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Programas públicos e água para agricultores dos gerais de Januária, norte de Minas Gerais 1

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Academic year: 2021

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Programas públicos e água para agricultores dos gerais de Januária, norte de Minas Gerais1

Resumo

Este artigo analisa as consequências das secas e dos programas de abastecimento de água sobre os sistemas produtivos de camponeses tradicionais das comunidades rurais de Araçá e Onça, no vale do rio Peruaçu em Januária, norte de Minas Gerais. Através de pesquisa qualitativa com roteiro semiestruturado constatou-se que as

fontes naturais de água vieram a secar, e a água “natural” foi quase que

completamente substituída pela água “produzida”. Em 2017 dispunham do poço

artesiano comunitário como principal fonte de abastecimento e 90% dos domicílios usavam cisterna de captação de águas de chuvas. Isso implicou em redefinição das práticas costumeiras de lavoura, criação e trabalho doméstico. Mas a situação crítica revelou, igualmente, criatividade e capacidade local de gestão, nesta conexão entre fenômenos sociais, ambientais e demográficos.

1 A pesquisa que originou este artigo foi apoiada por CNPq, Fapemig e Cáritas Diocesana de

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1. Introdução

Os extensos chapadões de areia quartzosa, vegetação de porte baixo e veredas cercadas por buritis, denominados pelos agricultores como “gerais”, ficam na margem esquerda do Alto-Médio rio São Francisco, norte de Minas Gerais. Com abundante cobertura vegetal e fontes de água, ao longo da história os gerais foi abrigo para populações tradicionais, camponeses e pequenos criadores.

Mas, como todo o semiárido mineiro, desde 2012 esta região atravessa uma seca severa: a estação do Instituto Nacional de Meteorologia de Januária indica que a precipitação média anual dos últimos 20 anos foi de 909,48 milímetros; entre 2012/17 ficou em 749,05 milímetros. Além de irregulares, as chuvas se concentraram, e os largos intervalos comprometem o abastecimento, a criação e as lavouras. As secas, associadas à ação humana, liquidaram cursos de água, aumentaram a demanda por abastecimento e motivaram intervenções do Estado e da sociedade civil para regularizar o abastecimento.

2. Métodos

O objetivo deste resumo é analisar as consequências das secas sobre os sistemas produtivos de populações tradicionais dos gerais e os programas de abastecimento. As informações foram pesquisadas nas comunidades rurais de Araçá e Onça, no vale do rio Peruaçu, compreendendo levantamento bibliográfico para fornecer o quadro histórico e socioeconômico da água no Semiárido, em seguida estabelecendo relações com a Cáritas Diocesana de Januária - entidade dedicada ao atendimento de demandas por água dessa população - que lapidou as prioridades de pesquisa, indicou e facilitou a entrada nas comunidades. Daí, foi

criada uma “amostra típica” de “especialistas” tradicionais (Brandão, 1986; Posey,

2001; Laville & Dionne, 1999), reunindo agricultores conhecedores das comunidades para levantar informações, e depois aplicado roteiro semiestruturado a 20% das famílias, com o objetivo de compreender as estratégias para obtenção de água. Por fim, os resultados de pesquisa foram sistematizados e apresentados à comunidade.

3. Resultados e discussão

As secas fazem parte da história do Semiárido brasileiro. Diante da situação crítica que às vezes se agrava, os governos brasileiros, desde o Império,

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“combateram” secas. Andrade (1980), Gomes (2001) e Silva (2006) relacionam secas com programas públicos que compreenderam, por muito tempo, o Semiárido brasileiro como “região problema”. Recentemente surgiu outra concepção: é preciso conviver com a seca ao invés de combatê-la, criando técnicas adaptadas ao meio e concebendo a seca como evento climático que fatalmente acontece a cada 2,5 anos. As comunidades pesquisadas, Onça e Araçá, se localizam em área de transição entre mata e gerais, com moradias concentradas na beira do rio Peruaçu para facilitar abastecimento doméstico, manejo de lavouras e criações. Lavouras costumavam ser feitas nas áreas embrejadas do rio durante o tempo das secas;

essas “vazantes” eram fundamentais para a segurança alimentar. Bovinos eram

criados “na solta” em pastagens nativas nas áreas de terras em comum. Esses camponeses criaram técnicas adaptadas para usar dos recursos da natureza para produzir e viver naquele ambiente.

Na década de 1990, com a queda do nível do rio, surgiram dificuldades para o acesso a água destinada para uso doméstico, para criações e lavouras. Em 1998 o curso da água foi interrompido pela primeira vez; brejos, nascentes e córregos não resistiram às ações antrópicas que se juntaram aos anos de precipitações irregulares. A relação das comunidades com os recursos naturais mudou, e a água “natural” foi substituída pela água “produzida”. Em 2017 dispunham do poço artesiano comunitário como principal fonte de água, que abastecia as famílias na conta justa do uso doméstico e pequeno consumo do “terreiro”; a água para bovinos era cobrada por cabeça. Além disso, 90% dos domicílios recebeu cisterna de placas com capacidade para armazenar 16 mil litros de água de chuva apenas para

consumo doméstico. E metade das famílias dispunha das cisternas “calçadão” e

“telhadão” com capacidade para armazenar 75 mil litros de água da chuva para uso em hortas, quintal e criação de pequenos animais. Poucas famílias, ainda, dispunham de cacimbas, poços e outras fontes de abastecimento.

A escassez das fontes naturais provocou mudanças, analisadas abaixo.

1. Mediações para acesso à água: fontes de água, como o rio Peruaçu e o brejo, desapareceram. Abastecidas pelo poço artesiano comunitário e pelas cisternas de placa, as comunidades passaram a conviver com mediação de agências públicas para ter acesso à água. Essa novidade re-cria a

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possibilidade de viver no lugar, mas altera as relações fundamentais da população com a água, estabelecendo novas normas de uso, redesenhando a vida em comunidade e, às vezes, instituindo relações de dependência que advém do clientelismo embutido na oferta de programas de abastecimento. 2. Limitações para a produção de alimentos: na condição de camponeses,

produtores autônomos, esses agricultores passaram a enfrentar sérias limitações para a produção. Plantavam, usualmente, na estação seca usando

os embrejados; passaram a “arriscar” fazer lavouras na estação das chuvas.

Nos últimos anos os mantimentos foram plantados em menor quantidade e atividades da criação e processamento deixaram de ser realizadas; por

exemplo, produção de rapadura. Apenas o feijão “catador” produz em

quantidade muito à costumeira. Passaram a comprar grande parte dos mantimentos, e um deles resume: “Somos moradores da cidade vivendo na roça. Até pela água, hoje, temos que pagar.” Mesmo assim, todas as famílias entrevistadas afirmaram que plantam todos os anos, mesmo que colham decepções, como disse outro agricultor: “Sou lavrador, minha obrigação é plantar. E colher, se Deus permitir.”

3. Instituição do reuso da água: com a escassez, as famílias rurais ajustaram o consumo de água, e todas as famílias entrevistadas passaram a reutilizar principalmente a água dos banhos, para limpeza da casa ou molhar as frutíferas. Em 50% das residências houve readequação da canalização da pia para pés de frutas. A reutilização diminuiu a pressão de consumo sobre o poço artesiano e conservou águas das cisternas para emergências.

4. Estabelecimento da gestão comunitária: como o poço artesiano abastecia outras comunidades, houve necessidade de negociar um rodízio, alternando a distribuição de água. Surgiram também problemas de pressão na tubulação que deixam desabastecidos moradores do final da linha de distribuição. O poço também tem custos variados (energia, manutenção da bomba e da rede) que força a criação de instrumentos comunitários de gestão e normas de uso da água. A água da cisterna de placas do telhado era destinada apenas para consumo doméstico, mas representava basicamente uma reserva contínua para as emergências relacionadas ao poço artesiano. As comunidades negociaram novas regras para lidar com a água, gerida como recurso escasso, coletivo e de alto preço.

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5. A escassez atinge uma população majoritariamente idosa: neste cenário ambiental do Semiárido e cultural de populações tradicionais, a população que vive essa redefinição de usos e costumes é constituída principalmente por idosos. Isso torna mais difícil a adaptação às limitações para a produção

agrícola – definem-se como agricultores – e sobretudo para a pecuária, que

sempre foi a base da poupança e da prosperidade desses produtores.

Águas produzidas por programas públicos, mas com gestão local; racionalização de uso da água e redução das atividades na agropecuária; agricultores idosos com produção limitada: nesse cenário que certamente se repete em grande parte do Semiárido brasileiro, a situação crítica de escassez de água indica que está ocorrendo rápida redefinição das práticas costumeiras; mas revela também criatividade e capacidade de gestão nesta conexão entre fenômenos sociais, ambientais e demográficos.

4. Referências bibliográficas

ANDRADE, M.C. Terra e homem no Nordeste. São Paulo, Brasiliense, 1964.

ARAÚJO, V.M., RIBEIRO, E.M., REIS, R.P. Águas no rural do semiárido mineiro: uma análise das iniciativas para regularizar o abastecimento em Januária. Organizações Rurais & Agroindustriais, vol. 12, núm. 2, 2010.

BRANDÃO, C.R. O ardil da ordem: caminhos e armadilhas da educação popular. Campinas, Papirus, 1986.

GALIZONI, F.M. Águas da vida: população rural, cultura e água em Minas Gerais. Tese (doutorado), Campinas, IFCH/Unicamp, 2005.

GOMES, G.M. Velhas secas em novos sertões: continuidade e mudanças na economia do semiárido e dos cerrados nordestinos. Brasília: IPEA, 2001.

POSEY, D.A. Interpretando e utilizando a ‘realidade’ dos conceitos indígenas: o que é preciso aprender dos nativos? IN DIEGUES, A.C. e MOREIRA, AC.C. Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo, Nupaub/USP, 2001.

SILVA, R.M.A. Entre o combate à seca e a convivência com o Semiárido: transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento. Tese (doutorado), Brasília, CDS/UnB, 2006.

Referências

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