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AS MITOGRAFIAS DE GAIA NO ANTIGO MUNDO GREGO

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1 Marcio Henrique de Mello Pereira Universidade de São Paulo xakanakas@gmail.com AS MITOGRAFIAS DE GAIA NO ANTIGO MUNDO GREGO

Ao buscarmos as primeiras narrativas de como o mundo é representado em seus aspectos fundamentais, parece não haver dúvida quanto ao ponto de referência a respeito da evolução do Pensamento Geográfico ser o Mediterrâneo, pois é lá, segundo Aroldo de Azevedo, que se encontra o “berço de nossa civilização, resultante da expansão geográfica e cultural, ao qual brilharam as primeiras civilizações que interessam à expansão do horizonte geográfico” (AZEVEDO, 1965, p. 7-8-13).

Corroborando dessa assertiva, Paulo Cesar da Costa Gomes, em “Geografia e Modernidade”, também postula que a geografia foi desde a Antiguidade “responsável pela descrição e pela criação de uma imagem de mundo” (GOMES, 2010, p. 28), ou mesmo, Paul Claval, em sua obra “A história da Geografia”, ao indagar sobre o que é a Geografia, ele próprio elucida que “a resposta remete-nos para o seu início na Antiguidade Clássica, para a Grécia Antiga (CLAVAL, 2006, p. VI).

Também, Konrad Kretschmer, na obra “Historia de la Geografía” afere que a Geografia se remonta a mais longínqua Antiguidade, uma vez que desde os tempos mais remotos foram objeto de estudo as questões relativas à Terra. E se queremos analisar o desenvolvimento da ciência geográfica em suas relações causais devemos examiná-lo como ocorreu em um determinado centro de cultura, onde houve os progressos científicos das representações que se têm formado acerca do corpo terrestre e da constituição de sua superfície, através de um horizonte geográfico particular, constituído frequentemente de caráter mítico, sobre a origem e natureza da Terra.1

Deste modo, não se pode estudar com profundidade o mundo e o cosmos na Grécia Antiga em seus aspectos fundamentais sem um embasamento mítico, pois o “mito se apresenta como um sistema que tenta explicar o mundo e o homem” (BRANDÃO, p. 13), em outros termos, mito, conforme Mircea Eliade, “é sempre uma

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2 representação coletiva, transmitida através de gerações e que relata uma explicação do mundo” (apud BRANDÃO, 2004, p. 35-6).

De acordo com este preâmbulo, este artigo resgata as primeiras representações de Gaia, uma vez que desde os tempos imemoriais, a figura central de toda a mitologia era a deusa Terra, reverenciada como a mãe nutridora da vida. Mas, segundo Joseph Campbell, Gaia deixa de ser somente padroeira local da fertilidade, para posteriormente, ser um símbolo metafísico, “a principal personificação do poder no Espaço, Tempo e Matéria, em cujo âmbito todos os seres nascem e morrem” (2004, p. 16), e com o alvorecer da Idade do Ferro, “as antigas cosmologias e mitologias da deusa-mãe foram radicalmente transformadas, reinterpretadas e, em larga escala, mesmo suprimidas pela repentina invasão das tribos guerreiras patriarcais” (CAMPBELL, 2004, p. 16). Deste modo, Gaia começa a ser representada no Ocidente a partir de um amplo embasamento mitológico, em que Gaia é a Terra-Mãe, atribuída à origem das coisas.

Para tal propósito, o método se pautará numa análise histórica, tendo como fator fundamental as mitografias de Gaia, ou seja, suas representações2, no Antigo Mundo Grego. Assim, de conhecimentos vindouros desde o período Pré-Homérico surgiram as mitografias e cosmogonias Homérica, Hesiódica e Órfica, que assumirão, durante a história do Ocidente, o papel de fundamentos de sistemas filosóficos em que Gaia se apresentará envolta com elementos míticos, visto que,

Os deuses gregos eram aspectos do Universo, e mesmo Caos e Terra geraram o nosso mundo não por atos de vontade criativa, mas como as sementes geram árvores, a partir da espontaneidade natural de sua substância, portanto, neste período, em nenhum momento aparece a ideia de um livro de estatutos morais, revelados por um deus pessoal de uma esfera de existência anterior e fora das leis da natureza (CAMPBELL, 2004, p. 153).

A importância da motivação poética de Homero reside em que ela se compõe de motivos míticos, históricos ou retirados da natureza,3 sendo que “os poemas atribuídos a

Homero são os que contêm as mais remotas concepções geográficas, apresentando interesse especial para o estudo da evolução da Geografia” (AZEVEDO, 1965, p.

2 MOREIRA, “Pensar e ser em geografia: ensaios de história, epistemologia e ontologia do espaço geográfico”, 2008, p. 106-107.

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3 77). Os poemas homéricos resultam de um desenvolvimento da poesia oral, que apesar de terem sido datados entre os séculos IX e VIII a.C., o poeta nos transmite significados do século XIII ao VIII a.C., época em que foram compostas a “Ilíada”, a “Odisseia” e os “Hinos Homéricos”, contudo, ao se aceitar a opinião de que nestas obras têm cooperado vários poetas, não podemos esperar que haja uma concepção única acerca da Terra.4

Deste modo, segundo Karl Kerényi, a mais antiga história, na mitologia Ocidental, acerca do princípio das coisas, talvez seja aquela a que se refere Homero ao chamar Oceano de “a origem de tudo”, e desde o momento em que tudo se originou dele, “continuou a fluir até a orla mais extrema da terra, fluindo de volta sobre si mesmo num círculo” (2004, p. 25). Desde a alta Idade Arcaica, segundo constata Jean-Pierre Vernant, Homero, na “Ilíada”, por duas vezes, atribui a Oceano e a Tétis5 títulos que os qualificam como o par divino primordial: “Aos fins do globo visitar o Oceano6 pai dos deuses, e a Tétis madre vou, que em palácios, de Réia a pedimento me criaram” (HOMERO, 2008, p. 358)7. Mais adiante, a mesma expressão é ampliada, “Oceano é o pai original de todas as coisas e de todos os seres” (VERNANT, 2009, p. 239).

Portanto, antes de Tales, que faria da água o princípio do qual tudo surgiu, Homero teria colocado na origem dos deuses e do mundo Oceano e Tétis, no entanto, eles não definem apenas o estado inicial do mundo, eles continuam a existir no universo organizado, mas foram relegados às extremidades do cosmos, concebidos como laços que mantêm o universo unido, numa retroalimentação sem fim. O desenvolvimento temporal de uma gênese que faz emergir o mundo a partir das águas primordiais se articularia exatamente a partir do esquema espacial de um universo cercado por todos os lados pelas mesmas águas de onde nasceu.8 No mito grego, “Oceano é a imagem da

indistinção e da indeterminação primordial” (BRANDÃO, 2004, p. 197).

4 KRETSCHMER, “Historia de la Geografía”, 1942, p. 13.

5 Em contrapartida, conforme John Burnet, “ninguém cultuava Oceano ou Tétis” (BURNET, 2006, p. 44). 6 Oceano, em grego Okeanós, é possível que se trate de palavra oriental com o sentido de “circular, envolver”, era concebido como um rio-serpente, que cercava e envolvia a terra. No mito grego, Oceano é a personificação da água que rodeia o mundo: é representado como um rio que corre em torno da esfera achatada da terra. Como deus, Oceano é o pai de todos os rios, em razão mesmo de sua vastidão, é a imagem da indistinção e da indeterminação primordial (BRANDÃO, 2004, p. 197).

7 Quando Zeus pergunta à Hera, aonde vais, vinda do Olimpo, ela lhe responde: “Vou visitar nos confins da ubérrima Terra, Oceano, pai dos deuses, e a Mãe Tétis, que me acolheram e me criaram em sua casa” (HOMERO, 1991, p. 156).

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4 Dentro dessa ideia fundamental, admitia-se a existência de um único oceano, de que a própria Terra havia surgido. Portanto, a Terra era imaginada como semelhante a um disco mais ou menos convexo, circundada pelas águas do Oceano, “dominando esse disco terrestre e apoiada em colunas de ferro,9 erguia-se a abóbada celeste, onde

brilhavam o Sol, a Lua e os demais astros” (AZEVEDO, 1965, p. 76-77).

No entanto, quando “Zeus passa a governar o mundo, Oceano fica com o fluxo circular, e a tarefa de abastecer as nascentes, os rios e o mar ficou delegada a Zeus” (KERÉNYI, 2004, p. 25). Assim, Zeus intervém na marcha dos fenômenos naturais, na ordenação do espaço e na regulação do ciclo das estações. Logo, no quadro desse pensamento mítico, “não se poderia imaginar um domínio autônomo da natureza nem uma organização imanente ao universo” (VERNANT, 2008, p. 119). Contudo, será nos “Hinos Homéricos” que aparecerá uma narrativa que apresenta Gaia em seus pormenores:

Eu cantarei Gaia, a mãe de todos, a de firmes fundações, a mais antiga, a que alimenta tantos quantos vivem nela: os que percorrem o solo, o mar e também os que voam. Todos se alimentam de sua riqueza. Através de ti, belas crianças e belos frutos se formam, senhora, e a ti cabe dar e tirar a vida dos homens mortais. Feliz é aquele que honras, bondosamente, com teu sopro; para ele tudo vem em abundância, a terra que dá vida fica carregada de grãos; nos campos, os rebanhos prosperam e a casa se enche de riquezas. ...Salve, mãe dos deuses, esposa do estrelado Urano; concede-me bondosamente, por este canto, vida aprazível (HOMERO, 2010, p. 358).10

Conforme Aroldo de Azevedo, as concepções homéricas contribuíram para a evolução da Geografia, pois se fundamentaram na “ideia da unidade terrestre, uma vez que a Terra era considerada ‘um todo dentro de um todo’, e na correlação entre os fenômenos terrestres e os fenômenos celestes, que servia para reforçar essa concepção unitária do mundo” (AZEVEDO, 1965, p. 77).

9 Cumpre aqui recordar que a palavra sideral lembra essa longínqua concepção fundada na existência de sustentáculos de ferro, a suportar o mundo dos astros (AZEVEDO, 1965, p. 76-77).

10 Gaia é a Terra, concebida como elemento primordial de que descendem as raças divinas. Esposa de Urano, que ela mesma gerou sem qualquer elemento masculino, ela é a grande nutriz, a “Grande Deusa”, a Terra Mãe original, cultuada desde o Paleolítico e o Neolítico (HOMERO, 2010, p. 360).

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5 Todavia, será na “Teogonia” de Hesíodo, um poeta dos fins do século VIII a.C., já no início da Idade Arcaica, que se apresenta o documento mais importante de que dispomos para entender o pensamento mítico dos gregos e suas orientações no campo cosmogônico,11 pois, a “Teogonia” é a obra mais antiga que expôs em conjunto o mito

helênico, mas, vai além e, antes da teogonia, coloca os fundamentos da cosmogonia, quer dizer, as origens do mundo, o nascimento do Universo12, desdobrando-se num hino descritivo sobre a natureza e a origem dos Deuses:

Sim, bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento, no fundo do chão de amplas vias, e Eros, o mais belo entre os Deuses imortais, solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade (HESÍODO, 2007, p. 109).

Segundo Hesíodo, após Caos surge Gaia, que possui uma forma distinta e precisa, ou seja, à confusão e indistinção de Caos opõem-se a nitidez, a firmeza e a estabilidade de Gaia, que constitui a base dessa morada que é o cosmo, e também é a mãe universal, “florestas, montanhas, grutas subterrâneas, ondas do mar, vasto céu, é sempre de Gaia, a Mãe-Terra, que eles nascem” (VERNANT, 2000, p. 17-18).

Nos seguintes versos da “Teogonia” é explicitada a natureza da Terra mediante seus descendentes imediatos, nascidos por cissiparidade, onde se ressalta a presença de Caos na procriação e nascimento dos Deuses presentes na paisagem do Mediterrâneo:

Terra primeiro pariu igual a si mesma Céu constelado, para cercá-la toda ao redor e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre. Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas ninfas que moram nas montanhas frondosas. E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas, o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos (TORRANO, 2012, p. 35).

A princípio, conforme Vernant, na sua obra “O universo, os deuses, os homens”, Terra engendra Urano, Céu, depois, traz ao mundo Ponto, todas as águas sem se unir a ninguém. Porque produz um Céu estrelado igual a si mesma e do mesmo tamanho,

11 VERNANT, “Entre mito e política”, 2009, p. 241. 12 BRANDÃO, “Mitologia Grega”, 2004, p. 153.

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6 Urano se deita sobre ela, constituindo dois planos superpostos do universo. Então, Terra acaba grávida dos doze Titãs, que não conseguem sair de seu ventre, pois Urano nunca se distancia da Terra, não havendo espaço entre eles que permita aos seus filhos terem uma existência autônoma. O primeiro filho chama-se Oceano, que é “esse cinturão líquido que rodeia o universo e corre em círculo, de tal modo que o fim de Oceano é também seu começo; o rio cósmico corre em circuito fechado sobre si mesmo” (VERNANT, 2000, p. 21).

Mas será o caçula, Cronos, que cumprirá uma etapa fundamental no nascimento do Cosmo, pois ao castrar Urano, separa o céu da terra, criando um espaço livre, onde os seres vivos terão espaço para viver. Assim, o espaço se desbloqueia e o tempo se transforma. Quando Urano se fixa lá no alto, ele não se une mais a Gaia, a não ser durante as grandes chuvas fecundantes, permitindo que nasçam na terra novas plantas e cereais. No mundo, abriu-se o espaço, o tempo passou, gerações vão se suceder, há a vasta terra, o rio Oceano que cerca tudo isso e um céu fixo.13 “O espaço abriu-se e este corte permitiu à diversidade dos seres adotar sua forma e encontrar seu lugar no espaço e no tempo” (VERNANT, 2009, p. 250).

E após Zeus destronar Cronos, ele delimita os domínios cósmicos, passa a ser senhor do Céu, pai dos deuses e dos homens; já, Poseidon, é senhor de todas as águas, bem como as do rio Oceano, cujo fluxo cerca o mundo; e Hades, é destinado a reinar sobre o mundo subterrâneo e dos mortos.14 Mas, a superfície da terra cabe aos três, em

comum, onde vivem com os homens todas as criaturas mortais.15

Esses deuses primordiais ainda estão bastante envolvidos nas realidades físicas que evocam para que não se possa separá-los do que chamaríamos hoje de forças ou elementos “naturais”. Por conseguinte, os deuses do politeísmo grego não criaram o mundo, nasceram dele, surgidos em gerações sucessivas, na medida em que o universo, a partir de potências primordiais como Caos e Gaia, ia-se diferenciando e se organizando, assim, os deuses são parte integrante do cosmos.16 Mas, Gaia é uma sede estável em sua vasta superfície, e dela

13 VERNANT, 2000, “O universo, os deuses, os homens”, p. 22-28. 14 VERNANT, 2009, “Entre mito e política”, p. 233-234.

15 VERNANT, 2008, “As origens do pensamento grego”, p. 112. 16 VERNANT, 2009, “Entre mito e política”, p. 173.

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7 ...nascem todos os seres, ela é a fêmea penetrada pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, que são o spérma, a semente do Céu. Como matriz, concebe todos os seres, as fontes, os minerais e os vegetais. Gaia simboliza a função materna: é a Tellus Mater, a Mãe-Terra. Concede e retoma a vida (BRANDÃO, 2004, p. 185).

A “Teogonia” de Hesíodo ordenou e fixou as gerações divinas e estabeleceu a organização do Cosmos.17 Os deuses gregos pertencem à totalidade do mundo, “não são potestades transcendentes nem deuses criadores, nem dispõem soberanamente das criaturas do céu, da terra e do mar” (SISSA & DETIENNE, 1990, p. 18).

Assim, conforme Hesíodo, deuses e homens têm a mesma origem, provêm da Mãe da Terra, Gaia, que concebeu do sangue derramado por Urano e produziu sobre a terra, dentre outros, as ninfas “Cinzas”, chamadas Melíades, que produziram os seres humanos, que foram, posteriormente, descritos deitados debaixo dos freixos como frutos caídos. Em muitos outros contos o homem primordial saiu diretamente da terra, a qual também foi a mãe dos deuses e dos mortais, “foi a Terra quem primeiro produziu os homens, dando à luz um fruto, visto que desejava ser mãe não só de plantas insensíveis e animais irracionais, mas também de criaturas ordenadas e devotas” (KERÉNYI, 2004, p. 163-164).

Num cosmos repleto de deuses, o homem grego não separa o natural do sobrenatural. Mas, “nem todos os deuses homéricos revestiram-se das formas humanas, há os que permaneceram como forças da natureza” (BRANDÃO, 2004, p. 133). Há, portanto, algo de divino no mundo e algo de mundano nas divindades, “Não que se trate de uma religião da natureza, em que os deuses gregos sejam personificações de fenômenos naturais. Pois, o raio, a tempestade, os altos cumes não são Zeus, mas de Zeus; os deuses gregos são Potências (VERNANT, 2006). Nas epopeias de Homero e Hesíodo, Zeus está acima de todo o desenrolar da obra.18 Ele é o senhor “dos ritmos cronológicos: manipula o raio e a chuva, (...) cuida da sucessão ordenada das estações e dos dias” (SISSA & DETIENNE, 1990, p. 59).

Já, nas cosmogonias órficas19, Noite, como entidade original, tomará o lugar de

17 BRANDÃO, “Mitologia Grega”, 2004, p. 160-163.

18 CAMPBELL, “As Máscaras de Deus – Mitologia Ocidental”, 2004, p. 153.

19 “Orfeo, os gregos criam ser mais velho do que Homero” (REINACH, 1977, p. 90), porém, segundo John Burnet, “a primeira cosmogonia órfica remonta ao século VI a.C.” (BURNET, 2006, p. 25).

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8 Oceano e de Tétis, na mitologia homérica, passando a substituir a fluidez das águas, bem como tomará o lugar de Caos, na mitologia hesiódica. Fundamento que pode ser constatado pela publicação de um papiro de comentários de um poema cosmogônico de Alcmã, em 1957, ao constatar que desde o século VII a.C., a poesia podia se inspirar em tradições míticas em que as águas primordiais encontravam-se unidas à Noite original,

O mundo ordena-se na medida em que, pelo traçado visível dos movimentos celestes, pela sinalização clara das diversas partes do horizonte, a escuridão confusa de uma massa líquida dá lugar a uma extensão organizada (VERNANT, 2009, p. 240-241).

Deste modo, o orfismo, na qual encontramos uma tradição de livros sagrados atribuídos a Orfeu e Museu, comporta teogonias e cosmogonias. Para os órficos, na origem, o Ovo primordial ou Noite, exprime a unidade perfeita, mas o Ser degrada-se à medida que a unidade se divide criando formas distintas. Assim, bem no início dessa história, relativa ao princípio das coisas, aparecia a deusa Noite, em forma de pássaro preto, e junto a ela vinha o Vento, por cujo intermédio ela botou o Ovo, que contém dentro de si Eros, ou posteriormente, Fanes. Na história mais recente, os últimos discípulos de Orfeu apresentaram Cronos,20 que “criou um Ovo de prata que girava sobre si mesmo. Portanto, o Céu e a Terra, que eram filhos da Noite foram criados por Fanes” (KERÉNYI, 2004, p. 94-95).

Portanto, o orfismo se opõe à tradição hesiódica, pois, em Hesíodo, o universo divino organiza-se segundo um progresso linear que conduz da desordem à ordem, de um estado original de confusão indistinta a um mundo diferenciado e hierarquizado sob a autoridade de Zeus. Entre os órficos, dá-se o inverso: na origem, o Ovo primordial ou Noite, exprime a unidade perfeita, mas o Ser degrada-se à medida que a unidade se divide para fazer aparecerem formas distintas. A esse ciclo de dispersão deve suceder um ciclo de reintegração das partes na unidade do todo (VERNANT, 2006, p. 82-83).

Orfeu era um antigo deus totêmico do Norte da Grécia, cuja morte e ressurreição constituem artigos de fé de um culto místico, que se estendeu por todo o mundo grego e pelo sul da Itália, tendo, possivelmente, inspirado Pitágoras e Platão, que, segundo

20 “Não se confunda o nosso Crono com o Crono que nunca envelhece, que produziu, de dentro de si, Éter e Caos, o espaço vazio que não tinha fundo firme e estava cheio de escuridão” (KERÉNYI, 2004, p. 95).

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9 Salomon Reinach, na obra “Orfeo – Historia General de las Religiones”, deram forma mais ou menos científica a suas concepções.21 Segundo Jean-Pierre Vernant expõe na

obra “As origens do pensamento grego”,

As cosmologias retomam e prolongam os temas essenciais dos mitos cosmogônicos. Trazem uma resposta ao mesmo tipo de questão; interrogam-se, com o mito, como a ordem foi estabelecida, como o cosmos pôde surgir do caos. Dos mitos de gênese, os milésios tomam não só uma imagem do universo, mas ainda todo um material conceptual e esquemas explicativos: atrás dos “elementos” da physis perfilam-se antigas divindades da mitologia. Tornando-se natureza, os elementos despojaram-se do aspecto de deuses individualizados; mas permanecem forças ativas e animadas, ainda sentidas como divinas; a physis, quando opera, está toda impregnada desta sabedoria e desta justiça que eram o apanágio de Zeus (VERNANT, 2008, p. 111-112).

Nas teogonias de Hesíodo e Órfica há um estado de indistinção em que nada ainda aparece, Caos, em Hesíodo, e Nyx, Érebos, Tártaros, em certas Teogonias atribuídas a Orfeu, Museu e a Epimênides. Desta unidade primordial emergem, por segregação e diferenciação progressivas, pares de opostos que vão delimitar no mundo realidades e regiões diversas: o céu, brilhante e quente, o ar sombrio e frio, a terra seca, o mar úmido, “esses opostos, que chegaram ao ser separando-se uns dos outros, também podem unir-se e misturar-se para produzir certos fenômenos, como o nascimento e a morte de tudo que vive, plantas, animais e homens” (VERNANT, 2008, p. 112-113).

Como considerações finais, constata-se que diante dessa análise histórica que tem como objetivo descrever e analisar as mais antigas mitografias de Gaia perante as cosmogonias Homérica, Hesiódica e Órfica, no Antigo Mundo Grego, Gaia, apesar de não ser a deusa ou entidade genética de onde partiu todo o mundo, é criada logo após às entidades primordiais, e em todos estas mitologias ela é o nascedouro de deuses e homens e a base essencial de organização do Cosmos, propiciando, através destes fundamentos, as matrizes do Mundo Ocidental, e servindo como referência à História do Pensamento Geográfico.

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