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A Concepção Cartesiana de Linguagem

ENÉIAS FORLIN

Departamento de Filosofia

Universidade Estadual de Campinas CAMPINAS, SP

ejforlin@uol.com.br

Resumo: Seguindo a sugestão de estudiosos como Roger Lefèvre e Jean-Luc Marion, este artigo

busca tecer uma comparação entre a concepção cartesiana de linguagem e aquela de Ferdinand Saussure, buscando elucidar as semelhanças e as diferenças que há entre estas duas concepções. Neste percurso será possível estabelecer também uma maior precisão dos conceitos cartesianos de pensamento, representação e linguagem, bem como das relações que se estabelecem entre eles no contexto da filosofia cartesiana.

Palavras-chave: Pensamento. Representação. Linguagem.

Como é sabido, Descartes quase não tematiza a linguagem e há mesmo pouquíssimas referências à linguagem na obra cartesiana. Há uma única carta, onde a linguagem é a questão central. Trata-se de uma carta de 20 de novembro de 1629, endereçada a Mersenne. Nela, entretanto, Descartes não expõe sua concepção da linguagem, mas, basicamente, critica o projeto de uma língua universal, sugerindo que ela depende da “verdadeira filosofia” e, portanto, da aquisição da verdadeira ordem para filosofar1.

1 In Oeuvres de Descartes, AT I. pp. 76-82. Todas as obras de Descartes serão citadas

segundo a edição de Charles Adam e Paul Tannery, Oeuvres de Descartes, 11 vols., Paris, Vrin, 1973-1978, indicada pelas iniciais AT, seguidas do número do volume. A tradução para o português foi retirada da edição Descartes – Obras Incompletas, São Paulo, Abril Cultural, 1983 (tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Jr.). De maneira geral, essa será a edição utilizada sempre que citarmos em português trechos das Meditações Metafísicas e das

Objeções e Respostas, bem como do Discurso do Método e das Paixões da Alma. Para as citações

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Todavia, há, em várias obras de Descartes, algumas referências discretas à função das palavras, que, por mais dispersas e pontuais que sejam, são suficientes para traçar um perfil geral da concepção cartesiana da linguagem. De modo geral, as palavras são, para Descartes, signos instituídos pelo homem para expressar seus pensamentos. Como tal, eles são arbitrários e não possuem nenhuma relação de semelhança com as coisas que representam. É isso que se depreende das afirmações que aparecem na quinta parte do Discurso do Método (onde, inclusive, ele fala da linguagem como traço distintivo entre o homem e os animais irracionais)2, nos Princípios, §74 da Parte I e §197 da Quarta Parte3, nas Paixões da

Alma, §504, nas primeiras páginas do Le Monde5 e na Dióptrica6. A

correspondência de Descartes também está pontilhada de breves menções à

Guimarães Editores, 1989 (tradução de Alberto Ferreira); para o texto das Regras para

Direção do Espírito utilizaremos também uma edição de Lisboa, Edições 70, 1997 (tradução

de João Gama). Quanto aos demais textos de Descartes que não foram traduzidos para o português, faremos nossa própria tradução.

2 “Ao passo que se houvesse outras [máquinas] que apresentassem semelhança com

os nossos corpos e imitassem tanto nossas ações quanto possível, teríamos sempre dois meios muitos seguros para reconhecer que nem por isso seriam verdadeiros homens. Desses, o primeiro é que nunca poderiam usar palavras, nem outros sinais, compondo-os, como fazemos para declarar aos outros os nossos pensamentos. Pois se pode muito bem conceber que uma máquina seja feita de tal modo que profira palavras (...) mas não que ela as arranje diversamente, para responder ao sentido de tudo o quanto se disser na sua presença, assim como podem fazer os homens mais embrutecidos. (...)” (Discours, AT VI, pp. 56-57). Do mesmo modo, nos diz Descartes, pode-se conhecer a diferença entre os homens e os animais: “Pois é uma coisa bem notável que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar mesmo os insanos, que não sejam capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus pensamentos” (Ibid., p. 57).

3 Principes, AT IX, Première Partie, p. 60; Quatrième Partie, p. 315. 4 Passions de l’âme, AT XI, 369.

5 AT XI, pp. 4-5 6 AT VI, p. 112.

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função das palavras: no Entretien avec Burman7; numa carta a Mersenne de 18 de

Dezembro de 16298 e numa outra, também a Mersenne, de 22 de julho de 16419;

ao Marquês de Newcastle, numa carta de 23 de novembro de 164610; a Chanut, numa carta de 1º de Fevereiro de 164711 ; e a Morus, numa carta de 05 de feve-reiro de 164912.

7 “Quando aprendo que a palavra rei significa poder soberano e guardo isso em minha

memória, isto certamente é feito pela memória intelectual, visto que entre estas três letras e sua significação não há nenhum parentesco” (AT V, p. 150).

8 “Mas quando vejo o céu ou a terra, isso não me obriga nunca a nomeá-los de uma

maneira de preferência a outra...” (AT I, p. 103).

9 “... pois as palavras, sendo invenção dos homens, é sempre possível servir-se de uma

ou de várias para explicar a mesma coisa” (AT III, p. 417).

10 Nesta carta, Descartes desenvolve uma argumentação similar àquela já apresentada

na Quinta Parte do Discurso (cf. nota 14): “Enfim não há nenhuma de nossas ações exteriores, que possa assegurar àqueles que a examinam, que nosso corpo não é somente uma máquina que se move por si mesma, mas que há também nela uma alma que tem pensamentos, exceto as palavras, ou outros signos feitos à propósito de assunto que se apresentam, sem se relacionar a nenhuma paixão. (...) Pois, embora Montaigne e Charon tenham dito que há mais diferença entre um homem e outro do que entre um homem e um animal, jamais se encontrou, todavia, nenhum animal tão perfeito que tenha usado algum signo para comunicar a outros animais alguma coisa que não tenha relação com suas paixões; e não há homem tão imperfeito que não se utilize disso; de sorte que aqueles que são surdo e mudos inventam signos particulares, pelos quais exprimem seus senti-mentos” (AT IV, pp. 574-575).

11 “Assim, quando se aprende uma língua, juntamos as letras ou a pronúncia de certas

palavras, que são coisas materiais, com suas significações, que são pensamentos” (AT IV, p. 604).

12 “...ainda não se observou, no entanto, nenhum animal que tenha chegado ao grau

de perfeição para utilizar-se de uma verdadeira linguagem, isto é, que nos marque pela voz ou por outros signos alguma coisa que possa referir-se de preferência exclusivamente ao pensamento do que a um movimento natural; pois a palavra é o único signo e a exclusiva marca assegurada do pensamento escondido (encerrado) no corpo; ora, todos os homens, os mais estúpidos e insensatos, mesmo aqueles que estão privados dos órgãos da língua e da palavra, servem-se de signos, enquanto que os animais não fazem nada de semelhante, o que se pode tomar pela verdadeira diferença entre o homem e o animal” (AT V, pp. 278).

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Não é preciso muito esforço para ver na concepção cartesiana da língua-gem um prenúncio daquela que mais contemporaneamente seria desenvolvida por Saussure, no seu Curso de Lingüística Geral. É o que propõe Roger Lefèvre, no seu livro Criticisme de Descartes13. Essa aproximação é endossada por Jean-Luc Ma-rion, no seu livro Sur la Theologie Blanche de Descartes. MaMa-rion, porém, aponta para uma dificuldade: enquanto que para Saussure a relação de arbitrariedade se dá no interior do signo entre o significante e o significado, em Descartes seria mais propriamente uma relação de exterioridade entre o signo e sua significação que, em linguagem moderna, é chamado de referente. Entretanto, Marion se apressa em observar que se pode facilmente provar que, por “significação”, Descartes entende não o referente, mas, o que o signo nos faz conceber, isto é, o significado, tal como em Saussure14.

Desta forma, a diferença entre Descartes e Saussure parece reduzir-se a uma questão de nomenclatura. Tanto para Descartes quanto para Saussure a rela-ção de arbitrariedade está entre a palavra e seu significado, apenas que, enquanto Descartes chama de signo exclusivamente a palavra, para Saussure, a palavra isoladamente chama-se significante, o seu conceito chama-se significado, sendo que signo é a combinação de ambos15. Desta forma, o que para Descartes é uma relação de exterioridade entre signo e significado, para Saussure se resume a uma relação interna ao próprio signo.

Jean-Pierre Cavaille, no seu La Fable du Monde, não parece, entretanto, acreditar que a diferença entre Descartes e Saussure se reduza a uma mera questão de nomenclatura, mas se refere ao estatuto atribuído à linguagem:

Longe de ser um sistema autônomo, uma totalidade encerrada em si mesma, a linguagem, para Descartes não possui senão uma função instrumental. Por um lado,

ela se refere a uma realidade exterior, e, por outro, o sentido não lhe é, propriamente

falando, inerente: a significação não está contida nos signos, mas somente no espírito que os manipula e que permanece, portanto, profundamente independente da função lingüística. De fato, a doutrina de Descartes, se bem prepara a lingüística

13 Lefèvre, 1958, p. 157. 14 Marion, 1981, p. 255, nota 21. 15 Saussure, 2003, pp. 79-81.

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moderna, ao distinguir muito nitidamente o conceito de seu suporte sonoro, revela-se

muito preocupada com suas prerrogativas com respeito ao real e a razão para ser a simples

prefiguração deles, como o testemunha a importância que aí desempenha a função

referencial, e o postulado jamais colocado em causa da natureza não discursiva do

pensamento.16

Podemos concordar, em linhas gerais, com a avaliação de Cavaille, mas não exatamente pelas mesmas razões alegadas. Se para Descartes, diferentemente de Saussure, o signo lingüístico é exclusivamente a palavra, então é evidente que o significado não está contido nos signos, mas no espírito que os manipula. Saussure nada teria a objetar a Descartes se, tal como este, restringisse o nome de “signo” exclusivamente para a palavra. Também para Saussure – e ele afirma isso explicitamente – a palavra ou o som “não passa de um instrumento do pensa-mento e não existe por si mesmo”17. Em contrapartida, tampouco Descartes teria algo a objetar a Saussure se, tal como este, entendesse o signo pela combinação da palavra com seu significado. É claro que neste caso a significação estaria contida nos próprios signos e, portanto, a relação de arbitrariedade se daria no interior do próprio signo, entre significante (a palavra) e significado (o conceito).

De qualquer forma, o próprio Descartes, mesmo considerando como signo apenas a palavra, não considera que a linguagem se constitua num mero discurso de palavras. Pelo menos no que se refere à linguagem humana, Des-cartes a considera fundamentalmente como sendo um discurso de significados expressos pelos signos. É por isso que ele se espanta com o nominalismo ex-presso por Hobbes nas Terceiras Objeções. Quando Hobbes lhe sugere que talvez o raciocínio possa ser entendido simplesmente como uma reunião e um encadeamento de nomes ligados pela palavra “é”, de modo que nada con-cluiríamos a respeito na natureza das coisas mas somente a respeito de suas denominações18, Descartes responde-lhe que o raciocínio não é sobre nomes, mas sobre as coisas significadas pelos nomes19. É por isso que numa passagem da

16 Cavaillé, 1991, p. 79. 17 Ibid., p. 16.

18 AT IX, p. 138. 19 AT, IX, p. 139.

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Quinta Parte do Discurso, Descartes não afirma que o traço distintivo entre, de um lado, os homens e, de outro, os autômatos ou os animais é simplesmente a pala-vra; pelo contrário, ele admite que se pode conceber uma máquina que seja feita de tal modo que possa proferir palavras20, e mesmo que há efetivamente alguns animais, tal como o papagaio, que são capazes de proferir palavras21. Todavia, o que distingue os homens tanto dos autômatos quanto dos animais é que só os homens usam as palavras para declarar seus pensamentos, isto é, só os homens “são capazes de arranjar em conjunto diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam entender seus pensamentos”22. Numa carta a Mersenne, de julho de 1641, Descartes afirma “que nada poderíamos exprimir por nossas palavras, quando entendemos o que dizemos, que, por isso mesmo, não seja certo que temos em nós a idéia da coisa que é significada por nossas palavras”23.

Isso indica, portanto, que não parece estar correta a interpretação de Ca-vaille de que, para Descartes, a linguagem possa se referir diretamente às coisas, de modo que a função referencial desempenhe um papel central. Como vimos, a concepção cartesiana é de que nada podemos exprimir por palavras sem termos a idéia da coisa que é significada por nossas palavras. A significação de nossas palavras nunca está diretamente nas coisas, mas nas idéias ou conceitos das coisas. Até porque, como afirma Descartes numa carta de 19 de janeiro de 1642 [a Gibeuf], não posso ter nenhum conhecimento do que é exterior a mim, senão por meio das idéias que tenho em mim24. Na linguagem humana, portanto, a cada palavra corresponde um pensamento (ou conceito, ou idéia) que pode ou não corresponder a alguma coisa exterior. Sendo assim, nada mais contrário à concepção cartesiana de linguagem, fundada na filosofia do sujeito – coisa pen-sante –, que esclarecer a palavra pelo seu referente, isto é, buscar a significação da

20 ATVI, p. 56. 21 ATVI, p 57. 22 Ibid. 23 AT III, p. 393. 24 AT III, p. 474.

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palavra diretamente na coisa a que ela se refere, sem passar pela mediação do conceito.

Em suma, para Descartes, assim como para Saussure, a Linguagem humana não é um mero discurso de palavras ligadas entre si, mas é um discurso dos sig-nificados expressos por estas palavras. Apenas que Descartes chama de “signos” somente as palavras, enquanto que aquilo que Saussure chama de “signo” é a combinação das palavras com seus significados. Tanto Descartes quanto Saussure falam de uma relação de não semelhança e de arbitrariedade entre a palavra e seu significado, apenas que, para Descartes, dado a sua definição de signo, tal relação se dá entre signo (palavra) e o significado, e para Saussure, como o significado faz parte do signo, a relação se dá no próprio interior dele, entre a palavra (que ele chama de “significante”) e o significado.

Por outro lado, para Saussure, assim como para Descartes, a palavra, em si mesma, não passa de um instrumento do pensamento: o que significa dizer que, para ambos, palavra e pensamento não são a mesma coisa. Tanto para Saussure, quanto para Descartes, o pensamento não se reduz à linguagem25.

Apesar de tudo, Cavaille não parece estar errado quando afirma que, diferentemente de Saussure, a linguagem, para Descartes, não possui senão uma função instrumental, que o discurso não é senão um veículo do pensamento, e, como tal, permanece substancialmente estranho a este. É que se, por um lado, para Descartes, assim como Saussure, a linguagem humana não é uma mera associação de palavras, mas dos significados expressos por elas, por outro lado, para Descartes, diferentemente de Saussure, esses significados preexistem (ou podem preexistir) às palavras. Para Descartes, portanto, se palavra é sempre expressão de uma idéia, a idéia, por sua vez, não precisa necessariamente ser expressa em palavras. Como afirma Descartes nos Princípios, “ligamos nossas concepções a determinadas palavras a fim de exprimi-las oralmente”26.

Aqui está, precisamente, o que entra em choque com a concepção saus-sureana da linguagem. Para Saussure ainda que se possa admitir que o

25 Saussure, 2003, pp. 130-132.

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mento preexista à linguagem, isso não implica que idéias, significados prontos, possam preexistir à palavra. “Tomado em si mesmo, o pensamento é como uma nebulosa onde nada está necessariamente delimitado. Não existem idéias pre-estabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua”27. Tampouco os sons ou as palavras, por si sós, são entidades circunscritas de antemão. “A subs-tância fônica não é mais fixa, nem mais rígida; não é um molde a cujas formas o pensamento deve necessariamente acomodar-se, mas uma matéria plástica que se divide, por sua vez, em partes distintas, para fornecer os significantes dos quais o pensamento tem necessidade”28 Desta forma, para Saussure, diferentemente de Descartes, “o papel característico da língua frente ao pensamento não é criar um meio fônico material para a expressão das idéias, mas servir de intermediário entre o pensamento e o som, em condições tais que uma união conduza necessa-riamente a delimitações recíprocas de unidades”29.

É por isso que, enquanto Descartes considera a palavra basicamente como uma “coisa material”, o som ou sua representação gráfica, para Saussure, a pa-lavra “não é propriamente o som material, coisa puramente física, mas a im-pressão psíquica desse som”30, que ele chama de “imagem acústica”. Por outro lado, é também por isso que, enquanto que para Saussure, o pensamento consi-derado independentemente da linguagem é objeto da psicologia31, para Descartes ele é o objeto privilegiado da filosofia: a realidade do pensamento, sua existência e sua natureza, não apenas são objetos de um conhecimento claro e distinto, como tal conhecimento é mesmo o mais claro e distinto de todos, o primeiro e o mais fácil, a verdade que inaugura o edifício do conhecimento humano.

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27 Saussure, 2003, p. 130. 28 Ibid. 29 Ibid., p. 131 30 Ibid., p. 80. 31 Ibid., p. 131.

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A título de conclusão, podemos agora fazer um balanço da concepção cartesiana de linguagem no contexto geral de sua filosofia, relacionando o conceito cartesiano de linguagem com os conceitos de pensamento e representação.

Pensamento é o conceito fundamental, o objeto privilegiado da filosofia cartesiana. Ele não se define por representação, mas, ao contrário, é a repre-sentação que se define a partir dele. Pensamento é uma coisa, uma coisa distinta da matéria, uma coisa em si mesma, uma res cogitans; portanto, uma substância.

Representação é uma realidade meramente objetiva, isto é, uma realidade enquanto objeto do pensamento; uma realidade, portanto, no e para o pensa-mento. Como tal, ela pode ou não corresponder a um objeto exterior, seja material (tal como os corpos) ou espiritual (tal como Deus); se corresponder, ela pode ou não representá-lo fielmente: a idéia de Deus, por ser a mais clara e distinta de todas, representa fielmente seu objeto; as idéias sensíveis, por serem intrinsecamente obscuras e confusas, da união da alma com o corpo, não apre-sentam as coisas exteriores tais como elas são em si mesmas.

A linguagem é o instrumento de que o pensamento se serve para expressar suas idéias. Assim, a linguagem humana é um discurso de significados expressos por signos. Se há palavras, portanto, há idéias, visto que elas servem precisamente para expressar as idéias. O inverso, entretanto, não é verdadeiro: as idéias não pressupõem as palavras, mas são essencialmente percepções do intelecto e, como tais, essencialmente não discursivas.

Como podemos notar, a filosofia cartesiana não é uma filosofia da lin-guagem e nem mesmo, propriamente falando, uma filosofia da representação, mas ela é, fundamentalmente, uma filosofia do sujeito. Sujeito entendido não como sendo ele próprio uma representação mais fundamental que acompanha todas as minhas representações, mas como uma realidade em si mesma, uma coi-sa pencoi-sante, res cogitans, na qual e pela se formam todas as representações. Sujeito entendido não como sendo ele próprio uma categoria lingüística, como uma palavra que só adquire significado, como todos os demais significados das pala-vras, no interior da linguagem, mas como uma realidade em si mesma, uma coisa pensante, res cogitans, que cria e se utiliza das palavras para expressar as suas idéias.

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Os desenvolvimentos da filosofia posteriores a Descartes foram progres-sivamente deslocando o foco de interesse, bem como suas análises, primeira-mente, do sujeito da representação para a representação, e, por fim, da re-presentação para a linguagem que a expressa. Sem dúvida, o próprio Descartes apontou para esta direção, tanto porque a representação e a linguagem não foram suficientemente exploradas por Descartes, quanto porque aquilo que ele mais explorou, a saber, a realidade do pensamento, suscitou, na história da filosofia, mais dúvidas e dificuldades do que o próprio Descartes poderia ter previsto.

O recuo cético que Descartes empreendeu, tratando a realidade de corpos materiais

exteriores como sendo, antes de tudo, representações na realidade pensante, acabou

sendo completado, a partir de Kant, com um outro recuo cético, que tratava a própria

realidade pensante no horizonte da representação, sem se pronunciar sobre a realidade em si mesma do pensamento. Mais contemporaneamente, sobretudo a partir da criação da

lingüística, a dificuldade de se entender as representações ou idéias independentes da linguagem, e, por outro lado, a necessidade de se entender a língua como um produto social, e não como um mero processo psicológico na interioridade de uma consciência, levou a filosofia a concentrar suas análises no fenômeno da linguagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAVAILLÉ, J.-P., Descartes, La Fable du Monde. Paris: Vrin, 1991.

DESCARTES, R. Oeuvres Completes. Publiées para Charles Adam & Paul Tannery, 11v. Paris: Vrin, 3ed., 1996.

SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2003.

LEFÈVRE, R. Le Criticisme de Descartes. Paris: PUF, 1958.

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