Estudo antropológico sobre pesquisas e ações de prevenção e minimização dos desastres e seus efeitos no âmbito do Centro de Pesquisas e Estudos sobre Desastres no Rio Grande do Sul
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.”
Marize Schons – UFRGS/RS
Resumo:
Os teóricos dos riscos (Beck, Giddens) os tratam como “variável projetada” através de um sistema de confiança em peritos especializados em verificar, prever, medir, estimar e informar possibilidades de desastres. As ameaças naturais são assim tema dos avanços científicos e tecnológicos organizadas como redes de inteligibilidade sobre formas de enfrentamento e superação de crises e prevenção, implicando tanto o avanço da pesquisa científica quanto a aplicação de políticas publicas em instituições civis que atuam na prevenção e minimização dos desastres. Em Porto Alegre, e no estado do rio Grande do Sul, foi criado um Centro de Pesquisa e Estudos sobre Desastres para atuar nessas políticas publicas de orientação de desastres e tragédias, operando um mapa de vulnerabilidades. A partir da etnografia desta ação político-científica na instituição universitária e na defesa civil, interpreta-se os interesses sociais, políticos e éticos no processo de prevenção a desastres.
Palavras-chave: risco, políticas públicas, ciência
Os riscos são “variáveis projetadas” através de um sistema de confiança em peritos especializados em verificar, prever, medir, estimar e informar possibilidades de desastres (BECK, GIDDENS E LASH. 1991). As ameaças naturais são assim, tema dos avanços científicos e tecnológicos organizadas como redes de inteligibilidade sobre formas de enfrentamento, superação e prevenção de crises. A pesquisa, ainda em fase inicial, pretende levantar questões, a partir de uma etnografia sobre a atuação do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (CEPED), no Rio Grande do Sul,
sobre a relação entre a criação do centro de pesquisa e a aplicação de políticas públicas de orientação e de prevenção a desastres ambientais
O CEPED é um núcleo interdisciplinar vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pretende englobar a pesquisa e extensão, contribuindo para a prevenção e minimização dos desastres e seus efeitos. Através da realização de atividades nas áreas de ensino, pretende prestar serviços de transferência de tecnologia e formação acadêmica de profissionais especialistas; estabelecendo, assim, um intercâmbio e integração entre profissionais e entidades públicas e privadas. Desta forma, através do CEPED, a universidade presta assessoria em projetos específicos de diferentes segmentos da administração pública.
Segundo o estatuto, o CEPED serve como ponte entre diversos órgãos ligados ao tema dos desastres no Rio Grande do Sul e o corpo acadêmico da UFRGS. O núcleo tem intenção de proporcionar maior facilidade de acesso a fontes de financiamentos e estabelecendo acordos de intercâmbio com instituições no país e no exterior.
Com 50 pesquisadores envolvidos, procedentes do Laboratório de Geotecnologia (Lageotec), do Centro Estadual de Pesquisas em Sensoriamento Remoto e Meteorologia (Cepsrm) e do Insituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), os projetos do centro pontuam a necessidade de multidisciplinaridade, não só de diversas áreas da ciência, mas também na articulação de uma rede de cooperação entre a universidade e a Secretaria Nacional de Defesa Civil e do Ministério de Integração Nacional, atuando de forma conjunta no desenvolvimento de estratégias integradas de prevenção de riscos à Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA).
Através do estudo de trajetórias sociais, a primeira fase da pesquisa, busca interpretar as motivações (SCHUTZ, 2012) dos agentes envolvidos na fundação do centro de pesquisa e a análise dos interesses sociais, políticos e éticos das ações político-científicas, o que implica em refletir sobre a articulação do avanço da pesquisa científica em correlação à aplicação de políticas públicas em instituições civis que atuam na prevenção e minimização dos desastres. Desta forma, pretendo abordar dinâmicas globais da produção social de risco a partir da dimensão microssociológica que passa pela criação do centro de pesquisa e a atuação cotidiana dos pesquisadores em seu ambiente de trabalho.
Entretanto, por conta das limitações de uma pesquisa em fase inicial, esse artigo, se dispõe a levantar apenas algumas questões teóricas fundamentais sobre o tema do risco, além de descrever as intenções futuras da pesquisa que será realizada entre o ano de 2014 e 2015. Levantando, assim, minhas primeiras inquietações e perguntas sobre o tema e justificando a relevância dessa pesquisa no contexto de modernização reflexiva (BECK, 2010) que vivemos.
Os crescente processo de modernização desencadeia riscos (GIDDENS, 1991). A sociedade pós-disciplinar (RABINOW, 1984) proporciona uma transformação de tecnologias sociais e gerenciamento administrativo quanto a prevenção de desastres através de uma abordagem instrumentalizada da natureza e dos indivíduos a partir da atuação de especialistas. Prevenção está no mapeamento do risco. Uma mapeamento que se pretende impessoal.
Tendo em vista que esses perigos são definidos externamente através de narrativas científicas e a modernização consiste nos avanços tecnológicos, nas transformações das formas de vida (produção, organização, estruturas, formas políticas) e na crescente racionalização e objetivação das narrativas, a pesquisa pretende etnografar essas a atuação científica dos técnicos do CEPED atuando no processo de reconhecimento, conhecimento objetivo e conhecimento coletivo dos riscos.
Na reflexividade da modernização, tanto a ciência como a forças produtivas, perderam sua inocência. O mito do progresso é ofuscado pela produção social de desastres. Desta forma, como aponta Ulrich Beck (2010), o modelo de sociedade industrial (em seu esquema de classe, família nuclear, trabalho assalariado, ciência, progresso e democracia) tem seus elementos fragilizados e suspensos pela modernidade reflexiva, transformando, assim, os próprios fundamentos da transformação.
Tendo em visto que o risco não estabelece uma percepção concreta – segundo Giddens (1991), são sistemas abstratos dos quais nos relacionamos indiretamente através de especialistas (peritos) – meu problema consiste em entender como consciência cotidiana do risco é legitimada através de uma consciência teórica e cientificizada sobre o mesmo, visto que o reconhecimento depende da autoridade de atores cientistas e das instâncias burocráticas (Defesa Civil) para determinar e mensurar e atuar quanto a sua prevenção ou minimização.
Desta forma, a pesquisa pretende refletir sobre o papel fundamental na construção de um futuro objetivado e narrado cientificamente através de previsões projetadas. Essas projeções dependem da confiança dos indivíduos em relatórios científicos, uma confiança construida através de uma civilização cientificizada. Como se dá, no cotidiano da atuação científica, as praticas de “convencimento” e “confiança” entre leigos e especialistas?
As intencionalidades a serem etnografadas não está apenas na determinação objetiva e científica do risco, mas as configurações e interesses das instâncias políticas para atuar na prevenção de desastres. Não obstante, qual o paradigma da sociedade de risco e os efeitos sociais independentes do diagnóstico científico? De que forma é possível o protagonismo dos riscos nas esferas públicas de poder?
Mesmo que Ulrich Beck (2010) nos oriente que a ameaça não deve ser concebida como situação de classe, me pergunto qual a relevância do recorte de classe no modelo interpretativo da sociedade de risco?
Levando em consideração que a produção industrial é acompanhada por um universalismo das ameaças (GIDDENS, 1991) como se constrói as discursividades do risco – atualmente, protagonista nas esferas públicas na modernidade reflexiva (BECK, 2010) – relacionados aos interesses da propriedade privada e da mercantilização da vida?
Esse panorama demonstra que a busca do estado de bem estar já não basta. E o conhecimento dos riscos e a sua comunicação é central. Entretanto, o risco real não é objetivado através da experiência, mas da produção das projeções dessas narrativas técnicas. As políticas de prevenção a desastre não consiste em simples demandas dos afetados pelo atendimento dos especialistas, mas os próprios especialistas elegendo quem são os afetados e atuando como o ator principal para a conscientização do vulnerável à sua própria condição.
As narrativas científicas são instrumentos cognitivos e o ritual científico –os procedimentos de medição, amostragem estatísticas, disputas de validade – são importantíssimas para esse processo de suscetibilidade. “Se nas situações de classe é o ser que determina a consciência, nas situações de risco é a consciência que determina o
ser” (BECK, 2010, pág. 64). Desta forma, a burocracia do conhecimento demonstra um papel distinto entre a ciência que estipula o risco e a população que percebe o risco. Entretanto, essa não é percepção naturalizada ou descontrolada. O processo de comunicação do risco é prevista como parte das responsabilidades e atribuições dos pesquisadores.
A lógica experiêncial do pensamento cotidiano não induz juízos finais sobre riscos. Mesmo assim, os peritos não participam das configurações sociais do risco apenas no plano burocrático-científico, na estipulação e mensuração da probabilidade de desastres, como também seu saber os legitimam como autoridades que atuam também na conscientização e o reconhecimentos dos “leigos” a sua própria condição de vulnerável. Considerando assim, que o processo de individualização perpassa um processo de institucionalização (GIDDENS, 1991).
Deste modo, minha pretensão é etnografar essa dinâmica. Quais os critérios do técnico na formulação da categoria de vulnerável? Como abstrações científicas se relacionam com as representações que o indivíduo em situação de risco tem de si mesmo? Quais as contradição da intenção do cientista no plano da objetivação dos riscos e a atuação do cientista no plano empírico de atuação e gestão sobre os riscos?
Minha intenção não consistem em pressupor uma hierarquia de racionalidades. A provável resistências e conflitos, que são esperados em saídas de campo, entre “vulneráveis” e especialistas, não pressupõe uma ação irracional dos primeiros. Entretanto, por mais que a percepção social dos riscos pressuponha a racionalidade científica – visto que parte de um fenômeno de objetivação da natureza – o trabalho não pretende “implodir” com a racionalidade científica na definição do desastre, mas sim entender como a moralidade científica se articula com as experiências vividas sobre os riscos tanto na trajetória do cientista quanto na trajetória dos afetados. Dissecar o discurso científico sobre os riscos não quer dizer negá-lo, mas compreender de que forma o risco emerge como um fenômeno central em um processo de reflexivo de modernidade.
Tendo em vista que “a história da conscientização e do reconhecimento social dos riscos, coincide com a história da desmistificação das ciências (BECK, 2010, pág. 72); os riscos não são apenas consequências do modo de produção industrial, mas na
objetivação narrativa produzidas pelas reflexividade científica. A crise da autoridade científica pode parecer contraproducente no cenário de crise, mas também expõe os limites da ciência, coloca em reflexão os discursos entre o saber e o poder do Esclarecimento (ADORNO E HORKHEIMER, 1985) que pretende dominar a natureza, mas que se vê, nesse contexto, imputado pela contradição crise civilizacional do risco (BECK, 2010).
Sem cair nos perigos da falácia tecnocrática, mas também sem abrir espaço para a tecnofobia, a pesquisa pretende etnografar a partir da abordagem institucional- metodológica da ciência sua dimensão simbólica. Esse esforço é justificado no desenvolvimento científico-tecnológico contraditório e na ciência desencantada que acompanha uma transformação profunda na política, no espaço público e na prática científica.
Mesmo que a agenda sobre os riscos não pretenda uma mudança estrutural, mas através de seus agentes cognitivos, pretende a minimização dos desastres; me questiono se é possível entender as políticas de minimização como uma forma de negação do risco e a a superação como forma de desinterpretação dos mesmos.
Como os riscos passaram a integrar a consciência da crise civilizacional? Como foi possível a construção imaginada (ou concreta) de uma crise civilizacional? Qual o papel ds narrativas científicas nesse processo e como essas narrativas se transformam a partir de movimentos de reflexão e crítica a própria ciência? Como um fenômeno que escapa das nossas faculdades cognitivas está presente através da cultura do medo? A invisibilidade do risco não decreta sua inexistência, mas como a partir de um vocabulário específico constrói a categoria de vulnerável e quais as considerações dos categorizados sobre sua própria condição? Quais as disputas para se ter autoridade de falar sobre o risco? E, por fim, a multidisciplinaridade pretendida pelo CEPED garante a diversidade interpretativa sobre esse fenômeno?
Bibliografia
ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985
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SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos de Alfred Schutz. Rio de janeiro: Zahar, 2012.
SIMMEL, Georg. “A metrópole e a vida mental”, in: VELHO, OTAVIO (comp), O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
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