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Adriana Conceição de Sousa

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Academic year: 2021

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Adriana Conceição de Sousa

Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise

comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do

bispo Julian de Toledo (século VII)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Comparada.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva

Rio de Janeiro 2012

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Adriana Conceição de Sousa

Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (século

VII)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Comparada.

Banca Examinadora: Prof. Dr.ª Leila Rodrigues da Silva (PPGHC/UFRJ - orientadora) Prof. Dr.ª Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (PPGHC/UFRJ) Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos (UFF)

Rio de Janeiro 2012

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SOUSA, Adriana Conceição de.

Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise

comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae,

do bispo Julian de Toledo (século VII) / Adriana Conceição de Sousa

– 2012.

96 p.

Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História

Comparada, Rio de Janeiro, 2012.

Orientadora: Profª Drª Leila Rodrigues da Silva

1. Reino visigodo

2. Hagiografia e santidade

3. Historiografia medieval

4. Península Ibérica

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Agradecimentos

A cada etapa da vida que se encerra, da vida intelectual inclusive, convém olhar para trás, para os lados, e prestar, pelo menos uma bendita vez, a atenção devida a todos aqueles que contribuíram de algum modo para que as coisas sejam enfim o que são. Não me alongarei muito, e não porque deva pouco ou porque não deva nada ninguém, muito pelo contrário: os aliados neste caminho foram muitos, o valor do seu apoio, inefável. Assim, deixo registradas desde já as minhas desculpas a todos aqueles que infelizmente não citarei e também àqueles que vou citar, porque não vou conseguir oferecer a nenhum deles um agradecimento à altura da gratidão que sinto e que eles merecem.

Em primeiro lugar, à família: pai, mãe, irmão, (futura) cunhada, tios, primada... Sei que foi duro lidar com o mau humor, à intolerância ao barulho, a falta de tempo e disposição pros encontros, pros passeios e para as viagens necessárias. Foi por uma boa causa – espero – e pretendo retribuir-lhes a compreensão com juros.

Devo agradecimentos sinceros também aos colegas “bárbaros” do PEM/UFRJ, valentes graduandos (Juliana Raffaeli, Guilherme Marinho, Nat(h)álias Lacerda e Xavier, Bruno Garcia, Ingrid Assunção, Vanessa, Bárbara, Izabella, Priscila.... esqueci alguém?), companheiros mestrandos (Rodrigo Ballesteiro, Bruno Uchoa, e outros companheiros de martírio pelo PPGHC afora), e inspiradores doutorandos (Rita Diniz, Jaque Calazans, Rodrigo Rainha, Alex Oliveira, Paulo Duarte): suas dicas, seu interesse, sua disposição para o debate intelectual franco – e para um ainda mais franco happy hour no bar da esquina ou piadas non-sense no Facebook, por que não dizer – tudo isso teve uma contribuição inestimável no meu desenvolvimento e na construção desta dissertação. Há muito de vocês nas linhas e entrelinhas dela, acreditem!

E é claro que a pessoa que, a despeito da imensa importância das demais, terá um parágrafo só pra ela será minha grande mentora Leila Rodrigues. Agradeço muitíssimo pela tolerância, pela paciência, pela dedicação, pelas chacoalhadas oportunas e pela sensibilidade incrível para dar os conselhos e as direções que eu precisava sempre que eu as pedia, ou quando eu estava perdida demais até pra conseguir perguntar o que quer que fosse. Eu, como todos os seus orientandos, concluo esta etapa com a certeza de ter entregado a minha alma a alguém que cuidou muito bem dela, obrigada!

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RESUMO

SOUSA, Adriana Conceição de. Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (século VII). Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

Este trabalho tem como foco o discurso que relaciona realeza, santidade e tirania nas narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae, escritas no reino visigodo do século VII. O objetivo é verificar os vínculos que podem ser identificados entre tal discurso e as relações de poder naquele reino romano-germânico, relações que envolviam monarcas, bispos e aristocratas, de uma forma muito mais complexa do que a ideologia da centralização e do consenso defendida pela monarquia e pelo episcopado visava sugerir.

Discute-se aqui o modo como conflitos entre reis e aristocratas, entre reis e bispos, entre reis, bispos e aristocratas, no caso das duas narrativas selecionadas para análise, são representados de acordo com um esquema que resumia todas essas divergências, suas diferentes naturezas e motivações, a um único embate: a oposição entre Virtude e Vício, entre fé e impiedade. Demonstramos como tal discurso serve a estratégias ideológicas de legitimação no interior das disputas políticas que permeavam a Igreja e o reino visigodos, estratégias levadas a cabo pelo monarca no primeiro dos casos, pelo arcebispo de Toledo no segundo.

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ABSTRACT

SOUSA, Adriana Conceição de. Realeza, santidade e tirania nas narrativas visigodas: uma análise comparativa da Vita Desiderii, do rei Sisebuto, e da Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (século VII). Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

This work focuses on the discourse that relates royalty, holiness and tyranny in the narratives Vita Desiderii and Historia Wambae, written in the seventh century Visigothic kingdom. Our goal is to verify the connections that can be identified between this discourse and the power relations in the roman-barbarian kingdom; relations involving monarchs, aristocrats and bishops, in a much more complex way than that which the ideology of centralization and consensus held by the monarchy and the bishops sought to suggest.

We discuss how conflicts between kings and aristocrats, between kings and bishops, between kings, bishops and aristocrats are represented, in the case of the two selected narratives, according to a scheme that summarized all these struggles, their different natures and motivations, to a single collision: the opposition between Virtue and Vice, between faith and impiety. We demonstrate how such discourse serves the ideological strategies of legitimacy within the political disputes that permeated the Visigothic Church and realm, strategies carried out by the monarch in the first case, and by the Archbishop of Toledo in the second.

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Índice

APRESENTAÇÃO...1

CAPÍTULO 1: CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS ...3

1.PROBLEMÁTICA E HIPÓTESES DE TRABALHO...4

2.CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS...7

3.CONSIDERAÇÕES SOBRE A DOCUMENTAÇÃO...11

CAPÍTULO 2: DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA ...17

1.MONARQUIA E REALEZA NA IDADE MÉDIA...18

2.CONSIDERAÇÕES SOBRE A VITA DESIDERII...24

3.CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTORIA WAMBAE...33

CAPÍTULO 3: AS RELAÇÕES DE PODER NO REINO VISIGODO DO SÉCULO VII E A CONSTRUÇÃO DA VITA DESIDERII E DA HISTORIA WAMBAE ...38

1.AS RELAÇÕES DE PODER NO REINO VISIGODO DOS SÉCULOS VI E VII: ASPECTOS DAS ASSOCIAÇÕES E CONFLITOS ENTRE REIS, ARISTOCRACIA E EPISCOPADO IBÉRICO...39

1.1.ASPECTOS DO PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MONARQUIA VISIGODA TOLEDANA...39

1.2.SISEBUTO E A TEORIZAÇÃO POLÍTICA DE ISIDORO DE SEVILHA (570-636) ...45

1.3.REBELIÕES NOBILIÁRQUICAS NO REINO VISIGODO APÓS A MORTE DE SISEBUTO (621-693)...49

1.4.DISPUTAS DE PODER EM TORNO DA MONARQUIA, ATIVIDADE CONCILIAR E O PAPEL DE JULIAN DE TOLEDO...54

2.ANÁLISE DOCUMENTAL...58

2.1.HUMILDADE E VERDADE CONTRA SOBERBA E FALSIDADE...59

2.2.RESPONSABILIDADE EM CORRIGIR OS PECADOS E O DEVER DA MISERICÓRDIA...64

2.3.MANIFESTAÇÕES DIVINAS EM FAVOR DO SANTO E DO REI...73

2.4.MANUTENÇÃO DA ORDEM, DA PAZ E DA LEGALIDADE CONTRA A VIOLÊNCIA E A DESAGREGAÇÃO.78 CAPÍTULO 4: CONCLUSÕES ...87

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Apresentação

A pesquisa que aqui se apresenta visa dar continuidade ao trabalho por nós desenvolvido desde a graduação, também sob orientação da professora Leila Rodrigues da Silva, em que nos preocupávamos com o modo como as concepções de realeza cristã em vigor no reino visigodo interferiram na construção da hagiografia Vita Desiderii, do rei Sisebuto. No mestrado, ampliamos o alcance de nossa prévia problematização, à luz das propostas metodológicas da História Comparada, inserindo na discussão a narrativa historiográfica Historia Wambae, redigida pelo bispo Julian de Toledo, em fins do mesmo século VII.

Como demonstraremos, a metodologia comparativa possibilitou-nos refletir sobre a construção dos dois textos em uma perspectiva relacional, que nos permitiu reconsiderar prévias conclusões e pressupostos tanto a respeito dos documentos quanto do contexto político-ideológico no qual ambos se inserem, isto é, o da aproximação entre monarquia visigoda e episcopado ibérico, e suas implicações políticas, ideológicas e discursivas, ao longo do século VII.

Objetivando, assim, analisar as relações estabelecidas entre realeza, santidade e tirania nos discursos presentes nas narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae, a dissertação estruturar-se-á da seguinte forma:

No primeiro capítulo, teceremos considerações introdutórias destinadas a apresentar nossos objetos de estudo, problemáticas de pesquisa, objetivos e hipóteses, bem como os conceitos e metodologia que orientaram o estudo dos nossos documentos, cuja inserção tipológica também receberá atenção.

No segundo capítulo, exporemos nossa discussão bibliográfica divida em três itens: um primeiro dedicado a uma seleção de estudos voltados à monarquia e realeza na Idade Média, com destaque para estudos voltados aos reinos romano germânicos; um segundo item discutindo estudos voltados de forma parcial ou específica à Vita Desiderii; e, por fim, um terceiro item avaliando estudos dedicados à obra de Julian de Toledo e à Historia Wambae.

O terceiro capítulo é dividido em duas partes. Na primeira, com auxílio da historiografia, trataremos dos diferentes aspectos das relações de poder no reino visigodo do século VII que interferiram direta ou indiretamente na produção da Vita Desiderii e da Historia Wambae. Discutiremos o processo de conversão e cristianização

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da monarquia e suas associações, por um lado, à atividade conciliar e à organização eclesiástica, e por outro, aos conflitos entre reis e aristocracia registrados ao longo daquele século. Na segunda parte, será exposta a nossa análise documental que, como indicamos anteriormente, estruturar-se-á em torno de quatro eixos-temáticos comuns a ambos os textos, a partir dos quais realizamos o procedimento de comparação.

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1. Problemática e hipóteses de trabalho

O objeto desta pesquisa são os discursos e ideologias de afirmação da monarquia visigoda no século VII tal como se apresentam em duas narrativas elaboradas no período: a Vita Desiderii, escrita pelo rei Sisebuto (610-621) no ano de 615 aproximadamente, e a Historia Wambae, do bispo Julian de Toledo (680-692) na década de 680.

Temos em vista que os discursos produzidos ao longo do século VII visando a legitimação da posição dos monarcas visigodos possuíam como característica comum a valorização do seu papel como soberanos cristãos e de sua vinculação com o episcopado.1 Entendemos que uma aproximação comparativa entre os mencionados documentos nos permite refletir sobre o modo como tal característica se manifesta em uma forma particular assumida por tais discursos: referimo-nos à atribuição de sentido a eventos ocorridos em um passado recente, seja por meio de uma obra hagiográfica, como a Vita Desiderii, seja por meio de um relato cronístico, como a Historia Wambae, bem como da associação que seus autores buscam estabelecer entre esse passado e o presente que vivenciam. Cabe ressaltar que aspectos dos dois textos permitem-nos deduzir que o público pretendido provável dos textos fosse a própria aristocracia hispano-visigoda, em particular seus elementos letrados.2 Convinha, pois, a proposição de modelos direcionados a esse segmento social em particular, modelos que contemplassem os projetos de poder e sociedade da monarquia e do episcopado toledanos.

A Vita Desiderii narra a trajetória do bispo Desidério de Vienne desde seu nascimento até a sua morte por assassinato, em 607, que, na versão que o rei Sisebuto dá aos eventos, teria sido encomendado pela rainha Brunequilda e por seu neto, o rei merovíngio Teuderico II, que governavam a região da Burgúndia na época. Destaca-se aqui o papel negativo que é atribuído aos monarcas, cuja atuação no comando do reino é

1 Questões referentes a esse processo de aproximação deverão ser tratadas com mais detalhe na primeira

parte do capítulo 3.

2 Além das características inerentes aos gêneros literários a que pertenciam, faz-se necessário lembrar que

tratam-se de textos escritos em língua latina, a qual, no caso da população visigótica, estudiosos sugeriram não ser a língua utilizada para comunicação cotidiana. Cf. HEN, Yitzhak. Literacy and orality – the place of the written word in Merovingian Gaul. In: ____. Culture and Religion in Merovingian Gaul. A.D. 481-751. New York: Brill, 1995, p.21-42. p.25. Como será apontado no capítulo 2, e conforme a historiografia já indicou, Desidério de Vienne, santo que protagoniza a Vita Desiderii, nunca foi objeto de culto na Península Ibérica, o que nos leva a crer que embora Sisebuto possa ter colaborado com a promoção da devoção ao santo na Gália merovíngia, a produção e difusão da hagiografia em questão no reino visigodo atendia a outros propósitos.

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contraposta todo o tempo ao papel desempenhado por Desidério em sua diocese, e corresponde a uma inversão do ideal de monarca cristão proposto pelo bispo Isidoro de Sevilha (560-636) em obras escritas durante o reinado do rei visigodo autor da narrativa.3

Já a Historia Wambae, de Julian de Toledo, escrita em fins da década de 680, trata de acontecimentos ocorridos no início do reinado do rei visigodo Wamba (672-680), desde sua eleição, logo após a morte de seu antecessor Recesvinto (653-672), até a repressão, em 673, da rebelião nobiliárquica liderada pelo dux Paulo na Septimania, única região da Gália que ainda fazia parte dos domínios da monarquia visigoda toledana. O texto destaca positivamente a atuação de Wamba frente à “tirania” do concorrente. Entretanto, note-se que, tendo o relato sido produzido após o reinado de Wamba, que teria renunciado ao trono por força de uma manobra aristocrática que contou com a participação do próprio bispo Julian,4 o texto possivelmente tinha como foco menos a atuação pessoal daquele soberano, do que uma valorização dos reis de Toledo em geral,5 e, acrescentamos, a defesa de um ideal de boa conduta régia, devidamente reforçado pela contraposição a um personagem identificado com o oposto desse mesmo ideal.

Ressaltemos ainda as diferenças entre os contextos de produção de cada uma das narrativas no que diz respeito ao processo de fortalecimento da autoridade da monarquia no reino visigodo. O reinado de Sisebuto começa em 612, no início do século VII, e pouco mais de duas décadas após a conversão de Recaredo e da aristocracia goda ao cristianismo niceno – acontecimento que formalizaria a aliança entre rei, aristocracia e o episcopado ibérico.6 Já o reinado de Wamba é marcado pelas conseqüências do avançado processo de regionalização do poder no reino,7 processo do qual a própria rebelião dos aristocratas da Septimania seria uma decorrência.

3 MARTIN, José Carlos. Une nouvelle édition critique de la « Vita Desiderii » de Sisebut, accompagnée

de quelques réflexions concernant la date des « Sententiae » e du « De uiris illustribus » d’Isidore de Séville. Hagiographica, Firenze, n. 7, p. 127-80, 2000. p. 134-140.

4 O bispo presidiu o XII Concílio de Toledo (681), responsável pela oficialização da deposição de

Wamba. Cf. FRIGHETTO, Renan. Religião e poder no reino hispano-visigodo de Toledo: a busca da unidade político-religiosa e a permanência das práticas pagãs no século VII. Iberia, Logroño, n. 02, p. 133-150, 1999. p. 140.

5 GARCIA HERRERO, Gregório. Julian de Toledo y la realeza visigoda. Antigüedad y Cristianismo,

Murcia, n. 08, p. 201-255, 1991. p. 202. O autor também defende que a narrativa teria sido escrita durante o reinado de Ervígio.

6 COLLINS, Roger. La España Visigoda. Barcelona: Crítica, 2005. p. 64.; CASTELLANOS, Santiago.

Los godos y la cruz. Recaredo y la unidad de Spania. Madrid: Alianza, 2007. p. 235-267.

7 FRIGHETTO, Renan. O problema da legitimidade e a limitaçao do poder régio na Hispania visigoda: o

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Nosso objetivo nessa dissertação será, portanto, o de comparar a construção dos personagens na Vita Desiderii e na Historia Wambae tendo em vista sua relação diferenciada com as ideologias de legitimação da monarquia visigoda. Tais ideologias passam a ser elaboradas e defendidas no âmbito da produção intelectual identificada com o episcopado hispano-godo, ao longo do período que sucede a conversão oficial da aristocracia ao cristianismo niceno em 589.

Entendemos que a produção de discursos por parte do episcopado, ou mesmo dos próprios monarcas, visando a proposição de uma interpretação, ideologicamente orientada, de eventos do passado, era de capital importância para os grupos comprometidos com o projeto político de fortalecimento da monarquia visigoda em função do significado que a história, naquela época, possuía para a atribuição de sentido à realidade presente.8

Nosso problema fundamental diz respeito primeiramente às questões que levaram, num primeiro caso, um rei visigodo, Sisebuto, a escrever uma hagiografia em que detentores do poder político desempenham o papel de antagonistas, ao enfrentarem um bispo e, num segundo caso, levaram o bispo de Toledo, Julian, a ocupar-se da narração de eventos envolvendo uma rebelião nobiliárquica que, apesar do pouco impacto que teve na organização eclesiástica e da ausência de qualquer motivação religiosa nas ações dos rebelados, foi dotada de um sentido eminentemente providencialista, exposto nos termos de uma contraposição entre fé e impiedade. Nossa hipótese mais geral para solucionar o problema é a de que Vita Desiderii e Historia Wambae contêm em si discursos referenciados, de distintas formas, em uma ideologia que, no reino visigodo do século VII, tornava indissociáveis o poder e a legitimidade dos reis e o seu respectivo grau de comprometimento com Deus e com a Igreja.

A Vita Desiderii relacionar-se-ia com a referida ideologia no sentido de que apresentaria uma proposta de delimitação das fronteiras que distinguiriam os bons dos maus reis, tendo como critério suas virtudes e sua relação com o episcopado.

8 KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae: sobre a dissolução do topos na história moderna em

movimento. In: ___. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006. p. 43. Neste capítulo, Koselleck trata de, dentre outras questões, a importância do topos ciceroniano historia magistra vitae no período que antecede a era moderna, a qual, em seu entendimento, seria marcada por uma leitura da história que se distinguiria daquela da Antiguidade e da Idade Média na medida por perceber o futuro como superação necessária do passado e do presente ou, para usarmos os termos cunhados pelo autor, pelo afastamento progressivo do horizonte

de expectativa em relação ao espaço de experiência. A relação entre a reflexão deste autor e a análise do

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A Historia Wambae, por sua vez, visa emitir juízo sobre a violência aristocrática contra os monarcas toledanos, apontando para as diferenças que marcariam as ações de legítimos reis cristãos e as dos tiranos que lhes contestavam – diferenças situadas todas no âmbito da fé, das virtudes e do favorecimento divino.

Mas ainda seria necessário responder à questão sobre o porquê do recurso às narrativas para veicular tais idéias. Temos como pressuposto o de que o recurso às narrativas, fossem elas de cunho hagiográfico ou historiográfico, servia à difusão das concepções propostas pela elite político-religiosa do reino visigodo. Narrativas como a Vita Desiderii e a Historia Wambae apresentam conceitos expostos a partir de sua concretização histórica, sua materialização no tempo. A materialização dos princípios propostos pela monarquia e pela parcela do episcopado que defendia seus interesses, no caso dos documentos considerados, seria identificável para seus autores tanto na vida e no martírio de Desidério de Vienne, como no desenrolar da guerra entre o rei Wamba e o duque Paulo.

A fim de demonstrar tais hipóteses, nosso estudo deverá orientar-se em função de determinados objetivos específicos. O primeiro será o de sintetizar, a partir da produção historiográfica, os principais aspectos do processo de associação entre monarquia e episcopado no reino visigodo desde fins do século VI. Em seguida, analisar comparativamente as narrativas Vita Desiderii e Historia Wambae, observando o modo como valores cristãos aparecem associados ou dissociados de dados personagens, eventos e outros elementos presentes nos textos.

2. Considerações teórico-metodológicas

A noção de ideologia que utilizamos é aquela que se refere a um “sistema de crenças característicos de certos grupos ou classes sociais, compostas por elementos tanto discursivos como não-discursivos. [...] se aproxima da noção de uma ‘visão de mundo’ no sentido de um conjunto relativamente bem sistematizado de categorias que fornecem um ‘arcabouço’ para a crença, a percepção e a conduta de um grupo de indivíduos”.9

No entendimento de Terry Eagleton, as ideologias podem apresentar-se tanto como conjuntos de crenças destinados a orientar a ação política,10 quanto como

9EAGLETON, Terry. Ideologia – uma introdução. São Paulo: UNESP, 1997. p. 15-16; 18; 29-30; 49.

10 Ibidem. p. 53-55. Eagleton parte da definição segundo a qual ideologia consistiria em uma “luta de

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discursos em que interesses sociais são não apenas expressos mas também “racionalizados”.11 A racionalização, neste caso, envolve a tentativa de oferecer explicação ou justificação para comportamentos ou concepções que, de outro modo, podem ser alvo de questionamento e crítica. Desse modo, a ideologia se associa intimamente à noção de legitimação, que Eagleton define como o “processo pelo qual um poder dirigente vem a assegurar de seus sujeitos, pelo menos, uma anuência tácita à sua autoridade”, por meio de recursos discursivos, entre os quais podemos mencionar a afirmação da universalidade e da naturalidade de determinadas idéias e práticas que se querem legitimadas.

As noções que Terry Eagleton apresenta, em sua proposta de síntese a respeito dos debates intelectuais em torno da noção de ideologia, contribuem com a nossa reflexão na medida em que nos permitem avaliar como as ideologias de legitimação do poder monárquico em voga no reino visigodo se manifestam nas narrativas que selecionamos para análise, a partir da identificação de como as “estratégias ideológicas” se apresentam nos textos. Considerando a presença de discursos12 legitimadores, avaliamos ser pertinente o desenvolvimento de uma análise pautada na construção desses discursos, principalmente no aspecto que é o do recurso à referência ao passado e sua associação com o presente ao qual os autores se dirigem, isto é, com as questões políticas em voga nos contextos de produção das narrativas.

No que diz respeito à perspectiva comparada, referenciamo-nos nas propostas de Jürgen Kocka, em que a comparação em História é definida como a discussão de “dois ou mais fenômenos históricos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenças de modo a se alcançar determinados objetivos intelectuais”.13 Consideramos que um estudo comparativo pode contribuir significativamente para a compreensão do fenômeno que é a construção de discursos em torno da realeza e da monarquia no reino visigodo. Kocka assinala que um dos benefícios da História Comparada é a

11 Ibidem. p. 56-58.

12 José Luiz Fiorin define discurso como “uma unidade no plano do conteúdo, o nível do percurso

gerativo do sentido em que formas narrativas abstratas são revestidas por elementos concretos.”. FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2011. p. 45. De acordo com o autor, tributário dos estudos marxistas, “os discursos materializam representações ideológicas”, desse modo, analisar discursos constitui o meio fundamental para o estudo das próprias ideologias. Cf. FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. 6ª ed. São Paulo: Ática, 1998. p.34.

13 KOCKA, Jürgen. Comparison and Beyond. History and Theory, n. 42. p. 39-44, fev/2003. p. 39.

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possibilidade de “esclarecer os perfis de casos singulares, frequentemente de apenas um único caso, ao contrastá-lo com outros”.14

Alinhando-nos a esta perspectiva, entendemos que a metodologia comparada pode nos permitir refinar a compreensão não apenas sobre as duas narrativas em si, ou os seus contextos de produção em particular, como também sobre as suas possíveis relações e conexões no que tange à sua inserção na produção intelectual destinada ao fortalecimento, no plano ideológico, da monarquia visigoda toledana. A comparação nos permite problematizar não apenas a forma como um mesmo processo político interfere na elaboração de discursos distintos tipológica e diacronicamente, como também discutir como um mesmo tema (no nosso caso, a dimensão política das virtudes cristãs) pode sofrer variações condicionadas não apenas por características inerentes aos gêneros literários a que cada texto pertence, mas também por interesses sociais dos autores e seus respectivos interlocutores políticos.

Nossa metodologia de análise baseou-se nos conceitos expostos por José Luiz Fiorin sobre semântica discursiva e a função dos temas e figuras na construção de sentido do texto.15 O procedimento básico consistiu em identificar temas presentes nos textos, as figuras e elementos que fazem referência a eles e analisar suas relações de sentido. Em termos mais específicos, analisamos as figuras presentes nos textos (personagens, ações, acontecimentos, caracterizações etc.) e por meio delas chegamos aos temas/sentidos fundamentais de cada texto, tais como santidade, pecado, legitimidade régia etc.. Comparando os temas de cada texto e suas contraposições, chegamos a uma "configuração discursiva"16 mais genérica, na qual ambos os textos poderiam ser inseridos, no caso de nossas narrativas, a contraposição entre “Vício” e “Virtude”.

Os elementos presentes nos textos podem então ser analisados tanto em relação à temática interna a cada texto, quando em relação à temática geral que engloba os dois. Na exposição de nossa análise, no capítulo 3, os temas e contraposições foram estruturados na forma de quatro itens, aos quais reis, tiranos e homem santo foram associados a cada um dos temas de diferentes formas.

14 Ibidem.p. 40.

15 FIORIN, José Luiz. op. cit. p. 89-118.

16 Configurações discursivas se referem a temas genéricos o suficiente para se apresentar em vários

discursos distintos (ex: amor, morte, infância, Bem, Mal, etc.). Cf. Ibidem. p. 107. Analisar uma configuração discursiva, nesse sentido, implica em não apenas avaliar como dado tema aparece em dado discurso, mas analisar as variações de tratamento que esse tema recebe em vários discursos distintos.

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Para expor o procedimento em detalhe: durante a leitura dos documentos, primeiramente observamos os diversos elementos que compõem a narrativa. Em seguida verificamos as isotopias, isto é, a possibilidade de inserção de um determinado conjunto de elementos em uma ou mais dadas categorias temáticas, em ordem crescente de abstração. Ex: a referência a misericórdia do santo, na Vita Desiderii, foi inserida em uma primeira categoria que denominamos “santidade”, a qual por sua vez pode ser inserida em uma configuração discursiva mais ampla, que é a da “Virtude” e suas diferentes manifestações.

O procedimento de análise documental da Historia Wambae assemelhou-se com o adotado quanto à Vita Desiderii, isto é, a partir dos temas identificados na narrativa, realizamos uma decomposição do texto, partindo dos temas mais gerais (contraposição entre Vício e Virtude ou, neste caso, entre o universo da Legitimidade e o da Ilegitimidade) para os mais específicos (como, por exemplo, humildade, misericórdia, etc. ou perjúrio, covardia, etc.), aos quais associaremos referências selecionadas do texto.

Embora na Historia Wambae, a contraposição mais explícita seja a que opõe legitimidade régia e tirania, aqui entendida como obtenção e exercício ilegítimo do poder político, utilizaremos para reunir os elementos positivos e negativos no texto as categorias Virtude e Vício, respectivamente. O motivo é que, como demonstraremos posteriormente, Julian de Toledo opõe legitimidade e tirania em termos de uma oposição entre retidão moral e pecado, assemelhada a que podemos encontrar nos relatos hagiográficos.

A escolha por essa abordagem metodológica se justificaria, no caso de nossa pesquisa, pois, de acordo com supracitado autor, “o nível dos temas e das figuras é o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. Com efeito, não é nos níveis mais abstratos do percurso gerativo que se manifesta, com plenitude e nitidez, a ideologia, mas na concretização dos valores semânticos”.17

Análise semântica e análise comparativa foram associadas em nossa leitura, de modo a permitir a identificação de padrões e relações de sentido comuns, bem como para que identificássemos diferenças, que pudessem ser associadas a especificidades das fontes ou de seus respectivos contextos de elaboração. A metodologia utilizada foi fundamental para nossa argumentação, pois propiciou a identificação das confluências

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discursivas existentes nos documentos, que apontam para o interesse de ambos os seus autores de filiar-se a diretrizes ideológicas, vinculadas por sua vez a dado consenso estabelecido conjuntamente pela monarquia e pela Igreja. Além disso, nos permitiu identificar as diferenças também presentes no teor dos referidos discursos, as quais, por sua vez, apontam para a existência, no seio daquele grupo político e social que correspondia à corte e ao episcopado toledano, de perspectivas e posicionamentos variáveis em relação àquele prévio consenso.

3. Considerações sobre a documentação

Como já mencionamos, os dois documentos selecionados para o desenvolvimento de nossa problematização são a Vita vel passio Sancti Desiderii (conhecida também simplesmente como Vita Desiderii), escrita pelo rei Sisebuto, e a Historia Wambae Regis, do bispo Julian de Toledo. Do ponto de vista formal, os dois documentos pertencem a duas tipologias distintas: um se trata de uma narrativa hagiográfica e outro pertence ao gênero das historiae. Ao passo que o segundo gênero possui uma tradição que remonta à Antiguidade Clássica greco-latina, sofrendo transformações significativas ao ser integrado à diversificada literatura produzida pelas lideranças cristãs, o primeiro começa a se desenvolver já durante os últimos séculos da Antiguidade romana, no contexto do surgimento do culto à memória dos mártires do cristianismo.

A hagiografia se define como o conjunto de escritos concernentes aos santos ou à santidade, bem como a área da teologia dedicada ao estudo da santidade – esta conhecida também como hagiologia.18 Os escritos hagiográficos podem pertencer a gêneros literários diversos – narrativas, sermões, poemas, epígrafes etc. – sendo que o aspecto que os define como textos propriamente hagiográficos é o propósito de perpetuar a memória dos santos e de edificar moralmente o público leitor/ouvinte, estimulando os cristãos a imitar o exemplo dos santos e mártires. Assim, a literatura hagiográfica constituiu-se em um importantíssimo veículo de difusão de modelos de conduta cristã durante a Antiguidade e a Idade Média.19

18 GOULLET, Monique. Introduction: saints et hagiographie. In : WAGNER, Anne (org.). Les saints et

l’histoire : sources hagiographiques du haut Moyen Âge. Paris : Bréal, 2004, p. 14.

19 VELAZQUEZ, Isabel. Hagiografia y culto a los Santos en la Hispania Visigoda: aproximación a

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Ela guarda proximidades com vários estilos literários da Roma pagã como as historiae, os panegíricos, e as biografias.20 O historiador Peter Brown aponta que umas das características mais peculiares do mundo clássico tardio (também chamado por ele de Civilização da Paidéia) é o fato de que a exemplaridade costumava ser buscada muito mais em indivíduos do que em instituições e outras entidades mais genéricas, o que fica comprovado pela força retórica que possuía a referência a heróis, heroínas ou a grandes intelectuais e governantes do passado.21

A recorrência destes tópicos em um grande número de textos produzidos entre os séculos IV-VIII e, às vezes, também em textos posteriores pode ser associada a uma outra idéia trazida por Peter Brown. Quando este autor destaca a “inovação” do discurso hagiográfico cristão em relação ao pensamento clássico: a santidade, sendo concebida como imitatio Christi e/ou repraesentatio Christi, difere-se do discurso pagão tradicional na medida em que os santos e mártires cristãos tornam contemporâneos os exemplos do passado; em outras palavras, o santo/mártir é visto e cultuado como o próprio Cristo tornado presente por meio da vida de um fiel.22 Cristo era eterno, o que permitia a ele ser enviado a todas as eras e todos os lugares por meio de seus eleitos, eles mesmos exemplos da grande potencialidade do primeiro modelo de humanidade: o Adão antes da queda, natureza humana perfeita porque criada “à imagem de Deus”.23 Tal “inovação”, entretanto, pode ser relativizada, já que a “antiguidade” permanece como referência, comprovando a existência de simbiose entre a cultura clássica e a teologia judaico-cristã.

Os santos são distribuídos pelos historiadores entre algumas categorias. A primeira forma de santidade a ser reconhecida pelas comunidades cristãs é a dos mártires, que surgem inicialmente no período das perseguições aos cristãos pelo Império romano (séculos II e III); com o fim da hostilidade oficial, o martírio passa a ser associado a outros tipos de ação religiosa, como às missões de evangelização ou aos conflitos protagonizados por bispos e líderes laicos.24 É nesta categoria que podemos inserir o bispo Desidério de Vienne, que protagoniza a Vita Desiderii. Peter Brown indica também que um dos papéis desempenhados pelos santos no imaginário cristão tardo antigo e medieval era o de permitir que os fiéis fizessem uso dos acontecimentos

20 Ibidem. p. 33-40.

21 BROWN, Peter. The Saint as Exemplar in Late Antiquity. Representations, Berkeley. n. 2, p. 01-26,

1983. p. 02-03.

22 Ibidem. p. 06-08. 23 Ibidem, p. 07, 19. 24 Ibidem, p. 08-09.

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presentes nos textos hagiográficos para atribuir sentido às suas próprias ações e experiências pessoais, bem como para julgar a de outros.25 Esta forma peculiar de conceber o conteúdo dos textos hagiográficos, no nosso entender, tornava uma narrativa como a Vita Desiderii bastante conveniente à difusão de um projeto político-ideológico como o proposto pela produção intelectual eclesiástica dos anos posteriores à conversão oficial do reino visigodo, em 589, que influencia diretamente a elaboração da obra de Sisebuto.

Sobre a produção historiográfica cristã, na qual podemos inserir a Historia Wambae, ela possuiria quatro finalidades principais, segundo E. Sánchez Salor: 1) finalidade testemunhal, ou seja, a de oferecer evidências da interferência divina no curso dos acontecimentos no mundo terreno; 2) finalidade edificadora, que aproxima essa literatura das narrativas hagiográficas, a ponto de o autor inseri-las também na categoria “historiografia”; 3) finalidade apologética, isto é, a defesa da fé cristã contra eventuais detratores; 4) finalidade “terapêutica” (sic), a menos recorrente, por meio da qual seus autores visariam oferecer consolo ao seu público em situações de crise, pela referência à glória de tempos passados.26 Sobre a historiografia visigoda em particular, Sanchez Salor aponta para a forte influência da obra de Paulo Orosio no elemento providencialista presente nessas narrativas.27

Paul Merritt Basset, tratando de uma obra em particular desse gênero produzido no reino visigodo, o Chronicon, de Isidoro de Sevilha, comenta que esta, ainda que tenha sido redigida sob forte influência de escritos anteriores de autores como Eusébio de Cesárea e Agostinho, teria sido a primeira a narrar uma pretensa “história universal” como uma linha singular de acontecimentos, em que o sagrado e o profano confluem progressivamente à medida que o cristianismo se expande. A história universal, assim entendida, se confundiria com a história da Igreja universal – ao passo que as heresias seriam caracterizadas pelo seu restrito alcance. O autor também menciona, ao comentar as leituras da historiografia factualista a respeito das crônicas e historiae isidorianas, o problema de elas serem avaliadas em função do seu grau de (in)exatidão, ao invés de terem considerados os seus propósitos ideológicos,28 traço que, como demonstraremos

25 BROWN, Peter. Enjoying the saints in late antiquity. Early Medieval Europe, 9 (I), p. 01-24, 2000. p.

19-22.

26 SÁNCHEZ SALOR, Eustáquio. El providencialismo en la historiografía cristiano-visigótica de España.

Anuario de Estudios Filológicos, Extremadura. v. 05, p. 179-192, 1982.. p. 179-180.

27 Ibidem. p. 180.

28 BASSET, Paul Merritt. The use of History in the Chronicon of Isidore of Seville. History and Theory,

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no próximo capítulo, identificamos também em boa parte da historiografia que faz menção a Vita Desiderii e a Historia Wambae.

A respeito das contribuições do historiador Reinhart Koselleck à reflexão sobre a escrita da história, podemos mencionar uma que possui particular importância para a leitura que temos de nossa documentação, pois trata da influência do pensamento agostiniano na apreensão cristã da história:

“O que foi decisivo para Santo Agostinho – e que vale para todas as tentativas de transformar as doutrinas da Idade do Mundo em determinações históricas do tempo – foi o fato de que as doutrinas da Idade do Mundo eram concebidas de tal maneira que se acreditava que, depois do nascimento de Cristo, vivia-se a última delas. Desde então não poderia acontecer mais nada de novo, pois o mundo se encontrava sob a perspectiva do Juízo Final. O sexto aetas é o último e, portanto, estruturalmente idêntico a si mesmo. Com isso, Santo Agostinho colocava-se em dupla vantagem. Empiricamente, nada mais poderia surpreendê-lo, mas do ponto de vista teológico, tudo era inédito e renovado [...] Desse modo, Santo Agostinho esboça um horizonte para a

civitas terrena, dentro do qual formula uma série de regularidades que, em sua estrutura formal, delineiam as condições de um possível movimento histórico.”29

Tais considerações nos permitem analisar uma narrativa hagiográfica como a Vita Desiderii e uma historia como a Historia Wambae a partir de um eixo comum interpretativo comum, já que esta perspectiva agostiniana, que insere passado e presente em uma estrutura única dentro do plano divino, marcando a experiência do tempo e da história na Antiguidade cristã e na Idade Média, influencia a construção de ambas as narrativas. Ou, como Santiago Castellanos indica no caso específico das hagiografias visigodas, essas narrativas consistiam em tentativas de seus autores de interferir, criando ou controlando, uma dada memória social em construção. Tratava-se de uma forma de fabricar consenso e unanimidade em contextos nos quais diferentes interesses, posições de poder, e concepções a respeito do passado se viam em conflito.30

A Vita Desiderii se encontra conservada em seis manuscritos, que estão distribuídos entre diversos arquivos espanhóis, entre os quais o da Biblioteca Nacional, em Madrid (códices 590, 1346, 13085, 18735/29), o do El Escorial (códice b.III.14), e o da Biblioteca Capitular de Toledo (códices 27-24). Todos os manuscritos, produzidos ao longo dos séculos XVI-XIX, têm como base, direta ou indireta, um manuscrito que fazia parte do famoso códice ovetense, pertencente ao bispo Pelayo, datado do século

29 KOSELLECK, Reinhart. História, histórias e estruturas temporais formais. In: ___. Op. cit. p. 128. 30 CASTELLANOS, Santiago. The Significance of Social Unanimity in a Visigothic Hagiography: Keys

to an Ideological Screen. Journal of Early Christian Studies, Baltimore, v.11, n.03, p. 387-419, 2003. p.395, 418.

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XII, e atualmente perdido. O manuscrito do códice ovetense é o mais antigo, até o ponto que conhecemos, que incluía a Vita Desiderii. Entre as edições existentes, encontramos três, a saber: a de E. Flórez, de 1751; a de B. Krusch, de 1896; e duas de J. Gil, de 1972 e 1991, respectivamente.31

Os manuscritos da Historia Wambae se encontram conservados em códices armazenados na Catedral de Toledo, na biblioteca da Catedral de Narbona, códice este conhecido como “códice narbonense”, em Madrid (Academia de la historia G-1 e A-189; e BN. 1376)), na biblioteca capitular de Segorbe (G-1), e em Toledo (BC 27-26). Entre as edições que já foram produzidas, podemos mencionar: uma de E. Flórez (século XVIII), do Cardeal Lorenzana (reeditada por P. Migne em sua Patrologia

Latina), e uma de W. Levison, na Monumenta Germaniae Historica.32

Em nossa pesquisa, utilizaremos uma tradução da Vita Desiderii e da Historia Wambae para o castelhano, elaboradas por Pedro R. Diaz y Diaz, da Universidade de Granada, e publicadas em 1993 e 1990, respectivamente.33 Para observações mais apuradas, contaremos ainda com o apoio das edições latinas presentes na Monumenta

Germaniae Historica, de B. Krusch e W. Levison.34

Em suma, neste capítulo delimitamos as questões que nos ocupam na dissertação. Tais questões são relativas ao modo como a construção de duas narrativas produzidas no reino visigodo do século VII relaciona-se com as relações de poder envolvendo monarquia, episcopado e aristocracia no reino visigodo e com estratégias ideológicas utilizadas pelos dois primeiros com vistas a privar de legitimidade a emergência de pólos de poder alternativos, representados em geral na figura de aristocratas rivais e opositores da centralização política e religiosa em torno de Toledo. Contamos para isso com as possibilidades do método comparativo, que nos permite aproximar textos com perfis tipológicos e temporais distintos, no caso uma narrativa hagiográfica e uma narrativa histórica separadas por um período de aproximadamente

31 MARTIN, José Carlos. Una revisión de la tradición textual de la Vita Desiderii de Sisebuto. Emerita,

64, n. 02, 1996, p. 239-248.

32 MIRANDA CALVO, José. San Julian, cronista de guerra. Anales Toledanos, Toledo. v. 03, p.

159-170, 1971. p. 05.

33 DIAZ Y DIAZ, Pedro R. Tres Biografías latino medievales de San Desiderio de Viena (traducción y

notas). Fortunatae, La Laguna, nº 05, p. 215-252, 1993. e JULIAN DE TOLEDO. Historia del Rey Wamba. Trad. e Notas de Pedro Rafael Diaz y Diaz. Florentina Iliberritana, v. 1, p. 89-114, 1990.

34 KRUSCH, Bruno (ed.). Vita vel passio Sancti Desiderii a Sisebuto Rege composita. In: ______ (org.).

Monumenta Germaniae Historica. SS rer. Merov. (vol. I). Hannover, 1896. p. 630-637. e LEVISON, W. (ed.). Historia wambae regis auctore iuliani episcopo toletano. In: Ibidem. v. 05, p. 486-535.

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sete décadas, e estabelecer parâmetros de análise capazes de evidenciar relações e associações entre os documentos até então não consideradas, e rever sua inserção em uma conjuntura social e política mais ampla.

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Considerando a importância que as questões relacionadas à monarquia e à realeza assumem em nossa dissertação, bem como às referentes à Vita Desiderii e à Historia Wambae, dividimos este capítulo em três blocos: um primeiro dedicado a uma seleção de estudos voltados à monarquia e realeza na Idade Média, com destaque para estudos voltados aos reinos romano germânicos; um segundo bloco discutindo estudos voltados de forma parcial ou específica à Vita Desiderii; e, por fim, um terceiro avaliando estudos dedicados à obra de Julian de Toledo e à Historia Wambae.

1. Monarquia e realeza na Idade Média1

No início do século XX, Fritz Kern (1915) já ia além da perspectiva que identifica nos governantes germanos uma política de caráter puramente patrimonialista e personalizado, apontando que é apenas no Antigo Regime que a dignidade régia se torna um dom pessoal (e não mais familiar) e que durante a maior parte do período medieval e mais ainda nos primeiros séculos dele, predominava a concepção que via o direito legítimo ao trono como oriundo de três bases: laços dinásticos, providência divina e a vontade do povo.2 No que tange a essas três bases, o autor identifica a primeira como uma herança germânica, a segunda como fruto da influência eclesiástica e a terceira como relacionada a conceitos tradicionais da burocracia/magistratura romana.

Com relação à associação entre monarquias e Igreja, Kern ressalta a importância que os rituais de sagração assumiram ao longo do período medieval no sentido de oferecer sustentação institucional à ascensão de soberanos cuja legitimidade pudesse ser objeto de contestação por parte de seus pares, mas ressaltando que ela sempre seria apresentada como uma confirmação divina de um direito secular existente.3 O autor identifica uma íntima relação entre as sagrações e a noção da realeza como ofício, o que serviria à Igreja para impor uma série de obrigações ao governante, mas que, no entendimento de Kern, termina servindo basicamente para assegurar direitos, mais que para estabelecer deveres.4

1 Distinguimos, genericamente, monarquia como instituição régia ou forma de governo centralizada na

figura do rei, e realeza como a condição ou função real, relativa à pessoa do monarca.

2 KERN, Fritz. Kingship and Law in the Middle Ages. Westport: Greenwood, 1985. p. 12-26.

Concordamos com P. Grierson, entretanto, quando o mesmo aponta para o fato de que Kern atribui peso excessivo à “vontade do povo” nos processos sucessórios, argumentando que ostrogodos, visigodos, lombardos, vândalos e burgúndios possuíam estirpes régias – ainda que o nível de reconhecimento delas pelos súditos fosse variável – e que a palavra “eleição” no período tinha um sentido muito vago, podendo fazer referência tanto a uma eleição genuína quanto à simples aceitação de um sucessor previamente definido ou de um golpe de Estado bem-sucedido. Cf.: GRIERSON, P. Election and Inheritance in Early Germanic Kingship. Cambridge Historical Journal, Cambridge, v. 7, n. 01, p. 1-22, 1941. p. 1-3.

3 KERN, Fritz. op. cit. p. 34; 46. 4 Ibidem. p. 50.

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Ernst Kantorowicz, por sua vez, no seu clássico The King’s Two Bodies,5 tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre as origens medievais de noções relativas a uma identidade jurídica dual atribuída aos monarcas nos primeiros séculos da Modernidade. No que tange à questão que nos ocupa de modo particular, que é a da relação entre monarquia e Igreja, Kantorowicz discute textos produzidos na Idade Média Central que, fazendo referência a leis e concílios do reino visigodo, por exemplo, defendem a dualidade da pessoa real, baseados na idéia de que o monarca seria uma persona geminata, tal como o próprio Cristo, ao mesmo tempo humano e divino, mas que diferentemente da segunda pessoa da Trindade, que é divino por natureza, o rei tornar-se-ia divino por graça. Para o autor, esta concepção prenuncia a premissa, predominante em períodos posteriores, que distingue o “rei como pessoa” do “rei como ofício”.6

Outro autor que podemos destacar entre aqueles que propõem uma apreensão mais geral da política no período medieval é René Fédou.7 Com o fim de invalidar a tese que identifica a Primeira Idade Média como uma época de caos, o autor fornece diversos elementos não apenas de continuidade entre a Europa romano-germânica e a realidade política baixo-imperial (a organização episcopal, o latim com língua escrita e de culto e o direito romano), como também de similitude entre elementos considerados de origem germânica e práticas romanas (o caráter personalizado das leis e das relações políticas – contraposto à territorialidade tipicamente atribuída à legislação romana; o peso do aspecto militar do poder régio; o direito de bannus – que, para o autor, se assemelha ao imperium em sua acepção original etc.). Desse modo, Fédou conclui que, mais correto do que falar em continuidades e rupturas entre Roma e os reinos germânicos, seria falar em uma síntese, que favoreceria os aspectos de cada conjunto cultural que fossem mutuamente inteligíveis.8

Sobre a questão da relação entre autoridades eclesiásticas e seculares, Fédou diverge de Kern na medida em que, diferentemente deste, que identifica e enfatiza a existência uma relação de subordinação da Igreja para com os monarcas,9 o historiador francês acentua não apenas a importância do pensamento agostiniano para o desenvolvimento de concepções que defendiam a preeminência da autoridade episcopal

5 KANTOROWICZ, Ernst H. The King’s Two Bodies: a study in mediaeval political theology.

Princeton: Princeton University, 1957.

6 Ibidem. p. 42-60.

7 FÉDOU, René. El Estado en la Edad Media. Madrid: EDAF, 1977. 8 Ibidem. p. 15-35.

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em detrimento dos interesses dos soberanos seculares, como também ressalta o papel desempenhado pelas reuniões conciliares na definição de diretrizes políticas e até mesmo na ratificação de processos sucessórios violentos no reino visigodo, por exemplo. Fédou destaca também a relevância da atividade política e intelectual de bispos como Gregório Magno (590-604) e Isidoro de Sevilha (570-636) no aconselhamento de monarcas nos reinos franco e visigodo e na construção da idéia da realeza como ministerium, cujo objetivo fundamental deveria ser a salvaguarda da disciplina cristã nos seus respectivos domínios. 10

Reconhecemos a pertinência de estudos como os dos três autores supracitados, cujo objetivo essencial é o de oferecer um panorama o mais abrangente possível a respeito das características do exercício do poder político na Europa medieval desde o século VI ao século XV. Entretanto, consideramos necessário estar atentos às especificidades, tanto em nível espacial quanto temporal, das questões políticas da Primeira Idade Média, o que obras com tal grau de abrangência tendem a não acentuar ou a evocar muito vagamente. Em outras palavras, entendemos ser apropriado abordar a política do período medieval no plural, ao invés de descrevê-lo como uma experiência histórica unívoca.

Com relação às especificidades no plano cronológico, Katherine Fisher Drew, por exemplo, a partir da análise das legislações dos reinos franco, visigodo, lombardo e dos anglo-saxões, aponta para uma série de diferenças entre elas e a legislação romana no que concerne a questões como uso legítimo da violência e as relações senhoriais e de dependência. Para a autora, a principal mudança que caracterizou a organização social dos reinos germânicos da Primeira Idade Média foi a forma diferenciada pela qual passaram a ser concebidas as relações entre os indivíduos e a sua segurança pessoal.11

A seguir, apresentaremos exemplos de estudos recentes dedicados de maneira específica à questão da realeza nos reinos germânicos nos primeiros séculos da Idade Média, com destaque para algumas das reflexões voltadas particularmente ao reino visigodo.

Um primeiro estudo que podemos mencionar é o livro da professora Leila Rodrigues da Silva publicado em 2008, produto da revisão e atualização da sua tese de doutorado, defendida em 1997, e cuja temática eram as relações entre monarquia e

10 FÉDOU, René. op. cit. p. 42; 90-93.

11 DREW, Katherine Fischer. Another Look at the Origins of the Middle Ages: A Reassessment of the

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Igreja na Galiza do século VI, região então controlada pelos suevos.12 O estudo da autora centrou-se no modelo de monarca tal como se apresentava na obra do bispo Martinho de Braga (556-580) e sobre a inserção desse modelo no processo de aproximação entre autoridades laicas e eclesiásticas da região verificado no período e no qual o bispo em questão desempenhou um papel bastante significativo. Entre os muitos méritos do estudo, podemos mencionar a evidência da importância de se reavaliar o valor da história da monarquia sueva na Galiza, a despeito da sua curtíssima duração (menos de um século), para a compreensão da dinâmica que envolveu, em um primeiro momento, a desarticulação do domínio romano nas antigas áreas ocidentais do Império a partir do século V e sua substituição - ou cooptação - pelas elites germânicas e, em um segundo momento, a aproximação da realeza com a alta hierarquia eclesiástica e a relação de tutelamento que o episcopado busca estabelecer com os monarcas, resultando em uma ação política e intelectual direcionada à cristianização dos princípios de governo.

A esta questão se dedica também o professor Marcelo Cândido da Silva, no livro intitulado A Realeza Cristã na Alta Idade Média, igualmente publicado em 2008.13 Neste estudo o autor, a partir da análise de uma ampla e variada documentação, dedica-se a analisar o processo que, no reino franco merovíngio ao longo do século VI, é definido por ele como sendo o da transformação da concepção constantiniana de realeza, caracterizada pelo controle dos governantes laicos sobre a estrutura eclesiástica, em uma concepção de realeza cristã, em que o episcopado adquire influência progressiva na determinação dos deveres e prioridades do soberano. Outro problema que recebe atenção do estudioso é o da permanência da noção romana de res publica entre os governantes merovíngios, noção a qual, no entendimento dele e diferentemente do que defendia parte da historiografia oitocentista, não apenas não entrava em conflito com a crescente influência eclesiástica nos assuntos políticos, como estava intimamente relacionada a ela, na medida em que a idéia de uma realeza cristã traz consigo o entendimento que apresenta a garantia da salvação dos fiéis como interesse público e, portanto, como parte das competências e deveres do monarca.

Entre os estudos dedicados à análise do caso visigodo, destacamos a obra do historiador Luis A. Garcia Moreno, que tem como um de seus pontos centrais, a

12 SILVA, Leila Rodrigues da. Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI: o

modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Niterói: EdUFF, 2008.

13 SILVA, Marcelo Cândido da. A Realeza Cristã na Alta Idade Média: os fundamentos da

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existência de um “Estado Protofeudal” no reino visigodo ibérico.14 Garcia Moreno destaca o papel estruturante dos vínculos pessoais na organização da sociedade hispano-visigoda, tanto no que concerne à relação entre os camponeses e seus patroni, quanto ao poder dos reis sobre seus fideles aristocráticos. Aponta ainda para as dificuldades crescentes dos reis visigodos em converter a legitimidade como soberanos cristãos, de que foram investidos pelo episcopado a partir de 589, em poder efetivo sobre uma aristocracia provincial que se autonomizava progressivamente. Tais elementos levam o autor a concluir que o reino visigodo anteciparia, de certo modo, a organização política registrada cerca de um século depois, na Europa carolíngia.

Podemos citar também um artigo do professor Pablo C. Díaz, intitulado “Rey y poder en la monarquia visigoda”,15 que aborda, dentre outras questões, a da transformação dos critérios que definiam a legitimidade dos reis visigodos, primeiramente reconhecidos pelos seus pares fundamentalmente em função de suas qualidades como chefes militares, mas que, com o estabelecimento territorial, na Gália a partir do século V e na Península Ibérica a partir do século VI, passam a ver a sua autoridade adquirir institucionalidade à moda romana.16 Os reis visigodos passam a ser além de líderes guerreiros, legisladores e administradores de regiões altamente romanizadas. Nesse sentido, Diaz entende que a conversão dos visigodos, até então arianos, à ortodoxia nicena em 589, sob a liderança de Recaredo (586-601), seria mais um passo em direção à territorialização do poder dos reis godos, que passariam, desse modo, a exercer domínio sobre toda a Península Ibérica, ao invés de serem governantes de apenas um segmento da elite. Também no que concerne à aproximação entre monarquia e Igreja neste reino, o autor entende que a instituição do ritual de unção à maneira dos reis do Antigo Testamento,17 no momento da coroação dos monarcas, documentada a partir do reinado de Wamba (672-680),18 foi decorrência da

14 Este conceito se apresenta em vários de seus trabalhos, e é desenvolvido com particular ênfase em

GARCIA MORENO, Luis A. El estado protofeudal visigodo: precedente y modelo para la Europa carolíngia. In: FONTAINE, Jacques; PELLISTRANDI, Christine (orgs.). L’Europe héritière de l’Espagne wisigothique. Madrid: Casa de Velazquez, 1992. p. 17-43.

15 DÍAZ, Pablo C. Rey y poder en la monarquía visigoda. Iberia, Logroño, n. 1, p. 175-195, 1998. 16 Sobre a questão da adoção por parte dos monarcas visigodos dos signos e idéias da tradição clássica

latina, cf. FRIGHETTO, Renan. Aspectos Teóricos e Prácticos da Legitimidade do Poder Régio na Hispania Visigoda: o Exemplo da Adoptio. Cuadernos de Historia de España, Buenos Aires, v.79, n.1, p. 237-245, 2005.; ____. Da antigüidade clássica à idade média: a idéia da Humanitas na antigüidade tardia ocidental. Temas Medievales, Buenos Aires, v.12, p. 147-163, 2004.

17 BARBERO DE AGUILERA, Abílio. La sociedad visigoda y su entorno histórico. Madrid: Siglo

XXI, 1992. p. 57-77.

18 Barbero de Aguilera defende, por sua vez, a possibilidade de a prática da unção dos reis visigodos datar

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impossibilidade de alcançar um princípio válido e único de sucessão ao trono – uma vez que, ao longo dos séculos VI-VII, tanto monarcas eleitos quanto monarcas por associação dinástica viram sua autoridade ser alvo de contestação por setores da aristocracia.

Maria Del Rosario Valverde Castro, atualmente professora titular na Universidad de Salamanca, publicou em 2000 uma obra bastante abrangente em que trata de questões semelhantes às desenvolvidas de forma mais sintética por Pablo Diaz no artigo supracitado. A obra intitula-se Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía visigoda: un proceso de cambio,19 e analisa o processo de transformação da autoridade régia visigoda desde o período das migrações até a plena institucionalização no reino toledano.

Dentre outras conclusões, a autora aponta como um dos principais marcos desse processo, além da questão da territorialidade já apontada por Diaz, em que os reis visigodos deixam de ser reis apenas dos godos para estender seu poder sobre toda a população que habitava seus domínios, a busca de distinção dos monarcas em relação aos demais membros da elite goda. A autora aponta que tal tentativa de diferenciação se apresenta na prática da imitatio imperii, sistemática desde o reinado de Leovigildo (572-586), e da afirmação da origem divina de autoridade dos reis, por meio da qual estes visam apresentar-se como entidades autônomas e superiores com relação aos demais aristocratas, com quem desde o período tolosano travam uma disputa constante por poder político e recursos econômicos.

O professor Renan Frighetto endossa as conclusões de Diaz e Valverde Castro a respeito da adoção, por parte dos reis visigodos, de signos e práticas imperiais, e analisa também o impacto da conversão da monarquia ao cristianismo niceno nos discursos referentes às disputas políticas no reino. Além de apontar para o atrelamento da idéia de humanitas à noção de christianitas,20 o autor destaca ainda que a infidelidade nobiliárquica adquire nos textos um sentido semelhante àquele que os antigos romanos atribuíam à barbárie, isto é, à não-romanidade, à incivilização.21

ratificada. Esse concílio é marcado também pela expressão da teoria política de Isidoro de Sevilha em sua forma plena, no cânone 75. cf. Ibidem. p. 68.

19 VALVERDE CASTRO, M.ª R. Ideología, simbolismo y ejercicio del poder real en la monarquía

visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 2000.

20 FRIGHETTO, Renan. Da antigüidade clássica à idade média: a idéia da Humanitas na antigüidade

tardia ocidental. Temas medievales. Buenos Aires, v.12, n. 1, 2004. Disponível em: http://www.scielo.org.ar/. Acesso em: 08/09/2008.

21 FRIGHETTO, Renan. Infidelidade e barbárie na Hispania visigoda. Gérion, Madrid, v.20, n.01. p.

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Podemos concluir, a partir das conclusões dos autores selecionados, que, entre os aspectos que têm recebido atenção dos estudiosos das monarquias durante a Primeira Idade Média, sobressaem a manutenção e/ou reformulação do legado romano pelas monarquias germânicas recém-estabelecidas, e o aprofundamento da relação entre instituições políticas e eclesiásticas, que levou, por um lado à intensificação do processo de cristianização dos valores herdados da Antiguidade Clássica, em curso desde o Baixo Império e que prossegue ao longo da Idade Média, e por outro lado, à uma ampliação da presença e da influência das autoridades episcopais na definição das relações e configurações de poder na sociedade secular.

Nosso trabalho se insere em meio a tais iniciativas, na medida em que nos ocupamos da compreensão das implicações da aproximação política entre a monarquia visigoda e a alta hierarquia eclesiástica na produção de discursos que exaltavam os princípios de boa conduta régia e a legitimidade da própria monarquia. Entendemos que a comparação entre a Vita Desiderii e a Historia Wambae pode oferecer uma contribuição a esse conjunto de estudos ao nos permitir confrontar discursos produzidos por um rei e por um bispo, e desse modo, ir para além das discussões que restringem a análise das relações de poder ideológico envolvendo monarquia e episcopado a partir da lógica do tutelamento, que muitas vezes os próprios autores das fontes buscavam transmitir ao seu público sem que esta correspondesse necessariamente à realidade.

Considera-se necessária uma problematização capaz de considerar as contradições presentes nas relações entre autoridades/instituições políticas e religiosas e o modo como essas contradições são representadas ou trabalhadas discursivamente. A análise e a comparação de textos narrativos que definem e situam poderes e indivíduos no tempo de modo peculiar como as historiae e as hagiografias, nesse sentido, se tornam um recurso muito útil à compreensão da dinâmica por meio da qual grupos e indivíduos naquelas sociedades atribuíam sentido à ordem social em suas diferentes dimensões.

2. Considerações sobre a Vita Desiderii

Com relação aos estudos voltados ao papel da Vita Desiderii no contexto político visigodo, destacaremos a contribuição da área de Letras, que se apresenta nos trabalhos de Jacques Fontaine, José Carlos Martín e de Isabel Velazquez, bem como as reflexões trazidas pelos estudos dos historiadores Janet Nelson e Santiago Castellanos.

Referências

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