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BOSI, Viviana. Poesia Em Risco

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

POESIA EM RISCO

POESIA EM RISCO

(ITINERÁRIOS A PARTIR DOS ANOS 60)

(ITINERÁRIOS A PARTIR DOS ANOS 60)

VIVIANA BOSI

Trabalho apresentado no âmbitodo concurso de Livre-docência junto ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada

SÃO PAULO

2011

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Índice:

Índice:

Apresentação... p. 3

Introdução: marcos iniciais...p. 7

O fixo e o fluxo: notas sobre tempo e forma em Augusto de Campos e

Ferreira Gullar...p. 47

Artes plásticas e poesia nos anos 70 no Brasil...p. 63

Poesia auto-móvel...p. 81

Objeto urgente...p. 102

Ana Cristina Cesar: “Não, a poesia não pode esperar”...p. 122

Começa na lua cheia e termina antes do fim...p. 151

O sujeito-pedra: tornar-se coisa...p. 168

As “idéias-dente” de Sebastião Uchoa Leite...p. 186

Rubens Rodrigues Torres Filho: verso e avesso...p. 197

As faces da musa em Francisco Alvim...p. 211

Poesia em risco nos anos 70...p. 233

Apêndice...p. 278

Anexos...p. 326

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Apresentação

Apresentação

I dwell in Possibility – A fairer House than Prose More numerous of Windows – Superior – for Doors – Of Chambers as the Cedars – Impregnable of Eye – And for an Everlasting Roof The Gambrels of the Sky – Of Visitors – the fairest – For Occupation – This –

The spreading wide my narrow Hands To gather Paradise –

(Emily Dickinson)

Não me parece haver síntese mais perfeita do que poderia ser a leitura interpretativa de poesia do que esta representação metafórica de Emily Dickinson. A dinâmica interdependente entre o empenho construtivo que confere alicerce material e o ganho irrestrito para a expansão de sentidos acompanha a comparação de sua atitude poética com uma moradia de muitas portas e janelas, de cômodos sólidos mas de teto descerrado para o céu, uma vez que tão somente a resistência das paredes permitiria a possibilidade de tantas saídas para o lado e para cima. Que as mãos estreitas possam, quando abertas, apanhar o Paraíso, é o paradoxo da linguagem poética, “fonte que no finito colhe o infinito”, conforme a definiu Croce.

Entrar como visitante convidado no interior da casa, outrossim fechada para o ponto de vista do olhar externo, acorda um apelo indeclinável, mesmo conhecendo de antemão a dimensão instável de tal habitação, cujo centro pode ser o ponto de fuga do horizonte, o zênite celeste ou o reflexo escuro de um poço.

Sob a égide deste emblema, o trabalho que se segue constitui uma tentativa de edificação de questões suscitadas pela leitura de alguns poetas brasileiros cuja obra se desenvolve ao longo de certo recorte temporal, em sentido largo.

Os encontros com a obra de cada um deram-se paulatinamente, de modo que cada estudo, independente, observou seu próprio ritmo. Poder-se-ia, portanto,

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continuar ainda longamente a acumulação de mais e mais poetas caso fosse a intenção deste conjunto de ensaios o panorama cabal de uma época. Mas, num dado momento, sucederam-se cristalizações de problemas teóricos. A necessidade de cesurase impôs, uma vez que alguma organicidade finalmente se produzia, sem prejuízo da vocação assistemática da qual se srcinaram as leituras singulares.

Agora, pretendendo-se reuni-los num volume, esperamos que os leitores divisem certa consistência de perspectiva. Embora autônomos, os ensaios não são estanques, complementando-se de várias maneiras e remetendo-se um ao outro. Não há ordem sequencial, seja cronológica, seja de desdobramento lógico. Dispô-los em sucessão foi um esforço bastante artificial. Confio, contudo, que o trabalho não pareça eclético ou dispersivo, pois foi nossa intenção percorrer determinados trilhos críticos. Isto é, aceitamos alguns postulados e rejeitamos outros, sem precisar desenvolver ou explicitar um sistema ao qual se submeteria cada análise,

mas supondo que emerja afinal coerência.

Assim, para cada poeta (ou tema), buscou-se captar e perseguir um feixe de indagações correlatas que conduzisse para algum centro de ignição interpretativa, sem esgotar nem de longe as possibilidades de compreensão de sua obra. Tampouco houve qualquer preocupação em ater-se a uma única mirada hermenêutica. Colocar-se sob uma teoria prévia que conferisse pedigree aos esforços interpretativos, embora ambição louvável a ser considerada ao longo da vida, não convinha a este tipo de investigação, dado o caráter diversificado de nossas preocupações relativas a cada objeto. Desde o começo da pesquisa, estávamos decididos a não nos submetermos a um arcabouço totalizante, por mais sedutor que parecesse. Advertia Schlegel (1798) ao estudioso de poesia: “É igualmente mortal para o espírito ter um sistema ou não ter sistema algum. Ele terá portanto de se decidir por uma combinação de ambos.” (1994, frag. A 53)

O intento que nos acompanha desde a pesquisa de doutorado é justamente apontar incongruências em conclusões apocalípticas, que enxergam na arte do capitalismo tardio apenas pastiche e ecletismo conformista. Ao mesmo tempo, não compartilhamos das euforias pós-modernas, que vislumbram nas obras atuais a liberdade das derivas e das misturas fragmentárias e velozes, que nos transportariam a algum reino efervescente de virtualidades sempre em formação. Seria ingênuo ou pretensioso recusar as interpretações dos grandes teóricos que

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tratam de nosso tempo, das quais partimos mais ou menos conscientemente, mas que são articulados o mais das vezes sob a hegemonia dos estudos particulares, e costurados por dentro. Por vezes, partes de um pensamento são aproveitados, quando nos convém, sem que concordemos necessariamente com todas as conclusões do autor.

Dito isto, porém, é necessário acrescentar que redigimos uma Introdução, na qual procuramos situar aspectos do período estudado, em suas inquietações culturais. Nela, adiantamos linhas de convicção que irão permear as leituras de alguns dos poetas escolhidos. Na verdade, esse texto desempenha também o papel de conclusão parcial.

A seguir, os onze ensaios que constituem o corpus da tese debruçam-se sobre obras de poetas que começaram a publicar seja ao redor de meados dos anos 50 do século passado (os dois mais velhos, Augusto de Campos e Ferreira Gullar), seja à volta do final da década de 60 ou começos de 70.

Os dez primeiros estudos tratam ora de poetas singulares ora estabelecem paralelos entre eles à volta de determinado tópico. O décimo primeiro ensaio, maior do que os outros, de certa forma continua o papel da Introdução, mas afunilando-se na direção da poesia marginal: mais geral, gira à volta do “poemão” dos anos 70, sem deter-se em nenhuma obra em particular. Por fim, o Apêndice sobre as publicações periódicas (que pertence, como sub-item, a esse último texto) tem uma personalidade distinta do restante da tese, porque se parece antes com uma lista comentada de jornais e revistas do que com um estudo organicamente interpretativo. Embora haja algum exame analítico, pretendeu-se sobretudo registrar e comentar o rol de publicações a fim de reforçar hipóteses que havíamos espalhado pelo trabalho. As reproduções anexas de capas e textos internos de diversas dessas edições possuem a função de fazer reviver o espírito da época para o leitor atual.

Vários poetas representativos estão ausentes. Tal silêncio deve-se a fatores distintos: alguns há que mereceram atenção crítica de muita qualidade, de forma que nada de minimamente relevante teríamos a acrescentar à sua fortuna bibliográfica; outros, talvez, não despertaram em nós suficiente acicate: futuros leitores terão maior capacidade de penetração em sua obra. Ou ainda, há poetas com quem precisaríamos conviver mais longamente para pretender comentá-los. Enfim, nosso propósito consiste em assinalar pontos marcantes num mapa de

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grande variedade de paisagens, na esperança de guiar os possíveis leitores por locais especialmente estimulantes, procurando trajetos alternativos.

Uma observação sobre a bibliografia. Embora tenhamos consignado (quase) todos os livros e artigos aos quais nos referimos ao longo do trabalho, não padronizamos as citações. Por falta de alento regulador, em certos estudos as indicações bibliográficas foram colocadas ao pé de página enquanto em outros comparecem ao final do texto.

Diferentemente de certas livre-docências exemplares, que representam o ápice da realização de uma trajetória de pesquisa acadêmica, este trabalho que ora submeto à apreciação pretende ser parte de um percurso a meio de seu desenvolvimento. Oxalá a ocasião da defesa concretize uma oportunidade de diálogo para aprendizado e futuras reflexões.

Por mais árduos que sejam nossos esforços, temos consciência plena de que esses modestos resultados não correspondem nem de longe à magnitude da epígrafe que ousamos escolher, sem que, com isso, desistamos de continuar a admirá-la, almejando que prossiga à nossa frente.

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Introdução: marcos iniciais

Introdução: marcos iniciais

Tomorrow is easy, but today is uncharted, Desolate, reluctant as any landscape To yield what are laws of perspective

John Ashbery1

Décadas são difíceis de recortar, pois a história se desdobra em camadas. Conforme pondera Gramsci (1968), “um determinado momento histórico-social jamais é homogêneo: ao contrário, é rico de contradições. Ele adquire ‘personalidade’, torna-se um ‘momento’ do desenvolvimento, graças ao fato de que uma certa atividade fundamental da vida nele prevalece sobre as outras, representando uma ‘ponta’ histórica.” (p. 5).

É, assim, importante puxar esta “ponta” para abarcar o contexto brasileiro em dimensões mais amplas, tendo-se sempre em vista a necessidade de, ao situar-se frente à poesia dos anos 70, rastrear os centros nervosos vitais que ali situar-se colocam desde pelo menos o final dos anos 50, e lembrando igualmente que certas obras escritas no início da década podem só ter vindo a lume no início dos anos 80. Ao repensar aquele período, tentamos segurar relativamente a hoje uma extremidade do fio nas mãos.

O conceito de década nem sempre é funcional, pois um ciclo cultural específico pode se desenrolar com pontos fortes de ruptura em momentos diferentes. Embora seja, em princípio, problemático propor-se um contorno temporal, podemos procurar a gênese de certas características centrais a esses anos para compreender como neles se chegou e afinal se saiu, pois alguns fatos se srcinaram muito antes e outros terminaram bem depois do período em tela, ou continuam a se desdobrar. Podemos atribuir nomes a duas correntes principais que deságuam nos anos 60 e lá se transfiguram: uma tendência que chamaremos de “construtiva”, proveniente dos anos desenvolvimentistas da década de 50, e que esteve em seu ápice até mais ou menos 1962, avançando até hoje diluída e transformada. E outra, característica da conturbada década de 60, mas gerada bem antes, que chamaríamos de tendência “nacional-popular”, ou “militante”, que dura

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mais ou menos até 1968 ou 1969, quando se engruvinha em um nó de problemas, a anunciar uma nova inflexão - e então começam os anos 70, que, por sua vez, entram anos 80 adentro, possivelmente até as “diretas”.

Na virada entre os anos 60 e 70, o binômio nem tão paradoxal de “milagre econômico” (aquisição de bens de consumo pela classe média, aumento da indústria nacional, entrada da comunicação de massa)

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e fechamento político (desmonte das forças de oposição e do pensamento crítico, repressão, AI-5 e leis complementares) – enfim, a chamada “modernização conservadora” - trouxe como uma de suas conseqüências o exílio e a impotência de grupos mais intelectualizados em relação aos projetos políticos e debates sobre o país, quer para os que ficaram, quer para os que viajaram. Se, de um lado, este foi o período de acirramento da luta clandestina, de outro, aumentava em alguns a desconfiança acerca dos discursos e tentativas de ação, seja os revolucionários, seja os ufanistas de direita, reformistas ou nacionalistas de esquerda. Crescia o desalento (ou “sufoco”, como então se dizia) também em relação às explicações da realidade, cada vez mais difícil de nomear, desproporcionalmente mais complexa do que as análises que se propunham a examiná-la. Ditadura, nacional-populismo ou guerrilha pareciam opções ideológicas pouco atraentes para muitos: “The best lack all conviction, while the worst/ Are full of passionate intensity” (Yeats, “The Second Coming”). Se há, de um lado, uma literatura irônica de vôo curto, sem horizontes para além do reconhecimento do cotidiano opressivo, há também uma bolha de energia criativa que leva à euforia maníaca alternada à depressão, quando os projetos não se realizam por falta de campo de possibilidades (tempo bipolar).

Localizamos esse momento da década de 70 no Brasil como balizado: 1) politicamente, no início, pelo endurecimento da ditadura, a partir de 68, e, no final, pela passagem para a democracia em 82; 2) economicamente, num arco mais amplo, que se traça entre 1955 e 1979, quando o PIB brasileiro teve a maior variação positiva do mundo. O começo do período é conhecido como a fase desenvolvimentista, representada pela era JK. Depois, entramos nos anos da ditadura militar, cujo auge, do ponto de vista econômico, foi o “milagre brasileiro” (1968 – 1973), interrompido pela crise do petróleo, mas depois

2 Para mencionar balizas bem concretas, lembremos a construção da Transamazônica, a

popularização da TV colorida em tempos de Copa do Mundo, a inauguração da Embratel no Brasil da época, assim como a grandiosa construção da usina binacional de Itaipu, iniciada em 74 e inaugurada em 82, por Figueiredo e Stroessner.

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retomado a fórceps, à custa do endividamento do país, e por fim, a crise do final da década, na qual os defeitos do modelo vêm à luz, coincidindo com a transição para a democracia representativa – que os militares, desgastados, pareciam quase desejar. Em 1975, iniciava-se, com o presidente Geisel, a distensão “lenta e gradual” rumo a uma maior democratização (depois da sucessão de mortes e desaparecimentos, culminando com o pseudo-suicídio de Vladimir Herzog na prisão). Em 1979, num típico arroubo, o último presidente militar, General Figueiredo, resume esse anseio com a frase que se tornou célebre: “Quem for contra a abertura democrática, eu prendo e arrebento”. Estabelecia-se, então, a fase da democracia liberal.

Do ponto de vista cultural, a virada dos anos 60 para os 70 é um momento de inovação em todas as artes.. As referências inaugurais importantes no Brasil seriam: o “penetrável” de Hélio Oiticica denominado “Tropicália” (1967), os filmes “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha, e “Macunaíma” (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, as encenações de “O rei da vela” (1967) e “Roda viva” (1968), pelo Teatro Oficina, dirigidas por José Celso Martinez Corrêa, assim como várias canções emblemáticas veiculadas nos festivais de música popular brasileira: “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso e “Domingo no parque” de Gilberto Gil (ambas de 1967), “Sabiá” (1968), de Chico Buarque e Tom Jobim, “Tropicália” (1968), de Caetano Veloso, “Construção” (1971), de Chico Buarque, dentre tantas outras significativas.

Contudo, não se pode afirmar que iremos encontrar marcos iniciais para a literatura da época. Na forma narrativa, embora possamos arrolar, como exemplos, romances e contos muito representativos das experiências históricas do período, e que desenvolvem técnicas experimentais, não afirmaríamos que houve uma transformação evidente. Livros como PanAmérica (1967) de José Agrippino de Paula, Fluxo-floema (1970) de Hilda Hilst, Me segura qu’eu vou dar um troço (1972) de Waly Salomão, Catatau (1975) de Paulo Leminski, Bar Don Juan (1971) e Reflexos do baile (1976) de Antonio Callado, Armadilha para Lamartine (1976) de Carlos Süssekind, A festa (1976) de Ivan Ângelo,Quatro olhos (1978) de Renato Pompeu, Lavoura arcaica (1978) de Raduan Nassar, os contos de Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll, Rubem Fonseca, João Antonio e Sérgio Sant’Anna, dentre outros, acentuam a indeterminação de gêneros, a mistura de vozes e de estilos em um mesmo texto, o pastiche, a fragmentação –

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características consideradas “pós-modernistas” como extensão radicalizada do moderno – embora a temática urbana tal como neles se apresenta seja mais evidenciada.

Tudo isso, além da predominância da cultura pop, confluirá no tropicalismo, com seus aspectos de teatralização, que irá catalisar e ser catalisado pela experimentação nas artes plásticas, pelo cinema novo, e pelo surgimento de grupos de teatro com ênfase na criação coletiva. Essa estética irá igualmente influenciar a poesia, com a reunião de artistas em grupos articulados para a feitura coletiva de livros e revistas e a apresentação de saraus, com músicas e recitais, seguidos de performances ou happenings (como é o caso das Artimanhas promovidas pelo grupo carioca “Nuvem cigana”). Se não se pode falar em inovação radical, mas em aguçamentos de tendências próprias ao moderno, há no entanto tentativas – frustradas ou não – no sentido de realizar um poema coletivo (com a participação de muitas vozes), inclusivo tanto em relação ao leitor quanto a outras linguagens.

Para Octavio Paz aquele é o momento final da arte moderna, uma vez que se chegou definitivamente a uma “atitude negadora da obra” (1978, p.63) que recusa tanto o futuro como lugar utópico quanto a tradição como referência. Adaptando as idéias do poeta e crítico para o contexto brasileiro, Heloísa Buarque de Hollanda (1980) observa que uma parte considerável da geração que emergia não era engajada politicamente no sentido militante usual, do tipo que acreditasse num projeto coletivo, fosse no sentido marxista do termo (de sacrifício da vida pessoal pela revolução), fosse no sentido capitalista (de economia e disciplina burguesas), fosse em algum sentido religioso (ao crer em valores eternos que fundamentassem a existência): concentrava-se na vivência do momentâneo (p. 111-112). Paz os chama de “rebeldes”, ao invés de “revolucionários”. Cito: “a rebelião da juventude é de natureza corporal e erótica, exatamente porque exalta o presente, o aqui e agora”, e ainda o grupo dissidente e o subversivo no cotidiano, mudando o paradigma do futuro para o presente,3 assim como do partido político

3 Entrevista para a Revista Anima (Rio de Janeiro, n. 2, abril 1977), reproduzida por

Carlos Alberto Messeder Pereira em Retrato de época: poesia marginal – anos 70 (1981), p. 92. Tema abordado por Heloísa Buarque de Hollanda em Impressões de viagem (CPC, vanguarda e desbunde: 1960-1970) (1980). Ver também, especialmente, os vários ensaios do próprio Octavio Paz na Parte III de Corriente alterna (1978) e “O ponto de convergência”, em Os filhos do barro (1984).

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para o protesto das minorias, que preferem, no lugar da militância tradicional, a ação cultural, artística e festiva. Esse “ocaso do futuro” vem acompanhado da valorização do desejo e da imaginação, que substituem o trabalho de criação de formas cristalizadas pela imediaticidade das sensações, com a conseqüente dissolução da arte como objeto autônomo. O happening parece a alternativa perfeita para esses jovens artistas, pois só ocorre uma vez, num único instante, como um ritual que não transcende seu tempo e espaço, em sua “imobilidade frenética” (1978, p. 170). Já não são os mais despossuídos e explorados os protagonistas dos atos de rebeldia, mas jovens estudantes que se desinteressam

completamente dos modos usuais de integração social.

No Rio de Janeiro, em especial, surgiram diversos agrupamentos de afinidade que escreviam e publicavam poesia, como o Nuvem Cigana, o Vida de Artista, o Folha de Rosto, o Frenesi4... Grupos esses que, como dissemos acima,

organizavam eventos, editavam almanaques e calendários, manufaturavam livrinhos, promoviam festas com performances, e que, de várias maneiras, exaltavam a vitalidade do momentâneo. Parte dessa literatura foi apelidada de “marginal”, e caracteriza-se o mais das vezes por uma declarada rejeição de conhecimentos literários técnicos: a linguagem parece despreocupada com os padrões tradicionais de qualidade formal. No seu lugar, o apreço pela

musicalidade espontânea, o gestual, a realização coletiva.

Tratava-se de uma produção à margem do mercado editorial, feita de modo artesanal e distribuída pelo próprio autor ou por amigos. Formava-se assim um circuito alternativo. O fato de estar fora dos estabelecimentos convencionais de publicação, divulgação e circulação suscitava, tanto na forma quanto no conteúdo, um modo de ser “descompromissado” – percebe Cacaso em vários ensaios seus

4 Estas coleções têm personalidades variadas, uma vez que seus participantes pertenciam

a grupos de formação diferente: a Frenesi, mais intelectualizada, a Nuvem Cigana, mais contracultural... ainda assim, há intercâmbios de poetas, amizades e idéias entre elas. Informações deste e dos próximos parágrafos coligidas basicamente dos livros acima mencionados de C. A. Messeder Pereira, idem ibidem e de Heloísa Buarque de Hollanda, idem ibidem. Além de organizar a antologia seminal sobre a poesia do período, que expôs à luz essa produção, Heloísa foi a crítica mais próxima do grupo. O capítulo 3 de seu livro supra citado (“O espanto com a biotônica vitalidade dos 70”) é um depoimento lúcido e vivaz das inquietações da poesia da época. Junto a Cacaso, ela foi a primeira leitora simpática aos poetas marginais.

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sobre o tema.5 Aliás, ele se pergunta: estavam à margem porque foram excluídos ou desejavam se excluir? Ambas as coisas. De um lado, possivelmente as editoras não se interessariam por aquele tipo de escrita tão pouco lucrativa, de outro, essa mesma linguagem utilizada para a poesia era conseqüência da não integração de uma parcela da juventude, que não se situava nas instituições tradicionais.6

Os artistas que firmaram sua voz ao longo deste período tiveram de se haver com alterações sociais e culturais bruscas, que influenciaram a formação de uma linguagem bastante diferenciada tanto em relação à modernização reformista da passagem dos anos 50 aos 60 quanto em relação ao círculo esquerdista mais firmemente engajado nos anos 60 e 70 de oposição à ditadura. Se há afinidade quer com a vertente iconoclasta do modernismo de 22 quer com um ideário surrealista diluído que pregava a aproximação radical de arte e vida, percebe-se logo graus diferentes de corte, negação ou incorporação parcial. Rejeitavam o cerebralismo intelectual das vanguardas (concreta, práxis, processo), assim como seu a-subjetivismo. (Embora possamos discernir influências no aspecto visual e nas “palavras em liberdade” que, apesar da negação consciente, entraram na poesia marginal como dado importante).

Na verdade, creio, essa recusa embasava-se na percepção da diferença de momento social. Os concretistas, no final dos anos 50, jactavam-se dos avanços da técnica industrial e acreditavam nas benesses da modernização cosmopolita, como novos operários da poesia (nunca o PIB crescera tão rapidamente, e ao mesmo tempo, as reivindicações populares). Eram os anos JK, com seu desenvolvimentismo democratizante, em que as artes se internacionalizavam, sob o impulso da abstração geométrica – desde o grupo Ruptura de Waldemar

5 Ver os diversos artigos sobre o assunto de Antonio Carlos de Britto (Cacaso), org.

Vilma Arêas em Não quero prosa (1997) e o estudo fundamental de Carlos Alberto Messeder Pereira, op. cit ., especialmente quando ele faz considerações a respeito da “mercadoria artesanal” que promoveria uma “ironização do progresso” (p. 75) e sobre o antitecnicismo, a “politização do cotidiano”, e o antiintelectualismo como características básicas da produção cultural daquele momento (p. 92).

6 Também a popularização do off-set e a maior facilidade de aquisição de papel de boa

qualidade tornou factível a edição singularizada, de acordo com os caprichos gráficos de cada poeta, barateando os custos e permitindo maior flexibilidade para incorporação de material visual. Isto se refletiu imediatamente nessa produção juvenil, que se apropriou com interesse criativo das novas possibilidades. Assim me informou Flávio Aguiar, poeta e crítico, que na época integrou a histórica antologia 26 poetas hoje , org. por Heloísa Buarque de Hollanda (edição srcinal de 1976), além de ter participado ativamente da imprensa alternativa mais politizada daqueles anos.

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Cordeiro e a famosa exposição da escultura tridimensional de Max Bill na Bienal de 54. Foi apontada mais de uma vez a analogia de princípios entre o ideário primeiro do concretismo e o espírito do futurismo no começo do século: a fé no progresso técnico, a superação do subjetivismo individualista em nome da produção coletiva, serial, o desprezo por certa tradição beletrista, o desejo inovador de incorporar à poesia as conquistas da linguagem gráfica dos jornais e da comunicação de massa. E, principalmente, a energia combativa que se dedica ao experimento sem concessões.7

Também as possibilidades das reformas de base que animaram a esquerda naquele momento contribuíram para um espírito de fermentação política e especial interesse na situação brasileira (e latino-americana). Isto formava, ao lado do cosmopolitismo das vanguardas, um clima de esperanças de superação de nosso atraso e pobreza econômicos e culturais.

No período subseqüente, que aqui apresentamos, esse modelo havia exposto algumas fraturas. A nova síntese do tropicalismo na música, do neoconcretismo nas artes, e do discurso engajado nacional-popular na literatura e no teatro – dentre outras - traduziu muitas dessas linhas cruzadas como formas do “absurdo”8 de nossa situação: de um lado, o ímpeto de renovar a linguagem

alinhando-se à produção pop internacional e, ao mesmo tempo, adicionar, com isso, os desalinhos da contracultura.9 De outro, pesquisar a melhor tradição

7 Mario Pedrosa, já em 59, tanto elogia quanto critica a autodisciplina e o rigor dos jovens

concretos, “inflexíveis ”, opostos aos “romantismos preguiçosos”, mas podendo tender ao dogmatismo, o que, se “tem servido sempre para alguma coisa”, precisaria ser superado para que as obras fossem por fim banhadas pela “atmosfera espiritual brasileira” (“O paradoxo concretista”, em Mundo, homem, arte em crise, org. Aracy Amaral, 1975).

8 A expressão provém do ensaio de Roberto Schwarz, “Cultura e política 1964-1969”

(1978), no qual o crítico sugere a idéia polêmica de que, assim como a ditadura militar associou estrategicamente os aparentemente incompatíveis valores do capitalismo aos mais retrógrados sentimentos de “tradição, família e propriedade”, de modo análogo a estética tropicalista justapunha informações cosmopolitas modernas a formas arcaicas de vida características do Brasil interiorano, criando imagens alegóricas do país. O texto foi escrito no calor da hora, entre 1969 e 1970, e traduz, conforme declara o próprio crítico, posições da época.

9 Quando nos referimos à expressão contracultura, evocamos principalmente os protestos

de maio de 68 na França e seus congêneres europeus, assim como as manifestações coletivas de várias ordens ocorridas na mesma época nos E.U.A (movimento negro, resistência à guerra do Vietnã, conflitos nos campi universitários, etc). Pensamos também no ideário mais amplo que amparava a rebelião da juventude, que primava pela recusa à sociedade tecnocrática. A respeito do tema, remeto aos livros de Theodore Roszak (1972) e de Mario Maffi (1972). Obviamente, o contexto brasileiro requer adaptação do termo. A revolta deflagrada nos anos 60, cujos protagonistas são estudantes, “não inseridos no

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brasileira para com ela dialogar de “forma evolutiva”. As aporias entre mercado internacional e nacional popular, ditadura e transgressão, buscam na ironia e na elipse formas de curto-circuito do discurso que se afinam com a transformação daquela realidade que antes dava sustento às grandes expectativas nas melhorias sociais (afins a outras formas de expressão).10

No Modernismo, a conjunção de modernização cosmopolita e pesquisa de raízes da cultura brasileira havia sido exemplar e fecunda, tanto na literatura como na música e nas artes plásticas. Agora, a cultura de massa permeava a nova linguagem. A feliz equação tornara-se água venenosa, pois componentes políticos e econômicos reacionários, de interesses alheios à democracia imiscuíam-se fortemente em nossa abertura ao exterior. A “dialética” entre localismo e cosmopolitismo, retomada por Gullar (1969) como solução para nossa evolução artística, se chanfra e espedaça nas arestas irregulares de uma cultura que engolia sem digerir nacos inteiros de srcens imiscíveis.

Como conjugar, em meados dos anos 60, a nostalgia do mundo sertanejo nordestino ou do interior de Minas (por exemplo), com o desejo de liberdade e de modernidade tipicamente cosmopolitas? É com isto mesmo que nos deparamos nas letras de Torquato e Gil, e em todo um ideário mesclado de contracultura e valores populares, bem característico do Brasil, não encontrável com esta freqüência e configuração na cultura jovem norte-americana ou européia.11 A

urbanização violenta e súbita, e todas as limitações sócio-políticas pelas quais passava o momento brasileiro faziam emergir um imaginário muito singular, no

processo econômico de produção” e, portanto, sem “recursos que permitissem dar conseqüência política imediata e eficiente a essa negação” (Martins, 2004, p. 160) se alastrará pelo mundo e chegará também ao Brasil, com a diferença evidente de que aqui os sindicatos de trabalhadores estavam desarticulados pela ditadura e o movimento estudantil agia na clandestinidade. Enquanto alguns se orientaram para as ações políticas subversivas, para outros o meio de vazão da rebeldia foi essencialmente comportamental .

10 Lembre-se, como símbolo, da enorme resistência da esquerda às guitarras elétricas e à

forma discursiva alegórica encampada pelo tropicalismo que, para muitos, representava não apenas a contracultura mas sobretudo a adesão ao comercialismo globalizado, reforçando a perda tanto do tesouro cultural do país quanto das possibilidade de transformação revolucionária futura. Tal cisão levou à rigidez das contraposições por um longo tempo.

11 Conjuntura semelhante ocorreu em outros países da América Latina no período,

também dominados por ditaduras e igualmente convivendo com disparidades entre modelos culturais nativos e outros importados “modernos”, com rendimentos estéticos particulares a cada contexto.

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qual se colocavam abruptamente lado a lado o universo rural e citadino.12

Segundo as agudas ponderações de Flora Süssekind (2007), manifesta-se uma variação ampla de tom na cultura brasileira entre os anos de 1967 a 1972. Para a pesquisadora, há um primeiro momento de expansão, em que os experimentos ocorrem “em várias frentes”, abrangendo a música, o teatro, o cinema, as artes plásticas, e a seguir, um período de encolhimento, em que o “desencanto histórico” (p. 39) conduz à dissolução da “coralidade” múltipla e complexa que, por algum tempo, parecia ser a tônica das diversas facetas da cultura. Correspondendo à primeira fase, ela reproduz textos de Oiticica em que o artista propõe um “estado criador geral”, uma arte participativa, e uma espécie de “superantropofagia”, cujo intento seria não apenas a “absorção exacerbada e crítica do colonialismo cultural mas também do repertório imagético brasileiro.” (p. 32). Acrescenta ainda Süssekind que Glauber Rocha e José Celso, concomitantemente, também pregavam uma devoração “bifronte”, que desmontasse o imperialismo, de um lado, e os velhos mitos nacionais, de outro (p. 33-37). Observa-se um “desejo de ações coletivas” (p. 32) correspondendo ao começo do movimento da Tropicalia, que vai aluindo conforme endurece o regime político e esmorecem as esperanças de abertura política. As letras das canções, por exemplo, passam a refletir de forma satírica ou agressiva a repressão, exasperando-se a carga de negatividade e dissonância daquele momento de dispersão e exílio. Oiticica, agora vivendo em Nova York, batiza sua nova fase de “subterrânea”, o que parece inverter a tropicália, como um sucedâneo crítico, quando esta se dispersa.13

12 Voltaremos a esse assunto adiante, no item sobre Torquato Neto.

13 Por tudo isso a crítica reconhece em Oiticica o emblema da transformação da arte

brasileira naquele momento. E nós consideramos seu trajeto importante para compreender o caminho dos construtivistas aos marginais, passando pelo tropicalismo. Em 67, ele prepara o “penetrável” chamado Tropicália, que propõe uma caminhada do espectador

descalço por um ambiente tátil, sensorial, para evocar a impressão de estar pisando a terra, como quando ele deambulava pelo morro de Mangueira, topando com plantas da região, bem brasileiras (gravatá, comigo-ninguém-pode, espada de São Jorge...). Mas, à semelhança de um labirinto, ao final encontra-se um impasse: o participador dá de cara com uma televisão, que provoca a sensação de ser devorado pelas imagens. Em 68, participou de Apocalipopótese, uma grande exposição com obras de Antonio Dias, Lygia

Clark e outros artistas, o que propiciava um contato grupal, comparável a sua experiência com a passeata dos 100.000. Em 69 vai para Londres, onde repete a experiência da Tropicália numa galeria, com ambiente ornamentado de elementos naturais (folhas, água...) com grande sucesso – os ingleses realmente embarcaram na experiência, que lá Oiticica chamou de Éden. Para eles havia mais contraste e estranhamento do que no

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Neste sentido, aproximamos a descrição de Süssekind de dois movimentos sucessivos na arte experimental de Oiticica (e de seus contemporâneos) da percepção de um tom misto tanto nas revistas quanto nos livros de poemas dos anos 70: acoplam-se um clima festivo e grupal a expressões mais sombrias, como se, por vezes na mesma obra, se superpusessem vertentes abortadas de experimentação. Isto se verifica tanto em publicações como a Navilouca e o Almanaque Biotônico Vitalidade (dos quais trataremos adiante) como na poesia de

Ana Cristina Cesar, Torquato Neto, e Cacaso (dentre outros).14

É perceptível a alteração na atitude existencial e poética nos autores que começaram a escrever nos anos 60 e, ainda relativamente jovens, foram afetados pelos novos ares dos 70: em Cacaso, por exemplo, foi sintomática a ruptura com o estilo epigonal derivado do alto modernismo de seu primeiro livro ( A palavra cerzida, 1967). Nos livros posteriores (a partir de Grupo escolar , 1974) um novo tom coloquial “rebaixado” se impõe, diferenciando-se pelo aspecto autocorrosivo e pelo pouco grau de esperança daquele momento.

Brasil. As ruas de Londres são frias, repetidas, encharcadas e monumentais, observa o artista, enquanto sua exposição gera a sensação de estar “de volta à natureza, ao calor infantil de se deixar acolher, como se houvesse uma auto-absorção no útero do espaço aberto construído, que mais do que ‘galeria’ ou ‘abrigo’ era esse espaço.” Nesse momento ele escreve enfaticamente: “E não tenho lugar nesse mundo” – como um exilado em seu país. Não à toa procura em suas últimas obras realizar as “aspirações humanas...livres da alienação de um mundo opressivo”. Tal como Lygia Pape, que nesse período havia criado a casca-ovo, ele cria ambientes que lembram berços ou úteros. Ao final, em Nova York onde mora nos anos 70, passa a compor estruturas aconchegantes, cujo objetivo seria abrigar o homem de um mundo alienado e onde ele poderia viver o que batizou de “crelazer” – traduzindo – ócio criativo ou, em suas palavras, “lazer-fazer não interessado”.

14 Se, por um lado, as relações entre as visões de mundo e questões estéticas de Gullar,

Oiticica, Clark e poetas concretos, por exemplo, já foram analisadas e comparadas em estudos como o de Carlos Zílio, “Da antropofagia à tropicália” in Novaes, Adauto (org.) O nacional e o popular na cultura brasileira (1982), ou o de Haroldo de Campos, “Construtivismo no Brasil. Concretismo e neoconcretismo” em Gonçalves, L. R. (org.) Tendências construtivas no acervo do MAC USP (1996), ou do próprio Ferreira Gullar, que reuniu seus ensaios sobre artes plásticas e poesia no livro Experiência neoconcreta (2007), dentre outros trabalhos recentes de críticos e teóricos provenientes de diferentes áreas de estudo, creio que ainda não foram realizadas muitas análises comparativas entre poemas e obras visuais produzidos à volta dos anos 70, de modo a tentar compreender por

dentro como se deu a resolução formal das questões que circundavam a ambos. Alguns trabalhos intentam sínteses maiores, tendo o cuidado de apontar problemas. Além dos supra citados, destacamos o artigo de Marcos Napolitano e Mariana M. Villaça, “Tropicalismo: as relíquias do Brasil em debate” (1988) e o livro de Frederico Coelho, Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado (2010).

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Predominou, tanto nas artes plásticas quanto na poesia, a língua do pequeno grupo dissidente. Do ângulo das manifestações culturais da época, avizinham-se contracultura e favela nos parangolés e ninhos de Hélio Oiticica, comparecendo nos filmes super-8 de Waly Salomão (e tantos outros) e na alfavela de Arempebe da Navilouca, atravessando a comunidade dos Novos Baianos (que montam tendas no apartamento em São Paulo), desaguando nas dunas da Gal, nas vivências poéticas performáticas da “Nuvem Cigana” (na produção dos Almanaques e Artimanhas) e do grupo teatral “Asdrúbal trouxe o trombone”, nas cooperativas de jornalistas e escritores para a edição coletiva de publicações. A relação entre eles acontece no projeto talvez nebuloso de “mudar a vida”, “politizar o cotidiano”. Resta saber, porém, se num meio politicamente fechado, haveria outros modos de constituir grupos de produção e intervenção, e se esta saída – posto que restrita – não induziu afinal a soluções interessantes.15 Em parte,

procurando ideais pré-modernos, que os hippies e a geração beat haviam carreado (como na mistura que se vê, por exemplo, no álbum duplo “Clube da esquina” dos mineiros) – e fundindo-se tendências naturalistas e até esotéricas junto a outros ideais anarquistas, como o amor livre, o culto das drogas ou estados alterados de consciência, o interesse pelas terapias alternativas, a vivência comunitária. Porém, tais buscas podiam acabar por conduzir a um tipo de isolamento do todo social em nome de uma linguagem da “patota” que se comunica de forma íntima e cúmplice, excluindo, no entanto, o resto do mundo.16

Um fenômeno de refração também se observa em nosso teatro. Por exemplo, o Oficina inspirou-se nas experiências libertárias do Living Theater americano, incluindo em seu elenco não-atores, e incentivando o envolvimento com o público. No âmbito do palco se observa o elogio do improviso e a recusa da obra, com resultados variáveis. É de se notar, no entanto, que enquanto os hippies

15 Segundo depoimento de Capinam, ao tratar de novas parcerias: “Ficaram poucas

pessoas com quem a gente podia ter um diálogo”... “Isso obrigou a gente a forçar mais a unidade dos que restaram para manter um pouco a energia que cada dia se esgota mais e obriga também a sair cada dia mais gente.”... “Todo esse tipo de explosão marginal de uma porção de coisas que não eram aceitas, não eram acadêmicas, passou a surgir em música e houve uma aproximação de todos os setores em torno desse grupo.” (entrevista paraO Pasquim , 1970, apudapud Frederico Coelho, 2010, p. 246-247).

16 Marcelo Ridenti (2000) aproxima a valorização da cultura popular, do exoterismo, das

drogas, da defesa da natureza, etc (característicos da contracultura) do romantismo anticapitalista, que em seu tempo também havia sido considerado regressivo ou irracionalista por seus críticos, utilizando-se, para essa comparação, dos estudos de Michel Löwy e Robert Sayre.

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dos EUA criavam um teatro participativo com intenções agregadoras, aqui, em plena ditadura, José Celso e seu grupo afirmavam querer agredir o público e a si mesmos, para destruir seus preconceitos burgueses. Observa Roberto Schwarz (1978, p. 85 a 89) em sua reflexão sobre o período que, nas encenações, os tabus que regem a distância entre os indivíduos eram sistematicamente quebrados não só para suscitar desejo mas sim, sobretudo, medo e vergonha. As acusações e a zombaria criavam facções no público que não era em geral solidário com a vítima das provocações. Para desmascarar o autoritarismo social uma estética de choque auto-dividida se apresentava, e mesmo uma desqualificação consentida da própria obra teatral.17 Flora Süssekind (2007) ressalta o anseio por violência expresso por vários artistas da época, como uma necessidade de “incorporar a problemática brasileira num nível de expressão revolucionária e ferir o público” (nas palavras de Glauber Rocha), que se explicitaria nos confrontos entre artistas e espectadores (p. 40-41), para tentar a “afirmação de novas relações estruturais, conjugada a uma antiformalização desintegradora, a uma fuga (auto) consciente da forma” que privilegiaria a “desestetização” e o “antiespetáculo” em todas as artes (p. 44).

O livro recente de Frederico Coelho (2010) demonstra, através de pesquisa aturada, as afinidades entre artistas de várias áreas e tendências (provenientes do cinema, das artes plásticas, da literatura, da música e do teatro) na perspectiva de uma estética violenta, batizada, latu sensu, de “marginália”, inspirada no banditismo e na transgressão, que perpassaria o ideário musical da tropicália, antecedendo-o e ultrapassando-o, e do qual ele seria um momento específico. Naturalmente, nem todos os artistas se identificariam totalmente com esta rejeição da sociedade instituída na mesma intensidade radical. Apesar das especificidades, haveria, no entanto, aproximações e intercâmbios dos mais fecundos.

Extraído de seu trabalho, cito Waly Salomão, quando este procura confluências que lhe permitam explicar a nova poética:

[Tropicália é] o desembocar MEÂNDRICO do ateliê Ivan Serpa, do

17 O fenômeno dos festivais de que participavam público e cantores de forma apaixonada

ou virulenta evoca esse clima de integração complicada, do qual também o teatro de José Celso Martinez é um testemunho ao buscar relacionar-se diretamente com o espectador (vaiar, provocar, tocar). Como se percebe, mesmo seu aspecto utópico manifestava-se de forma agressiva – até contra si mesmo e contra o público – ao contrário da unanimidade catártica dos espetáculos do Opinião ou do Arena, nos anos anteriores. Ver a esse respeito, posição diferente da apresentada por Roberto Schwarz em Celso Frederico, “A política cultural dos comunistas” em Quartim, J. (org) História do marxismo no Brasil

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círculo Mario Pedrosa, do suplemente JB, do neoconcreto, da teoria do não objeto, da ideia de superação do espectador, do bicho de Lygia Clark, da arquitetura das favelas, do Buraco Quente, das quebradas do morro da Mangueira, do Tuiuti, da Central do Brasil, dos fundos de quintais da Zona Norte, do Mangue, do samba, da prontidão, da Liamba e outras bossas.18

Não se entende o porquê do recalque da srcem nordestina e dos ritmos sertanejos, ao lado de toda a pesquisa musical da música de raiz amalgamada ao rock e a alguns toques eruditos. Mas ao menos se percebe o desejo de ampliar o repertório, incluindo fatores menos alardeados.

Imaginar que as décadas são difíceis de recortar, porque as marés dos movimentos culturais se comportam por impulsos e fluxos desiguais, também comporta pensar em como definir o final dos anos 70 e quais as suas portas de saída. Esse ritmo de sucessões e inflexões pode ser igualmente questionado. A década contempla amadurecimentos importantes na obra dos artistas, que se firmam numa certa direção (Sebastião, Gullar, Armando, Chico Alvim), mas, ao chegarmos aos anos 80, observamos dois movimentos que parecem opostos: de um lado, em alguns, paralisação ou repetição de paradigmas durante anos a fio, muitas vezes até hoje; e de outro, a interrupção de certas experiências artísticas. Nesses casos, pode-se dizer que há poetas que não saíram daquela década. Se é penoso aceitar que o passado pode ser irremissível e o que foi destruído não será recomposto, pois mesmo quando falamos dele, soa como um fantasma que não pode mais encarnar-se no real - para sempre perdido - também não é fácil suportar a aporia oposta: que a história não se mova e o mesmo se reapresente monotonamente (dois pesadelos...). Existe algo em comum entre esses extremos: o fato de que, uns e outros, ao contrário de seus antecessores nos anos 50 e 60, deixaram de acreditar em projetos de grande monta para o futuro, desistindo de crer na possibilidade de conversão radical da realidade, e interrompendo violentamente sua própria vida e obra. Ou então, continuaram com as mesmas expressões e idéias, como se a história tivesse parado.

Há ainda um terceiro tipo de movimento: poetas que conseguiram ampliar e amadurecer a sua perspectiva, sem modificá-la, tendo sido estabelecida naqueles anos. São poetas cuja qualidade e densidade depende também da reflexão sobre

18 Cf. Coelho, F. (2010), p. 128. O livro detém-se especialmente na análise interpretativa

das relações mantidas pelos artistas da época, trazendo à tona rico material acerca do envolvimento criativo de Hélio Oiticica, Glauber Rocha, Torquato Neto (destacando-se suas crônicas jornalísticas polêmicas sobre música e cinema), Capinam, e outros.

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esses desafios, que se converteram em impulso interiorizado de seu trabalho atual. Do construtivismo à geléia geral

Do construtivismo à geléia geral

Abra as janelas abra as feridas: Pindorama cicatriz do futuro.

Eudoro Augusto19

Do ponto de vista artístico, imagino três camadas em debate que se superpõem, imiscíveis à primeira vista, mas com pontos de contato insuspeitos. Começo o percurso com um exemplo da primeira, que podemos chamar de construtivista-concreta.

Anos atrás estive em Niterói para conhecer o MAC (Museu de Arte Contemporânea), que foi construído no começo dos anos 90 para abrigar uma coleção de arte de um doador da alta sociedade carioca. A coleção mantém uma coerência enorme: são todos quadros, esculturas, objetos, pertencentes a essa tendência que intitulamos construtivista. Não por acaso Niemayer foi designado para desenhar o projeto do museu, tendo estabelecido uma grande consonância entre a arquitetura e a coleção que ela abriga, assim como com o entorno da paisagem e, especialmente, com certo construto ideológico que ali realiza seu veio

de síntese.

Olhando de longe, o museu lembra um disco voador em posição de decolagem. Edificado à beira do penhasco, seguindo as linhas das montanhas, e de noite sendo iluminado por faróis de avião colocados à volta de um espelho d’água que mais aumenta a sensação de vôo, ele se coloca no limite entre a pedra e o mar. As paredes côncavas e brancas, as janelas que rodeiam todo o prédio, a haste em espiral, as cores simples... tudo conspira para provocar a impressão de leveza e descolamento do solo. Talvez seja a mais avançada manifestação do desejo utópico de quem construiu Brasília e decola para um futuro em que técnica, arte e progresso se aliam harmoniosamente. Niemayer, em depoimento, sobrepõe a idéia de disco voador e flor – algo que brota do chão para o ar desafiando a gravidade e

19 Dois últimos versos de poema reproduzido no livro organizado por Gramiro de Matos e

Manoel Seabra, Antologia da novíssima poesia brasileira. Lisboa: Livros Horizonte, 1981.

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procurando a luz, como o engenheiro de João Cabral, cujas formas simples crescem para o céu.

Já as obras que vemos e tocamos do lado de dentro pertencem à fase construtivista de Hélio Oiticica (os “metaesquemas”); ao interesse pelas estruturas matemáticas de Ligia Pape, com seus quadrados e triângulos de montagem; à investigação das dobras de Lygia Clark, que buscava a terceira dimensão para o quadro; às pesquisas espaciais de Amílcar, Weissman, Serpa – todos monumentos à emoção inteligente, às variações de cor e forma proporcionadas pela geometria. O museu oferece algo de lúdico para o espectador, convidado a montar blocos de madeira e a quem é proposto que complete algumas esculturas que lembram figuras de fractais desdobrando-se no espaço. No segundo andar, onde ficam as exposições temporárias, havia uma longa fita branca desenrolando-se com poemas de Haroldo de Campos, combinando perfeitamente com esse ambiente de vanguarda nacional.

O plano piloto, as metas de desenvolvimento, a euforia progressista, as bienais, tudo ali continuava a existir como sonho de um país do futuro. Os volumes e as cores básicas transpiravam claras certezas em suas formas ao mesmo tempo vibrantes e equilibradas.

Foi então que tive a idéia de perguntar ao atendente como é que se limpavam aqueles janelões que davam para o mar: como lavar aqueles vidros? Supõe um esforço humano complicado e perigoso que envolve ser içado por um guindaste colocado sobre uma balsa em dia de mar calmo, e então rodear o cinturão de vidro do museu sem oscilações de maré, tentando passar um escovão em toda a extensão da longa fita de janela circular.

E foi isso que os anos 60 perguntaram aos 50: “Quem construiu Tebas das sete portas?”

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Assim, o que era epifânico em sua agoridade reveladora, tornou-se bolha no espaço, estética paralisada, pois aquela aposta no futuro que iria realizar-se aluiu. Há algo de kitsch no disco voador de Niemayer – um moderno passado, que já esteve na moda. A beleza do sonho de uma década. Cápsula do tempo. Como os poemas hoje circulares de Augusto de Campos, brilhantes no uso das técnicas de computador, mas que mimetizam a estase, e vão do nada ao nada, em sintonia com um tempo esvaziado de real movimento.

Se, segundo Cavalcanti, a própria cidade de Brasília se assemelhava a um poema concreto reticular, minimalista, planificada – em forma de cruz ou avião – a questão seria reconhecer que havia “contradição entre sua forma revolucionária, que a igualava às construções dos países mais desenvolvidos, e a realidade social do país” (conforme observa Souza, p. 114), e, além disso, que já estava latente naquele tipo de edificação sobre pilotis o pouco contato com a terra, tanto do ponto de vista natural quanto cultural.20 Mário Pedrosa, ao observar esse descolamento pouco orgânico da cidade, cultivada em contraste com seu entorno, à qual se chegava apenas de avião, saltando sobre o Brasil, conclui que ela “tem algo de imaturo e ao mesmo tempo de anacrônico” (1998, p. 392), como uma utopia isolada e artificial.21

O início dos anos 60 propõe uma aterrissagem, no que podemos chamar de segunda camada: a cultura engajada – volta ao solo no que ele conserva de mais arcaico. É a estética do cordel, da redondilha, das ligas camponesas, da alfabetização pelo método Paulo Freire com as palavras geradoras do ambiente de trabalho mais pesado e humilde. A favela (ainda semi-rural) e a seca são as paisagens que habitam o cinema. O sentimento do nacional-popular no teatro, na queixada de boi de “Disparada” de Vandré, das músicas de raiz, dá o tom. Muitos

20 Tanto o texto de Lauro Cavalcanti, “Brasília, a construção de um exemplo”, quanto o

de Eneida Maria de Souza, “Arte e estado. JK reinventa o moderno”, integram o livro org. por Wander Melo Miranda, Anos JK: margens da modernidade (2002).

21 Em seu abrangente e incisivo ensaio sobre este período, “Esteticismo e participação: as

vanguardas poéticas no contexto brasileiro (1954-1969)”, Iumna Maria Simon aponta a universalidade abstrata dos manifestos e poemas concretos, que elogiam a técnica, a era industrial, a cultura urbana, sem especificações relativas ao contexto brasileiro: “até que ponto a transposição da proposta construtivista para a realidade brasileira não implica

necessariamente contradições, as quais já se anunciavam no ‘sonho suíço’ em São Paulo?” (p. 348) Ela observa o anacronismo entre a realidade cultural do país e a idealização desenraizada do imaginário modernizador concretista, que termina por tornar-se um “simulacro esteticista” (p. 358). Em Pizarro, A. (org.) América Latina: palavra, literatura e cultura. Vol 3: Vanguarda e modernidade (1995).

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artistas se envolvem de maneira politicamente aguerrida, ligados ao movimento estudantil daquele momento: as primeiras letras de Torquato, Arena canta Zumbi e Tiradentes, o teatro de Boal – todos os criadores estão a serviço da idéia de consciência social, de releitura histórica a partir da perspectiva dos oprimidos...

E o que aconteceu com a estética construtivista? Ou tentava dar o salto participante ou se dividia em poesia práxis, que lembra as associações de significados do método Paulo Freire (“lavra lavra”, de Mario Chamie, podia ser começo de cartilha...) Por que não convencia inteiramente naquele momento? Porque o ideário central – a crença no progresso industrial, essencializada, com seus valores de seriação, trabalho coletivo racional, fordismo, marketing, despersonalização, objetividade, máquina22 – todo esse pacote cosmopolita era posto sob suspeição pelo Brasil profundo. A contraposição de vanguarda e subdesenvolvimento vinha à luz, em toda a América Latina – expressão esta que passa a ser mencionada e conhecida nas diversas revistas culturais dos anos 60 – enquanto as teorias dos concretos buscavam na Suíça de Max Bill e Gorringer, e na Alemanha da Bauhaus e da música dodecafônica e de timbres, os seus avatares. Observa-se então como o plano-piloto da poesia concreta ecoa alguns manifestos do começo do século XX, nos quais a esperança de junção harmônica das inovações tecnológicas e artísticas era radiante (como o cubofuturismo russo, com o qual tinham afinidades).

Por outro lado, já estava embutida na ideologia do construtivismo a concepção de relação entre obra e espectador que vai florescer nos anos 70. A integração arte/vida se esboçava devido à sua fatura quase industrial e anônima. Poesia é ofício e não ritual ou inspiração, afirmavam os manifestos: nas cidades modernas, o artista é como um operário, produzindo projetos urbanísticos, cartazes de propaganda, o design dos objetos, enfim, criando um novo ambiente. O lema de Max Bill, autor da escultura “Unidade tripartite” (hoje no MAC da USP) era “a beleza também é função” – prosseguindo na linha da Bauhaus, para quem o artista é um pesquisador de formas. Portanto colabora socialmente (contra o romântico subjetivo) pregando a integração social da arte. Enfim, a arte pressupunha e acompanhava a modernização. Como os construtivistas soviéticos, os concretos imaginavam intervir na edificação da nova sociedade coletivista e

22 Ver o livro de Gonzalo Aguilar (2005), que menciona e desenvolve essa caracterização

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técnico-industrial (evocando Tatlin, Rodchenko, e Maiakovski) em que a arte se tornaria útil e reintegrada à esfera da vida cotidiana.

Em confluência entre o ideário construtivista e a arte pop, os anos 60 incentivam a criação de objetos que conjugam poesia e visualidade, como os popcretos de Augusto de Campos e Waldemar Cordeiro, assim como os poemas

objetos de Gullar.

Mas, num país bastante rural e desigual como o nosso, estes anseios destoavam e pareciam até produtos do imperialismo, a acompanhar a invasão das indústrias multinacionais. O progresso industrial constituía uma bolha artificial que não trazia riqueza e progresso para o povo como um todo.

Ao longo dos anos 60, a estética engajada, que propugnava uma aproximação do artista à cultura popular, de forma que sua criação se inspirasse na linguagem das classes pobres, e toda a polêmica entre os que defendiam uma estética experimental (considerada elitista) contra os que favoreciam uma poética calcada em formas tradicionais, de fácil decodificação, foi um dos fatores que contribuiu para uma suspeita em relação à arte construtivista, cuja linguagem é cosmopolita. Já a arte engajada queria afinar-se com os signos de cultura rural ou da pequena cidade, para neles encontrar emblemas nos quais pudesse enraizar sua mensagem.

Como se percebe, tanto a estética construtivista quanto a nacional-popular – ambas – propugnavam a interação entre arte e espectador, convertendo o objeto artístico num processo que admitia intervenção.23 Que da conjunção inadvertida

entre ambas tenha nascido interesse especial por uma arte participativa, menos preocupada com a noção de obra do que com a experiência, é uma hipótese plausível. Em parte, a arte característica dos anos 70 srcinou-se também da

aproximação de dois aspectos semelhantes em estéticas opostas (o anseio construtivista por uma arte aliada à vida na cidade,24 e o anseio da arte popular de trazer o espectador para uma reflexão sobre sua vida).

23 A idéia me foi sugerida por Paulo Ferraz, que estudou longamente estes momentos de

transição em sua dissertação de mestrado “Depois de tudo. Vertentes da poesia brasileira contemporânea: Régis Bonvicino e Carlito Azevedo” (2004), quando se refere aos rumos da poesia engajada e do concretismo.

24 Também as concepções do grupo neoconcreto foram fundamentais para a alteração de

rumos, embora, como tenha percebido Ronaldo Brito (1985), ele tenha sido o cume e o vértice destrutivo do projeto construtivista, ao retirar a pintura do espaço bidimensional e levá-la ao espaço real, rompendo o limite de gêneros e buscando a participação do

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Mas, o fator mais relevante não é esse tipo de explicação pelo continuísmo de um derivando do outro, e sim a percepção das mudanças sofridas no Brasil e no mundo naquela fase, em que se acentuava um forte sentimento de fratura entre o momento anterior e o presente, a circundar tanto a poesia quanto as artes plásticas, que iam ao limite de recusar a fatura do objeto artístico durável e simbolizante. Entremos, então, na terceira camada constitutiva, que podemos batizar provisoriamente de “arte em questão”.

Mário Pedrosa considera, em seu texto “Arte ambiental, arte pós-moderna”, de 1965,25 que entramos em novo ciclo cultural: é o fim do ciclo da arte moderna inaugurada pelo cubismo das “Demoiselle d’ Avignon” de Picasso. Não mais uma arte intelectual e pura, mas uma antiarte, em que estruturas perceptivas e situacionais se sobrepõem aos valores puramente plásticos. O pop teria inaugurado essa fase, ao substituir a expressividade romântica e lírica do sujeito pelas mensagens coletivas, de humor ou de crítica.

Hélio Oiticica seria, para este crítico, o primeiro artista pós-moderno brasileiro, nesse sentido de criar uma arte ambiental, em que o espectador precisa vivenciar a cor, a textura, o espaço proposto pela obra, nos sucessivos núcleos, camas-bólides, ninhos, parangolés, dos quais o corpo participa como fonte de sensorialidade. Todo o tempo esse artista quer provocar inconformismo, de forma que suas experiências conduzem-se para além das categorias estéticas, em sua concepção utópica (que derivou de Mondrian) de que a arte ocuparia o espaço da cidade e não seria mais algo separado da estrutura social.

Na srcem das experiências de Oiticica vislumbra-se o contato com o grupo neoconcreto carioca, especialmente a influência da pesquisa plástica de Lygia Clark e das idéias veiculadas por Gullar em especial nos textos “Teoria do não-objeto” (1959) e “Manifesto neoconcreto” (1959), em que o espectador é chamado à interação e a obra passa a fazer parte do mundo real, extravasando a moldura para entrar no espaço comum.26

espectador. Como sintetiza o crítico, a “ruptura neoconcreta” foi o “último rebento do construtivismo e também, sua explosão”, especialmente por intentar uma atuação como “modelo de construção social”.

25 Republicado como apresentação ao livro póstumo de escritos de Hélio Oiticica Aspiro

ao grande labirinto (1986). Repito esta informação no texto constante desta pesquisa “Artes plásticas e poesia nos anos 70 no Brasil”, assim como algumas citações de Gullar.

26 “O não-objeto reclama o espectador (trata-se ainda de espectador?), não como

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Nessa aproximação com o universo urbano reconhecemos um passo que terá conseqüências práticas também para a poesia brasileira, pois esta buscava superar o tardo-modernismo, ou modernismo reclassicizado, para efetivar um estilo ainda mais coloquial, retomando em parte o primeiro modernismo. Desde as experiências concretas, e inspirando igualmente Gullar naquele momento, a poesia intentava, como as artes plásticas, abandonar uma linguagem que apalpava muros de aprisionamento:

Também o poeta busca a experiência primeira do mundo, também ele trabalha no limite da linguagem poética.

Na época moderna, vimos a destruição das formas fixas de estrofe, de verso, para chegar-se ao verso livre. Mas, depois, o verso livre também tornou-se um instrumento estereotipado: rebentou-se a sintaxe e chegou-se à palavra como elemento primeiro. Da mesma maneira que a cor libertou-se da pintura, a palavra libertou-se da poesia. O poeta tem a palavra, mas já não tem um quadro estético preestabelecido onde colocá-la habilmente. Ele se defronta com ela desarmado, sem nenhuma possibilidade definida mas com todas as possibilidades indefinidas. O que importa não é fazer um poema – nem mesmo fazer um não-objeto – mas revelar o quanto de mundo se deposita na palavra.(idem, p. 98-99)

Embora Gullar ensaiasse formas poéticas vizinhas às artes plásticas, tais como o “Poema enterrado” ou os “Poemas espaciais”, quando, depois de passar pela fase mais engajada do CPC, compõe, nos anos 70, uma poesia mais próxima do que será sua trajetória até hoje, voltamos a encontrar muito das preocupações manifestadas em seus primeiros textos. Aquelas idéias reaparecerão modificadas por novas experiências de vida e poesia. Por exemplo, não mais prescindirá da sintaxe, uma vez que concluiu, em certo momento, de que nela se desenrola o tempo, eixo central da linguagem (diferentemente das artes plásticas). Também retornará à forma-livro como suporte que, naquele momento, talvez desejasse superar. Mas a preocupação de que o mundo se deposite na palavra, e de que a linguagem poética possa ser não-metafórica, bastante prosaica e realista, habitará muitos de seus melhores versos. No “Poema sujo” (1975), resíduos de memória em estado bruto convivem com momentos mais melódicos, aproximando-se, mesmo sem querer, da ambigüidade lingüística dos jovens “marginais”, que também promoviam uma poesia impura, entre a linguagem efêmera da experiência cotidiana e algumas breves iluminações imagéticas e/ou sonoras.

ele, a obra existe apenas em potência, à espera do gesto humano que a atualize.” e “A arte não é uma atividade de segundo grau mas um ato primeiro que muda o mundo.” (Ferreira Gullar, “Teoria do não-objeto”, 1959, e “O tempo e a obra”, 1961, Supl. Dom. Jornal do Brasil, republ. 2007, p. 100 e p. 110 respectivamente).

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Há ainda um elemento a considerar, igualmente formador do caldo contracultural dos anos 60 e 70: germinando secreta e recessivamente, o filamento surrealista, que também pressupunha a tentativa de aproximar arte e vida. Ele nos adveio através de ecos franceses, das idéias da Internacional Situacionista e de maio de 68,27 e de influências americanas, mediante a leitura dos beatniks.28

Também a indefinição entre escrita e desenho, assim como a fusão entre diário e texto literário, igualmente aparece em outros poetas escrevendo na época (tais como Torquato Neto, Ana Cristina, Rogério Duarte, Chacal, Cacaso). Multiplica-se o número de publicações em que se cruzavam os interesses mútuos e trabalhos paralelos ou conjuntos de poetas e artistas plásticos partilhando as mesmas inquietações. Acerca de Ana Cristina Cesar, verifica o crítico Gonzalo Aguilar em sua escrita uma “tentativa de figurar na linguagem”, “fluxo ininterrupto, proliferante” “ininterrupto eletro-cardiograma da ‘floating attention’”: “fazer das palavras um terminal dos prolongamentos sensoriais e um testemunho direto do corpo insistentemente presente que fala”

29

... da forma como o fizeram Mira Schendel, Cy Twombly, Henri Michaux, Hélio Oiticica, assim como Chacal, Eudoro Augusto, Armando Freitas Filho – compondo poemas que tanto se aproximam do desenho quanto intentam não fechar-se em obra acabada.

Já os poetas norte-americanos contemporâneos (ou mesmo de uma década anterior) haviam começado a escrever desta maneira, em que o eu se descobre ou se oculta em uma das sete camadas.30 Os brasileiros naquele momento não citam

os seus (quase) contemporâneos da chamada “Escola de Nova York” (John

27 Nicolau Sevcenko, ao resumir o ideário do Situacionismo, apresenta, dentre as

estratégias criativas, uma que nos remete à linguagem poética dos anos 70: o détournement . Segundo o autor, este implica em reaproveitamento e recontextualização de resíduos históricos (Vários autores, Anos 70: trajetórias, 2005, p. 23). Nas artes plásticas, verifica-se este procedimento quando da utilização de materiais reciclados de

diferentes srcens, ressignif icados. Na poesia, observamos que os versos de Ana Cristina, Chico Alvim e Cacaso, por exemplo, são repletos de apropriações literárias ou de frases ouvidas em conversas.

28 O grupo de poetas de São Paulo foi o que mais ostensivamente se aprofundou nessa

vertente estética, publicando inclusive manifestos sobre a necessidade de reativar o surrealismo (especialmente Roberto Piva e Cláudio Willer). Outros artistas foram influenciados de modo mais subreptício.

29 No ensaio introdutório “ Luvas de pelica de Ana Cristina Cesar: el ojo y el guante”, que

acompanha a edição bilingue em espanhol de poemas de Ana Cristina Cesar citada na bibliografia (2006).30Aludo aqui a um verso de John Ashbery: “You are that dream, and it is the seventh

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Ashbery, Frank O’Hara, James Schuyler, entre outros), que haviam iniciado sua produção umbilicalmente conectados aos pintores expressionistas abstratos. No entanto, há coincidências importantes entre eles, como a valorização do que Frank O’Hara chamou de “Personismo”:

não tem nada a ver com personalidade ou intimidade, longe disso! Mas para dar a você uma vaga idéia, um de seus aspectos mínimos é endereçar-se a uma pessoa (outra além do próprio poeta), evocando assim insinuações de amor;

percebi que, se eu quisesse, poderia usar o telefone ao invés de escrever o poema;

O poema está finalmente entre duas pessoas em lugar de entre duas páginas. Com toda modéstia, confesso que isto pode ser a morte da literatura da forma como a conhecemos.;

Por um tempo, as pessoas pensaram que Artaud iria realizar isto mas, na verdade, apesar de toda sua magnificência, seus escritos polêmicos não estão mais fora da literatura do que a Bear Mountain está fora do estado de Nova York.31

Apesar dessas afirmações, sua poesia não é confessional. O’Hara e seus companheiros de geração rebelaram-se, de um lado, contra certa “arte acadêmica” composta por epígonos de Eliot pela décadas de quarenta e cinquenta afora e, de outro, contra o que John Ashbery chamou de “poesia da dor”, em que o artista expressa diretamente seus sentimentos e memórias, sem um trabalho de “coletivização do eu”.

As interrogações que tal postura coloca se relacionam com o sentimento iminente de morte (ou transformação) da arte. Mas talvez não no sentido de final e sim de tentativa de ampliação para além das fronteiras estabelecidas, cada vez mais.

31 ApudApud Donald Allen & Warren Tallman (eds.) The Poetics of the New American Poetry

(1973), ps. 353-355. Frank O’Hara (1926-66), cujos poemas lembram crônicas instantâneas da vida na metrópole, escreveu esse manifesto auto-irônico em 1959. Sua poesia, que deve muito às leituras de Whitman, dos surrealistas franceses, e da

convivência com os artistas plásticos que valorizavam o gesto expressivo, não é, de forma alguma, manifestação espontânea de sentimentos, nem rememoração da experiência vivida,tout court . Como em Ana Cristina Cesar, as referências literárias se entremeiam todo o tempo com fragmentos fugazes de fatos, que se aglutinam em possíveis sentidos metafóricos sobre a velocidade da vida e da morte contemporâneas.

Referências

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