VEROSSIMILHANÇA: BREVE ROMANCE DE SONHO DE ARTHUR SCHNITZLER E AURA DE CARLOS FUENTES
Gabriela Silva1
A questão da verossimilhança tem sido discutida desde Aristóteles, que a definiu na
Poética, como o elemento que equaciona a relação de criação/imitação presente na Poesia.
Ela situa a operação poética nas fronteiras ilimitadas do possível, entendido como lógico, causal e necessário como modo de arranjo interno solidário, das ações do mito.
Podemos entender então, que verossimilhança é a coerência do mundo ficcional com o mundo real, sendo uma equivalência entre esses dois mundos, é ela que torna a obra algo passível de ser acreditado e entendido, pois a mímesis para Aristóteles não era a capacidade de imitar o mundo, mas sim de imitar o mundo de uma forma coerente.
O verossímil não é necessariamente o verdadeiro e nem sempre o verdadeiro é composto de verossimilhança. Ela é diferente da realidade, mas é necessária para que pareça real.
Para Barthes a verossimilhança pode ser denominada de efeito de real, em que existe uma ilusão referencial, que age sob a forma de conotação:
A verdade dessa ilusão é a seguinte: suprimido da enunciação realista a título de significado de denotação, o ‘real’ volta a ela a título de significado de conotação; no momento mesmo em que se julga denotarem tais detalhes diretamente o real, nada mais fazem, sem o dizer, do que significá-lo; o barômetro de Flaubert, a pequena porta de Michelet afinal não dizem mais do que o seguinte: somos o real; é a categoria do ‘real’ (e não seus conteúdos contingentes) que é então significada; noutras palavras, a própria carência do significado em proveito só do referente torna-se o significante mesmo do realismo: produz-se um efeito de real, fundamento dessa verossimilhança inconfessa que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade. (p.189-190).
Realidade para Greimas, não é aquilo que deva ser entendido como verídico, mas como verossímil a partir de duas formas: uma que a trata como referencia avaliativa que o 1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil.
discurso projeta fora de si e como uma determinada concepção de realidade, as duas formas determinam um ponto de vista do enunciador em relação ao recebedor e representam duas formas de uso do discurso que admite ilusões constitutivas, a referencial que mantém o discurso linear e a enunciativa que se compõe das marcas da enunciação no enunciado. A impressão de parecer verdadeiro se constrói sempre na perspectiva de quem enuncia e não de quem lê a mensagem. A construção da verossimilhança passa pela recepção da informação por parte do interlocutor além de passar pelo discurso.
Para Julia Kristeva (1972) o problema do verossímil é o do sentido, pois ter sentido é verossímil e ser verossímil nada mais é que ter sentido, desse modo a verossimilhança é um efeito resultado da articulação do discurso.
Pensando nessas formas de entender e perceber o verossímil podemos estabelecer relações bem interessantes com duas obras: Breve romance de sonho de Arthur Schnitzler e
Aura de Carlos Fuentes.
Breve romance de sonho de Arthur Schnitzler, publicado em 1926, conta a história
de Fridolin, um médico de relativo sucesso que vive em Viena com a esposa Albertine e a filha. Depois que a mulher lhe revela a vontade de traí-lo com um jovem que havia conhecido numa viagem, Fridolin começa a questionar o casamento e uma crise instala-se na relação. Ao sair de casa para atender um paciente que está no leito de morte ele se envolve com a filha do doente que se diz apaixonada por ele.
Após sair da casa do doente, em um passeio pela Viena noturna, encontra um amigo que o chama para uma festa. Nachtigall é músico e havia sido contratado para que tocasse na casa de um desconhecido. Fridolin é seduzido pela ideia de algo erótico e diferente do seu cotidiano familiar. A partir do momento em que ele decide ir à festa os acontecimentos tomam um rumo insólito: ele tem de alugar uma capa e uma máscara numa loja de aluguéis de propriedade de um homem completamente insano e uma filha com problemas mentais e que se prostitui. A festa, numa casa distante, é uma aventura sinistra, fechada, em que nenhum rosto é visível. Nesse âmbito profano, o mistério e a luxúria se juntam, formando um quadro ao mesmo tempo fascinante e assustador para Fridolin:
Fridolin parecia inebriado, não apenas dela, de seu corpo perfumado, daquela boca vermelha e ardente, não apenas da atmosfera daquele salão, dos voluptuosos segredos que o circundavam ali – estava ao mesmo tempo embriagado e sedento, em razão dos acontecimentos daquela noite, nenhum dos quais tivera um fecho, embriagado e sedento de si próprio, de sua ousadia, da transformação que sentia no íntimo. (SCHNITZLER. 2008, p. 53)
Ao sair da festa, uma série de fatos estranhos acontece: pessoas desaparecem, outras morrem e ele mesmo se sente perseguido. Retorna para casa e conta a esposa o que se passara na noite anterior:
O que vamos fazer Albertine?Ela sorriu e, após uma breve hesitação, respondeu: “Agradecer ao destino, penso eu, por termos escapado incólumes de todas as aventuras – as reais e as sonhadas”.
“Você tem certeza de que é o que você quer também?” perguntou ele.
“Estou tão certa quanto suspeito que a realidade de uma noite ou mesmo de toda uma vida não representa sua verdade mais íntima.”(SCHNITZLER. 2008, p.103).
O que nos mostra Schnitzler com suas personagens é que o anormal é como uma espécie de máscara usada, como uma realidade objetiva e apolínea. Há na trama uma transição entre o regime noturno, em que sonho e ficção se misturam, e o regime diurno, quando às claras o mundo reassume sua verdadeira imagem. Se tudo é aparentemente limpo, lembremos que existem as zonas sombrias permeadas de desejos ocultos.
O que torna a obra de Schnitzler verossímil? O andar da trama, os caminhos que o narrador escolhe para nos mostrar o mundo dos sonhos e da realidade. A aventura de Fridolin é verdadeira por que se realiza a partir de uma crise, é vivida por ele, ainda que surreal, ou irreal, ela é por ele imaginada e atingida. Quando o dia surge, todos os vestígios como que desparecem, assumem outra aparência e tudo fica como que perdendo a nitidez.
Em Aura, novela escrita por Carlos Fuentes em 1962, é narrada a história de Felipe Montero, um historiador que atende a um anúncio de oferta de emprego. O anúncio o descreve perfeitamente e ele acaba por aceitar a oferta: um historiador jovem, organizado, escrupuloso, conhecedor de língua francesa, que tivesse vivido na França. Oferece-se no
primeiro anúncio o valor de três mil pesos, estadia e comida. O segundo anúncio aumenta o valor do salário para quatro mil pesos. Felipe atende o chamado partindo para o endereço indicado: uma casa sombria de aspecto lúgubre, em decadência e repleta de objetos estranhos.
Os moradores da casa são duas mulheres: Consuelo, viúva do General Llorente, morto há sessenta anos e Aura sua sobrinha.
Felipe inicia seu trabalho que é o de terminar as memórias do general. Durante sua estadia estranha na casa de Consuelo, acaba por envolver-se com Aura.
As pesquisas de Felipe o fazem descobrir que entre as fotografias do general, há fotos de Aura ao lado do general e que ele, Felipe, é o próprio general. Ele então vê que Aura e Consuelo são a mesma pessoa e aceita o seu destino e o amor que a viúva lhe oferece:
Quando estão juntas fazem exatamente a mesma coisa: abraçam-se, sorriem, comem, falam, entram, saem ao mesmo tempo, como se uma imitasse a outra, como se a vontade de uma dependesse da vontade da outra (FUENTES. 1998,p.60).
Aura é justamente o encontro entre a morte e o instante. O desejo de Consuelo a faz
criar Aura, um duplo de sua existência, permanentemente jovem. Cercada pela escuridão, afastada do mundo externo, Consuelo mantém viva a si mesma e a Aura. Felipe envolvido pela beleza e a inocência de Aura, acaba encontrando seu próprio desfecho: é ele também o General Llorente nas fotos antigas ao lado de Aura.
A casa é o ponto de abrigo e regeneração: úmida, escura, com ratos, gatos que são queimados no jardim, o próprio jardim que é escondido, os móveis antigos, são elementos que conduzem o leitor a um mundo sobrenatural e estranho:
Possui móveis forrados de seda verde, vitrines onde foram postos bonecos de porcelana, relógios de carrilhão, condecorações e bolas de cristal, tapetes com
desenhos persas, quadros com cenas bucólicas, as cortinas de veludo verde comidas. (FUENTES. 1998, p.22-23).
A mesa em que Felipe faz as refeições é sempre posta apenas para um convidado, ninguém aparece ou visita a casa, não há uma ligação com o mundo externo.
Aura é uma narrativa em que amor, morte e desejo de eternidade co-existem.
Passeamos pelo absurdo de almas que se aguardam e se duplicam em corpos em busca uma da outra.
A literatura é o berço do impossível, do imaginário. Nela encontramos ligações entre mundos desconhecidos e estranhos, Ricardo Piglia afirma que “a verdade de uma história depende sempre se um argumento simétrico que se conta em segredo”; o segredo da narrativa de Carlos Fuentes é justamente os duplos que se apresentam, a fantástica superação do tempo e da morte.
Aura é uma experiência mística, não só dentro da narrativa, mas também a seus leitores, que se movem com o narrador, que entendem a necessidade de cada personagem.
Ao estabelecermos critérios de coerência Aura é então perfeitamente coerente, suas personagens vivem em um tempo lógico de acordo com a precisão com que criaram esse tempo para si, as dores e o amor com que uma personagem atraiu outra.
Ao discutirmos o verossímil ou ainda o acreditável na literatura, estamos antes de tudo, discutindo o discurso empregado na construção do texto literário, na forma como ele é enunciado e quem o enuncia. Ler é compartilhar ideias. Imagens e criações e a verossimilhança age como um componente que torna essas ideias aceitáveis por parte do leitor, formuladas a partir de um referencial de coerência entre elas e concordância com o mundo representado.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. Porto Alegre: Globo, 1966. BARTHES, Roland. O efeito de real. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira.São Paulo: Martins Fontes, 1984.
FUENTES, Carlos. Aura. Trad. Olga Savary. Porto Alegre: L&PM, 1998.
KRISTEVA, Julia. A produtividade dita texto. In GENETTE, G. et al. Literatura e
semiologia. Trad.. Petrópolis: Vozes, 1972.
PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. Tradução José Marcos Mariani Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
SCHNITZLER, Arthur. Breve romance de sonho. Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.