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GARIMPO E MEIO AMBIENTE

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Academic year: 2021

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PROJETO ESPECIAL - DTA

DESENVOLVIMENTO DE TECNOLOGIA AMBIENTAL

r

GARIMPO

E

MEIO AMBIENTE

CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA E A RELAÇÃO NACIONAL-REGIONAL

LÍVIA NEVES DE H. BARBOSA ANA LUCIA LOBATO

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LÍVIA NEVES DE HOLANDA BARBOSA(1) & ANA LUCIA LOBAT0(2)

{1) Universidade Federal Fluminense-UFF - Departamento de Antropologia - Campus Gragoatá - Bloco O - Sala. 433, Niterõi, CEP 24210, RJ, Brasil.

(2) Centro de Tecnologia Minera.l-CETEM/CNPq - Rua 4, Quadra D, Cidade Universitãtia, Ilha do Fundão, CEP.: 21949, RJ, Brasil.

SUMARIO

O objetivo deste trabalho é, num primeiro momento, apreender o ma.pa simbólico subjacente à. noção de "consciência ecológica." e suas várias vertentes, bem como o modelo existente por de trás da atividade econômica que é o garimpo, transformado no opositor por excelência do meio ambiente. Num segundo momento, trata.remos de relacionar esses dois modelos com a. percepção ecológica nacional e regional, e suas implicações para. a atividade de extrativismo mineral.

Com este ensaio o CETEM iniciou uma nova temática, com o objetivo de instituir um Fórum de debates sobre este relevante tema de importância nacional. Esclarece--se que as opiniões expressas são de responsabilidade das autoras.

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I

Alguns anos atrás a questão ecológica não permeava. a vida cotidiana dos cidadãos dos grandes centros urbanos. De meados da década de 70 em diante, entretanto, discussões acerca desse tema tornaram-se obrigatórias nos meios políticos e intelectuais de nossa sociedade. Hoje atingem quase todos os segmentos. Qual o significado da presença marcante dessa temática que há vinte a.nos não suscitava nenhum interesse, fora de alguns ambientes específicos? Em que consiste a proposta de se repensar as relações de nossa sociedade com a natureza e o modelo econômico de sua. exploração? Como compatibilizar meio ambiente e crescimento econômico em uma sociedade como a brasileira, a.tingida por profundas desigualdades sócio- econômicas e regiona.is? Embora, no momento, respostas para essas questões não estejam disponíveis, o seu encaminhamento passa, necessariamente, pelo conhecimento do modelo simbólico subjacente às concepções do homem sobre sua inserção no mundo, a. partir do meio ambiente que o cerca.

Natureza e cultura é um par de oposição central ao pensamento ocidental. Está tão imbricado em nosso senso comum, é tão fundamental em nossa apreensão da realidade, que nos parece impossível imaginar um mundo sem essa distinção tão claramente demarcada. Entretanto, é justamente a essa conclusão contrária que nos levaria. um superficial levantamento etnográfico. Existem sociedades em que essas fronteiras estão frouxamente delineadas, outras que concebem o universo como uma ordem moral, submetido aos ditames dos costumes e ritos sociais. E, ainda, algumas em que nossa idéia de uma ordem, de uma lei natural pareceria inteiramente estapafúrdia.

Da mesma forma como varia a concepção das fronteiras entre natureza e cultura varia também o significado de cada uma e as possíveis relações que as diferentes sociedades estabelecem entre elas. Umas enfatizam o anta-gonismo, outras a solidariedade. A lógica totêmica, comum a algumas das chamadas so- ciedades "primitivas", oferece-nos uma instância ilustrativa de como essas duas entidades sociológicas são pensadas. Através de uma associação metafórica entre grupos humanos e espécies animais estabelecem-se diferenças entre os primeiros, postulando-se uma continuidade entre o mundo da natureza e o mundo da cultura. Onde entre nós temos ruptura e descontinuidade em outras sociedades encontramos solidariedade e contigüídadev '.

Esses exemplos querem indicar que essa distinção que nos parece tão basilar, uma verdade apodictica, é na realidade uma construção cultural, variável de sociedade para sociedade. E mais, a natureza, para nenhuma sociedade humana, é apenas fonte de recursos, matéria-prima de subsistência, mas também condição lógica necessária para a construção do que é "ser" humano.

Esses aspectos não tornam menos importante essa distinção aliás, muito pelo contrário, em um certo sentido reforça a sua dimensão, na medida em que nos indica a porta de entrada para qualquer nova reflexão sobre o mundo físico que nos cerca e quaisquer tipos de mudanças que queiramos implementar.

Historicamente, as relações entre natureza e cultura, na sociedade ocidental moderna, cenário do atual movimento ecológico, caracterizou-se pela idéia de dominação e encompassamento. Conhecer a natureza sempre obedeceu a objetivos finais de seu controle. O conhecimento científico e a tecnologia daí derivada sempre foram utilizados no sentido de expandir a posse e o uso que o homem faz de seu mundo físico<2).

O que distingue uma sociedade de outra é exata.mente a forma e o ritmo como se dá tal apropriação. Entre nós a modalidade desenvolvida gerou implicações que hoje se afiguram como dramáticas para a sociedade humana como um todo. Externalidades foram geradas e um futuro trágico em bases planetárias, paira sobre nós como uma terrível ameaça.

A idéia de progresso ilimitado e o modelo econômico que lhe é subjacente sempre estiveram baseados na exploração dos recursos que em economia, se convencionou chamar de recursos naturais renováveis e não renováveis. Esses últimos podem até ser considerados como a base de nossa sociedade, tendo em

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vista que são as matérias primas indispensáveis para quase tudo que hoje identifica o nosso estilo de vida. Entretanto, a opção por uma sociedade mineral de consumo, a extensão de seus benefícios a todas as sociedades e a quantidade de reservas existentes têm-se revelado incompatíveis entre si. Hoje nos parece impossível, considerando os dados de que dispomos, transformar em desenvolvidos, de acordo com o padrão atual, todos os países do Terceiro Mundo. E mais, se as descobertas tecnológicas, por um lado, geraram avanços indiscutíveis, por outro, não desenvolveram mecanismos de controle eficazes quanto a seus possíveis efeitos negativos, pois até mesmo os chamados recursos livres começam a dar indícios de exaustão.

Hoje em dia, a partir de estudos empreendidos, sabemos que os diferentes ecossistemas possuem uma enorme capacidade de regeneração. Face a qualquer agressão externa, mecanismos são acionados na busca do equilíbrio perdido. Esse processo é rompido apenas quando interferências exógenas ocorrem em tais proporções que destróem a capacidade de articulação de seus mecanismos internos. Essa é justamente a situação em que nos encontramos, à dose exacerbada de exploração de nosso meio ambiente correspondeu um desequilíbrio em iguais proporções. Portanto, o que caracteriza a relação de nossa sociedade com a natureza é a intensidade de sua taxa de exploração. Ou seja, a imposição de um determinado ritmo cultural sobre o ritmo natural.

Embora atualmente isso nos pareça claro, a imposição de um ritmo sobre o outro foi até bem pouco tempo e ainda é para muitos grupos, considerado um fator positivo. Nesse modelo, a natureza sempre foi considerada como uma fonte infindável de desafios para o homem. Uma antagonista que precisava ser vencida e dominada, fonte de representações negativas. Nosso imaginário social está repleto de odisséias onde heróis e vilões estão associados, de forma direta ou metafórica, à. ordem sociale à ordem natural, respectivamente, simbolizando a eterna luta do homem contra as forças irracionais da natureza.

É claro que essa representação negativa não é monolítica e absoluta no interior da sociedade ocidental(3). A ordem natural para. nós também pode ser uma mãe dadidosa, uma cornucópia de bens. Dependendo dos valores que se quer enfatizar, podemos acionar uma ou outra representação. Quando questionamos o modelo urbano industrial e suas conseqüências, geralmente acionamos a natureza ruralista, ou seja, aquela que construímos como campo, por oposição à cidade. Por outro lado, quando se trata de destacar a capacidade intelectual do ser humano em confronto com seu lado instintivo, remetemo-nos à imagem da natureza como força. irracional. Contudo, subjacente a ambas as representações encontramos, na real- idade, uma natureza humanizada, feita à. imagem e semelhança de seu criador. Tanto numa como noutra está em jogo é a idéia de sua domesticação, de seu controle como forma ideal de relação.

Recentemente observamos uma mudança de paradigma: de objeto sobre o qual o homem atuava, a natureza passou a sujeito. O conhecimento técnico científico utiliza.do, até então, para. fins pragmáticos de dominação, volta-se agora para a busca de sua preservação, levando em conta, em suas práticas intervencionistas, sua. dinâmica interior.

Homem e ordem natural, nessa nova perspectiva, embora ambos sujeitos, não se encontram numa posição equivalente de valor. Esta última de encompassada passa a encompassadora.. É justa.mente essa percepção da ordem natural como fonte limitada de recursos, possuindo um ritmo e um equilíbrio que lhes são característicos, que se encontra na. base da. noção de consciência. ecológica.

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II

Essa mudança estrutural ocorrida na percepção das relações entre a sociedade moderna e o seu meio ambiente, gestada na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, chegou à. sociedade brasileira sob o signo da modernidade. Em menos de quinze anos ganhou espaço suficiente para. se tornar um de nossos principais temas de reflexão. Hoje é impossível, do ponto de vista político, ignorar a. problemática ambiental, sob pena de ser identificado com os setores menos progressistas da sociedade. A ecologia tornou-se, para quase todos os grupos sociais, uma saída competitiva na arena política.

As razões para a penetração desse movimento transcendem, de muito, a pura e simples degradação de nosso meio ambiente. Elas envolvem questões de ordem mais ampla, algumas das quais se colocam fora do âmbito específico da sociedade brasileira.

O esfacelamento do socialismo no leste europeu deitou por terra a única alternativa política e econômica apresentada ao sistema capitalista, deixando um vácuo filosófico, que abriu caminho para o aprofunda- mento do debate ecológico. As semelhanças estruturais existentes na organização lógica, intrínseca aos dois movimentos, foram fundamentais para que o espaço deixado em aberto começasse a ser preenchido. A oposição entre um presente injusto e degradado e um futuro equânime e naturalizado reproduz a mesma forma de incorporação do tempo existente no interior da filosofia socialista. O presente é sempre qualitativamente inferior ao futuro. O que existe de melhor está sempre ainda por vir. No primeiro caso pela construção da sociedade socialista, no segundo pela reconstrução da naturezaí 4).

O status ontológico que a categoria indivíduo recebe em ambas as tendências possui densidade simbólica semelhante. De elemento englobador, na exposição de princípios e programática, passa a cate- goria englobada. na operação prática das propostas. No socialismo, de sujeito normativo das instituições, o indivíduo termina como hierarquicamente submetido ao Estado. No discurso ecológico, de sujeito do meio ambiente passa a um dos componentes da ordem natural(5).

Ao mesmo tempo, os problemas que o socialismo não se mostrou capaz de resolver, bem como os que ajudou a criar, em razão de haver adotado a mesma modalidade de exploração da natureza do sistema capitalista, foram incorpora.dos pelo discurso ecológico como fazendo parte de um mesmo cenário.

A

degradação do meio físico agrega-se, agora, a temática social das injustiças e desigualdades, para juntos formarem o conceito de poluição ambiental. E à. sociedade socialista de um futuro que não veio, superpõe- se o mundo verde da ecologia, que ainda está por vir.

Essa junção ao nível ideológico e programático da questão social e do meio ambiente, permitiu o real- inhamento da. arena política, com o estabelecimento de alianças impensáveis em outros tempos, quando o parâmetro era o posicionamento de cada grupo em face da distribuição de riqueza entre os diferentes segmentos sociais do país, aumentando a importância da ecologia enquanto saída competitivaC6).

No Brasil a questão ecológica ganha contornos especiais, pois além de se posicionar face às composições anteriores, apresenta devido ao momento histórico atual, dilemas particulares. Entre as elites políticas e ao nível simbólico dos grupos que se colocam como produtores do nacional, a ecologia e a preservação das sociedades indígenas se tornam cada vez mais, um sinal diacrítico que possibilita. a. inserção do País entre as nações do Primeiro Mundo e um valor positivo para a organização das prioridades internas da nação. Contudo na operação prática do sistema, as questões provenientes da necessidade de crescimento econômico e da carência material de grande parte da população confronta-se com a inexistência de um caminho já. delineado para a sua compatibilizção com a preservação ambiental<7). O que observa.mos,

em muitas circunstâncias, é a aplicação prática de dois modelos excludentes. Um ecológico, baseado no pressuposto da necessidade de um novo tipo de desenvolvimento econômico, e outro respaldado no antigo paradigma. do crescimento ilimitado, que não tendo ainda substituto, coloca o cuidado do meio ambiente como mais um de seus vários itens técnicos.

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Esse impasse se agudiza quando alcançamos a esfera regional. Se, por um lado, ecologia e modernidade, como a última campanha presidencial demonstrou, são apresentadas como valores fundamentais a nível nacional, por outro, no âmbito regional, a proeminência de ambas é no mínimo controversa. Hierarquica- mente encompassadas ao nível político nacional, essas comunidades e suas lideranças locais são levadas a incorporar o discurso da modernidade para manterem seus vínculos com os centros decisórios e, ao mesmo tempo, perseguirem o crescimento econômico nos moldes anteriores<8). ·

A região amazônica apresenta-se como uma arena privilegiada para a observação da dinâmica gerada pela existência de uma nova ética ambiental, a orientar as relações homem-natureza, e o aproveitamento econômico da região. Nesse local encontra-se, lado a lado, o conjunto de sociedades primitivas mais bem preservadas do contato com o branco do planeta, grandes jazidas minerais, incomensuráveis reservas biológicas e a forma considerada mais predatória de exploração mineral; o garimpo. Agrega-se a isso a atenção mundial voltada para a preservação da floresta úmida, considerada patrimônio da humanidade e reserva de esperança do planeta por um mundo mais verde(9).

III

Na década dos oitenta ocorreu, na região amazônica, uma incrível visibilidade da atividade garimpeira, conseqüência do segundo ciclo minerário da economia nacional e de uma política de ocupação de fronteiras, idealizada pelos adeptos da geopolítica dos governos militares.

O impacto inicial, gerado pela descoberta de grandes jazidas minerais, deu lugar, rapidamente, às questões econômicas de seu melhor aproveitamento e da degradação ambiental, fruto do assoreamento dos rios, da contaminação por mercúrio e da descaracterização da paisagem. A euforia que se seguiu às descobertas de Serra Pelada, Gurupi, Cumaru, Madeira etc. foi aos poucos sendo implodida pela reação de alguns grupos da sociedade brasileira que passaram a questionar o modelo de crescimento econômico a qualquer preço, dominante na década de setenta. A riqueza do ouro como valor positivo ficou atrelada

à importância simbólica atribuída. à preservação das sociedades indígenas, ao santuário ecológico que a Amazônia representa, às condições de trabalho concretas a que estão submetidos os garimpeiros, e aos custos efetivos envolvidos na ocupação de fronteiras.

Neste contexto, garimpo juntamente com o desmatamento e os grandes projetos do governo para a região foram transformados em atividades símbolos de uma ética de relações com a natureza e com o homem que se deseja extirpar. Um outro complementar a ser exorcizado. As razões, contudo, para essa postura, no caso específico da atividade garimpeira, estendem-se, no nosso ponto de vista, para além das questões objetivas da poluição mercurial. Incluem a forma como a lógica implícita a esta atividade ganha um sentido peculiar à luz de determinados argumentos enraizados em modos específicos de se perceber o garimpo e a própria questão do crescimento.

Já vai longe o tempo em que as lideranças garimpeiras tratavam de negar com veemência as acusações quanto aos danos causados ao meio ambiente oriundos da utilização do mercúrio. Nesse sentido, é exemplar a atuação performática de José Altino Machado ingerindo esta substância frente às câmeras de TV, a fim de comprovar seu caráter inofensivo. Hoje o discurso das lideranças mais expressivas incorpora a questão ambiental como um tema merecedor de atenção especial<10). A possibilidade de se

substituir o mercúrio por tecnologias menos impactantes, aventada por membros da própria comunidade garimpeira, nos levaria a conceber um garimpo do meio ambiente. Embora não concretizado é evidente a sua possibilidade empírica. Além disso, a sugestão da criação de reservas garimpeiras, por parte dessas mesmas lideranças, é mais uma demonstração efetiva da disposição existente no interior do garimpo a se ajustar aos novos tempos.

'

Contudo, um exame das estratégias de acusação dirigidas a essa atividade econômica, nos indica que as demonstrações da disposição existente de parte de membros dessa comunidade em controlar os seus

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efeitos negativos, não têm sido considerados suficientes. Em geral, ou são ignorados ou rejeitados em bloco, indicando que a questão é mais ampla, dizendo respeito à. lógica da atividade em si e aos valores que lhes são associados, fazendo-a polêmica aos olhos de alguns grupos da sociedade.

A ocorrência mineral, principalmente a de alguns metais como o ouro, é aleatória na. natureza. Isso implica que a atividade extrativa, seja esta em que modalidade for, vai em busca do seu próprio" objeto". No caso do garimpo, o tipo de tecnologia empregada e de depósito explorado faz da procura constante condição necessária para a existência da própria atividade. A "exaustão" de uma área significa a ne- cessidade imediata da busca de alguma outra, resultando na freqüente mobilidade de massas humanas em permanentes deslocamentos no interior do país a procura de locais mais promissores. Os garimpeiros são, portanto, em uma linguagem metafórica, representa.dos como homens desenraizados, que caminham para onde o ouro aponta, não tendo qualquer preocupação com as conseqüências da exploração em que estão envolvidos, ou com o meio ambiente que os abriga, nem mesmo com as populações que, de forma eventual, se relacionam. Tudo isso leva a uma imagem da atividade garimpeira como intrinsicamente febril. Uma. corrida desenfreada em busca do ouro, constituindo-se na imagem perfeita do capitalismo selvagem e predador, aquele que não leva em conta nem seus agentes econômicos, nem o ambiente físico em que se insere. A exploração desenfreada da natureza é associada a exploração desmedida do homem.

A idéia de zoneamento ecológico, definindo áreas de preservação ambiental, nas quais estariam ex- cluídas a realização de determinadas atividades, entra, assim, em choque com a filosofia do garimpo. A mobilidade e a concepção de tempo que lhes são características dificultam, também, qualquer tenta- tiva de racionalização, tornando-a, nesse sentido, incompatível até mesmo com a ótica de exaustão do crescimento ilimitado. Ao trabalhar de maneira predominante com o ouro aluvionar, utilizando recursos técnicos limitados, o garimpo deixaria de exaurir a reserva, aproveitando apenas 50% do metal manuse- ado. Infringe, portanto, alguns dos postulados básicos do modelo econômico que define a infra-estrutura da modernidade: eficiência, racionalidade e rapidez. Enquanto atividade econômica não se mostra capaz de alcançar maior produtividade aliada a menor custo, durante o maior período de tempo possível, de forma que a taxa de retorno de capital investido esteja inserida dentro da média histórica, ou acima dela, considerando-se os investimentos desse tipo(11).

Se tomarmos a questão garimpeira do ponto de vista formal a situação se agudiza. ainda mais. O movimento ecológico também construiu sua idéia de natureza e de como devemos nos relacionar com ela. Embora essa idéia não seja monolítica, comportando variações no interior do movimento, um componente fundamental a todas é a idéia da ordem natural como harmônica, não violenta, fonte de vida e equilibrada. Não se trata de indagar da correspondência dessa imagem ao funcionamento "real" da. natureza, mas de apontar para o fato de o garimpo ser tido como o reverso da medalha. em termos dessa visão. Adjetivos tais como brutal, desarmônico, violento e estéril são bastante apropriados para caracterizá-lo.

Portanto, num quadro geral das representações que a garimpagem suscita, temos vagas humanas em movimento contínuo e desenfreado, movidos por um esta.do de excitamento febril, que as induz a. comportamentos violentos, revolvendo as entranhas da terra e desnudando as margens dos rios. São imagens eivadas das noções de descontrole, de violência, de desequilíbrio e morte. Nada mais em desacordo com o que é desejado pelo novo paradigma. ecológico(12).

Não é de surpreender que, diante desse quadro, a grande empresa de mineração surja como a melhor alternativa para a exploração mineral na região amazônica, e que cada vez mais seja assim avaliada por quase todos os grupos que se opõem ao garimpo: entidades civis e religiosas de proteção ao índio e associações ambientalistas.

Sob a ótica da racionalidade, a empresa oferece um pacote de vantagens com as quais o garimpo não pode concorrer. De imediato apresenta como mais factível um controle efetivo sobre as conseqüências da intervenção no meio ambiente. Permanecendo mais tempo no mesmo lugar para acompanhar de perto os efeitos da tecnologia. empregada, reduzindo em grande parte o impacto de grandes levas humanas

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vagando soltas no interior do país. Com a utilização do trabalho assalariado, assenta o homem por longos períodos e domestica. as relações de trabalho "selvagem" próprias ao garimpo. E, por fim, o investimento maciço de capital possibilita diminuir consideravelmente o número de "brancos" que porventura. entrarão em contato com as sociedades indígenas.

Se o garimpo é intrinsicamente ineficiente, irracional e mais predatório do que a empresa em todos os sentidos, é algo que a cada dia parece mais discutível, sobretudo se considerarmos a existência. dos poucos trabalhos que analisem a atividade garimpeira em seus meandros. Algumas evidências sugerem conclusões diferentes. Em recente trabalho sobre a corrida. do ouro na Amazônia, David Cleary (1990) mostrou que diante das condições locais o garimpo é bastante eficiente, mesmo se o abordarmos sob a ótica da racionalidade industriaI(13). Tanto o é que algumas empresas de mineração estão adotando e adaptando técnicas garimpeiras. Conhecendo-se a visceral incompatibilidade da região amazônica com as instituições econômicas da sociedade ocidental, não seria de surpreender que as conclusões apontassem na direção inversa. a que no momento o acoplamento de um conjunto representacional a alguns dados objetivos indicam(l4).

Apesar do paralelo, não é nosso objetivo aqui realizar uma avaliação do garimpo, item por item, em comparação com a empresa de mineração. Limitamo-nos a chamar atenção que a opção é, em última instância, política. A pretendida objetividade dos relatórios técnicos não resiste a uma análise detalhada. dos valores implícitos em que estão baseados (15). O que nos parece sugestivo, contudo, são essas múltiplas implicações que se colocam em todas as dimensões para a atividade garimpeira. Além dos aspectos objetivos da contaminação mercurial, do assoreamento dos rios, a constituição, o ritmo, a. lógica. e a ética dessa atividade a coloca na contramão da História; sem espaço e tempo para se atualizar.

IV

Contudo o garimpo, pode ser percebido dentro de um outro contexto, que escapa aos parâmetros que orientam uma atividade de surto. Para isso, se deve inseri-lo num modelo tradicional da região amazônica de exploração do meio ambiente: o extrativismo. Neste, a atividade garimpeira é equivalente

à. extração da borracha, à coleta da castanha, à. agricultura ribeirinha. Todas complementares entre si, todas sazonais e tradicionais na. região(16).

Diluído no seio de outras práticas econômicas o garimpo perde seu aspecto "febril" e "patológico", não representando mais a terrível ameaça aos dois paradigmas vigentes no interior da sociedade brasileira. Em se tratando do extrativismo, o que é questionado não são as atividades econômicas em si, mas o próprio modelo.

Vários estudos sobre a análise dos critérios técnicos que informam as avalíações dos RIMA deixam claro que o modelo preferencial pensa.do para a sociedade brasileira é o urbano industrial. Todas as formas de existência social que se colocam fora desses parâmetros são definidas através de critérios de falta e carência<17). A única alternativa. considerada legítima a essa modalidade é a agricultura estabilizada, as

demais sendo encaradas como fora do âmbito de uma economia moderna.

Nesse sentido são sintomáticas as tentativas de se pensar a inserção da Amazônia sempre através de projetos agropastoris que, sistematicamente, têm-se mostrado fracassos retumbantes. É também ilustrativo da insistência nessa forma o status de verdade indiscutível que lhe é conferida. Agregai-se a isso o fato de que, tanto os meios acadêmicos como a política oficial não terem, historicamente, considerado a existência de outras alternativas à agricultura estabilizada para as regiões interioranas do país. Deve-se, contudo, que nos últimos tempos tornou-se público a proposta da via extrativista, através da. atuação política de Chico Mendes, respaldado pelo trabalho de alguns grupos ativos na. militância ecológica.

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como uma opção apresenta alguns impasses. Encontram-se eles ligados ao modelo de desenvolvimento econômico ainda em prática. e às relações do novo paradigma ecológico com os dilemas da carência material e, portanto, de sua desejada superação.

O modelo extrativista caracteriza-se, justamente, pela proeminência do ritmo natural sobre o cultural. A atividade econômica para ser bem sucedida deve obedecer à taxa de reposição "sugerida" pela natureza. O respeito ao ciclo vital está assim diretamente relacionado a uma oferta constante de bens materiais.

Esta modalidade de exploração econômica se choca de frente com a dinâmica do conceito moderno de crescimento, que se baseia na imposição do ritmo cultural sobre o natural, como já vimos. É daí que surge o primeiro impasse. Considerando-se o conjunto da sociedade brasileira como um todo, e o projeto de desenvolvimento em que tem sido talhado ao longo dos anos, coloca-se a questão da adoção de um modelo considerado arcaico e primitivo justamente, para a região que compõe a maior parte do território nacional. Segundo os parâmetros da modernidade, que incluem noções como eficiência, racionalidade, emprego de alta tecnologia etc, onde inserir uma forma econômica cujo funcionamento está alheio a todos esses critérios? Em termos mais figurativos, seria factível pensar parte de uma sociedade moderna estruturada em consonância com o ritmo natural?

O segundo dilema é de ordem "técnica". Quanto de densidade populacional esta opção poderia suportar? Qual a taxa ótima de reposição das reservas extrativas para a manutenção de um certo nível de vida? Embora o conceito de ecossistema seja hoje extremamente popular, na verdade não se conhece tão bem sua mecânica. O dimensionamento de todas as relações envolvidas e a hierarquia existente entre elas nos são desconhecidas. Por conseguinte, torna-se fundamental para a adoção da modalidade extrativista um maior conhecimento dos impactos causados pelo homem ao meio ambiente.

Para a consciência ecológica, contudo, o modelo extrativista é altamente satisfatório. Constitui- se num casamento perfeito entre atividade econômica e preservação ambiental. Essa visão ancorar-se num pressuposto valorativo que identifica práticas regionais de utilização do meio ambiente com aquelas condizentes com a natureza.

De qualquer forma, essa postura consegue fazer a ponte entre o valor positivo atribuído ao meio ambiente a nível nacional e a apreensão do verde a nível local. É evidente que as matrizes que informam ambas as visões são inteiramente diferentes.

Para os habitantes da região amazônica, a floresta, e, conseqüentemente sua manutenção, está ligada de forma direta à sua sobrevivência. Para os ecologistas, a mobilização se dá em torno dos efeitos causados pelos avanços tecnológicos e vividos pelo Primeiro Mundo. É claro que no caso das populações regionais não podemos falar propriamente em consciência ecológica, pois a inserção histórica não passa pelos problemas trazidos pela revolução industrial, sequer pelos desenvolvimentos posteriores das idéias de escassez, esgotamento das reservas naturais a nível planetário. A relação dessas populações com o seu meio ambiente não se dá. através de tais mediações. Trata-se, na verdade, do próprio substrato de sua vida sócio-cultural. Dentro daquele universo, onde o verde é abundante, foram produzidos os seus mitos, a sua cosmologia e sua visão de mudno. Em contato com ele aprenderam a forma que lhes é típica de estar no mundo.

Portanto o que se coloca como problemático nessa instância é a possibilidade de se transformar o valor positivo da ecologia a nível nacional, em prática concreta de acordo com o modelo de crescimento. No que toca especificamente ao garimpo, a questão nos remete a suas implicações simbólicas. Se até a década dos setenta era visto como uma entre outras atividades extrativas, depois do início do segundo ciclo minerário da economia. nacional sua posição foi alterada. Passou a ser apreendido, exclusivamente, sob a modalidade de surto e no interior de um contexto valorativo, que qualifica a riqueza produzida como hierarquicamente inferior aos danos infligidos, tanto às populações nativas como ao meio ambiente. O que se coloca então é a possibilidade de inseri-lo, novamente, no interior do modelo extrativista.

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NOTAS

1) A respeito do totemismo ver Lévi-Strauss, Claude. Totetismo Hoje. Petrópolis. Editora Vozes, 1970. O Pensamento Selvagem. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1975.

2) No que concerne à história. da relação homem-natureza ver Thomas, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo, Cia. das Letras, 1989.

3) Opus cit., 1989.

4) Sobre a relação ecologia e socialismo ver Viola, Eduardo. "O movimento ecológico no Brasil {1974- 1986)". ln Pádua, José Augusto. Ecologia e Política no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Espaço e Tempo, 1987.

5) Sobre a noção do indivíduo ver Dumont, Louis. Homo Hierarchicus, Paris. Gallimard, 1966. 6) Pádua, José Augusto. O que é Ecologia. São Paulo, Brasiliense, 1985.

7) Para a relação entre ecologia e modernidade ver Barbosa, Lívia. Representações nacionais e garimpo: a visão externa e a visão interna. Relatório Anual, CETEM/CNPq, 1989.

8) Quanto à questão regional ver Barbosa, Lívia. Representações Nacionais e Identidade Garimpeira. Rio de Janeiro, 1990.

9) Opus cit., 1990.

10) Manifestações nesse sentido são encontradas nas declarações de José Altino Machado, Jornal do Brasil, 08.05.89, p.04, como na Carta do I Seminário Internacional sobre Garimpo, item 04.

11) Segundo avaliação das taxas de lucro obtidas no Brasil para diferentes atividades econômicas, a mineração apresenta uma das mais altas, cerca de 14% sobre o capital investido. Nesse sentido ver Jornal do Brasil, 23.09.1990 ..

12) Para uma reflexão sobre a idéia de natureza construída pelo movimento ecológico ver Gonçalves, C.W. Os {Des)caminhos do Meio Ambiente. São Paulo, Editora Contexto, 1989 & Morin, E. A Natureza da Natureza. Publicações Europa-América, s/d.

13) Cleary, David. Anatomy of the Amazon Gold Rush. London, The Macmillan Press, 1990. 14) Para as relações da Amazônia com algumas instituições da cultura ocidental ver o interessante trabalho de Drumond, José Augusto. Amazônia: a cultural account. Alabama, 1988.

15) Para uma avaliação dos valores implícitos em Relatórios de Impacto Ambiental ver Viveiros de Castro, Eduardo e Andrade, Lúcia M. M. "Hidrelétrica do Xingu: O Estado contra as Sociedades Indígenas". ln: Hidrelétricas do Xingu e os Povos Indígenas. São Paulo, Comissão Pró-Índio, 1988 & a palestra realizada por Lygia Sigaud no CETEM, onde destacou a atuação das associações criadas por populações de áreas atingidas por barragens.

16) Wagner, Alfredo. Tensão e Conflito no Garimpo, mimeo, s/d.

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