• Nenhum resultado encontrado

LINGUAGEM E RELIGIÃO Sobre a aproximação entre experiência religiosa mística e poética

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "LINGUAGEM E RELIGIÃO Sobre a aproximação entre experiência religiosa mística e poética"

Copied!
17
0
0

Texto

(1)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 96

LINGUAGEM E RELIGIÃO

Sobre a aproximação entre experiência religiosa mística e poética Language and Religion

About the relationship between religion experience and poetic experience

Josias da Costa Júnior

RESUMO.

Neste breve texto o objetivo é destacar as relações entre linguagem e religião, inseridas na esfera das relações entre experiência religiosa e experiência estética. O artigo abraça a hipótese segundo a qual a experiência poética e a experiência religiosa mística nascem da mesma fonte. O texto começará com a discussão sobre a linguagem a partir da noção de “jogo de linguagem” de Ludwig Wittgenstein e da experiência da linguagem de Martin Heidegger. Posteriormente será abordada a relação entre experiência poética e experiência religiosa a partir da mística.

Palavras-chave: religião; mística; linguagem. RÉSUMÉ.

Dans ce texte bref l'objectif est de mettre en évidence la relation entre la langue et la religion, est entré dans le domaine des relations entre l'expérience religieuse et l'expérience esthétique. Le texte englobe l'hypothèse que l'expérience poétique et l'expérience religieuse mystique nés de la même source. Le texte commence par une discussion sur la langue de la notion de «jeu de langage» de Ludwig Wittgenstein et l'expérience du langage Martin Heidegger. Après que sera abordée la relation entre l'expérience poétique et l'expérience religieuse de la mystique. Mots-clés: la religion; mystique; langue

ABSTRACT.

In this brief text the objective is to highlight the relations between language and religion, entered in the sphere of relation between religious experience and aesthetic experience. The text embraces the hypothesis according to which the poetic experience and the religious experience mysticism are born from the same source. The text begins with a discussion of the language of Martin Heidegger. Later we will discuss the relationship between experience poetic and religious experience from the mystic.

Keywords: religion; mysticism; language.

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião na Universidade do Estado do

(2)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 97 Primeiras considerações

A discussão sobre linguagem é fundamental quando se trata da relação entre poesia e religião, particularmente quando se pensa na relação poesia e mística. Os meios de se empreender tal tarefa são diversos, que inclui a exegese e também a hermenêutica teológica e literária, além da filosofia da linguagem. Somam-se a esses esforços a semiótica, a linguística e a teoria literária. Neste artigo não há nenhuma pretensão de abarcar todas as concepções e todas essas áreas, pois isso ultrapassaria os limites impostos para um artigo. Além disso, este texto reflete o atual estado de uma pesquisa que está em fase inicial de investigação sobre religião, mística e poética. Trata-se aqui, portanto, da apresentação de alguns resultados alcançados após um período de investigação bibliográfica.

Em linhas gerais, o artigo está dividido em duas partes: a primeira trata de uma breve discussão sobre algumas teorias da linguagem; a segunda reflete sobre a relação entre experiência poética e experiência religiosa a partir da experiência mística. A abordagem sobre a linguagem começa pelo problema iniciado por Platão, a partir de uma perspectiva epistemológica, acerca da contribuição da linguagem no conhecimento da realidade. O desenrolar da questão resultou na concepção que reduz a linguagem à função designadora, sem participação no processo de conhecimento. Essa função designadora da linguagem é superada por um processo que confere à linguagem um valor diferente. Ou seja, a linguagem não ficaria reduzida a mera função de comunicar o resultado do conhecimento adquirido, mas agora participa do processo. Para finalizar a primeira parte do percurso, serão trazidas duas concepções contemporâneas da filosofia da linguagem. A primeira será a compreensão da linguagem a partir da noção de “jogo de linguagem”. Essa noção é encontrada no filósofo Ludwig Wittgenstein para quem a linguagem deve ser compreendida a partir do uso que se faz dela. A segunda concepção é encontrada em Martin Heidegger, que oferece a noção de linguagem como experiência originária.

(3)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 98

A segunda parte deste artigo será dedicada à reflexão acerca da relação entre experiência poética e experiência religiosa a partir da mística. Ambas as experiências são perspectivadas pela linguagem como experiência originária e que se valem da linguagem até as suas últimas consequências, ou seja, tanto a experiência poética como também a experiência mística levam a linguagem ao extremo. Em ambos os casos significa a exacerbação da linguagem; a linguagem elevada à sua potência máxima. Para oferecer suporte teórico e levar a bom termo o objetivo proposto neste breve artigo, serão convidados para essa reflexão teóricos como Otávio Paz, o místico Meister Eckhart e a palavra poética de Adélia Prado e Guimarães Rosa, a fim de apresentarmos as interseções entre poesia e mística.

A linguagem entre jogos e experiência

Não é tarefa simples entender a linguagem, mesmo sendo ela algo que faz parte da vida de todas as pessoas. Desde a filosofia na Grécia da Antiguidade, a linguagem já se apresentava como um dos seus temas e podemos ver que os diálogos de Platão já contêm uma discussão que, se não é exatamente uma filosofia da linguagem, é algo que alimenta o seu debate. Com o diálogo Crátilo, as reflexões sobre a linguagem surgem e vão balizar discussões que influenciaram a tradição filosófica ocidental. Todavia, as preocupações de Platão no Crátilo não são consoantes às questões contemporâneas acerca da linguagem. O problema fundamental de Platão a se destacar é se, de fato, a linguagem contribui para o conhecimento da realidade. A consequência desse questionamento é que as palavras estão ligadas até as últimas consequências ao problema do conhecimento, criando, nesse projeto epistemológico, a união entre filosofia e ciência (MARCONDES, 2009, p. 13-14).

O texto de Platão oferece duas possibilidades de respostas ao problema supramencionado: a) o naturalismo, que é defendido por Crátilo, e o

convencionalismo, defendido por Hermógenes. No primeiro caso, acredita-se na

(4)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 99

convencionalismo estabelece que nada há entre palavras e coisas, isto é, são convenções determinadas pelas sociedades (PLATÃO, 2001, p. 43-44). A conclusão é que o signo não oferece contribuição para o conhecimento da realidade e, com isso, a linguagem não assume, de fato, importância para a filosofia. Ao confrontar as duas posições, Platão elabora alguns argumentos importantes para a discussão da linguagem. Em linhas gerais assim a discussão se apresenta em

Crátilo, contudo, convém apreciar um pouco mais o que é apresentado no texto de

Platão a fim de que se amplie o horizonte de discussão em que a linguagem foi e como é pensada.

Diferentes línguas usando palavras diferentes com referência às mesmas coisas formam a base para a defesa do naturalismo. Ou seja: a defesa da relação natural entre as palavras e as coisas por meio de uma língua originária, pois, como afirma o texto, “os nomes pertencem às coisas por natureza” (PLATÃO, 2001, p. 53 §390d). Esta seria a língua ideal, a perfeita representação da natureza das coisas. Platão fala de um “legislador de nomes” (PLATÃO, 2001, p. 52), que é o legislador ideal, com o poder de contemplar a natureza das coisas com capacidade para estabelecer as convenções, efetivando o significado das palavras. Tal concepção de origem da linguagem, que é do tipo mítica, apresenta a dificuldade de se estabelecer como seria possível passar da linguagem ideal para a língua falada e, ao mesmo tempo, ter a certeza de que seria preservada nessa passagem a relação natural. Nesse sentido, daí por diante, o texto de Platão investe em uma análise das etimologias das palavras com vistas à recuperação do seu sentido originário. O problema é que ainda assim não há garantias de acesso à linguagem ideal.

Se a dificuldade do naturalismo é para explicar a relação entre palavra e coisa, o convencionalismo, por seu turno, enfrenta a dificuldade na explicação da origem das convenções, isto é, o problema é saber como é possível estabelecer convenções antes da linguagem, já que, rigorosamente, se precisa da linguagem para tal empreendimento. Platão mostra que a imprecisão do nome se caracteriza na medida em que, ao se tentar definir um nome, logo se é lançado a outro nome e a

(5)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 100

outros nomes. Assim ele escreve: “há muitos outros nomes que não significam senão rei; e outros significam general, como ‘Ágis’, ‘Polemarco’ e ‘Eupólemo’; e outros médico, como ‘Iátrocles’ e ‘Acesímbroto’” (PLATÃO, 2001, §394c).

As conclusões de Platão apontam para o fato de que ele se contrapõe às posições extremas diante das quais ele se encontrava e que as teorias vigentes da linguagem manifestavam. Ou seja, da extrema confiança que os nomes expressam a verdade ou da extrema desconfiança, sendo os nomes nada além de nomes. Platão sustenta que “o discurso significa todas as coisas” e sua natureza possui “duas formas, o verdadeiro e o falso.” (PLATÃO, 2001, §408c). Com isso, indica que a linguagem tem participação nessa imperfeição, pois é imitação. Assim sendo, ele mostra que, de algum modo, é possível ter acesso ao conhecimento abrindo mão da linguagem (PLATÃO, 2001, §438e). Isto equivale dizer que ela não é determinante no processo de produção do conhecimento. Assim, a conclusão aponta para o fato de que a verdade está para além da palavra. Contudo, vislumbra-se aqui oferece a oportunidade de questionar se isso não seria uma indicação para o caráter místico do conhecimento. Todavia, nesta oportunidade não levarei isso adiante.

O que há nessa concepção é a ideia de linguagem reduzida à função designativa, como instrumento de segunda ordem do conhecimento humano. Essa é a relação entre o mundo e a linguagem, que é de caráter designativo. Nessa linha de compreensão, para saber o significado de uma palavra qualquer seria necessário ter ciência do que por ela era designado. Dessa forma, a linguagem limita-se ao papel de comunicar o resultado de algo que já foi conhecido sem linguagem.

O estudo da linguagem não teve na tradição antiga centralidade para a filosofia, pois Platão respondeu negativamente à questão acerca da contribuição do significado das palavras para o conhecimento das coisas que denominam. Já no pensamento contemporâneo, há uma significativa mudança, que resultou de outros processos transformadores. Da mera concepção designadora, a linguagem passou por um processo que lhe colocou em posição diferente. Não mais com função de ser apenas possibilidade da comunicação de resultado do conhecimento humano.

(6)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 101

Nesse sentido, o pensador representativo que rompeu com a concepção designadora da linguagem foi Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Ele representa aquilo que se pode chamar de um ponto de virada rumo à nova abordagem, que considera necessariamente a linguagem enquanto ação e também a linguagem enquanto constituidora da experiência humana, provocando assim significativo impacto à filosofia contemporânea. Em sua obra Investigações filosóficas, que representa uma fase radicalmente diferente em seu pensamento, seu acento não mais recai sobre a linguagem lógica, mas sobre a análise da linguagem ordinária. Por meio da linguagem é possível fazer muito mais do que simplesmente designar o mundo, conforme ele elenca. Wittgenstein afirma que todas as possibilidades do fazer científico, as atividades artísticas, culinárias, políticas, assim como as atividades religiosas e outras tantas atividades da vida acontecem na dinâmica da linguagem (WITTGENSTEIN, 2014, § 23).

Para Wittgenstein, a função da linguagem não se esgota na designação, mesmo que esta ainda seja uma das suas possibilidades. A linguagem é aquilo que se revela no uso, na ação, na medida em que passa a ser usada pelo ser humano, pois o seu uso, em diferentes situações, determina o que ela é. A linguagem alocada na situação em que ocorre permite perceber que ela se torna parte da totalidade da vida do ser humano. A significação das palavras, com isso, é esclarecida somente nos contextos em que essas palavras são usadas. Daí a afirmação de Wittgenstein de que o “sentido de uma palavra é o seu uso na linguagem.” (WITTGENSTEIN, 2014, § 43). O entendimento da linguagem humana só é possível a partir do contexto em que os seres humanos se comunicam. Diferentes significados terá uma mesma palavra e isso vai depender da maneira em que ela será usada. O que vale, portanto, é que a significação de uma linguagem não tem derivação a partir de exame objetivo, com correspondência direta com as coisas concretas. Fica evidente aqui que o uso é o conceito central de Wittgenstein, que promove um interessante deslocamento da questão da linguagem: da pergunta sobre o que é linguagem ao modo como ela é utilizada em contextos diversos.

(7)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 102

A centralidade do conceito de uso impulsiona Wittgenstein pensar a linguagem a partir da noção de jogo. Rigorosamente o jogo de linguagem é variado e é múltiplo, que envolve a totalidade das atividades ligadas às expressões. Assim ele escreve acerca dessa noção: “chamarei de ‘jogo de linguagem’ também a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais vem entrelaçada.” (WITTGENSTEIN, 2014, § 7, p. 19). Além de o jogo de linguagem ser múltiplo e variado, pensar em jogo necessariamente remete às regras que regem a conduta de quem participa desse jogo. Então, a partir dessa imagem, compreender a linguagem implica domínio da aplicação de algumas dessas regras. Nesse caso, quais são as regras que devem ser assimiladas para que haja parceria nesse jogo? A resposta a essa questão passa obrigatoriamente pelas regras gramaticais. Gramática, que pode ser entendida como regras para o emprego de uma palavra, assim como também pode ser tomada como regras que organizam a linguagem, respectivamente, em Wittgenstein ela se apresenta na distinção entre “gramática superficial” e “gramática profunda” (WITTGENSTEIN, 2014, § 664, p. 225).

Portanto, a linguagem assim perspectivada na imagem do jogo encerra uma dinâmica própria, capaz de ter suas regras próprias e adequadas a cada situação. Ela é o uso que um grupo faz dela, dos seus falantes, que, no caso de se pensar em grupo religioso, são os fiéis ou os crentes. Compreender a religião, a experiência religiosa na perspectiva do jogo de linguagem, com regras que a orientam, é pensa-la não no âmbito do indivíduo, mas no da comunidade que a assume na esfera de um discurso específico, já que se expressa em comunicação para com o outro. Nesse caso, a linguagem religiosa é um jogo cujas regras podem se expressar nos ritos. Estes ritos são, por assim dizer, as regras de conduta que orientam o modo como as pessoas devem coletivamente se portar diante das coisas sagradas. O sentido da linguagem religiosa, conforme essa perspectiva, começa no momento em que essas pessoas vivenciam a religião através dos seus gestos rituais no âmbito da coletividade.

(8)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 103

Para avançar um pouco mais na reflexão e seguindo nessa incursão pela linguagem em perspectiva contemporânea é que Martin Heidegger surge nesse percurso e oferece boas possibilidades para esta breve caminhada reflexiva. Em A

caminho da linguagem, que é sua obra mais elaborada sobre a linguagem,

Heidegger mostra que a dificuldade de se pensar a linguagem se aloca na total impossibilidade de o homem impor um distanciamento teórico que dê condições de estabelecer a linguagem como objeto para um sujeito de conhecimento. Os textos reunidos nessa obra apresenta a perspectiva de uma visão que aponta para uma compreensão da linguagem que deve ser vista para além da relação com a subjetividade, pois não é o ser humano que fala, mas a linguagem, conforme afirma: “a linguagem fala” (HEIDEGGER, 2012, p. 9). A linguagem, assim, não se restringe ao âmbito da instrumentalidade.

Em outro momento, quando se debruça sobre o poema de Georg Trakl, o questionamento de Heidegger recai sobre a relação entre o nome e a coisa nomeada, questionando acerca do nomear enquanto atribuição de palavras de uma língua aos objetos que já são conhecidos. Sua resposta ao próprio questionamento é que “nomear não é distribuir títulos, não é atribuir palavras. Nomear é evocar para a palavra. Nomear evoca.” Ele continua: “a evocação convoca. Desse modo, traz para uma proximidade a vigência do que antes não havia sido convocado.” (HEIDEGGER, 2012, p. 15-16). O esforço de Heidegger em oferecer resposta ao que é nomear o conduz, nesse trecho supramencionado, a uma concepção de linguagem muito próxima à linguagem mítico-religiosa, cuja dependência entre língua e realidade se faz presente. Essa compreensão de Heidegger possibilita uma reflexão acerca da linguagem na perspectiva de abertura, que concentra inúmeras possibilidades de ser e de onde os nomes emergem.

Através da leitura de filósofos pré-socráticos e, sobretudo, de poetas, Heidegger se vê em condições de recuperar o sentido originário de ser e da verdade como manifestação da essência. A linguagem dos poetas, que é livre dos ditames e influência da metafísica – não racionalista ou cientificista – permite descobrir uma

(9)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 104

experiência da linguagem como linguagem da experiência. Portanto, para Heidegger a linguagem não se trata somente de um instrumento, algo do qual alguém se vale para produzir algum som e/ou para produzir melodias. A linguagem não é, portanto, algo somente usado pelo ser humano para a comunicação, pois o ser humano pertence à linguagem. A perspectiva da experiência da linguagem é descrita nos seguintes termos por Heidegger:

fazer uma experiência com algo, seja uma coisa, com um ser humano, com um deus, significa que esse algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até nós avassala e transforma. ‘Fazer’ não diz aqui de maneira alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o sentido de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro, harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele. É esse algo que se faz que se envia, que se articula. (HEIDEGGER, 2012, p. 121).

A experiência acima mencionada é uma via de mão dupla, pois contempla não apenas a dimensão ativa de ir ao encontro de algo, como também contempla a dimensão passiva, que fala da possibilidade de ser encontrado e de ser atingido. A ênfase nesse caso recai sobre esta última dimensão, ou seja, “deriva de uma experiência que resulta de como as coisas nos afetam.” (NUNES, 1999, p. 119). Assim, o espantar-se está na perspectiva apontada por Heidegger. Nesse sentido, a experiência com a linguagem implica ser tocado pela reivindicação da linguagem, entregar-se a ela e envolver-se, assim como com ela se harmonizar. Uma vez que o homem encontra na linguagem a habitação da sua presença, então a experiência com a linguagem deverá tocar na articulação mais íntima da presença do ser humano.

Segundo Heidegger, a linguagem perspectivada pela experiência da linguagem, conforme exposto acima, está no contexto do questionamento sobre a “essência da linguagem”. Nessa linha de reflexão, a indicação é, em última análise, para a “linguagem da essência”, sendo que sua compreensão de “essência” é, conforme suas palavras, “o universal, o que vale para toda e qualquer coisa.”

(10)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 105

(HEIDEGGER, 2012, p. 7). Com isso, a linguagem da essência fala de uma capacidade de permanecer, manter-se. Portanto, fala de “vigor” (HEIDEGGER, 2012, p. 158). Nesse caso, qualquer explicação que se encerra no âmbito conceitual da linguagem torna-se insuficiente, pois o mistério da vida e do sentido da existência humana está abrigado no ser da linguagem. A propósito dessa discussão, Benedito Nunes enfatizou oportunamente que para Heidegger, a poesia é a essência da linguagem (NUNES, 1999, p. 119).

Nos termos em que Heidegger pensa a linguagem, abrindo-se à linguagem da poesia enquanto linguagem livre dos cerceamentos da metafísica, do cientificismo, das reduções racionalistas e das banalizações cotidianas, a experiência da linguagem fica aberta à possibilidade de intercessão com a linguagem religiosa. Nesse sentido, no próximo item nossa atenção reflexiva recairá sobre a relação entre a experiência poética e a experiência religiosa, pressupondo que ambas as experiências são produções extremamente ricas da linguagem, mesmo que isso não seja algo requerido por elas ou mesmo que tenha sido desejado.

Experiência poética e experiência religiosa mística

A exposição sobre linguagem, apresentada no item anterior, oferece a oportunidade de pensar a semelhança entre a experiência poética e a experiência religiosa. Ou seja, são fenômenos que emergem da mesma fonte, pois ambas são perspectivadas pelo conceito de linguagem enquanto experiência originária, que nada tem a ver com o tempo cronológico, mas deve ser compreendida no sentido de fundar e de constituir. Elas não se articulam a partir da lógica racional, mas se expressam em discursos de relações mútuas, discursos que se interpenetram. A religião e a poesia são as grandes linguagens que fizeram o enfrentamento da condição esfacelada da humanidade, buscando um retorno, uma reconciliação e um abrigo mítico-poético-religioso.

(11)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 106

Nos termos em que Heidegger pensa a linguagem, abrindo-se à linguagem da poesia enquanto essência da linguagem, a experiência da linguagem fica aberta à possibilidade de intercessão com a linguagem religiosa, pois as reflexões até aqui também podem introduzir discussões subsequentes sobre a aproximação da experiência poética com a experiência religiosa. Nesse caso, é oportuno ressaltar a respeito da poesia, ainda que brevemente, que ela é um movimento de nomear, que está distante do definir científico. Nomear, na poesia, está sempre “além do dito, além do sentido, além do pensado, além de nossa própria capacidade de compreender e de interpretar, na totalidade... Lá onde o Ser habita. Na sua ‘casa’, na Linguagem.” (MENDES, 1985, p. 184). O nomear na poesia “alcança o que excede a compreensão do ser..., e o que é excede é o sagrado, o indizível, que é estranho ao pensamento” (NUNES, 1999, p. 123). Esse movimento poético de nomear também fica muito bem exemplificado no minúsculo poema Golpe (LEITÃO, 1984, p. 41).

Poder

Foi o de Adão

Que deu nome às coisas

É importante perceber que o golpe poético é certeiro e é nesse golpe que reside a força e o poder da poesia, ao recordar e oferecer a oportunidade de atualizar o que o primeiro homem fez, isto é, dar nome às coisas. Nomear as coisas era a sua atividade, assim como esse era o seu poder. Nomear que deve implicar apresentar as coisas sempre pela primeira vez fazendo com que elas sejam vistas novamente e com olhar renovado, ou seja, pela primeira vez sempre. Nesse sentido, a poesia tem o poder de trazer o novo, a novidade.

A poesia capta e profere o sentido que pulsa em todas as coisas que são e que ainda serão; ajuntar e distribuir. Logos e physis, conforme Heidegger (1969, p. 43-52). A poesia, assim, é um tipo de linguagem que não apenas traduz a realidade, mas tem a capacidade de revelar o real, desvelar o real, pois, ainda segundo Heidegger, é através da linguagem que as coisas chegam a ser (HEIDEGGER,

(12)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 107

1969, p. 44). Nesse sentido, a palavra dá existência ao Real. Mas, o abuso da linguagem, as frases feitas e a sua instrumentalização nos faz perder o sentido autêntico, o sentido originário das coisas. Todavia, é a poesia que pode restituir essa capacidade de perceber as coisas. Seguindo esse rastro heideggeriano e consoante ao que destacamos no parágrafo anterior, nomear não é simplesmente atribuir títulos, rótulos ou palavras. Nomear, portanto, é devolver às coisas a sua realidade, a sua força mágica, o seu “vigor dominante”. Além disso, nomear o sagrado, o indizível, é atingir os espaços misteriosos.

Da forma como tem se descortinado aqui a compreensão da experiência poética e da experiência religiosa, ou seja, tendo a linguagem como ponto de interseção entre essas experiências, a compreensão de experiência religiosa mais afim ao que já foi aqui esboçado é a experiência religiosa mística ou a experiência religiosa dos místicos. Um texto religioso místico tem, muitas vezes, ares poéticos, assim como um texto poético é eivado de misticismo religioso. Aqui o religioso deve ser entendido para além dos muros confessionais, mesmo havendo poetas com confissão religiosa ou, contrariamente, com posição declaradamente ateísta. Nesse sentido, a religião aqui é entendida como a dimensão da profundidade de todos os âmbitos da vida humana. Compreendida assim, a experiência religiosa se irmana com a experiência poética, pois esta também mergulha profundamente nos espaços obscuros do ser humano. Dito com palavras de Otavio Paz: “a experiência poética não é outra coisa que a revelação da condição humana.” (PAZ, 2009, p. 40).

Para falar em experiência religiosa, como já afirmei, recorro à experiência religiosa mística ou à experiência religiosa dos místicos, como por exemplo, Meister Eckhart, que em um de seus sermões mostra a intrigante ideia de um

perder-se no divino, conforme ele mesmo escreve: “é que nessa irrupção Deus me

é partilhado de modo que eu e Deus somos um.” (ECKHART, 2009, p. 292). Nessa luta com a linguagem, ao afirmar a identidade entre ele e Deus já não há, para Eckhart, em última análise, o outro, pois só há Deus. Trata-se de uma experiência da união do ser humano com Deus de tal modo que não existe mais um e outro,

(13)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 108

mas apenas Deus. Portanto, é a experiência religiosa regida pelo princípio de

coincidentia oppositorum (coincidência dos opostos), que é a possibilidade de

identificação entre o finito e o infinito, entre o divino e o humano. Somente a partir desse princípio é que se pode compreender essa experiência religiosa em Eckhart, assim como de outros místicos, mesmo que seja de outras expressões religiosas, como se expressa no Tao: “Ser e não ser emanam da mesma fonte, ainda que tenham nomes diferentes.” (LAO TSE, 2013, p. 9).

Ora, essa noção de experiência religiosa a partir da noção de coincidência dos opostos é encontrada em Otávio Paz através da rubrica “contradição complementária”, quando trata da poesia e estabelece vínculo com a mística. Assim Paz se expressa: “o poema não só proclama a coexistência dinâmica e necessária de seus contrários como a sua final identidade.” Nesse aspecto, mística e poesia se encontram na reivindicação da unidade daquilo que foi fraturado. Assim prossegue Paz: “desde Parmênides nosso mundo tem sido o da distinção nítida e incisiva entre o que é e o que não é. O ser não é o não-ser.” As tentativas de juntar os cacos do homem ocidental “desterrado do fluir cósmico e de si mesmo” (PAZ, 2009, p. 40) aconteceram na filosofia, mas algumas delas se mostraram insuficientes.

Ao contrário da linguagem descritiva, conceitual ou explicativa, na experiência mística nada se exclui. Trata-se de compreensão imediata daquilo que é fundamental, que se pode compreender a partir de uma relação de envolvimento com aquilo que se deseja compreender. Pois, a mística, como em geral se sabe e já foi sinalizado aqui, aponta essencialmente para uma experiência, para algo que tende a escapar a uma definição precisa. Diante disso, ao se falar sobre mística há, por assim dizer, certo fracasso discursivo que se antecipa. De igual modo, pode-se dizer sobre a poesia que também se vale de um modo singular de linguagem e é “capaz de transcender o sentido de isto e aquilo e de dizer o indizível.” (PAZ, 2009, p. 44).

Portanto, falar de mística e de poesia é também falar de conhecimento, mas de conhecimento adquirido pelo caminho da experiência. Não se trata de teoria

(14)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 109

sobre algo ou discurso sobre ele, antes de uma experiência que se tem com aquilo que se quer conhecer. Isso se dá através de uma fala que é muito mais aproximativa do que conceitual. Nessa linha de raciocínio, a linguagem preferencial dos místicos é a metáfora, o símbolo, a analogia. Nesse sentido, a experiência mística e, também podemos acrescentar, a experiência poética são, conforme as palavras de Paul Tillich, experiências de “transcender a cisão da existência, mesmo a mais profunda e geral de todas as cisões: aquela entre sujeito e objeto,” (TILLICH, 2001, p. 43).

A poesia de Adélia Prado mostra de forma muito clara essa interseção entre mística e poesia. Sua poesia está fortemente alinhada ao misticismo sensual religioso, que não se divorcia do cotidiano e, ao mesmo tempo, é inseparável do sagrado. Além disso, sua poesia reflete sobre a condição de finitude humana e é atravessado por uma experiência da linguagem em que as fissuras conceituais se dissipam. O poema O vestido pode ser um bom exemplo do toque poético que promove o salto e a instauração da realidade mística que funde sujeito e objeto.

No armário do meu quarto escondo de tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto.

É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de longas hastes delicadas.

Eu o quis com paixão e o vesti como um rito, meu vestido de amante.

Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido. É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:

eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.

De tempo e traça meu vestido me guarda. (PRADO, 1991,

p. 108).

Chamo a atenção que no poema o vestido aciona a memória e, como instrumento de sedução, traz à tona a sensualidade de antes. Ocorre um deslocamento em que o vestido, de objeto de lembrança passa a ser aquele que anuncia a vivência amorosa de antes. Isso faz com que o eu-poético se desloque de sujeito que guarda o vestido para o objeto dessa lembrança. A identificação entre o eu-poético e o vestido é de tal ordem que não há demarcações bem definidas entre um e outro. Trata-se de uma fusão entre sujeito e objeto, entre quem deseja e quem

(15)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 110

é desejado. Essa identificação entre o eu-poético e o vestido ou fusão entre sujeito e objeto se assemelha em forma com a identificação entre finito e infinito presentes em Eckhart e em Lao Tse, conforme mostrei acima.

A mística, assim como a poesia, é, portanto, a outra voz, que vem de longe e, ao mesmo tempo, está aqui. Por isso, a possibilidade da aproximação entre mística e poesia pode ser vista também como palavras que se sustentam no âmbito de uma “terceira margem” da linguagem, para lembrar Guimarães Rosa. Essa terceira margem da linguagem aqui é tão somente uma tentativa resumida de exprimir a singularidade da linguagem poética, pois a poesia é a linguagem do limite das possibilidades; ela é a linguagem elevada à sua potência máxima através da combinação de recursos da língua, ou seja, a linguagem na plenitude de ser. Esse parece ser o entendimento de Otavio Paz, quando escreve:

escritura em um espaço cambiante palavra no ar ou na página, cerimônia: o poema é um conjunto de signos que buscam um significado, um ideograma que gira sobre si mesmo e em redor de um sol que ainda não está nascendo... Giramos em torno de uma ausência e todos os nossos significados se anulam ante essa ausência. Em sua rotação o

poema emite luzes que brilham e se apagam

sucessivamente. (PAZ, 2009, p. 121).

É a dança dos signos que estão em rotação procurando significados em uma busca incessante que faz com que a terceira margem seja a permanência impossível. A essa margem, que é impossível, Paz qualifica como “poema puro”, que é aquele em que as palavras abandonam seu significado particular e sua função referencial para “significar somente o ato de poetizar” (PAZ, 2009, p. 51). Essa terceira margem proposta por Guimarães Rosa dá a ideia de que em dois lados estão a concretude (com suas sintaxes, semânticas e possibilidades estilísticas), enquanto que a outra margem é a do inefável, do silêncio, do sagrado.

O conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, acima mencionado, é a narrativa do filho sobre seu pai: “homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino.” Certo dia esse pai “mandou fazer

(16)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 111

para si uma canoa”, pequena, na justa medida de si; resistente, de tal modo que durasse “na água por uns vinte ou trinta anos” (ROSA, 1985, p. 32), que é o tempo que se passará o conto. Então o pai despediu-se da família e foi viver ainda mais silencioso dentro da canoa, no rio, sem pousar nas margens. O pai permanecia “naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.” (ROSA, 1985, p. 32). Essa perspectiva da impermanência parece ser a que foi apontada acima por Paz através da rubrica “poema puro”, que é a ideia de que a poesia se potencializa em sua poética nessa impermanência, nessa fenda, nesse espaço.

Mística e poesia se encontram nessa impermanência, na busca de uma palavra livre, que não se aprisiona no tempo e no espaço, que ocupa um lugar além, como uma terceira margem, como quem quer romper os limites entre além e aquém. Uma palavra, na perspectiva de Heidegger, instauradora, nomeadora, convocadora, evocadora do real, do sagrado. Esse é o lugar que podemos situar a poesia e a mística: o sem lugar.

A experiência poética e a experiência religiosa convergem, nesse sentido, pois são experiências que se dirigem ao mais profundo vazio, à absoluta carência e à total pobreza. Também são as experiências da alegria gratuita e a experiência do vazio profundo. Elas expressam ainda o diário, aquilo que é corriqueiro, as vicissitudes da vida e, ao mesmo tempo, lançam o ser humano para além de tudo isso, para o insondável, para o mistério, para o indizível. Tanto os poetas como os místicos usam um modo singular da linguagem que, como ensinou Wittgenstein, é variado e múltiplo. Finalmente, os textos que resultam das experiências de poetas e místicos são ricos da linguagem, levam a linguagem até o seu limite e assim a elevam à sua máxima potência.

Referências Bibliográficas

(17)

OBSERVA TÓ RIO D A RE LIGI ÃO 112

HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem Petrópolis: Vozes, 2012. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferencias. Petrópolis: Vozes, 2002.

LAO TSE. Tao Teh King. O livro da vida e da virtude. São Paulo: Editora Isis, 2013.

MARCONDES, Danilo. Textos básicos de linguagem: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

OTTO, Rudolf. Lo santo: lo racional y lo irracional en la idea de Dios. Madrid: Allianza Editorial, 1980.

PAZ, Otavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2009. PLATÃO. Crátilo. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.

PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991.

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Ed. 14. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

SAMUEL, Rogel (org.). Manual de Teoria Literária. 2ed. Petrópolis: Vozes, 1985. TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. 6ed. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. 9ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

Trabalho enviado em 01/09/2015. Trabalho aceito em 10/09/2015.

Referências

Documentos relacionados

[r]

“O CONSÓRCIO NUTRIBOM/CHEVALS, nos autos do Pregão Presencial em referência, vem manifestar sua intenção de interpor recurso administrativo em face da decisão de

Evacuar imediatamente a área do derramamento ou vazamento, em todas as direções, num raio de pelo menos 15 m (consultar a Tabela de Distância de Evacuação. Se o nome do produto for

O trabalho apresentado neste artigo propõe um método para projeto de hiperdocumentos educacionais, denominado EHDM, que contempla os autores com um modelo conceitual que possui

O tratamento T1 com menor concentração de farinha da casca de maracujá (5%) apresentou resultado semelhante ao controle para as variáveis: pestana, aspecto e

A partir da implementação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, a universidade brasileira abre-se para o acesso de novos e

b) Bolsa parcial (50%)– (cinquenta por cento) concedida ao aluno cuja renda familiar per capita não exceda o valor de 03 (três) salários-mínimos. § 2º - As rendas

Ao identificar o uso e a negociação do preservativo nas práticas sexuais de acadêmicos de enfermagem, os resultados permitiram conhecer que há uma baixa adesão