo publicado na ROA – p. 466, nota 106, posição jurisprudencial essa que Paulo Cunha qualifica de “controversa”).

Isto é, o art.º 291.º do CC, como resulta da sua letra, tem em vista situações de nulidade ou de anulação de negócios, vícios respeitantes a contratos celebrados entre terceiros, que não o verdadeiro proprietário da coisa, perante quem os negócios são ineficazes.

Entende-se que “não tendo celebrado o negócio inválido, a que é completamente estranho e sem possibilidade sequer de o conhecer, o verdadeiro proprietário pode, a todo o tempo, antes de completado o prazo de usucapião, invocar a nulidade da alienação de bens alheios, contra qualquer terceiro de boa fé. Nesta situação, o interesse de terceiro de boa fé e a segurança do tráfico não sobrelevariam o interesse do verdadeiro proprietário, não justificando a perda do direito deste” (acórdão da Relação do Porto, 11.4.2013, processo 20071/09.5TVPRT.P1; no mesmo sentido, Rel. de Lisboa, 09.12.2015, 425/13.1TMLSB.L1-2; STJ, 19.4.2016, 5800/12.6TBOER.L1-A.S1; Rel. de Guimarães, 27.10.2016, 1122/11.8TBBCL.G1; Rel. de Lisboa, 18.5.2017, 1374/13.9TVLSB.L1-2; Rel. de Lisboa, 28.6.2018, 363/17.9T8MTA.L1-8; Rel. de Coimbra,

(14)

18.9.2018, 965/15.8T8PTM.C1).

Segundo a Exm.ª Conselheira Maria Clara Sottomayor, que relatou o suprarreferido acórdão do STJ de 19.4.2016, a norma contida no art.º 291.º do CC, inspirada num sistema jurídico como o alemão, em que o registo é rigoroso e constitutivo, não pode assumir o mesmo significado num sistema jurídico como o português, onde o registo tem natureza declarativa e, até recentemente, era meramente facultativo. “Para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro” (citado acórdão).

“A tutela do interesse do proprietário está limitada a um período de três anos decorridos após a conclusão do negócio inválido. A lei pretende, com este prazo, dar uma oportunidade ao verdadeiro proprietário para repor a verdade jurídica material, considerando que, após o decurso do prazo, o seu interesse deixa de merecer protecção. O centro do raciocínio do legislador é o comportamento do verdadeiro titular, justificando-se o sacrifício do direito deste, na sua própria negligência ou inércia em impugnar o negócio inválido, durante um período de três anos, após a sua conclusão» (cf. Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo. A protecção do terceiro adquirente de boa fé, ob. cit.,p. 336)” (citado acórdão do STJ).

“Contudo, esta proteção opera apenas quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa de terceiro adquirente de boa fé. A aquisição a non domino prevista no art. 291.º, n.º 1 do Código Civil não permite que, através da intervenção de um terceiro que obtenha um registo falso ou baseado em títulos falsos, fique sanada a nulidade negocial derivada da cadeia transmissiva assim gerada, pois tal solução seria equivalente a admitir a expropriação do verdadeiro titular que não terá meios para se aperceber da fraude por não ter praticado qualquer negócio jurídico que desse origem à cadeia de negócios inválidos (Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo…ob. cit., p. 481).” (acórdão do STJ citado; no mesmo sentido, cfr. anotação de Maria Clara Sottomayor no Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, p. 726).

No caso dos autos, a A., confrontada com a apreensão da viatura em benefício do verdadeiro proprietário, obviamente que não poderia prevalecer-se da proteção conferida pelo art.º 291.º do CC. Assim, restou-lhe a invocação da nulidade do contrato de compra e venda que celebrara com a R.. E a R., que perante a A. não é subadquirente, mas vendedora, também não pode invocar em seu benefício, perante aquela, o disposto no art.º 291.º do CC.

Face ao exposto, é absolutamente irrelevante, para o sucesso ou insucesso desta ação, a circunstância de ter sido objeto de inscrição no registo automóvel a aquisição do direito de propriedade sobre o automóvel a favor da R. e, depois, a favor da A., assim como o facto de a propositura desta ação não ter sido inscrita no registo automóvel.

A inscrição dos factos jurídicos no registo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (art.º 7.º do CRP). Trata-se, como se sabe, de mera presunção, ilidível (art.º 350.º n.º 2 do Código Civil). Ora, a presunção da aquisição da titularidade do automóvel por parte da R. e, depois, por parte da A., foi arredada, pois ficou provado que o dito automóvel era furtado, não tendo a R. legitimidade para o vender.

(15)

Conclui-se, assim, que a apelação é improcedente.

Transitado em julgado o assim decidido, deverá o tribunal a quo comunicar à Conservatória do Registo Automóvel a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre a A. e a R., sendo certo que o pedido de declaração da nulidade formulado nesta ação faz presumir o pedido de cancelamento do respetivo registo (art.º 8.º, n.º 1, do CRP).

DECISÃO Pelo exposto:

1.º Julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida, sem prejuízo do aditamento que se segue;

2.º Declara-se a nulidade do contrato de compra e venda do automóvel supra identificado nos n.ºs 1 e 2 da matéria de facto, celebrado entre a A. e a R., e consequentemente determina-se o cancelamento da respetiva inscrição registral.

As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo da apelante, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 17.12.2020 Jorge Leal

Nelson Borges Carneiro Pedro Martins

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