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O conceito de beatitude e a estruturação do agir ético na segunda parte da Suma Teológica de Tomás de Aquino

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O conceito de beatitude e a

estruturação do agir ético na

segunda parte da Suma Teológica

de Tomás de Aquino

Darlan Lorenzetti*

Introdução

A construção do patrimônio filosófico do mundo ocidental é um processo que se deu de maneira lenta e gradativa no decorrer da his-tória. Entre os problemas que despertaram a interrogação filosófica no homem, os que se referem à ética ocupam um posto de destaque. Ao pensarmos a ética no Ocidente é indispensável que nos remetamos a algumas figuras cuja contribuição para a reflexão acerca deste campo da filosofia foi notável e enriquecedora. O filósofo medieval Tomás de Aquino (1225-1274) é um dos grandes baluartes (quiçá o maior deles) da chamada ética cristã, cuja influência estende-se até os nossos dias.

* Acadêmico do Curso de Graduação em Filosofia no Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE). Artigo originalmente elaborado como requisito de avaliação para a disciplina de Ética I com a orientação do professor Dr. Paulo César Carbonari.

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O projeto de ético de Tomás de Aquino consiste no esforço de in-tegrar e produzir uma síntese harmônica entre os elementos da ética recebidos do Cristianismo, de vertente tipicamente agostiniana, com os pressupostos éticos da filosofia aristotélica. Para tanto, Tomás constrói uma ética que segue o mesmo roteiro fundamental já empreendido por seus antecessores desde a Grécia antiga passando pelos autores cristãos. Os princípios éticos que regem o agir humano são derivados de uma metafísica que tem como pilar as categorias de ordem e perfeição. Para além disso, a ética tem um forte sentido antropológico, de modo que o ato ético e o ato essencialmente humano correspondem um ao outro.

O agir humano coerente e bom é aquele que respeita a hierarquia da criação e compreende a natureza dos fins que o direcionam para algo maior que ele próprio. Temos aí uma teleologia (finalismo) que orienta o homem para um princípio superior supremo e perfeito. Trata-se de uma causa final concernente a toda ação humana e que Tomás cha-ma de beatitude (felicidade) e que num sentido cha-mais profundo é Deus (summum bonum).

Ordem, perfeição e beatitude:

elementos gerais da ética tomásica

Toda e qualquer expressão do pensamento filosófico só pode ser compreendida de maneira lúcida a partir de uma análise que a considere desde seu locus histórico. Olhando para a ética filosófica e, em especial, para a contribuição a ela legada pelo escolástico Tomás de Aquino isto também se verifica. Torna-se clara a noção de que assim como nos de-mais, no pensamento ético tomásico se encontrará compreensão ade-quada e coerente na medida em que levarmos em conta o status quo da filosofia do século XIII, bem como os caminhos por ela percorridos até ali. Tomás encontra-se inserido naquilo que hoje se entende por ética medieval. Para Lima Vaz, “A ética medieval pode ser dividida em duas fases distintas: antes e depois da difusão, nas escolas do Ocidente Lati-no, da Ética de Nicomaco de Aristóteles” (LIMA VAZ, 1999, p. 199). A produção tomásica é uma das expressões filosóficas do segundo período. Passamos a expor, ainda que brevemente, alguns elementos básicos da concepção ética que antecede a Tomás, que é, pois, de caráter fortemente

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agostiniano, e que, inegavelmente, acabou por influenciá-lo diretamente. O conceito de beatitude, caro a Tomás, já em Agostinho encontrou gran-de relevância e consigran-deração. Alvarez Turienzo apresenta um sucinto e inteligente resumo da ética agostiniana, a qual constituiu-se uma grande síntese filosófica e cultural.1

Podemos conceber as ideias éticas de Tomás segundo um conjunto de influências. A primeira delas está acima explicitada. Trata-se, com efeito, de uma corrente que em síntese pode ser entendida como agos-tiniana e que congrega elementos referentes às Sagradas Escrituras à Doutrina da Igreja, à Patrística latina e também ao estoicismo. Lima Vaz, acena para o fato de termos aqui “uma Ética teológica na qual as categorias de origem filosófica são, sobretudo a herança agostiniana de uma linguagem tornada tradicional e à qual não corresponde um esfor-ço de integração orgânica das mesmas categorias no discurso teológico” (LIMA VAZ, 1999, p. 200). Por volta do início do segundo milênio, dá-se no Ocidente a gênese de um novo momento e de uma nova compreen-são. Dois nomes destacam neste período: Anselmo de Cantuária (1033-1112) e especialmente Abelardo (1079-1142). Este último “[...] pode ser considerado o anunciador de uma nova fase da Ética medieval, mas, ao mesmo tempo, assinala o termo da primeira fase que convém justa-mente denominar, do ponto de vista do instrumental filosófico até então utilizado, fase pré-aristotélica” (LIMA VAZ, 1999, p. 204).

Do ponto de vista cronológico, a entrada do pensamento ético de Aristóteles no chamado Ocidente latino se dá mais precisamente a partir

1 “Recordemos como Santo Agostinho usava a razão da filosofia na busca da felicidade. Nisso coincidiam pagãos e cristãos. Também se resumia nisso a sabedoria profes-sada pelos judeus. Porém variam os caminhos pelos quais se vai ao encontro desta meda, o que acaba diferenciando os modos de entender esta meta. É sua maneira de dizer que a identificação do objeto da filosofia – beatitudo- se encontra estreitamente vinculado a outra coisa, e essa cosa é a visão que se tem do mundo, ou seja, uma me-tafísica ou uma sabedoria. O povo judeu se guiava pela promessa messiânica, que co-locava o bem dentro da história. Os sábios gregos derivavam a felicidade do conhe-cimento de um princípio racional que regente do universo. O paradigma básico que ordenava a vida era ali um messianismo profético, aqui, um eudaimonismo realista. A economia da salvação para o cristão se dará com a união destes dois paradigmas: pensando profeticamente o eudaimonismo grego e espiritualmente o messianismo judaico. O naturalismo dos filósofos é interpretado à luz religiosa, e o historicismo dos israelitas à luz da eterna verdade. O novo ponto de vista é uma economia felicitaria da salvação em Deus” (ALVAREZ TURIENZO, 1999, p. 421).

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do século XII, por meio dos expoentes da filosofia árabe, sobretudo Averróis. Neste sentido, um texto aristotélico desempenhará influên-cia decisiva na constituição do espírito escolástico e de uma filosofia que passa a encontrar uma nova gênese. Trata-se da Ética de Nicômaco. Sua primeira versão traduzida para o latim data aproximadamente de 1240. A tradução teria sido levada a cabo pelo bispo de Lincoln, Roberto Grosseteste (LIMA VAZ, 1999).

A influência da Ética de Nicômaco no desenvolvimento do pensa-mento ético medieval a partir do século XIII conheceu, portanto duas direções bem distintas: a teológica, exercendo-se no seio das Faculdades de Teologia e na qual se tornaram prioritários os problemas de compatibilização da ética aristotélica com a tradi-ção ética cristã, sobretudo a procedente de Santo Agostinho; e a filosófica, presente na Faculdade de Artes das Universidades de Paris e de Oxford que tentava recuperar a tradição aristotélicas da eudaimonia corado pela contemplação filosófica [...] Segundo a tradição aristotélica, a Ética tinha por objeto o estudo dos fins da vida humana individual coroados pela eudaimonia (felicida-de), essa residindo superiormente na atividade contemplativa ou teorética [...] (LIMA VAZ, 1999, p. 206).

Ainda no que se refere aos nomes que precedem Tomás de Aquino e que o influenciam consideravelmente, não podemos deixar de fazer menção ao seu mestre Alberto Magno (1206-1280). Homem de grande sapiência, este frade dominicano dedicou-se intensamente à produção de comentários da obra aristotélica, bem como à análise e resolução dos problemas éticos de seu tempo. Conforme salienta Lima Vaz

O pensamento ético medieval deve a Alberto Magno uma mais rigorosa fixação conceptual de algumas categorias fundamen-tais, que irão ser utilizadas e aprofundadas por seu discípulo Tomás de Aquino: o conceito de conscientia para designar os juízos da razão prática; o conceito de sindérese como hábito dos primeiros princípios do conhecimento na ordem moral, coroa-dos pelo princípio supremo, bonum faciendum, malumque

vi-tandum. Alberto Magno é igualmente um elo a ser lembrado na

história do conceito de jus naturale (LIMA VAZ, 1999, p. 209).

A partir da contemplação de todos estes importantes elementos re-cebidos da tradição filosófica ocidental, é que podemos melhor refletir

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sobre o projeto filosófico de Tomás no âmbito ético. Vemos que diante deste pensador impõe-se a desafiadora e imensa tarefa de produzir uma síntese satisfatória e convincente de duas vertentes distintas: o agosti-nismo e o aristotelismo. Dentre suas obras, uma delas destaca-se das demais por sua grandiosidade e genialidade metódica na análise dos problemas. Através da Summa Theologiae, Tomás erigiu um verdadeiro monumento intelectual por meio do qual efetivou e demonstrou toda sua poderosa capacidade de síntese.

A reflexão ética em Tomás de Aquino constitui-se como um ins-trumental a serviço da vida cristã. Deste modo, toda a reflexão de cará-ter filosófico em torno da fé desdobra-se numa reflexão de sentido prá-tico a respeito das condições referentes ao exercício desta mesma fé. O conteúdo essencial no que toca aos elementos éticos contidos na Suma

Teológica está concentrado na sua segunda parte. Contudo, é necessário

que consideremos o fato de que

A especulação filosófico-teológica tomásica da Ia. parte da Summa

Theologiae é o fundamento e o necessário preâmbulo das

admi-ráveis análises sobre a práxis humana e cristã da IIa. parte. Com-preende-se, assim, que os problemas éticos estejam presentes ao longo de toda a obra de Tomás de Aquino e uma reconstituição de seu pensamento nesse campo deveria percorrê-la toda (LIMA VAZ, 1999, p. 212).

Em sentido mais amplo, todo o esforço intelectual de Tomás gira em torno da reflexão em torno de Deus. A filosofia tomásica configura--se, assim, como as demais até então na tradição, como uma metafísica, ou seja, uma investigação especulativa em torno do Ser. Este, na visão cristã, é Deus. Tanto o edifício racional clássico como o medieval tem seu pilar maior e seu sustentáculo nos princípios metafísicos, de modo que todo o restante daí é derivado. A ética em Tomás obedece ao para-digma firmado desde Platão e que perpassou toda a ética cristã por meio de Agostinho, ou seja, consiste em uma ética da perfeição e da ordem.

Essas duas categorias de natureza filosófica mostram-se como fundamentais na Ontologia tomásica, encontram em sua Antro-pologia uma realização exemplar e por conseguinte orientarão em profundidade a construção da Ética. Perfeição e ordem como categorias ontológicas são noções correlativas, pois a ordem não

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é senão a reta disposição dos seres segundo a escala do grau de perfeição que compete a cada um. Essa concepção de ordem [...] é conjugada em Tomás de Aquino com a noção aristotélica de per-feição como ato, e é assim que encontra uma realização privile-giada na ação humana que recebe o selo de sua perfeição [...] ao inserir-se livremente na ordem do universo [...] que é a norma ob-jetiva da ação. Ela é, então, por excelência, ação ética. Ora, a noção de perfeição, sendo logicamente conversível a noção de ser, não é senão outra expressão da noção de bem (LIMA VAZ, 1999, p. 216).

O conceito de ordem numa perspectiva ontológica reclama neces-sariamente a noção de fim. À medida em que a ação ética configura-se como ato humano, ela deve concorrer para a realização do ser humano em seu estado de perfeição enquanto ser dotado de racionalidade e liberdade. Alvarez Turienzo ressalta que “A obra da perfeição reflete a ordem da sabedoria divina – ratio divinate sapietiae-. Há pois uma precedência do conhecimento da verdade sobre o desejo do bem (felicidade)” e põe--se aqui uma salutar diferença, “A filosofia que partia do princípio de que todos desejamos ser felizes (Platão e Agostinho), partirá agora deste outro: todo homem deseja conhecer (Aristóteles e Tomás)” (ALVAREZ TURIENZO, 1999, p. 422). Ao mesmo tempo em que a ontologia prece-de à ética, seguindo esta direção, a ética é concebida prece-desprece-de um núcleo antropológico. Logo no início da primeira parte da segunda parte da

Suma Teológica Tomás apresenta sua concepção de homem:

O homem é considerado como feito à imagem de Deus, expri-mindo imagem, como diz Damasceno, a inteligência, o livre ar-bítrio e o poder sobre si mesmo. Ora, como já se tratou do exem-plar, isto é, de Deus, e do que procede voluntariamente do poder divino, resta considerar-lhe a imagem, isto é, o homem também como princípio das suas obras, por ter livre arbítrio e ser senhor delas (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1025).

Esta ideia que concebe o homem como imagem de Deus (imago

Dei) e criatura, o qualifica, por conseguinte, como um “ser para Deus”.

O homem, na visão tomásica, por ser criatura, encontra-se na depen-dência de sua relação para com Seu criador. Subjazem a esta compreen-são o conceito de ordem e perfeição da criação. A questão do “ser para Deus” instaura aí uma teleologia que faz perguntar a respeito dos “fins” da vida humana. Há de se considerar pois que

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Todo agente (e toda a natureza é agente) opera segundo um fim. A operação teleológica do agente-homem se diferencia por ser rea-lizada racionalmente. Seu agir é consciente, deliberado. Difere o homem dos seres irracionais por ser dominus suorum actum. O homem é dono de seus atos enquanto dotado de razão, dando forma ao seu querer. A vontade é o apetite racional. Os atos racionalmente desejados são os propriamente humanos [...] Ação voluntária é a do agente que age com conhecimento de causa, causa, neste caso, o fim. Este será o lugar de implantação da ética, derivada de um novo conhecimento da física. A ética em questão será inequivocamente teleológica (ALVAREZ TURIENZO, 1999, p. 424).

Abordando a questão do fim último em comum, Tomás apresenta o conceito de beatitude como categoria norteadora de todo o desenvol-vimento de seu raciocínio:

Deve-se aqui tratar primeiro do fim último da vida humana. Em seguida, dos meios pelos quais o homem pode alcançar esse fim ou dele desviar-se: pois é do fim que se deduz a natureza daquilo que a ele se ordena. Ora, como se admite que o fim último da vida humana é a beatitude, necessário é, em primeiro lugar, tra-tar do fim último em comum e depois da beatitude [...] Todos os agentes agem necessariamente para um fim [...]. Ora, para pro-duzir um determinado efeito, necessário é que seja determinado a algo certo com natureza e fim. Esta, determinação, operada na natureza racional pelo apetite racional chamado vontade, o é, nos outros seres, pela inclinação natural denominada apetite natural (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1025-1027).

Antropologicamente falando, o homem é invariavelmente um ser que se diferencia, como vemos, pela posse da vontade e pela capacidade de deliberar livremente. O ato de escolher é permeado por esta teleo-logia que o orienta segundo os diferentes fins. A ideia que permite a Tomás edificar sua ética é justamente a compreensão segundo a qual existe um fim último e um bem supremo e perfeito ao qual encontra--se direcionada a vida humana. Com efeito, “O processo de perfei-ção humana termina no summum bonum. O nome concreto do

sum-mum bonum, assim como do correspondente finis ultimus, será Deus”

(ALVAREZ TURIENZO, 1999, p. 425). A respeito da indagação acerca da existência deste fim último ele assim responde: “Propriamente falando é impossível, em relação aos fins, proceder-se ao infinito, por qualquer

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lado que seja. – Pois, em cousas que constituem por si mesmas uma ordem mútua necessariamente removida a primeira, removidas serão as que dela dependem” (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1030).

A beatitude enquanto fim último da ação do homem que tende a Deus guarda em si uma dupla dimensão: em primeiro lugar constitui--se como coisa mesma, na medida em que “[...] o fim último do homem é o bem incriado, isto é, Deus, que só, pela sua bondade infinita, pode satisfazer perfeitamente a vontade do homem”; em segundo apresenta--se como posse ou uso, pois “[...] esse fim último é algo de criado nele mesmo existente, e que não é senão obtenção ou o gozo do fim último” (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1047).

A natureza ética dos atos humanos

O sistema de compreensão ética construído por Tomás de Aquino guarda profundas e significativas similaridades com o modelo aristo-télico. Assim como nos escritos do “filósofo”, o Aquinatense (como o designa Lima Vaz) estabelece uma ética de cunho teleológico, isto é, orientada para uma causa final. Enquanto Aristóteles apresenta a “ética da virtude”, que se se efetiva na ação, em Tomás existe uma estrutura ética que orienta o homem em sua práxis segundo o horizonte da te-leologia. Tal estruturação está explicitada na segunda parte da Summa

Theologiae. Lima Vaz assim a transcreve:

1. A estrutura do agir ético, integrada pelos seguintes compo-nentes temáticos:

a) O horizonte teleológico bem, fim, beatitude.

b) Os componentes antropológicos do agir ético: conhecimento, liberdade, consciência, paixões, hábitos.

c) A norma objetiva: a lei e a razão reta.

d) A especificação ética do agir: os hábitos virtuosos. 2. A estrutura da vida ética, cujos componentes temáticos são:

a) O fundamento estrutural da vida ética: as virtudes cardeais. b) A unidade orgânica da vida ética: a ordem das virtudes. 3. A realização histórica da vida ética: ação e contemplação,

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É fundamental salientar o dado de que, apesar de o ponto de par-tida de sua ética sejam as noções recebidas de Aristóteles, Tomás busca remodelar isso segundo os referenciais da tradição bíblica e cristã. Tal ponto de emergência “[...] é, por conseguinte, a análise filosófico-teoló-gica da práxis humana racional e livre em sua especificidade ética [...]” (LIMA VAZ, 1999, p. 219). Deste modo, os atos humanos se concretizam como o meio pelo qual caminha-se à beatitude:

Como é necessário, pois, chegar à beatitude por meio de certos atos, é preciso consequentemente tratar dos atos humanos para conhecermos os que a ela conduzem ou dela desviam. Por onde, a ciência moral que versa sobre os atos humanos há-de ser trata-da primeiro, em universal e, em segundo, em particular. Quanto à consideração universal dos atos humanos, há-se primeiro tra-tar deles em si mesmos; segundo dos seus princípios. Ora, desses atos uns são próprios do homem; outros são-lhe comuns com os animais. E, como a beatitude é bem próprio do homem, condu-zem a ela mais proximamente os atos propriamente humanos que os que lhe são comuns com os animais. Portanto, há-se de tratar primeiro dos atos próprios ao homem. Segundo, dos que lhe são comuns com os animais chamados paixões (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1079).

Concebe-se aqui o núcleo antropológico fundamental da ética. O homem, enquanto ser dotado de racionalidade, diferencia-se dos que es-tão abaixo de si na ordem da criação por ser dotado de vontade. Os atos considerados como “atos humanos” referem-se pois aos atos voluntá-rios. A categoria antropológica da vontade é que introduz, consequente-mente, as interrogações de caráter ético acerca do agir humano. Tomás assim a descreve:

A vontade é um apetite racional. Ora, todo apetite só pode de-sejar o bem, pois, o apetite não é mais do que uma inclinação do apetente para alguma coisa; e nada se inclina senão para o que lhe é semelhante e conveniente. Por onde, tudo o que exis-te, sendo enquanto ente e substância um certo bem, necessário é que toda inclinação seja para um bem [...]. Vontade significa, ora a potência mesma pela qual queremos; ora, o ato mesmo da vontade. Se pois, tratamos da vontade enquanto potência, ela se estende tanto ao fim como aos meios. [...] Ora, a ideia de bem,

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objeto da potência da vontade, encontra-se não só no fim mas também nos meios. Se porém, tratamos da vontade enquanto ato, então, propriamente falando, ela só quer o fim” (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1096).

Desde Tomás, a vontade só pode ser pensada em seu estatuto de liberdade. O Aquinatense defende a tese de que a vontade é invariavel-mente e fundamentalinvariavel-mente livre. Ele sustenta e articula este raciocínio recuperando uma expressão largamente utilizada por Agostinho e seus predecessores: o livre-arbítrio (libero arbítrio). Boehner e Gilson, em sua

História da filosofia cristã, entendem a questão a respeito da liberdade

da vontade como “[...] uma das exigências mais elementares da filosofia, e, portanto, não pode ser negada. Se não houvesse vontade livre, os nos-sos atos careceriam ‘ipso facto’ daquele caráter que os torna dignos de louvor ou de repreensão: já não poderia haver questão de moralidade” (BOEHNER; GILSON, 2003, p. 477).

Ao ato humano segue e respeita uma estrutura determinada de graus distintos. Tratam-se de cinco conceitos básicos que correspondem aos respectivos graus de tal estruturação: intenção, eleição, conselho, consentimento e uso.

Acerca da intenção, Tomás discorre na questão XII da segunda parte da Summa Theologiae. Assim a define: “Intenção, como o pró-prio nome diz, significa tender para alguma coisa. [...] Ora, como já se estabeleceu, a vontade move para o fim todas as outras potências da alma. Por onde é manifesto que a intenção é propriamente ato da von-tade” (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1118). Gilson e Boehner assim compreendem a noção tomásica de intenção:

Intenção significa a direção da vontade para uma finalidade: “intentio, sicut ipsum nomem sonat, significat in aliud tendere”. Na intenção a vontade tende ao fim enquanto termo último do seu movimento, e visto que ela quer necessariamente também os meios conducentes ao fim, segue-se que intende o fim e os meios num ato único (BOEHNER; GILSON, 2003, p. 478).

O momento subsequente ao da intenção é o da eleição. Tomás a descreve na questão XIII. “Eleger” é fundamentalmente um ato da von-tade orientado pela razão. Esse assim o diz:

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A palavra eleição inclui algo pertencente à razão ou intelecto e algo pertencente à vontade [...] como é algo manifesto, a razão precede de certo modo a vontade e lhe ordena o ato; a saber en-quanto a vontade tente para o seu objeto conforme à ordem da razão, pois que a virtude apreensiva apresente à apetitiva o seu objeto. Por onde, o ato pelo qual a vontade tende para algo é pro-posto como bom, desde que é ordenado para um fim pela razão, é certo, é um ato de vontade, materialmente; formalmente, porém é ato da razão [...] (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1124).

A eleição enquanto ato volitivo realiza-se através de uma espécie de cooperação entre a vontade e o intelecto. Nela, o intelecto é responsável por propor o elemento material, ao passo que à vontade cabe a função de dirigir e especificar, ou seja, fornecer o elemento formal.

A eleição acontece segundo aquilo que o pensador chama de conselho (questão XIV). Pode-se dizer o conselho coloca-se como instrumental a serviço da eleição.

Como já se disse, a eleição resulta de um juízo da razão relativo ao que se deve fazer. Ora, relativamente ao que se deve fazer há muita incerteza porque os atos versam sobre os singulares con-tingentes, pela variabilidade incertos. Ora, nas coisas duvidosas e incertas a razão não profere o juízo sem uma inquirição prece-dente. Logo, é necessária a inquirição da razão antes do juízo re-lativo ao que se deve escolher. E essa inquirição se chama conse-lho; e por isso o Filósofo diz que a eleição é um desejo do que foi anteriormente deliberado (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1131).

O momento do consentimento leva “[...] à formulação de vários juízos, cada um dos quais nos apresenta a ação como desejável sob cer-to aspeccer-to, fazendo reconhecer nela uma certa bondade” (BOEHNER; GISLON, 2003, p. 478). O consentimento congrega os elementos referen-tes ao raciocínio com a ação prática. Efetivamente,

Consentir supõe a aplicação de um sentido a uma realidade. Ora, é próprio ao sentido conhecer as coisas presentes [...] E como o ato da virtude apetitiva é como que uma inclinação à realidade em si, a aplicação mesma da virtude apetitiva à realidade, enquanto aderente a esta, recebe, por certa semelhança, o nome de sentido, porque experimenta, por assim dizer, a realidade a que adere, en-quanto que nela se compraz. [...] E neste sentido consentir é ato da virtude apetitiva (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1137).

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Como vemos, Tomás compreende o ato moral como uma estrutura como “momentos” ou graus intimamente relacionados e ordenados en-tre si. O agir ético se materializa e ganha conteúdo de ação na medida em que o homem, através de seu intelecto, opera todo um processo de racionalização que antecede à sua ação. Os conceitos de intenção, elei-ção, conselho e consentimento culminam no último ponto da estrutura que é o uso. O uso é a dimensão da operação. Conforme o pensador:

O uso de uma coisa importa na aplicação dessa coisa a alguma operação; e por isso se chama usar de uma coisa a operação pela qual a aplicamos [...]. Ora, à operação aplicamos não só os prin-cípios internos da ação, a saber as potências mesmas da alma ou os membros dos corpo [...] mas também as coisas exteriores [...]. Ora, é manifesto que não aplicamos a qualquer operação as coisas exteriores, senão por meio dos princípios intrínsecos que são potências da alma; e isso é aplica-las à operação (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1141).

O ato humano racionalmente orientado, quando elevado ao seu es-tado de excelência máxima, enfim torna o homem virtuoso. A categoria de virtude é fundamental para a ética tomásica. Ela “[...] define-se como uma disposição ou inclinação (‘habitus’) para agir conformemente à ra-zão. Por onde a virtude é uma perfeição do ato humano” (BOEHNER; GISLON, 2003, p. 479). Pode-se dizer que

[...] a virtude implica a perfeição da potência; e, por isso, a vir-tude de um ser se determina pelo que é ultimamente capaz [...]. Ora, o de que uma virtude é ultimamente capaz de necessaria-mente ser o bem, pois todo mal implica um certo defeito [...] E, por isso, é necessário que a virtude de um ser seja ordenada para o bem. Logo, a virtude humana que é um hábito imperativo, é um hábito bom e operativo do bem (TOMÁS DE AQUINO, 1980, p. 1425).

Ser virtuoso é, portanto, agir segundo o bem na dimensão do há-bito. Tomás subdivide o conceito de virtude em três classes: “[...] inte-lectuais, morais e teologais. As duas primeiras classes correspondem às denominadas por Aristóteles como dianoéticas e éticas. As terceiras são especificamente cristãs: fé, esperança e caridade. Aquelas são naturais; estas sobrenaturais” (ALVAREZ TURIENZO, 1999, p. 427). Dentre as

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intelectuais, diferenciam-se quatro: “[...] o intelecto, a ciência, a sapiên-cia e a prudênsapiên-cia [...] as virtudes morais são três: a justiça, a temperança e a fortaleza [...] Estas três virtudes morais, juntamente com a virtude in-telectual da prudência, denominam-se virtudes cardeais” (BOEHNER; GILSON, 2003, p. 479).

Considerações finais

A obra extensa e imponente, construída segundo um rigor meto-dológico e uma capacidade sintética exímia faz de Tomás de Aquino um dos mais importantes referenciais teóricos da filosofia no Ocidente. Unindo os elementos fundamentais do Cristianismo, recebidos espe-cialmente de Santo Agostinho, e os dados da Sagrada Escritura, com as bases do pensamento de Aristóteles, ele elabora uma nova síntese no campo da ética em seu tempo.

O sistema tomásico de pensamento tem como pressuposto maior uma metafísica do Ser perfeito e absoluto, ou seja, Deus. Os fundamen-tos para a ética tanto como os da antropóloga, são daí extraídos. A obra da criação divina é regida segundo os princípios da ordem e da perfei-ção. O homem enquanto ser feito à imagem de Deus, só será feliz se em seu agir prática respeitar este ordenamento direcionando seus atos para aquele que a causa final de sua existência. Aquele que é o ser em pleni-tude e o sumo bem. Em outros termos, segundo esta teleologia o fim último da vida humana é a beatitude.

O ato humano se estrutura a partir de uma série de passos dis-tintos e integrados que, conjugando a racionalidade e a vontade livre, conduzem o homem para o agir prático. Deste modo, a virtude em To-más constitui-se invariavelmente desde a execução dos chamados bons hábitos, isto é, aqueles que colocam a criatura na direção de seu criador.

Referências bibliográficas

ALVAREZ TURIENZO, Saturnino. La Edad Media. In: CHAMPS, Victória (Ed). Historia de la Ética: de los griegos al renacimiento. Barcelona: Crítica, 1999, v.1.

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BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. Trad. Raimundo Vier. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

LIMA VAZ, H. C. A Ética Medieval: Tomás de Aquino. In: Escritos

de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1999.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Trad. A. Corrêa. 2. ed. Porto Alegre: Sulina; EST; UCS, 1980. (Vol. 3).

Referências

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