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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul 22 a 25 de julho de 2019, Porto Alegre (RS)

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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul 22 a 25 de julho de 2019, Porto Alegre (RS)

CIDADE, SUBJETIVIDADE E CORPOREIDADE

Mosaico urbano: moralidades e possibilidades na cidade a partir de um grupo circense

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RESUMO

O presente estudo parte de uma perspectiva interacionista, utilizando conceitos como região moral (Park) e campo de possibilidades (Velho) para desdobrar um debate sobre a intersubjetividade no meio urbano. Desenvolvendo uma observação participante com um grupo circense, localizado no bairro da Lapa (RJ), o trabalho pretende abordar trânsitos pela cidade, redes de relação e noções de identidade a partir da perspectiva dos participantes do grupo. Objetiva-se, portanto, entender questões relativas ao sentimento de pertencimento grupal, além de abordar temas como fragmentação moral, hierarquias, conflitos e consensos de uma sociedade complexa, partindo da análise de um agrupamento heterogêneo, composto por indivíduos de diversas classes sociais, origens geográficas e formações acadêmicas.

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INTRODUÇÃO

O meio urbano é um dos palcos em que se manifestam as características da sociedade complexa. As interações, relações, trânsitos, trajetórias, entre outros movimentos e aspectos ligados ao corpo social complexo, fazem parte da produção e reprodução observadas na cidade. Insiro, nesse espaço, o indivíduo, sempre em relação ao outro e aos grupos sociais.

Nesse sentido, pergunto: em que medida a cidade cria fronteiras e identidades? Por sua vez, de qual maneira o indivíduo que transita, observa e participa desse cotidiano urbano é influenciado pelo meio e suas diversas singularidades? Essas perguntas, assim como as minúcias que as permeiam, orientam o presente trabalho, que dedicou-se a estudar a temática junto a integrantes da Intrépida Trupe, grupo circense localizado no bairro da Lapa, próximo ao centro do Rio de Janeiro.

A inserção no campo se deu gradativamente, começando em julho de 2018. Em seu início, a participação nas aulas e nos eventos do grupo tinha cunho pessoal, com o estabelecimento de amizades e o exercício de uma atividade física e artística. Ao longo dos meses, contudo, construi um interesse antropológico sobre as interações e relações observadas no espaço da Intrépida, surgindo, portanto, um movimento de contemplar cientificamente o que antes era um ambiente familiar.

Dessa forma, a estruturação do presente estudo ocorre em paralelo a uma trajetória individual de inserção no grupo circense. Em termos práticos, essa posição favoreceu o contato com os integrantes da Intrépida, assim como a realização de entrevistas e a participação nas aulas e eventos do grupo.

Há uma vasta literatura que explora os processos constitutivos, as influências sobre as ações humanas, entre outros assuntos, do meio urbano e da sociedade complexa. Nesse sentido, o presente trabalho articula autores e obras que retratam esses temas, tais como Gilberto Velho, Robert Park, Richard Sennet e Georg Simmel. Pretende-se, dessa maneira, criar uma base teórica que sustente os debates e análises realizadas.

Em um primeiro plano, o trabalho se dedicou a discutir as características do meio urbano e da sociedade complexa, assim como as intersecções entre esses

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conceitos sociológicos. Busquei articular a literatura existente de modo a permitir comparações e sínteses entre diferentes autores, ao mesmo tempo que exploro a densidade dos tópicos.

Ademais, a segunda seção do artigo se debruçará sobre o indivíduo em trânsito nesse cenário. Discuto, portanto, as interações, os fluxos, as percepções e a formação de um ator social em meio à complexidade e urbanidade. Com essa construção cenográfica, pretendo construir um entendimento sobre a relação entre o meio e o indivíduo que o habita.

Em seguida, o estudo realiza uma análise de caso, utilizando as aulas e frequentadores da Intrépida Trupe para discutir e localizar conceitos sobre cidade, sociedade e sociabilidade. Permite-se, dessa maneira, discutir a literatura em referência ao campo, assim como as observações de campo em contraposição à teoria.

O estudo foi construído, parcialmente, por meio de observação participante realizada nas aulas da Intrépida. Fez-se possível, dessa maneira, observar a rotina dos encontros regulares, considerando-se alongamentos, aquecimentos, momentos de relaxamento e movimentos em tecidos, trapézios e liras, além de conversas e demais interações.

Em paralelo à observação, realizei entrevistas semi-estruturadas. Optei por esse método para possibilitar o uso de uma combinação de perguntas abertas e fechadas, o que contribuiu para o engajamento de integrantes da Intrépida em uma conversa fluída e sem grandes entraves sobre a temática da pesquisa. Aqueles que concederam entrevistas contribuíram para uma construção coletiva e aprofundada do conhecimento disposto no artigo.

Isso posto, o presente artigo pretende contribuir para o enriquecimento dos debates na área dos estudos urbanos. Entender os sentidos das individualidades e coletividades na cidade, assim como aquilo que as permeiam, é o que move esse exercício antropológico. Espero, desse modo, construir uma lente ampla e trazer novas perguntas ao campo das ciências sociais.

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O meio urbano, enquanto integrante dos processos sociais, pode ser visto como um corpo organizado de “costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes” (Park, 1979, p. 25) dos agrupamentos humanos. Observa-se que a cidade reflete a sociedade que a habita, passando por seus processos de construção, destruição e modificação, nos sentidos morais e físicos. Nesse sentido, relembro os estudos de Robert Park (1979), que apontam para o espaço urbano como uma expressão moral dos indivíduos, ou seja, a cidade não seria “meramente um mecanismo físico e uma construção artificial”.

É necessário ressaltar que a cidade não é apenas um reflexo da moral humana, mas também um agente influenciador sobre os habitantes de dentro e fora de seus domínios. Segundo Louis Wirth (1979), essa influência da grande metrópole seria um produto da concentração de equipamentos e atividades culturais, financeiras, industriais, administrativas e acadêmicas, assim como de outras áreas. Por sua vez, a referida concentração daria à cidade um poder representado por “suas instituições e personalidades” (Wirth, 1979, p. 92), possibilitando o exercício de “encantamentos” e “sugestões” que serviriam de atrativos aos indivíduos.

A partir das considerações de Park e Wirth, percebe-se um caráter duplo da

cidade. O espaço urbano reflete e constrói a moralidade, fazendo parte do ciclo social enquanto agente e produto. Nessa perspectiva, Wirth (1979) concebe o urbanismo também como um modo de vida, sendo esse um “complexo de caracteres que formam o modo de vida peculiar das cidades”, mas que não é encontrado exclusivamente no meio urbano, apesar de nele ser encontrada sua “expressão mais pronunciada”.

Concebendo a cidade como o principal palco do urbanismo, faz-se necessário defini-la, de modo a explorar com precisão seus aspectos. O meio urbano pode ser concebido como “um núcleo relativamente grande, denso e permanente, de indivíduos socialmente heterogêneos” (Wirth, 1979, p. 95). Entende-se, portanto, que esse espaço contará com diversas expressões morais, fruto da heterogeneidade dos grupos presentes ali, permitindo um trânsito entre diversas moralidades e possibilidades para o indivíduo, o que será posteriormente explorado nesse estudo.

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Faz-se imperativo apontar que a cidade, nos termos tratados aqui, insere-se na sociedade complexa. Em texto presente na coleção ​Um Antropólogo na Cidade​, Gilberto Velho traz uma definição dessa sociedade e explora suas características, como no seguinte trecho:

“...quando me referir neste artigo a sociedade complexa, que tenho em mente a noção de uma sociedade na qual a divisão social do trabalho e a distribuição de riquezas delineiam ​categorias sociais distinguíveis com continuidade histórica, sejam classes sociais, estratos, castas. Por outro lado, a noção de complexidade traz também a ideia de uma ​heterogeneidade cultural que deve ser entendida como a coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas etc. As categorias sociais daí surgidas [...] tendem a articular suas experiências comuns em torno de certas tradições e valores.” (Velho, 2013, p. 88)

Nessa perspectiva teórica, nota-se que a sociedade complexa é marcada pela heterogeneidade de categorias e culturas. Assim, articulam-se dentro dela diferentes tradições e “unidades englobalizantes” (Velho, 2013, p. 62), como instituições religiosas, identidades nacionais e linhagens familiares, que podem ser mais ou menos agentes de coerção e coesão entre os indivíduos. De acordo com Gilberto Velho (2013), o quadro social contaria com uma “multiplicidade de referências, seja em termos de grupos e atitudes”, o que poderia levar “à problemática da fragmentação, para alguns autores um dos indícios da modernidade”.

Já para Wirth (1979), faz-se necessário delinear que “o início do que pode ser considerado marcantemente moderno em nossa civilização é caracterizado pelo crescimento das grandes cidades”. Isso poderia apontar, junto às referências de Velho, para uma correlação entre o começo do que se considera como sociedade moderna e um modelo urbano marcado por classes distinguíveis e que conviviam no mesmo espaço, separadas, principalmente, por uma “acentuada divisão do trabalho” (Velho, 2013, p. 89). Com as devidas atualizações para a sociedade complexa, poderia-se aferir a existência de modelo urbano também marcado pela complexidade social, com destaque para a coexistência, de forma não-isolada, entre grupos e culturas heterogêneas, com uma maior variabilidade quanto a suas origens, passando por questões étnicas, vocacionais, ocupacionais, religiosas, entre outras.

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No que se refere aos efeitos dessa heterogeneidade sobre as interações, faz-se necessária a apropriação de conceitos desenvolvidos por Park em ​A Cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano ​. Nessa obra, Park (1979) argumenta que a organização social, em meio a facilitação das trocas comerciais e das relações industriais, passaria a se basear em “interesses ocupacionais e vocacionais”. Assim, esse contexto, junto à divisão social do trabalho, desembocaria em um processo que “aumenta a interdependência das diversas vocações” (Park, 1979, p. 38) e torna o indivíduo mais dependente “da comunidade que é uma parte integrante” (Park, 1979, p. 38). Formularia-se, então, uma solidariedade social estruturadas em “comunidades de interesses” (Park, 1979, p. 38), que possuem objetos, meios e fins distinguíveis e estão relacionadas à metas da organização industrial e da competição pessoal entre trabalhadores.

Dada essa teorização, torna-se possível a compreensão da passagem de um modelo de sociedade composto por ​unidades englobalizantes para outro construído em volta de ​comunidades de interesses​. Cabe ressaltar que a afirmação acima refere-se, principalmente, ao contexto urbano-industrial das localidades ocidentais. Há de se admitir, nesse sentido, as limitações das teorias articuladas, considerando o tempo e espaço de suas produções e autores.

Dessa forma, o entendimento do meio urbano enquanto espaço permeado pelas comunidades de interesses, nos leva articular esse espaço como suscetível às ações desses grupos e seus indivíduos. Logo, produziram-se expressões urbanas dessas articulações comunitárias, sejam essas nas formas de intervenções físicas ou ocupações temporárias de espaços. No entanto, no que se refere aos conceitos de espaço público e privado, faz-se necessário observar que essas noções estariam em transformação em meio ao processo de urbanização, como apontado por Sennett:

“No entanto, o capitalismo e o secularismo juntos proporcionam apenas uma visão incompleta dos agentes de mudança em ação no domínio público, melhor dizendo, um quadro distorcido [...] A própria expansão de uma cultura urbana estabelecida até o mundo dessas novas forças econômicas e ideológicas as contrabalançou e manteve durante algum tempo uma aparência de ordem, em meio emoções muito dolorosos e contraditórias.” (Sennett, 1988, p. 38)

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Isso significa entender que, com o advento do urbanismo e da sociedade sociedade complexa, as lógicas de ocupação do espaço urbano também seriam modificadas. Os indivíduos buscariam e criariam espaços em que se isolem e se expressem, permitindo uma identificação com características coletivas e uma liberação de seus impulsos individuais. De acordo com Sennett (1988), as pessoas se tornam “mais sociáveis quanto mais tiverem entre elas barreiras tangíveis, assim como necessitam de locais específicos, em público, cujo propósito seja reuni-las”, o que estimula a segregação espacial de acordo com interesses e objetivos. Nesse sentido, se formariam as regiões morais:

“O resultado disso é que, dentro da organização que a vida citadina assume espontaneamente, a população tende a se segregar não apenas de acordo com seus interesses, mas de acordo com seus gostos e seus temperamentos [...] Cada vizinhança, sob as influências que tendem a distribuir e a segregar as populações citadinas, pode assumir o caráter de uma “região moral”. Uma região moral não é necessariamente um lugar de domicílio. Pode ser apenas um ponto de encontro, um local de reunião.” (Park, 1979, p. 63)

Entende-se, portanto, que a cidade pode ser observada a partir das regiões morais e das comunidades e grupos que ali se estabelecem ou transitam. Por isso, é comum vermos zonas urbanas sendo definidas como turísticas, boêmias ou empresariais, pois esses são os usos e classes que predominam naquele espaço. Há, portanto, um processo de identificação ​a posteriori do espaço pela população, que constrói suas características e o designa uma nomenclatura.

É imperativo apontar que essa divisão urbana, assim como suas expressões, podem ser sintomas de uma “exagerada ênfase nas transições psicológicas” (Sennett, 1988, p. 29), uma característica da sociedade complexa. A região moral é o cenário do indivíduo psicológico, que se vê desprovido de instituições tradicionais e com permissão para dar vazão aos “impulsos, as paixões e os ideais vagos e reprimidos se emancipam da ordem moral dominante” (Park, 1979, pág. 64). Assim, percebe-se que o indivíduo isola-se da ordem pública, mas expõe-se na esfera privada.

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A influência do meio urbano e da sociedade complexa sobre o indivíduo, assim como acerca de suas relações interpessoais, é um dos temas extensamente explorados nos estudos das Ciências Sociais. A individualização da experiência de vida, a efemeridade das relações sociais e o trânsito entre moralidades e possibilidades são elementos dessa equação. É, nesse sentido, que necessita-se entender a ascensão do indivíduo em trânsito, como propõe a presente reflexão.

De acordo com Simmel (2005), o indivíduo em meio a vida urbana tem uma “liberdade de movimento para muito além da delimitação inicial, invejosa, e ganha uma peculiaridade e particularidade para as quais a divisão do trabalho dá oportunidade e necessidade”. Essa perspectiva aponta que, nesse contexto, as escolhas e trajetórias individuais ganham notoriedade, superando os limites morais e de papéis estabelecidos por instituições e grupos. As influências limitadoras, contudo, não se extinguem, sujeitando a individualização em certos aspectos, como aponta Gilberto Velho:

“Por outro lado, também nas modernas sociedades industriais individualistas encontram-se dimensões e instâncias desindividualizadoras [...] Em toda sociedade existe, em princípio, a possibilidade da individualização. Em algumas será mais valorizada e incentivada do que em outras. De qualquer forma o processo de individualização não se dá fora de normas e padrões, por mais que a liberdade individual possa ser valorizada. Quando vai de encontro às fronteiras simbólicas de determinado universo cultural - ou as ultrapassa -, ter-se-á então, provavelmente, uma situação de ​desvio com acusações e, em certos casos, estigmatização.” (Velho, 2013, p. 98-99)

Nota-se que a sociedade complexa, mesmo que permeada por uma perspectiva individualista, faz com que o indivíduo se condicione a normas e modos de agir, estando sujeito às consequências das fugas que realizar em relação à hierarquia vigente. Dentro das liberações e limitações do meio urbano e complexo, estabelece-se o “campo de possibilidades”, termo cunhado por Velho (2013) para explicar as ramificações que a biografia do indivíduo podem tomar. A relevância dessa biografia demarca o contexto estudado, com as escolhas possíveis dentro do campo traçando a trajetória individual valorizada pela sociedade.

Nesse sentido, é necessário compreender que o ​campo de possibilidades é “circunscrito histórica e culturalmente, tanto em termos da própria noção de indivíduo como dos temas, prioridades e paradigmas culturais existentes” (Velho,

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2013, pág. 101). A partir das noções conscientes e inconscientes das possibilidades, o indivíduo passa a formular projetos, sendo estes caracterizados pela seguinte noção: “quando há ação com algum ​objetivo predeterminado ​ter-se-á o projeto” (Velho, 2013, pág. 100). Dessa forma, entende-se que o ator social, mesmo tendo sua trajetória e individualidade valorizadas, tem suas experiências e projetos são construídos dentro de circunstâncias limitadoras, ou seja, constrói-se a ideia de um indivíduo livre para escolher dentro do lhe é oferecido e permitido.

Ademais, Velho (2013) destaca que os projetos precisam ser compreendidos pelos seus pares, ou seja, a sua composição passa por elementos objetivos e subjetivos. É possível apontar, nesse sentido, para a exequibilidade dos projetos. Se o indivíduo, no processo de interação e comunicação com os outros atores sociais, não for bem-sucedido, há o risco de observar seu projeto falhar ou, de outra forma, nem ser iniciado.

Compreendendo-se a existência de possibilidades e projetos, pode-se pretender o estabelecimento do indivíduo enquanto unidade fixa e de movimento contínuo ao longo de sua trajetória. Há, porém, que se considerar que o ator social pode transitar e entrar em contatos com diversas unidades englobalizantes, grupos desviantes, projetos de outrem, assim como suas minúcias morais e culturais. Pode ocorrer, dessa forma, a formulação e o abandono de projetos e de participações em grupos sociais, tornando o indivíduo um elemento que circula entre as possibilidades e não traça uma linha reta em sua biografia.

Dentro de um contexto urbano, entende-se que o indivíduo está em contato com um “mosaico de pequenos mundos que se tocam, mas não se interpenetram” (Park, 1979, p. 61). Nota-se que, dentro de um trajetória cotidiana, o ator social pode circular por diversas ​regiões morais​, o que pode levá-lo a reconsiderar as moralidades e possibilidades até então apresentadas. Nessa perspectiva, a trajetória e os projetos do indivíduo devem ser, de certa forma, questionados quanto a sua linearidade.

É, nesse sentido, que Pierre Bourdieu (2006) alerta, também em termos metodológicos, para a utilização e compreensão dos relatos de vida em pesquisas. Assim, faz-se necessário compreender que o indivíduo não é o único elemento de sua trajetória, estando circunscrito às características e aspectos das circunstâncias

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urbano-complexas em que se insere. Em relação às movimentações realizadas pelo indivíduo, diz Bourdieu:

“Os acontecimentos biográficos se definem como ​colocações e deslocamentos no espaço social [...] O sentido dos movimentos que conduzem de uma posição a outra [...] evidentemente na relação objetiva entre o sentido e o valor, no momento considerado, dessas posições num espaço orientado. O que equivale a dizer a dizer que não podemos compreender uma trajetória (isto é, o ​envelhecimento social que, embora o acompanhe de forma inevitável, é independente do envelhecimento biológico) sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado [...] ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis.” (Bourdieu, 2006, p. 190)

A construção do repertório de possibilidades também pode ser vista a partir da perspectiva dos capitais e do ​habitus​, como construídos por Bourdieu em suas obras. Por sua vez, isso significaria adentrar nas minúcias dos capitais social, cultural e econômico conforme dispostos em dado meio urbano. Junto à lente proposta por Velho, poderia produzir uma visão que perpasse o interacionismo e o estruturalismo.

Já no que se refere às relações econômicas e comerciais, o meio urbano pode ser visto como marcado por trocas comerciais e monetárias de curta duração, não sendo necessário o desenvolvimento de laços duradouros e de intimidade para a realização dessas transações. Segundo Simmel (2005), o caráter ​blasé ​em parte se deve à monetarização das relações interpessoais, dado que a moeda torna as diferenças em uma questão quantitativa, suprimindo os aspectos qualitativos. Dessa forma, compreende-se que por meio do elemento contábil dinheiro “chegou-se, na relação dos elementos da vida, a uma precisão, a uma segurança na determinação das desigualdades e igualdades, a uma univocidade nos acordos e combinações.” (Simmel, 2005, p. 580)

Tendo em vista o aspecto contábil das relações na cidade, pode-se aferir o estabelecimento de associações efêmeras que, ocorrendo dentro de comunidades de interesses e regiões morais, não necessariamente desenvolvem identidades em comum entre seus participantes. De acordo com Park (1979), o meio urbano privilegia o surgimento das relações indiretas, ou secundárias, no qual predominam os sentimentos e ideais do indivíduo. Por outro lado, nas relações diretas, ou

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primárias, predominariam a identificação com a coletividade, seja esta de origem familiar ou profissional.

Desse modo, entende-se que o indivíduo organiza seus projetos dentro de um campo de possibilidades marcado, de certa forma, pela monetarização e efemeridade das interações. Nesse cenário, o ator social desenvolve sua trajetória que culmina, por fim, na biografia.

INTRÉPIDA TRUPE (RJ): AFETO, DESCONFORTO E INTEGRAÇÃO

As opções para chegar à Intrépida Trupe são diversas. Descrevo uma delas, justamente a que percorri mais vezes. Embarque no metrô, desça na Estação Cinelândia, caminhe pela Rua Evaristo da Veiga ou Rua do Passeio até avistar o Aqueduto da Carioca, popularmente conhecido como Arcos da Lapa. Mesmo com a visão bloqueada, o prédio da Fundição Progresso é fácil de ser identificado, com seu telhado, varanda e plantas.

Continue sua caminhada por alguns minutos. A localização da Fundição, ao lado do também famoso Circo Voador e logo após os Arcos, é rapidamente alcançável. O prédio, que foi sede de uma fábrica de fogões, conta com várias portas e pode confundir aquele que a queira visitar por uma primeira vez, mas o mistério se desfaz com a primeira abertura em sua fachada azul e verde.

O que foi observado até o momento? Pessoas em situação de rua, turistas, transeuntes em geral. Policiais, funcionários de bares e lanchonetes, frequentadores de clubes e casas de show. Ônibus, carros e motos, com seus diversos destinos e caminhos. Trajetórias, passagens e usos difusos da Lapa. A chegada até o seu destino resvala em diversas possibilidades e individualidades em desenvolvimento pelo espaço.

A Lapa, como descrita acima, apresenta indícios de seu papel de ​praça pública e de ​área de passagem​. De acordo com Sennett (1988), a ​praça seria um espaço entrecruza pessoas e atividades de várias natureza, enquanto a ​área de passagem ​seria aquele espaço que visa o movimento do indivíduo, principalmente em seu automóvel, em direção ao seu destino final. Contrapõem-se, então, duas formas de observar a região, dado que pode ser explorado seu potencial para a

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diversificação, assim como a utilização de suas ruas para se conectar às outras partes da cidade.

Nas entrevistas realizadas ao longo do estudo, observou-se que o espaço da Lapa tinha significados diversos para os integrantes da Intrépida. De acordo com dois deles, aquela região servia, principalmente, como passagem para sua chegada à Fundição e seu retorno para casa. Uma terceira, contudo, apontou ser sentir “turista” naquele espaço, já que morava em outra cidade, mas não observou outros usos que faria da Lapa.

Já adiante, adentrando o prédio da Fundição, avistará uma grande escada, que parece se impor em meio ao ambiente industrial transformado em centro cultural. A entrada do Teatro de Anônimo, à sua esquerda, é o primeiro espaço artístico observável dali. Após subir a escada, as pesadas portas azuis da Intrépida podem ser vistas. Há uma escolha a ser feita, já que pode-se entrar pela primeira, próxima da bancada da secretaria da trupe, ou pela segunda, próxima aos janelões da Fundição e mais utilizada pelos participantes das aulas de movimento aéreo e técnica aérea, cuja rotina será destrinchada neste estudo.

Nesse sentido, observa-se que a Fundição pode ser caracterizada a partir do conceito de ​praça pública​. Em seu espaço, o centro abriga diferentes companhias artísticas, espaços para shows e intervenções e um pequeno mercado. Há, portanto, a diversificação de atividades e pessoas estipuladas pela noção proposta por Sennett.

Já no contexto da aula, em seu início, são realizados os exercícios de aquecimento e alongamento. É comum, nesses momentos, que os alunos se puxem pelos braços, sentem-se uns nas costas dos outros ou afastem a perna de seus companheiros até seu limite. Acostumar-se com a dor, assim como com o contato físico próximo do que, inicialmente, é uma pessoa desconhecida faz parte da construção prática da aula.

Essa aproximação física, em meio às interações face a face, foi observada pelos entrevistados como uma característica importante das aulas. O consentimento coletivo sobre o ato de tocar o corpo do outro distingue a Intrépida dos outros espaços frequentados, como os espaços de trabalho e estudo. Há, nesse aspecto,

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uma aproximação das interações em aula com as ​relações primárias​, dado o “tocar e ver, o contato físico” (Park, 1979. p. 46).

Ao longo das aulas, observa-se que os integrantes afastam-se do “caráter intelectualista da vida anímica” (Simmel, 2005, p. 578) típica dos habitantes do meio urbano. As relações neste ambiente, por sua vez, são marcadas pela quebra do distanciamento físico e emocional que são apontados como elementos da vida citadina. Nas falas dos entrevistados, notou-se que os membros da Intrépida percebem os distanciamentos e as aproximações dos ambientes que frequentam, analisando positivamente o contato íntimo feito ao longo do curso. Observa-se também que o contato foi descrito nas entrevistas como um ato que desmistifica o corpo, retirando o caráter erótico do toque e apático em relação ao limites individuais.

Após o aquecimento e alongamento, é típico que a aula passe a envolver os diversos aparelhos dispostos pelo tablado da Intrépida. Tecido, tecido-marinho, trapézio, lira e corda ficam à disposição do professor, que orienta os alunos nas figuras​, posições demarcadas após uma sequência de movimentos, e na ​sequência​, conjunto de figuras. Observa-se, porém, que a maioria dos alunos se divide entre os tecidos e trapézios.

É necessário notar que, mesmo que o professor forneça orientações e dirija a aula conforme seu planejamento, há uma construção compartilhada ao longo das horas no tablado. Os alunos assumem o papel de orientador em diversas etapas, desde do aquecimento, passando pelos momentos nos aparelhos e ao fim da aula, quando é comum o relaxamento por meio da massagem. Essa flexibilidade dos papéis aponta para a existência de uma hierarquia não-fixa.

Os alunos, em seus depoimentos ao estudo, descreveram a hierarquia de diferentes formas. “Concretas, mas flexíveis” e “flexível e temporária” foram termos utilizados para definir as relações existentes na aula. De acordo com um relato, as hierarquias são pautadas pelos níveis de habilidade, com os alunos mais antigos e com maior repertório se fazendo presentes em um patamar superior nessa estrutura. Essa visão, contudo, não é consenso entre os membros da Intrépida, com a principal hierarquia apontada sendo aquela entre professores e alunos e alunas, assim como entre funcionários administrativos da trupe e professores.

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O presente estudo também buscou compreender como se deu a inserção dos entrevistados no circo e, de forma específica, na Intrépida Trupe. Percebeu-se, dessa forma, que a participação no circo era posterior ao interesse e engajamento em outros atividades artísticas, como dança e teatro. A manutenção ou desenvolvimento de um bom condicionamento físico também apareceu como motivador para a entrada no curso.

Em termos de trajetória de vida, observa-se que o engajamento no circo tem diversas nuances. Há aqueles que veem nele sua atividade profissional, com a participação nas aulas da Intrépida sendo um auxílio para o alcance desses objetivos. Para outros, o desenvolvimento do corpo e a experiência artística são primordiais. Em um caso específico, o entrevistado relatou que começou a participar no circo após fotografar espetáculos circenses, tentando, então, por meio do treino compreender com maior precisão o seu objeto de trabalho.

Percebe-se, dessa forma, que o circo, no caso estudado, não ganha contornos como ​unidade englobalizante​, ou seja, não fornece ideais e objetivos comuns aos seus membros. A participação se dá, principalmente, por motivações de cunho pessoal, sendo, então, a memória e trajetória pessoal aquela mais valorizada. Isso não significa, por sua vez, que uma vez integrado ao grupo, os seus membros não se mobilizem coletivamente em termos subjetivos e objetivos, como é visto a partir da construção compartilhada da aula e do espetáculo de fim de ano.

Nesse sentido, faz-se necessário notar que a participação no circo também mobiliza sentimentos. Em um depoimento, relatou-se que os membros da Intrépida criavam um “espaço de afeto”. De acordo com esse participante, ser bem-recebido no ambiente e desenvolver amizades teria sido essencial para sua continuidade nas aulas.

Um outro participante, oriundo do Nordeste do país, fez depoimento semelhante. Segundo este, a Intrépida teria o ajudado no processo de “integração” ao Rio de Janeiro, já que não possuía amigos ou familiares na cidade quando se mudou devido ao seu emprego. Destacou-se também que esse ambiente entraria em contraponto com seu espaço de trabalho, considerando-se, nesse caso, a influência da flexibilidade hierárquica.

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Já um dos participante mais experientes, por sua vez, relatou que o circo articula-se com o seu “desconforto”. De acordo com sua fala, o desconforto é importante para o seu processo criativo. Logo, exercer atividades novas e fora de seus domínios o motivaria a criar, somando-se a outros fatores desconfortáveis nesse processo.

Nota-se que, a partir desses dados, os indivíduos buscam o desenvolvimento de relações íntimas no meio urbano. Essa busca ocorre com um direcionamento de acordo com os interesses pessoais, sendo relatado, no caso estudado, o engajamento em ambiente ​privado​. Os interesses, em conjunto com as possibilidades​, definiriam o segmento ​privado ao qual o ator social se direciona e se insere.

CONCLUSÃO

Considerando-se as presentes reflexões sobre o indivíduo em meio ao espaço urbano e a sociedade complexa, torna-se perceptível o processo de formação de trânsitos e representações comuns a esse cenário. A demarcação moral da cidade, a valorização da biografia e o afastamento do espaço público são observáveis ao longo do estudo.

Em um primeiro momento, nota-se o meio urbano enquanto expressão moral daqueles em seu interior. Entende-se também que suas influências ultrapassam as fronteiras demarcadas geograficamente, podendo produzir sentidos similares aos vistos em seus habitantes naqueles que estão ao seu redor. No mais, com o desenvolvimento da sociedade complexa e suas características psico-sociais, analisa-se que a cidade passa a expressar o individualismo e a heterogeneidade cultural, articulando, dessa maneira, diferentes ​campos de possibilidades ​e ​projetos em seu interior.

No que se refere ao espaço, percebe-se a partir desse estudo de caso que a cidade é delimitada pelas ​comunidades de interesses ​e pelas ​moralidades​. Os indivíduos expressam-se dentro desses espaços, criando esferas ​privadas e limitadas em que articulam suas personalidades, técnicas corporais e sentimentos.

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Há, portanto, uma decadência do espaço público, visto como um ambiente de distanciamento físico, emocional e de vigilância.

Ademais, o indivíduo em trânsito se move entre esses diferentes ​interesses ​e morais​, articulando, dessa maneira, as ​possibilidades ​e ​projetos que são oferecidos e estruturados ao longo da vida citadina. Nesse sentido, não há uma preocupação do indivíduo em continuar uma tradição coletiva, sendo o ator social e sua biografia os norteadores, de certa forma, das ações. Nota-se que, dado o advento do individualismo, há uma relativa superficialidade e efemeridade das relações no meio urbano. Por consequência, os indivíduos buscam a intimidade na esfera privada, ao mesmo tempo dirigem-se a atividades e espaços que respaldam seus preceitos e objetivos.

A Intrépida Trupe, nesse sentido, serve como palco para essas individualidades, sentidos e objetivos difusos. O tablado reúne, no bairro da Lapa, trajetórias de vida, sentimentos e pertencimentos que não são consensuais, mas que estruturam um grupo e sua rotina. Há espaço para que os indivíduos articulem essas diferenças e, ainda assim, produzam uma intimidade corporal e entendimentos próprios de ​relações primárias​.

Por fim, nota-se que para os entrevistados o circo é um espaço em que, ao contrário de outros ambientes em que transitam, permitem-se sentir a si mesmo e ao outro, em termos corporais e emocionais. Nesse sentido, percebe-se que o indivíduo se utiliza de espaços e segmentos sociais específicos para expressar o que a vida citadina, em grande parte, não permite. Há, portanto, uma fuga do comportamento reservado e afastado, ou seja, uma busca pela aproximação e intimidade em meio a uma trajetória individual.

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BIBLIOGRAFIA

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Referências

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