Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121) http://www.ufrgs.br/favet/bioquimica
IDENTIFICAÇÃO
Caso: 2009/2/02 Procedência: HCV-UFRGS No da ficha original: 51443 Espécie: canina Raça: Poodle Idade: 11 anos Sexo: macho Peso: 5,7 kg Alunos(as): Cássio Simioni, Felipe Zeni, Guilherme Carvalho, Maurício Fischmann Ano/semestre: 2009/2 Residentes/Plantonistas:
Médico(a) Veterinário(a) responsável: Álan Gomes Pöppl ANAMNESE
O animal vinha sendo atendido pelo serviço de oncologia em virtude de um carcinoma perianal. Começou a apresentar poliúria e polidipsia, sendo encaminhado para o serviço de endocrinologia, no dia 23/06/09. Na anamnese, foi relatado pela proprietária normorexia e desconhecimento de incontinência urinária ou noctúria; animal apresentava-se prostrado; foi requisitada realização de exames bioquímicos sanguíneos e urinálise, apresentando:
- Colesterol: 368,64 mg/dL (135-270); - ALP: 290 U/L (0-156);
- Glicose: 390 mg/dL (65-118); - Triglicerídeos: 448 mg/dL (32-138).
O plasma apresentou-se discretamente lipêmico. Foi descartada a hipótese de poliúria e polidipsia por hipercalcemia em decorrência do carcinoma perianal, pois os níveis séricos de cálcio encontravam-se dentro da faixa de referência (9,92 mg/dL). Na urinálise, foi detectada glicosúria severa (>1000 mg/dL), além de discreta bilirrubinúria e bacteriúria; foi instituído tratamento com insulina NPH.
02/07/09
O animal retornou sem melhora significativa, segundo a proprietária; esta relatou que persistiam ingestão de água e produção de urina elevada, bem como falta de apetite e mais prostrado em relação a última consulta; o paciente não vinha recebendo insulina em intervalos regulares e foi prescrito um aumento na dose de insulina para 3 U de doze em doze horas e dieta comercial terapêutica para controle de peso. 14/09/09
Foi decidida a realização de novos exames sanguíneos, de urina e ultrassonografia, devido a apresentação de vômitos, anorexia e apatia por parte do animal. As provas bioquímicas mostraram:
- ALT 1236 U/L (0-102); - ALP 3180 U/L (0-156);
- Colesterol 542,36 mg/dL (135-270); - Glicose 70,43 (65-118).
Na urinálise, constatou-se uma menor, porém ainda presente glicosúria (500 mg/dL), proteinúria (30mg/dL) além de poucas bactérias. O laudo ultrassonográfico revelou imagem compatível com cistite, além de as imagens do fígado e vesícula biliar sugerirem edema/ colangite / colangio-hepatite / hepatopatia. Foram prescritos: - Ácido ursadesoxicólico; - Silimarina; - Vitamina E; - Ampicilina oral. 26/11/09
A proprietária relatou que o animal respondeu bem ao tratamento, não apresentando novamente vômitos ou diarréia e passou a aceitar novamente a ração; a ingestão de água voltou ao normal; a proprietária relatou que as aplicações de insulina eram realizadas as 12 e 20 horas, antes da alimentação ser oferecida; a dosagem de glicemia durante a consulta revelou um valor de 53 mg/dL (65-118) ; os exames bioquímicos mais recentes indicaram:
- ALT 110 U/L (0-102);
- Colesterol 328,78 mg/dL (135-270); - ALP 203 U/L (0-156).
EXAME CLÍNICO 26/11/09
Temperatura retal: 38,4ºC (37,9-39,9); tempo de enchimento capilar < 2 segundos; hidratação normal; condição corporal 3 (1-5) ; mucosas róseas ; linfonodos sem alteração ; ausculta cardiopulmonar sem alteração.
EXAMES COMPLEMENTARES
Exame de ultrassonografia (21/09/09):
- Fígado com bordos lisos, parênquima homogêneo, hipoecogênico, veias hepáticas discretamente dilatadas (congestão cardíaca leve / hepatopatia) (Figura 1).
- Vesícula biliar pouco aumentada, paredes espessadas (0,4 cm), conteúdo anecogênico homogêneo. Imagem compatível com edema / colangite / colangio-hepatite (Figura 1).
- Bexiga urinária em repleção adequada, forma e conteúdo preservado. Paredes discretamente rugosas e espessadas (0,37 cm). Imagem compatível com cistite (Figura 2).
URINÁLISE
Método de coleta: micção natural Obs.: Data: 14/09/09 Exame físico
cor consistência odor aspecto densidade específica (1,015-1,045)
amarelo Fluida Límpido 1,034
Exame químico
pH (5,5-7,5) corpos cetônicos glicose pigmentos biliares proteína hemoglobina sangue nitritos
6,0 n.d. ++ n.d. + n.d. - n.d.
Sedimento urinário (no médio de elementos por campo de 400 x)
Células epiteliais: 1 Tipo: De transição Hemácias:
Cilindros: Tipo: Leucócitos:
Outros: Tipo: Bacteriúria: leve
n.d.: não determinado
BIOQUÍMICA SANGÜÍNEA
Tipo de amostra: soro Anticoagulante: Hemólise da amostra: ausente Proteínas totais: 67,7 g/L (54-71) Glicose: 68 mg/dL (65-118) ALP: 203 U/L (0-156)
Albumina: 31,8 g/L (26-33) Colesterol total: 328 mg/dL (135-270) ALT: 110 U/L (0-102)
Globulinas: 35,6 g/L (27-44) Uréia: 26 mg/dL (21-60) CPK: U/L (0-125)
BT: mg/dL (0,1-0,5) Creatinina: 0,5 mg/dL (0,5-1,5) GGT: 2,2 U/L (<64 U/L)
BL: mg/dL (0,01-0,49) Cálcio: mg/dL (9,0-11,3) Frutosamina: 273,49 (170 - 338μmol/L )
BC: mg/dL (0,06-0,12) Fósforo: mg/dL (2,6-6,2) : ( )
BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)
HEMOGRAMA
Leucócitos Eritrócitos
Quantidade: 6.700/μL (6.000-17.000) Quantidade: 7,89 milhões/μL (5,5-8,5) Tipo Quantidade/μL % Hematócrito: 52,0 % (37-55)
Mielócitos 0 (0) 0 (0) Hemoglobina: 18,5 g/dL (12-18)
Metamielócitos 0 (0) 0 (0) VCM (Vol. Corpuscular Médio): 66 fL (60-77)
Bastonados 0 (0-300) 0 (0-3) CHCM (Conc. Hb Corp. Média): 35,6 % (32-36)
Segmentados 4.154 (3.000-11.500) 62 (60-77) Basófilos 0 (0) 0 (0) Eosinófilos 201 (100-1.250) 3 (2-10) Monócitos 670 (150-1.350) 10 (3-10) Morfologia: Linfócitos 1.675 (1.000-4.800) 25 (12-30) Plaquetas Plasmócitos (0) (0) Quantidade: /μL (200.000-500.000)
Morfologia: Observações: amostra com fibrina / agregação plaquetária
TRATAMENTO E EVOLUÇÃO
23/06/09 : Insulina NPH (Protamina Neutra Hagedorn) humana Recombinante de ação intermediária 2,5 U
BID;
02/07/09 : Insulina NPH (Protamina Neutra Hagedorn) humana Recombinante de ação intermediária 3 U
BID; Royal Canin Diabetic 95 g (ração comercial terapêutica com baixo teor calórico e alta quantidade de fibras) BID.
14/09/09 : Insulina NPH (Protamina Neutra Hagedorn) humana Recombinante de ação intermediária 2,5 U
BID; Ursacol (Ácido ursadesoxicólico, ácido biliar fisiológico) 75 mg; Legalon (Silimarina, estabilizador da membrana dos hepatócitos) 140 mg BID; Vitamina E (Antioxidante) 400 U.I SID; Ampicilina oral (antimicrobiano ß-lactâmico semi-sintético) 75 mg TID.
26/11/09 : Insulina NPH (Protamina Neutra Hagedorn) humana Recombinante de ação intermediária 2,5 U
BID; Royal Canin Diabetic 95 g (ração comercial terapêutica com baixo teor calórico e alta quantidade de fibras) BID. Ursacol (Ácido ursadesoxicólico, ácido biliar fisiológico) 75 mg.
A insulina NPH foi instituída para controle da glicemia, e sua dose reajustada de 2,5 para 3 U, pois seguia com o quadro de poliúria/polidipsia. Após o desaparecimento deste, e também devido ao animal apresentar-se frequentemente em estado hipoglicêmico e com perda de peso, teve sua doapresentar-se diminuída de 3 para 2,5 U novamente.
O ácido ursadesoxicólico, a silimarina e a vitamina e foram prescritos em virtude de suas propriedades hepatoprotetoras.
A ampicilina foi o antimicrobiano de escolha para o tratamento da possível colangio-hepatite detectada na urinálise e ultrassonografia.
A ração comercial terapêutica com alto teor de fibras foi indicada para minimizar o aumento da glicemia pós-prandial.
NECRÓPSIA (e histopatologia) Patologista responsável: DISCUSSÃO
O animal foi encaminhado ao serviço de Endocrinologia (23/06/09) por apresentar poliúria e polidipsia. Suspeitou-se que o carcinoma perianal, que é hipercalcemiante (TAMS, 2005) fosse o responsável pelos sintomas, pois segundo Gastón et al. (2005) a hipercalcemia estimula o centro da sede. Após constatação de normocalcemia (9,92 mg/dL), associada a níveis séricos elevados de glicose, colesterol, triglicerídeos, maior atividade da ALP, além de glicosúria >1000 mg/dL e bacteriúria, densidade urinária >1,025 somados a sintomatologia clínica de poliúria, polidipsia e perda de peso, foi definido o diagnóstico de diabetes mellitus (MOONEY & PETERSON, 2009). A deficiência da insulina é a responsável pela manifestação clínica da diabetes mellitus e causa: diminuição da utilização de glicose, de aminoácidos e ácidos graxos pelos tecidos; acelerada gliconeogênese e glicogenólise hepática e acúmulo de glicose na circulação, causando hiperglicemia. Como a concentração de glicose no sangue aumenta, a capacidade das células tubulares renais reabsorverem a glicose pelo filtrado glomerular é extrapolada, resultando em glicosúria. Em cães, esse fenômeno ocorre quando a glicemia está maior que 180 mg/dL. A glicosúria cria uma diurese osmótica, causando poliúria. A polidipsia compensatória previne a desidratação. Apesar da poliúria e da polidipsia, a densidade urinária fica tipicamente na faixa de 1,025 a 1,035 em cães diabéticos não tratados, em parte por causa da grande quantidade de glicose na urina. A diabetes mellitus não controlada é acompanhada por aumento nas concentrações sanguíneas de triglicerídeos, colesterol, lipoproteínas e de ácidos graxos livres (NELSON, 2009). Os níveis de colesterol podem estar aumentados na diabetes mellitus por causa do aumento da produção de Acetil-CoA e consequente aumento na produção e na concentração sanguínea de corpos cetônicos e colesterol (GONZÁLEZ & SILVA, 2006). O aumento na atividade das enzimas hepáticas geralmente é leve decorrente de uma lipidose hepática (NELSON, 2009) A bacteriúria pode ser explicada em razão da relativa prevalência de distúrbios concomitantes do trato urinário em cães diabéticos (HESS et al., 2000). A proteinúria pode ser o resultado de infecção do trato urinário ou de um dano glomerular secundário à ruptura da membrana basal (STRUBLE et al., 1998). Aumentos da bilirrubina na urina sugerem doença hepática ou obstrução biliar (GONZÁLEZ & SILVA, 2006).
Mesmo com a diabetes controlado, o aumento na ingestão de água e na produção de urina em 02/07/09 podem ser importantes sinais clínicos em cães com doença hepática. A apatia e falta de apetite apresentadas já poderiam ser indicativos de uma doença hepatobiliar em estágio inicial (TAMS, 2005). Com o agravamento do quadro em 14/09/09, novos exames demonstraram aumentos na atividade de ALT e FA, bem como níveis elevados de colesterol e glicemia próxima do valor mínimo de referência. Vômitos e
anorexia são sinais clínicos comuns de doenças hepatobiliares (BIRCHARD & SHERDING, 2008; TAMS, 2005). Um aumento da atividade da Alanina-Aminotransferase indica lesão de hepatócitos, com extravasamento da enzima do citoplasma dessas células. Um aumento da atividade da ALP deve-se à produção acelerada dessa enzima, estimulada por colestase (BIRCHARD & SHERDING, 2008). Diferentemente das transaminases, a ALP não é uma enzima de extravasamento associada com aumento da permeabilidade do hepatócito. Particularmente, sua produção é induzida pela obstrução biliar pelas células que revestem os canalículos biliares. Esse aumento na produção é acompanhado da incapacidade em excretar a enzima pelo sistema biliar, resultando no aumento da atividade sérica. Além da obstrução biliar primaria, a atividade sérica da FA é frequentemente elevada na doença hepatocelular que pode resultar em colestasia intra-hepática (TAMS, 2005). Os níveis de colesterol podem estar elevados nas obstruções biliares em virtude de ser excretado pela bile (GONZÁLEZ & SILVA, 2006). A mudança da freqüência de administração de insulina para duas vezes ao dia, quando seu efeito durar mais que doze horas, pode resultar em hipoglicemia, pois a concentração de glicose pode tornar-se cada vez mais baixa com cada injeção subsequente. (TRAPO, 2005)
O laudo ultrassonográfico demonstrou fígado hipoecogênico e dilatação dos vasos hepáticos (compatíveis com hepatopatia), imagem da vesícula biliar sugestiva de colangio-hepatite (Figura 1) e bexiga urinária compatível com cistite (Figura 2).
Por causa de seu papel central no processamento de produtos oriundos da circulação portal, seu suprimento sanguíneo arterial extensivo, sua importante função reticuloendotelial e sua conexão direta com o intestino pelo sistema biliar, o fígado está sujeito a infecções por várias vias, incluindo a hematógena (portal ou arterial) e ascendente, via trato biliar. Entretanto, a infecção bacteriana do fígado ocorre apenas em circunstâncias não usuais, incluindo pacientes com diabetes mellitus (TAMS, 2005). A via mais provável de infecção nesse caso foi a evolução hepática de uma colangite (evidenciada em exame ultrassonográfico). Muitos fatores afetam o controle glicêmico do cão de um dia para outro, incluindo variações na administração de insulina e absorção e variações na resposta à insulina (como estresse, inflamação e infecção). Uma das complicações mais comuns ao alimentar os animais com elevada quantidade de fibras é a hipoglicemia 1 a 2 semanas após o aumento de teor de fibras na dieta. A capacidade de a fibra formar um gel viscoso, prejudicando assim a transferência de glicose e água à superfície de absorção do intestino, parece ser de grande importância na desaceleração da absorção intestinal de glicose (NELSON, 2009). Decorridos 62 dias do início do tratamento, as atividades da ALT e ALP haviam reduzido, assim como o colesterol, em virtude da terapêutica adotada.
CONCLUSÕES
Levada em consideração a sintomatologia clínica, as alterações de exames laboratoriais (bioquímica sanguínea e urinálise) e ao exame ultrassonográfico, somadas à resposta ao tratamento, ficou evidenciada uma colangio-hepatite, provavelmente devida a diabetes mellitus.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BICHARD, S.; SHERDING, R. Manual Saunders de clínica de pequenos animais. 3.ed. São Paulo: Roca, 2008.
GASTÓN et al.; Poliuria: Un desafío a la interpretación y al manejo terapéutico. Bioquimica y Patología
Clínica.; v.69, número 2, p. 38-50, 2005.
GONZALEZ, F.H.D.; SILVA, S.C. Introdução à bioquímica clínica veterinária. 2.ed. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2006.
HESS et al.; Current disorders in dogs with diabetes mellitus: 221 cases (1993-1998). Journal of the
American Veterinary Medical Association, v.217.; p.1166-1173; 2000.
MOONEY, T.C., PETERSON, E.M. Manual de endocrinologia canina e felina. 3.ed. São Paulo: Roca, 2009. Cap.12, p. 137-157.
NELSON, R. W. Diabetes Melito Canina. IN: MOONEY, T.C., PETERSON, E.M.Manual de endocrinologia canina e felina. 3.ed. São Paulo: Roca, 2009. Cap.12, p. 137-157.
Cap. 117, p. 2085 – 2122.
STRUBLE et al.; Systemic hypertension and proteinuria in dogs with naturally occurring diabetes mellitus.
Journal of the American Veterinary Medical Association , v.213, p. 822-825; 1998
TAMS, T. Gastroenterologia de pequenos animais. 2.ed. São Paulo: Roca, 2005.
TRAPO, S. M.; NETA, J. H. Complicações da insulinoterapia em cães com diabete melito. Medvep, Revista
Científica de Medicina Veterinária de Pequenos Animais e Animais de Estimação. v. 3, n. 10, p.
FIGURAS
Figura 1. Ultra-sonografia abdominal. Fígado com bordos
lisos, parênquima homogêneo, hipoecogênico, veias hepáticas discretamente dilatadas e vesícula biliar pouco aumentada, paredes espessadas (0,4 cm), conteúdo anecogênico homogêneo. (© 2009 Adriane Ilha)
Figura 2. Ultra-sonografia abdominal. Bexiga urinária em
repleção adequada, forma e conteúdo preservado. Paredes discretamente rugosas e espessadas (0,37 cm). (© 2009 Adriane Ilha)