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JAPIASSU, Hilton - Introdução ao Pensamento Epistemológico

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Academic year: 2021

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Capa: Ana Maria Silva de Araújo Impresso no Brasil Printed in Brazil

FICHA CATALOGRÁFICA

(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)

Japiassu, Hilton Peneira, 1934 - Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro, F. Alves, 202 p.

Todos os direitos reservados à

LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A. Rua Sete de Setembro, 177 - Centro

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SUMÁRIO

Prefácio...7

Alguns instrumentos conceituais...13

O que é a epistemologia?...21

A epistemologia genética de J. Piaget...41

A epistemologia histórica de G. Bachelard...61

A epistemologia ―racionalista-crítica" de K. Popper...83

A epistemologia "arqueológica" de M. Foucault...111

A epistemologia "crítica"...135

Para onde vai a filosofia?...159

Conclusão: um problema em suspenso...185

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Este pequeno livro, como indica seu título, trata do que chamei de "Introdução ao

Pensamento Epistemológico". Meu propósito foi o de explorar alguns dos caminhos que se abrem à epistemologia contemporânea. Os vários capítulos aqui reunidos não têm outra pretensão senão a de fornecer um conjunto de Elementos e de Instrumentos de reflexão epistemológica sobre os processos de génese, de desenvolvimento, de

estruturação e de articulação dos conhecimentos científicos. Cada um poderá ser tomado como um todo. Não houve, de minha parte, uma preocupação de sistematizar os vários temas tratados. Nem tampouco de lhes dar uma ordenação lógica rigorosa. Tentei

descobrir, nos autores analisados, seu "projeto" fundamental concernente aos problemas epistemológicos. Para não sobrecarregar o texto com muitas citações, remeto o leitor à bibliografia, onde poderá encontrar os elementos indispensáveis a um maior

aprofundamento. Não pretendi tanto resolver problemas quanto levantar questões que, uma vez examinadas, pó-

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derão proporcionar outras respostas, eventualmente discordantes. Se isto ocorrer, já está justificado meu esforço de propor à reflexão,* de modo simples, mas talvez "polémico", tais Elementos e Instrumentos introdutórios ao que hoje se chama de atividade

epistemológica.

Trata-se, pois, de uma reflexão epistemológica cuja preocupação fundamental é a de situar os problemas tais como eles se colocam ou se omitem, se resolvem ou

desaparecem na prática efetiva' dos cientistas. Todavia, como para situar e formular os problemas torna-se indispensável a presença de certos conceitos, tive a preocupação de fornecer algumas concepções engajando o tratamento de certos problemas científicos pela epistemologia. Sem dúvida, falar do "objeto" dessa disciplina significa falar de um problema a ser colocado para, em seguida, ser resolvido. Não tive a pretensão de analisar todos os problemas da epistemologia. Nem tampouco foi minha intenção

apresentar um quadro completo de todas as epistemologias atualmente existentes. Uma síntese, certamente, far-me-ia correr o risco de uma exagerada generalidade. Isto não me impediu, porém, de dar atenção a certas epistemologias, por vezes em "conflito". Assim, quis elucidar algumas "teses" particulares, sem ter a audácia de fazer com que elas se beneficiassem de uma demonstração completa.

O termo "conflito" é aqui utilizado no sentido de certos antagonismos fundamentais na elucidação, por parte das abordagens epistemológicas analisadas, da atividade científica. Cada enfoque epistemológico elucida a atividade científica a seu modo. Cada um tem uma concepção particular do que seja a ciência. Evidentemente, as epistemologias aqui expostas não podem ser tomadas por cânones. Cada uma tem um valor de tentativa, e não de modelo. Foi de propósito que tomei essas modalidades de epistemologia. Todas têm em comum, apesar das des-

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semelhanças quanto aos seus objetos, às suas perspectivas, aos seus métodos e às suas influências recíprocas, um caráter deliberadamente não-positivista quanto às suas concepções da ciência. Razão pela qual deixei de lado a apresentação desta

epistemologia tão desenvolvida e rica, com resultados surpreendentes no domínio do conhecimento científico, que é a epistemologia lógica, cujos defensores mais notáveis encontram-se filiados à corrente de pensamento derivada do empirismo lógico. Portanto, não se trata de uma negligência. Simplesmente deixei-a de fora, por tratar-se de um domínio epistemológico já bastante explorado. Por outro lado, ele se prende muito mais à elucidação da atividade científica através de uma descrição dos métodos, dos resultados, e sobretudo, da linguagem da "Ciência" ou da "Razão" nas ciências, do que ao exame propriamente crítico desta atividade, que é o objetivo das epistemologias que levei em consideração. Estas, com efeito, preocupam-se com a história das ciências, com a "história" da inteligência, com a "arqueologia" das ciências e com as relações da ciência com a sociedade que a produz, interferindo tanto em sua organização interna quanto em suas aplicações. Finalmente, estou consciente de que falar de epistemologia, hoje, já é engajar-se num espaço polémico ou conflitante, pois sob este título apresentam-se trabalhos que frequentemente nada têm de comum, quando não se excluem

explicitamente. Não se tratará, pois, aqui, de conciliar, mas, na medida do possível, de colocar em ordem e de justificar: um discurso sobre as ciências é um discurso em que a teoria se faz estratégia. E é tomando as ciências em sua "historicidade", que se elabora a crítica epistemológica da ciência. Por outro lado, como a historicidade não é para a

filosofia um simples acidente exterior, mas algo que lhe é essencial, da mesma forma a história das ciências se liga de muito perto à

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filosofia, pelo menos, através de sua vertente epistemológica. A história das ciências é um tecido de juízos implícitos sobre o valor dos pensamentos e das descobertas científicas. O papel da epistemologia é de explicitá-los.

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I. Saber, ciência, epistemologia

O termo saber tem hoje, por força das coisas e pela realidade do uso, um sentido bem mais amplo que o termo ciência.

a) É considerado saber, hoje em dia, todo um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais-ou-menos sistematicamente organizados e susceptíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino. Neste sentido bastante lato, o conceito de "saber"poderá ser aplicado à aprendizagem de ordem prática(saber fazer, saber técnico...) e, ao mesmo tempo, às determinações de ordem propriamente intelectual e teórica. É nesse último sentido que tomamos o termo "saber".

b) Por ciência, no sentido atual do termo, deve ser considerado o conjunto das aquisições intelectuais, de um lado, das matemáticas, do outro, das disciplinas de

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investigação do dado natural e empírico, fazendo ou não uso das matemáticas, mas tendendo mais ou menos à matematização.

Hoje em dia, podemos nos servir do termo "saber" para designar uma série de disciplinas intelectuais mais ou menos estabelecidas, mas que não podem ser consideradas como ciências, no sentido atual do termo: o saber "racional", constituído pela filosofia, ou o saber "crente" ou "místico". Entretanto, entre as ciências e os saberes especulativos, intercalam-se várias disciplinas cujo estatuto ainda permanece incerto: disciplinas de erudição, história, disciplinas jurídicas, etc. Um quadro poderá ilustrar melhor:

SABER EM GERAL

SABERES "ESPECULATIVOS" (que não são ciências)

A. Racional: Filosofia

B. Crents ou religioso: Teologia

CIÊNCIAS (que não são saberes "especulativos")

A. Matemáticas

B. Empíricas e positivas

c) Por epistemologia, no sentido bem amplo do termo, podemos considerar o estudo metódico e reflexivo do saber, de sua organização, de sua formação, de seu

desenvolvimento, de seu funcionamento e de seus produtos intelectuais. Haveria, assim, três tipos de epistemologia:

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— Epistemologia específica, quando se trata de levar em conta uma disciplina intelectualmente constituída em unidade bem definida do saber, e de estudá-la de modo próximo, detalhado e técnico, mostrando sua organização, seu funcionamento e as possíveis relações que ela mantém com as demais disciplinas.

Fala-se também, hoje em dia, de epistemologia interna e de epistemologia derivada. A epistemologia interna de uma ciência consiste na análise crítica que se faz dos

procedimentos de conhecimento que ela utiliza, tendo em vista estabelecer os

fundamentos desta disciplina. Enquanto tenta estabelecer uma teoria dos fundamentos de uma ciência, a epistemologia interna tende a integrar seus resultados no domínio da ciência analisada. A epistemologia derivada, ao contrário, visa fazer uma análise da natureza dos procedimentos de conhecimento de uma ciência, não para fornecer-lhe um fundamento ou intervir em seu desenvolvimento, mas para saber como esta forma de conhecimento é possível, bem como para determinar a parte que cabe ao Sujeito e a que cabe ao objeto no modo particular de conhecimento que caracteriza uma ciência. Donde a necessidade de se fazer apelo às outras ciências e às suas epistemologias. É a esta epistemologia derivada que chamamos de epistemologia geral. Dizer que esta não tem objeto, seria o mesmo que admitir que os cientistas estão conscientes de todos os fatores (sociais, culturais, ideológicos, filosóficos, políticos) implicados em sua prática efetiva.

II. Saber e pré-saber

Antes do surgimento de um saber ou de uma disciplina científica, há sempre uma primeira aquisição ainda

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não científica de estados mentais já formados de modo mais ou menos natural ou espontâneo. No nível coletivo, esses estados mentais são constitutivos de uma certa cultura. Eles constituem as "opiniões primeiras" ou pré-noções, tendo por função reconciliar o pensamento comum consigo mesmo, propondo certas explicações. Podemos caracterizar tais pré-noções como um conjunto falsamente sistematizado de juízos, constituindo representações esquemáticas e sumárias, formadas pela prática e para a prática, obtendo sua evidência e sua "autoridade" das funções sociais que desempenham. Como já dizia Aristóteles, "toda disciplina susceptível de se aprender, e todo estudo comportando um processo intelectual, constituem-se a partir de um

conhecimento já presente".

Todo saber humano relaciona-se a um pré-saber. Aliás, a epistemologia contemporânea reconhece este fato. Por exemplo, Piaget elabora uma epistemologia genética; Bachelard escreve La formation de Vesprit scientifique; M. Foucault, em Lês mots et lês choses, faz toda uma "arqueologia" das ciências humanas. Assim, como poderíamos caracterizar este pré-saber relativamente ao saber que se procura ou que já foi encontrado?

a) caracterizações pejorativas: opinião, conhecimento comum ou vulgar, etc.

b) caracterizações positivas: empiria, experiência, por vezes "arte", opinião válida, etc.

c) caracterização técnica em Foucault: "episteme": infra-estrutura cultural das emergências do saber propriamente dito.

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ber que há um pré-saber. Trata-se de uma realidade ambígua, comportando

determinações contrárias ao saber (erro, preconceitos, ideias preconcebidas, etc.) e recursos de conhecimento e de atividades mentais indispensáveis ao saber. É em função desta relação do saber ao seu pré-saber que vemos definir-se na epistemologia atual toda uma série de categorias epistemológicas significativas. Mencionemos as mais correntes:

1. Em face da necessidade intelectual do saber e das tentativas de aproximação deste saber, temos a categoria de obstáculos epistemológicos (analisada por Bachelard em La formation de Vesprit scientifique): "resistência" ou "inércia" do pensamento ao pensamento, surgindo no momento da constituição de uma ciência como"contra-pensamento", ou num estádio superior de seu desenvolvimento como "parada de pensamento".

2. Em face da necessidade intelectual de se definira atitude científica por oposição à atitude pré-científica,temos a categoria de corte epistemológico (analisada por Bachelard em Lê rationalisme appliqué, cap. VI): trata-se do momento em que uma ciência se constitui "cortando" com sua pré-história e com seu meio ambiente ideológico; não se trata de uma "quebra" instantânea,trazendo uma novidade absoluta, mas de um processo complexo no decorrer do qual se constitui uma ordem inédita do saber.

3. Para mantermos o progresso reflexivo da atitude científica, devemos fazer apelo à categoria de vigilância epistemológica (Rationalisme appliqué, cap. IV): trata-se de uma atitude reflexiva sobre o método científico, isto é, de uma atitude que nos leva

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métodos que ela emprega a uma retificação metódica, a fim de nos libertarmos das ideologias, das crenças, das opiniões, das certezas imediatas e chegarmos, assim, à objetividade científica; esta não pode repousar num fundamento tão incerto quanto a objetividade do cientista (que é sua subjetividade), mas exige o estabelecimento das condições de um controle intersubjetivo.

4. Em face da necessidade de explicar o devir de uma ciência, ligando o conhecimento de seu passado à análise de seu estado presente, e fazendo depender este estado presente de todos os elementos que constituíram sua possibilidade, devemos fazer apelo à categoria de recorrência epistemológica. É este conceito que torna possível o desenvolvimento de uma história teórica ou de um conhecimento teórico da história das ciências. É ele que nos permite

compreender o devir real de uma ciência, que é o objeto da epistemologia histórica.

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Devemos dizer, de início, que da epistemologia sabemos muito sobre aquilo que ela não é, e pouco sobre aquilo que é ou se torna, uma vez que se trata de uma disciplina recente e cuja construção é, por isso mesmo, lenta. Seu estatuto está longe de poder ser bem definido, tanto em relação às ciências, entre as quais pretende instalar-se como disciplina autónoma, quanto em relação à filosofia, de que insiste em separar-se sem se dar conta de que uma de suas razões de ser é postulá-la como uma das exigências fundamentais de qualquer olhar crítico e reflexivo sobre as ciências que se vêm criando e

transformando o mundo através dos produtos que não cessam de lançar em nossa

cultura. Por isso, definir o estatuto da epistemologia atual é tarefa delicada, pois os limites do domínio de investigação dessa disciplina são muito flutuantes. Além disso, não existe sequer um acordo quanto à natureza dos problemas que ela deve abordar. Seu campo de pesquisa é imenso, supondo grande intimidade com as ciências, cujos princípios e resul-

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tados ela deveria estar em condições de criticar. Donde a variedade de conceitos de epistemologia.

Comecemos pela noção mais simples. "Epistemologia" significa, etimologicamente, discurso (logos) sobre a ciência (episteme). Apesar de parecer um termo antigo, sua criação é recente, pois surgiu a partir do século XIX no vocabulário filosófico. Daí um primeiro problema: se aquilo que está por baixo desse termo (seu conteúdo) só apareceu no século passado, a que condições novas, na história das ciências e da filosofia,

corresponde este aparecimento? Será que este termo surgiu tardiamente para designar uma antiga forma de conhecimento, contemporânea da prática dos primeiros sábios e filósofos? Em outros termos: teria a epistemologia começado com a filosofia clássica (com Platão, por exemplo), ou somente depois dela?

Colocando a questão nestes termos, podemos confinar a epistemologia, desde o início, nos limites do discurso filosófico, fazendo dela uma parte deste discurso. Foi assim que fizeram todas as epistemologias tradicionais, chamadas de filosofia das ciências ou de teoria do conhecimento. Todavia, colocando de outra forma a questão, caracterizaremos a epistemologia como um discurso sobre o qual o discurso primeiro da ciência deveria ser refletido. Assim, o estatuto do discurso epistemológico, como duplo, é ambíguo: discurso sistemático que encontraria na filosofia seus princípios e na ciência seu objeto. Seria um discurso dividido entre duas formas de discurso racional. Por esta dupla pertença ou filiação, a epistemologia teria por função resolver o problema geral das relações entre filosofia e ciências. Trata-se de saber se tal problema é verdadeiro, ou se a epistemologia não deve ir procurar suas funções, seus métodos e seu conteúdo fora da perspectiva filosófica.

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Tradicionalmente, a epistemologia é considerada como uma disciplina especial no interior da filosofia. Eram os filósofos que faziam as pesquisas em epistemologia. Esta era "para" a ciência ou "sobre" a ciência, mas não era obra dos próprios cientistas. Todas as

filosofias desenvolveram espontaneamente uma teoria do conhecimento e uma filosofia das ciências tendo por objetivo quer evidenciar os meios do conhecimento científico, quer elucidar os objetos aos quais tal conhecimento se aplica, quer fundar a validade deste conhecimento. Como se pode notar, este programa visa a um duplo fim: em primeiro lugar, descobrir um conhecimento positivo: de que fala o cientista? Como fala dele? Em segundo lugar, visa a ultrapassar os limites dessas questões, fazendo da prática científica o objeto de um juízo: o que é uma verdade científica? Em que condições há verdade? Em que limites podemos falar de verdade científica?

Esta concepção tradicional de epistemologia está registrada no Vocabulário de Lalande. Para este, com efeito, a epistemologia é a filosofia das ciências, mas com um sentido mais preciso. Ela não é, propriamente falando, o estudo dos métodos científicos, os quais pertencem à metodologia. Também não é uma síntese, ou uma antecipação conjetural das leis científicas (à maneira do positivismo ou do evolucionismo). Essencialmente, a epistemologia é o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências. Semelhante estudo tem por objetivo determinar a origem lógica (não psicológica) das ciências, seu valor e seu alcance objetivos.

Como podemos depreender dessa concepção, a epistemologia usaria a ciência como simples pretexto para filosofar. A filosofia teria com a ciência uma relação puramente interesseira, explorando-a para seus próprios fins. Isto se torna manifesto nas três funções clássicas atribuídas à filosofia das ciências: 1. Situar o lugar do

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conhecimento científico dentro do domínio do saber. Esta atividade, propriamente tópica (topos: lugar), é dupla: de um lado, ela distingue as funções e os meios que são

apropriados às outras formas de conhecimento; do outro, apresenta o sistema geral de todas essas funções. Donde o paradoxo do discurso filosófico, que se confere a si mesmo um lugar específico no interior deste conjunto, mas permanecendo-lhe estranho, pois cabe-lhe designar seu esquema global. Daí a questão: por que a filosofia tem este privilégio de distribuir em torno de si os outros discursos? Não poderia o discurso

científico descobrir por si mesmo seu próprio lugar? Destas questões, podemos deduzir a segunda função da filosofia das ciências. 2. Estabelecer os limites do conhecimento científico: este não pode tudo conhecer. Tal limitação se exprime numa série de

oposições: ciência e sabedoria, conhecer e pensar, compreender e conhecer, etc. Estas duas atividades, de distinção e de limitação, supõem o uso de uma categoria, que é o produto da intervenção filosófica. 3. Buscar a natureza da ciência. Ora, a ciência não existe. Do ponto de vista da prática dos cientistas, não há ciência em geral, mas sistemas de conhecimentos específicos, em evolução e apropriados a seus objetos. "A" ciência não passa de uma ficção.

Ao buscar a natureza do conhecimento científico, a filosofia das ciências não se dá por objeto um conhecimento em sua génese e estruturação progressiva, em vias de se fazer ou em processo, mas um conhecimento "em si", como fato. Ela se dá um objeto ideal, e não esses objetos reais que são as diversas modalidades nas quais os cientistas

trabalham efetivamente e a partir das quais eles constroem, ao mesmo tempo, o edifício de suas teorias e esses elos positivos que permitem seu desenvolvimento. Portanto, trata-se de uma modalidade de epistemologia que poderíamos chamar de

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oposição às epistemologias ditas "científicas". Ela parte de um postulado: o de que o conhecimento é um fato que pode ser estudado em sua natureza própria e nas condições prévias de sua existência. As questões colocadas por este tipo de epistemologia referem-se sobretudo à possibilidade do conhecimento. Ela não referem-se interroga sobre suas

condições concretas de elaboração, de génese, de organização, de estruturação ou de crescimento. Daí as questões fundamentais: "como é possível o conhecimento?", "o que é o conhecimento?"

As razões de tal atitude não devem ser procuradas apenas nas doutrinas dos grandes filósofos, mas também no próprio pensamento científico, que por muito tempo acreditou ter atingido um conjunto de verdades definitivas, embora incompletas, permitindo que se interrogasse sobre "o que é o conhecimento". Ora, hoje em dia, o conhecimento passou a ser considerado como um processo e não como um dado adquirido uma vez por todas. Esta noção de conhecimento foi substituída por outra, que o vê antes de tudo como um processo, como uma história que, aos poucos e incessantemente, fazem-nos captar a realidade a ser conhecida. Devemos falar hoje de conhecimento-processo e não mais de conhecimento-estado. Se nosso conhecimento se apresenta em devir, só conhecemos realmente quando passamos de um conhecimento menor a um conhecimento maior. A tarefa da epistemologia consiste em conhecer este devir e em analisar todas as etapas de sua estruturação, chegando sempre a um conhecimento provisório, jamais acabado ou definitivo.

É neste sentido que podemos conceituá-la como essa disciplina cuja função essencial consiste em submeter a prática dos cientistas a uma reflexão que, diferentemente da filosofia clássica do conhecimento, toma por objeto, não mais uma ciência feita, uma

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deira de que deveríamos estabelecer as condições de possibilidade, de coerência ou os títulos de legitimidade, mas as ciências em vias de se fazerem, em seu processo de génese, de formação e de estruturação progressiva. Seu problema central, e que define seu estatuto geral, consiste em estabelecer se o conhecimento poderá ser reduzido a um puro registro, pelo Sujeito, dos dados já anteriormente organizados independentemente dele num mundo exterior (físico ou ideal), ou se o Sujeito poderá intervir ativamente no conhecimento dos Objetos. É da tomada de posição relativamente a este problema, que as epistemologias se repartem em duas categorias ou orientações distintas. Portanto, de um lado, temos as epistemologias genéticas, para as quais o acordo entre o Sujeito e o Objeto deverá ser estabelecido progressivamente: o conhecimento deve ser analisado de um ponto de vista dinâmico (na sua formação e em seu desenvolvimento) ou diacrônico, quer dizer, em sua estrutura evolutiva. Por outro lado, temos as epistemologias não-genéticas, para as quais o acordo entre o Sujeito e o Objeto deve ser feito desde a

origem, não sendo aceita a perspectiva histórica ou temporal: o conhecimento é estudado de um ponto de vista estático ou sincrônico, quer dizer, em sua estrutura atual.

É claro que, no interior dessas duas categorias podem ser distinguidas subclasses, conforme o acordo suponha um primado do Objeto que se impõe ao espírito

(conhecimento tirado do objeto), um primado do Sujeito (conhecimento tirado do sujeito) que antecede ao objeto, ou uma interação entre o Sujeito e o Objeto. E as epistemologias contemporâneas repartem-se segundo confiram o primado ao Sujeito, ao Objeto ou à Interação entre ambos. Contudo, as epistemologias atualmente vivas e significativas estão centradas sobre as interações do Sujeito e do Objeto: a epistemologia

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ilustrada por Husserl; a epistemologia construtivista e estruturalista, ilustrada por Piaget; a epistemologia histórica, ilustrada por Bachelard; a epistemologia "arqueológica", ilustrada por Foucault; a epistemologia "racionalista-crítica", ilustrada por Popper.

É necessário que se compreenda como a epistemologia se situa a si mesma

relativamente à filosofia das ciências e a outras disciplinas que lhe são mais ou menos afins. Em outros termos, a epistemologia se situa na intersecção de preocupações e de disciplinas bastante diversas, tanto por seus objetivos quanto por seus métodos. É muito difícil encontrar uma lista completa e precisa dessas disciplinas. Limitemo-nos a algumas. Trata-se, de fato, de uma divisão nas maneiras de abordar a epistemologia, isto é, de um conjunto de vias de acesso a esta disciplina, cada uma com seu tipo próprio de

inteligibilidade, constituindo uma abordagem que não se impõe às outras.

A. A filosofia das ciências

No pano de fundo de toda abordagem epistemológica, encontramos toda uma tradição filosófica. Todos os grandes filósofos também foram teóricos do conhecimento, quer dizer, construíram uma teoria do conhecimento fazendo parte integrante de seu sistema filosófico. Eles se perguntaram como a ciência é possível. Ao se referirem às ciências, tinham em vista duas coisas: quer ultrapassá-las com métodos análogos, quer opor-se a elas determinando seus limites e tentando abrir, com essa crítica, outros caminhos

possíveis. As diversas teorias clássicas do conhecimento eram o produto de uma reflexão sobre as ciências, dizendo respeito aos diversos

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tipos de saber e às suas fontes: razão, imaginação, experiência, etc. No fundo, a questão como vinha a significar em que condições. Procuravam-se, pois, as condições ou os princípios logicamente exigidos para que a ciência se tornasse possível. Podemos chamar essas teorias do conhecimento, partindo de uma reflexão sobre as ciências e tentando prolongá-la numa teoria geral do conhecimento, de epistemologias

"metacientíficas": elas visam a estabelecer a relação que o Sujeito e o Objeto mantêm entre si no ato de conhecer, mas tendo em vista determinar o valor e os limites do próprio conhecimento, a fim de extrair sua natureza, seu mecanismo geral e seu alcance.

Todas as formas clássicas de epistemologia estiveram sempre, de um modo ou de outro, vinculadas ao progresso das ciências. No passado, houve uma solidariedade da filosofia com as ciências. Todos os filósofos refletiram sobre aquilo que faziam. E foi assim que se constituiu a filosofia das ciências. O problema consiste em saber como ela ainda pode justificar-se hoje em dia. Atualmente, são os próprios cientistas que se interessam por refletir sobre o que fazem. De uma forma ou de outra, eles se colocam, mesmo que seja de modo implícito, questões sobre a razão de ser dos problemas, dos métodos e dos conceitos de suas disciplinas. Aliás, há toda uma tendência a fazer a reflexão sobre a ciência curvar-se à disciplina científica: de um lado, fazendo-se apelo à linguagem lógica, do outro, multiplicando-se os contatos com os fatos. Isto não quer dizer que a

epistemologia tenha cortado completamente seus laços com a filosofia: em primeiro lugar, porque as grandes epistemologias continuam estreitamente associadas a uma filosofia; em seguida, porque elas a sugerem ou a confirmam; finalmente, porque acima das epistemologias "regionais" ou "internas", há problemas de epistemologia

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geral que ultrapassam a competência dos especialistas. E mesmo que possamos colocar em dúvida a validade atual de uma epistemologia filosófica, não poderíamos negar a importância de uma teoria da história das ciências. Esta teoria, muito solidária da epistemologia, não perde seu caráter filosófico. Uma teoria das ciências só é

epistemológica porque a epistemologia é histórica. Assim, a historicidade é essencial ao objeto da ciência sobre o qual é estabelecida uma reflexão que podemos chamar de "filosofia das ciências" ou epistemologia. E a história das ciências, não sendo ela própria uma ciência, e não tendo por isso mesmo um objeto científico, é uma das funções

principais da epistemologia.

B. A história das ciências

Esta disciplina conheceu um grande desenvolvimento no início do século XX. O grande problema que se coloca é o do conhecimento do passado: em que medida podemos descrever uma história das ciências sem interpretar os conhecimentos passados através dos conhecimentos presentes? Uma história puramente descritiva corre o risco de

introduzir juízos de valor inoportunos sobre o que os cientistas "deveriam ter feito", sobre seus "erros", etc. E hoje sabemos que fazer a história das ciências consiste em fazer a história dos conceitos e das teorias científicas, bem como das hesitações do próprio teórico. Trata-se de um esforço para se elucidar em que medida as noções, as atitudes ou os métodos ultrapassados foram, em sua época, um ultra passatempo. Mais

profundamente, como nos mostrou Canguilhem, interrogar-se sobre a história das ciências consiste em interrogar-se ao mesmo tempo sobre sua finalidade, so-

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bre seu destino, sobre seu porquê, mas também sobre aquilo pelo que ela se interessa, de que ela se ocupa, em conformidade com aquilo que ela visa. Sendo assim, a

epistemologia não pode deixar de interessar-se pela história das ciências. É através da epistemologia que os filósofos se interessam por ela, na medida em que esta consciência crítica dos métodos atuais de um saber adequado a seu objeto vê-se obrigada a celebrar o poder desses métodos, lembrando os embaraços que retardaram sua conquista. Assim, entre as razões apresentadas por Canguilhem para se fazer história das ciências:

histórica (extrínseca à ciência, entendida como discurso verificado sobre determinado setor da experiência), científica (realizada pelos cientistas enquanto são pesquisadores e não académicos) e filosófica, esta última é a mais importante. Porque, sem referência à epistemologia, toda teoria do conhecimento seria uma meditação sobre o vazio. Por outro lado, sem relação à história das ciências, a epistemologia seria uma réplica inútil da ciência que toma como objeto de discurso.

Portanto, contrariamente aos epistemólogos que se reclamam do empirismo lógico, para os quais a história das ciências situa-se fora do campo epistemológico, pois pertenceria às ciências empíricas, ligadas ao conhecimento dos fatos, sustentamos que a

epistemologia é profundamente solidária das ciências, devendo alimentar-se amplamente de seus ensinamentos. Na perspectiva positivista, a ciência só é tomada como objeto de estudo na medida em que existe a título de fato, isto é, como ciência presente.

Contrariamente a esta posição, devemos dizer que compete à epistemologia fornecer à história das ciências o princípio de um juízo, pois é ela que lhe ensina a última linguagem falada por tal ciência, permitindo-lhe, assim, recuar no tempo até o momento em que esta linguagem deixa de ser inteligível. É a epis-

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temologia que nos permite discernir a história dos conhecimentos científicos que já estão superados e a dos que permanecem atuais (ou sancionados), porque atuantes e

colocando em marcha o processo científico. A diferença entre o historiador das ciências e o epistemólogo consiste em que o primeiro toma as ideias como fatos, ao passo que o segundo toma os fatos como ideias*, inserindo-os num contexto de pensamentos. Em outras palavras, o primeiro procede das origens para o presente, de sorte que a ciência atual já está sempre anunciada no passado, ao passo que o segundo procede do presente para o passado, de sorte que somente uma parte daquilo que ontem era considerado como ciência pode hoje ser fundado e justificado cientificamente.

Resulta que é a epistemologia, enquanto teoria do fundamento da ciência, que faz com que o objeto da história das ciências não se identifique com o objeto da ciência e com que a história das ciências seja uma tomada de consciência explícita do fato de as ciências serem discursos críticos e progressivos para a determinação daquilo que, na experiência, deve ser tido por real. É ainda ela que faz com que o objeto da história das ciências seja um objeto não dado, mas um objeto construído, um objeto cujo

inacabamento é essencial. Em suma, da história das ciências, filosoficamente questionada, surge uma filosofia das ciências que outra coisa não é senão uma das modalidades da epistemologia geral, e que constitui uma das vias de acesso à epistemologia, próxima às que passam pela psicologia, pela sociologia e pela metodologia dos conhecimentos.

C. A psicologia das ciências

Esta disciplina ainda está em seu início. Mas seu campo de pesquisa é vasto. Há muitas questões episte-

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mológicas que só são resolvidas através de uma psicologia do conhecimento. Por

exemplo, a seguinte questão: qual é a influência dos processos simbólicos inconscientes sobre a produção do pensamento lógico na pesquisa científica? Estamos hoje em

presença de todo um trabalho que certamente podemos chamar de epistemologia

psicológica, visando a elucidar como se articulam as diferentes etapas do conhecimento, desde a infância até a ciência dos adultos, associando estreitamente a análise lógica à análise psicológica. São as pesquisas levadas a efeito por Piaget e sua equipe no Centro Internacional de Psicologia Genética, em Genebra. Ao partirem da questão fundamental do pensamento kantiano: "como o conhecimento é possível?", acreditam esses autores que a psicologia genética foi criada para trazer-lhe uma resposta. Eles mostram toda a carência da filosofia tradicional para solucionar este problema, bem como as

insuficiências, tanto das velhas certezas e respostas do empirismo, quanto das novas soluções propostas pelo positivismo lógico. E pretendem instaurar, com a psicologia genética, as bases sólidas de uma nova epistemologia. Esta não pode mais contentar-se com uma fidelidade às tradições anglo-saxônias, que permanecem orientadas para um associacionismo empirista, o que reduziria todo conhecimento a uma aquisição exógena, a partir da experiência ou das apresentações verbais ou audiovisuais dirigidas pelos adultos. Por outro lado, a epistemologia genética tampouco aceita a solução proposta pelo empirismo lógico que, no processo de aquisição dos conhecimentos, continua a fazer apelo aos fatores de ineidade e de maturação interna. A nova epistemologia precisa ser elaborada a partir de uma concepção construtivista da aquisição dos conhecimentos: sem pré-formação, nem exógena (empirismo) nem endógena (ineidade), mas por

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Ao partir de sua concepção da psicologia genética, entendida como o estudo do desenvolvimento das funções mentais, Piaget mostra que este desenvolvimento pode fornecer uma explicação ou, pelo menos, um complemento de informação quanto aos mecanismos dessas funções mentais em seu estado acabado. Por outro lado, mostra que podemos utilizar a psicologia genética para encontrar a solução dos problemas

psicológicos gerais e dos problemas do conhecimento. Em suma, é a esta epistemologia que devemos a maneira diferente de colocar o problema fundamental do conhecimento: ao invés de perguntar "como o conhecimento é possível?", devemos perguntar "como crescem os conhecimentos?" Donde podemos identificar a epistemologia da psicologia à psicologia do conhecimento científico em geral.

D. A sociologia do conhecimento

Também esta disciplina empreende pesquisas estreitamente ligadas à epistemologia. Assinalemos, por exemplo, o lugar que ocupam Marx, Durkheim, M. Weber, Manheim e muitos outros sociólogos do conhecimento. É evidente que as tendências manifestadas por esses autores em seus trabalhos são bem diferentes. Todavia, todos têm em comum uma abordagem global: para eles, os conhecimentos não são considerados como

construções autónomas e individuais, mas como atividades sociais, inseridas num

determinado contexto sócio-cultural. O conhecimento científico é sempre tributário de um pano de fundo ideológico ou filosófico. Também é tributário da religião, da economia, da política e de outros fatores extracientíficos. Sendo assim, o simples fato de concebermos a ciência ou um conhecimento científico como possíveis, já é um pressuposto que tem origens fi-

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losóficas ou ideológicas. Por conseguinte, uma sociologia do conhecimento deve ter, entre outras funções, a de estabelecer uma ruptura entre os saberes comuns e saber científico, interrogando-se sobre as condições sociais que tornam inevitável esta ruptura com o conhecimento espontâneo e ideológico. Ela tem a missão de evidenciar os

pressupostos inconscientes das tradições teóricas. Ora, este fato de encontrar as condições históricas e sociais em que se realiza a prática sociológica, para ultrapassá-las, já é um trabalho específico da crítica epistemológica.

Nas últimas décadas, fala-se também de sociologia da ciência. Distinta da sociologia do conhecimento, que guardou um caráter especulativo para estudar o problema de uma determinação social do conhecimento, a sociologia da ciência dá preferência às pesquisas concretas do condicionamento social e dos fatores não-científicos concernentes às diversas descobertas científicas. Ela se interessa sobretudo pelo progresso da ciência, mas tentando levar em conta as relações entre a ciência e a sociedade: as consequências que decorrem da ciência, de seus progressos e de suas realizações para a vida social e sua organização. Não se interessa tanto, como a sociologia do conhecimento, pelos sistemas do conhecimento científico, mas pelos próprios cientistas, em suas condições sociais reais de trabalho.

Daquilo que já sabemos sobre a "natureza" da epistemologia, podemos tirar algumas conclusões:

1. O simples fato de ainda hesitarmos entre duas denominações: filosofia das ciências e epistemologia (aliás, há várias denominações: filosofia das ciências, teoria do

conhecimento, lógica das ciências, epistemologia, etc.), já é revelador da impossibilidade de estabelecermos um estatuto preciso e definitivo para a episte-

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mologia. Ora falamos de epistemologia (termo que tem a vantagem de apresentar uma conotação mais "séria" e "científica"), ora falamos de filosofia das ciências (termo que apresenta a desvantagem de estar carregado de um sentido menos "sério" ou "literário"). No entanto, essas noções são complementares: a epistemologia guarda sua autonomia relativamente à filosofia, mas permanecendo solidária a ela numa integração profunda. A ideia salutar de autonomia não pode degenerar em preconceito isolacionista, nefasto como todo particularismo ou separatismo absolutos. Por outro lado, não devemos engajar-nos no sentido oposto, substituindo a autonomia indispensável.por uma heteronomia desprovida de sentido. É preciso que confiramos à epistemologia uma estrutura e um desenvolvimento específicos enquanto ramo do saber, sem no entanto prescindirmos daquilo que ela tem de comum com outras disciplinas, inclusive com a filosofia.

2. Portanto, o conceito de epistemologia não tem uma significação rigorosa e unívoca, com um conteúdo definitivo e aceito por todos os que se interrogam como se constitui uma teoria científica. Qual é o papel, na prática científica, do contexto social e ideológico? Qual é a génese das ciências? Qual é sua estrutura? Como crescem os conhecimentos? Não existe um quadro comum, onde viriam articular-se

harmoniosamente todos os trabalhos dos lógicos, dos psicólogos, dos sociólogos,etc. Sua colaboração choca-se quase sempre com obstáculos, sendo o primeiro deles o de conceituar sua disciplina.

3. Não é pois inútil que cada especialista se interrogue, antes de tudo, sobre a ideia que ele faz de sua disciplina. A este respeito, várias questões se colocam.Por exemplo, se queremos conceituar a epistemologia,

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a questão inicial é a seguinte: de que fazemos a epistemologia? Em seguida, as outras questões: Quem vai fazê-la? Por que se faz epistemologia? Como ela é feita? E isto porque o objeto de uma disciplina não consiste apenas na matéria própria sobre a qual se aplica seu estudo, naquilo pelo que ela se interessa ou naquilo de que ela se ocupa, mas em sua intenção, seu desígnio ou seu objetivo, quer dizer, em sua finalidade, em sua destinação e em seu porquê. E sabemos que não encontramos hoje a unidade de uma disciplina na direção de seu objeto, pois toda ciência se dá mais ou menos o seu objeto: é a ciência que constitui e constrói seu objeto pela invenção de um método, apropriando-se, assim, de seu domínio.

4. O conceito de epistemologia é, pois, empregado de modo bastante flexível. Segundo os autores, com seus pressupostos filosóficos ou ideológicos, e em conformidade com os países e os costumes, ele serve para designar, quer uma teoria geral do conhecimento (de natureza mais ou menos filosófica), quer estudos mais restritos interrogando-se sobre a génese e a estrutura das ciências, tentando descobrir as leis de crescimento dos

conhecimentos, quer uma análise lógica da linguagem científica, quer, enfim, o exame das condições reais de produção dos conhecimentos científicos. Qualquer que seja a acepção que dermos ao termo "epistemologia", a verdade é que ela não pode e nem pretende impor dogmas aos cientistas. Não pretende ser um sistema, a priori, dogmático, ditando autoritariamente o que deveria ser o conhecimento científico. Seu papel é o de estudar a génese e a estrutura dos conhecimentos científicos. Mais precisamente, o de tentar pesquisar as leis reais de produção desses conhecimentos. E ela procura estudar esta produção dos conhecimentos, tanto do ponto de vista lógico, quanto dos pontos de vista linguístico, sociológico, ideo-

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lógico, etc. Daí seu caráter de disciplina interdisciplinar. E como as ciências nascem e evoluem em circunstâncias históricas bem determinadas, cabe à epistemologia

perguntar-se pelas relações existentes entre a ciência e a sociedade, entre a ciência e as instituições científicas, entre as diversas ciências, etc.

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Como o esforço da epistemologia global, referente às ciências humanas, está em estreita relação com a concepção que Jean Piaget faz da própria epistemologia, parece-nos interessante compreender bem qual o sentido e o alcance dessa epistemologia. As ideias essenciais da epistemologia genética, tal como ela é praticada por Piaget, estão expostas em três obras: Introduction à l'épistémologie génétique (3 volumes, P.U.F., Paris, 1950), Logique et connaissance scientifique (Encyclopédie de Ia Plêiade, Gallimard, Paris, 1967) e L'épistémologie des sciences de l’homme (Gallimard, Paris, 1970; tradução portuguesa da Livraria Bertrand).

Podemos dizer que a epistemologia genética é a extensão, a todo o campo das ciências humanas, da metodologia que possibilitou a Piaget a realização de excelentes trabalhos sobre o desenvolvimento da criança: a formação do número, o desenvolvimento da inteligência, a aquisição da linguagem, a formação do juízo moral, etc. A esta extensão, Piaget trabalha há vinte anos, com o

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Centro Internacional de Epistemologia Genética de Genebra.

A epistemologia pode, então, ser definida como o "estudo da constituição dos

conhecimentos válidos". O termo "constituição" recobre ao mesmo tempo as "condições de acesso", isto é, os processos de aquisição dos conhecimentos, e as "condições

propriamente constitutivas", quer dizer, as condições formais ou experimentais que dizem respeito à validade dos conhecimentos, e as condições que dizem respeito, quer às contribuições do sujeito, quer às do objeto no processo de estruturação do conhecimento. Portanto, para Piaget, só há ciência quando estiverem reunidos esses três elementos: 1. elaboração de "fatos"; 2. formalização lógico-matemática; 3. controle experimental. Por conseguinte, ao lado dos métodos de análise direta tentando, por ocasião da crise de um saber implicando a reformulação de certos conceitos, extrair as condições de

conhecimento por simples análise lógica; e ao lado dos métodos de análise normalizante, tais como os do empirismo lógico, que examinam a coordenação entre a formalização e a experiência, Piaget interessou-se particularmente pelos métodos de análise genética, que procuram compreender os processos do conhecimento científico em função de seu

desenvolvimento e de sua própria formação: quer segundo uma "sociogênese" dos conhecimentos, relativa a seu desenvolvimento histórico no interior das sociedades e à sua transmissão cultural (métodos histórico-críticos), quer segundo uma "psicogênese" das noções e estruturas operatórias elementares constituindo-se no decorrer do

desenvolvimento dos indivíduos. É sobre este uso reflexivo da psicogênese que mais se destacou a contribuição de Piaget: procurando fundar a construção de uma estrutura de conhecimento ou de ação em interação com as atividades do sujeito constituinte, a psicogênese cul-

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mina, de fato, em análises genéticas formalizadas e, por conseguinte, permite a

descoberta de um estatuto científico para as principais estruturas operatórias das ciências humanas. Assim, requer-se sistematicamente a cooperação interdisciplinar dos lógicos, dos matemáticos, dos psicólogos e dos especialistas da aplicação técnica das noções próprias ao saber em questão.

Desde o início, Piaget recusa uma epistemologia que seja filosófica e pretenda constituir uma teoria do conhecimento impondo-se a priori ao sistema das ciências. Para ele, a especulação apresenta dois aspectos: a) o primeiro diz respeito à reflexão filosófica. Esta, por natureza, é apreciativa, interpretativa, valorizadora. E o homem sempre quer integrar os saberes objetivos numa visão de conjunto que lhe indique seu lugar dentro do mundo; b) o segundo aspecto diz respeito ao esforço para se criar modelos incertos do existente nos domínios em que a ciência se cala. Portanto, a filosofia faz apelo a certas pontes provisórias entre os domínios controlados pela ciência. Por sua vez, a ciência procura substituir essas pontes, tentando aposentar esse segundo tipo de especulação, que ela tenta progressivamente tomar da filosofia. Porque tudo o que devemos dizer do mundo, quando isto é possível, deverá ser dito cientificamente, e não especulativamente. Embora ligados, esses dois aspectos da especulação devem ser diferenciados, pois só o primeiro pode assegurar a perenidade da filosofia como axiologia.

Portanto, Piaget defende a constituição de uma epistemologia científica, livre de toda teoria filosófica ou de qualquer contaminação ideológica do conhecimento. Por isso, não é tarefa da epistemologia, perguntar-se sobre "o que é o conhecimento", da mesma forma como a tarefa da geometria não consiste em se perguntar sobre "o que é o espaço". A epistemologia deve, pois, consti-

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tuir-se cientificamente, procurando situar-se in medias res, isto é, em presença das ciências que existem efetivamente. Ora, as ciências estão num constante

desenvolvimento. E é este próprio desenvolvimento que coloca de modo real a questão epistemológica fundamental: como o conhecimento científico, quando bem delimitado, procedeu de um estado de menor conhecimento a um estado considerado de maior conhecimento? Donde a definição complementar da epistemologia: "o estudo da passagem dos estados de menor conhecimento aos estados de conhecimento mais desenvolvidos". E esta definição já contém a noção do método genético: toda ciência está em desenvolvimento progressivo indefinido de estados sucessivos de conhecimento, isto é, deve sempre ser considerado, metodologicamente, como relativo a um certo estado anterior de menor conhecimento e como susceptível de constituir este estado anterior em referência a um conhecimento melhor elaborado. Segue-se que o método genético tem por objetivo estudar os conhecimentos em função de sua construção real, bem como considerar todo conhecimento como relativo a um certo nível do mecanismo desta construção (Intr., vol. I, pp. 11-13). Ora, quando praticamos o método genético, verificamos que é preciso pensar as ciências, não somente de um ponto de vista

psicológico no sentido estrito, mas também dos pontos de vista análogos aos da biologia estudando os seres vivos e o sistema da vida, A epistemologia, então, outra coisa não é senão esta espécie de anatomia comparada das estruturas mentais do sujeito

cognoscente. Assim, o estudo comparado das estruturas mentais que intervém no desenvolvimento científico pode organizar-se no que Piaget chama de o método

"histórico-crítico". Todavia, da mesma forma que a biologia associa à história natural da evolução da vida e à descrição da "filogênese" das grandes formas de organiza-

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ção da vida, uma embriologia que é o estudo da "onto-gênese" individual do organismo vivo, assim também a epistemologia genética tem necessidade de acrescentar, ao

primeiro método, um segundo, cuja função é a de constituir uma embriologia mental. Esta embriologia da razão pode desempenhar, relativamente a uma epistemologia genética, o mesmo papel que a embriologia do organismo relativamente à anatomia comparada ou às teorias da evolução. E é deste ponto de vista que a psicologia científica deve trazer uma contribuição essencial à epistemologia. Em última análise, o método completo da epistemologia genética é constituído por uma íntima colaboração dos métodos histórico-críticos e psicogenéticos. O que esta colaboração nós permite extrair, no que diz respeito às noções ou conjuntos de operações intelectuais, é uma lei de construção, isto é, o sistema operatório em sua constituição progressiva. Ora, diz Piaget, só o método psicogenético é capaz de fornecer o conhecimento dos estágios elementares dessa constituição progressiva, embora nunca alcance o primeiro. O método histórico-crítico, por sua vez, só fornece o conhecimento dos estágios intermediários, porém, superiores, embora nunca atinja o último (Ibid., pp. 16-18).

Ao falar deste método psicológico engajado na epistemologia, Piaget faz questão de precisar que ele deve ser uma "psicologia da ação", muito mais do que uma "psicologia da sensação", isto é, um estudo da génese das operações do pensamento e de sua estabilização lógica. É deste modo que a epistemologia e seu método genético poderão tratar do problema que Piaget declara estar no centro do método próprio à epistemologia genética, a saber, o problema da junção entre ó devir mental e a norma permanente, ou entre a exigência de constan-

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te revisão e a necessidade de apoiar-se em certa estabilidade normativa. Por "norma", devemos entender, no caso, aquilo que se impõe como verdade científica e que, a este título, deve reger o consentimento e a afirmação dos que são formados na ciência.

Depois de criticar as concepções puramente contemplativas das normas, apoiadas numa verdade divina, transcendental ou intuitiva, Piaget afirma que, do ponto de vista da

análise genética, a ação precede o pensamento. O pensamento, para ele, consiste numa composição sempre mais rica e coerente das operações que prolongam as ações,

interiorizando-as. Deste ponto de vista, as normas de verdade devem exprimir, antes de tudo, a eficácia das ações individuais ou coletivas; em seguida, traduzem a eficácia das operações; finalmente, expressam a coerência do pensamento formal. Desta forma, o método genético não pode incorrer na censura de ignorar o normativo, pois, desde a ação efetiva até as operações mais formalizadas, ele segue passo a passo a constituição de normas incessantemente renovadas. Estamos, assim, diante de uma epistemologia genética que poderá ser considerada, para retomarmos uma expressão que não é de Piaget, como o estudo da ciência e do pensamento enquanto "prática teórica". Porque, aquilo que este estudo tem em vista, outra coisa não é senão a ação do pensamento. E é como saber da ação (intelectual e pensante) que a epistemologia deve começar a

"operar".

No entanto, ao recusar uma epistemologia que seja "maculada" pela presença da filosofia, Piaget deixa a porta aberta a um momento da epistemologia que, a partir de estudos particulares já feitos a propósito das diversas ciências, conduz a uma

epistemologia geral, que ele chama de "derivada". As epistemologias específicas,

internas e regionais, devem situar-se umas em relação às outras num campo de conjunto de possibilidades da

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epistemologia, mesmo que, sendo constituída uma pluralidade de ciências, se coloque o problema de encontrarmos uma "classificação" das disciplinas e de levarmos em

consideração as interconexões existentes entre as várias ciências, quer dizer, suas

relações interdisciplinares. Piaget foi levado a propor seu próprio sistema das ciências, tal como sua prática epistemológica o levou a construí-lo e a compreendê-lo, comparando-o com outras sistematizações do passado ou contemporâneas (Plêiade, pp. 1151-1172). A reflexão que ele faz sobre a prática epistemológica, especialmente sobre sua experiência de psicólogo estudando a génese das noções fundamentais da lógica e das matemáticas, leva-o a reconhecer uma maneira de interconexão cíclica entre as ciências e a propor um sistema cíclico das ciências (Ibid., pp. 1172-1224). Eis, em síntese, seu sistema:

I LÓGICA E CIÊNCIAS MATEMÁTICAS

II CIÊNCIAS DA NATUREZA FÍSICA CIÊNCIAS DA IDEALIDADE CIÊNCIAS DA REALIDADE III CIÊNCIAS DA VIDA

IV PSICOLOGIA

A flecha ascendente à direita indica o "círculo epistemológico": a Psicologia pressupõe as ciências da vida, as ciências da natureza, etc. Contudo, ao fazer-se epistemólogo, o psicólogo deve voltar aos próprios fundamentos de toda ciência, a começar pela Lógica e pelas Matemáticas. Porque o círculo é inevitável e natural, nada tendo de vicioso. Ele é, no nível da ciência, a transposição e a realização concreta do círculo do conhecimento,

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dio do Objeto, e só conhece o Objeto através de sua atividade de Sujeito. Estamos, assim, diante do que Piaget chama de um "círculo vivo". Trata-fie de um tipo de círculo que comporta desenvolvimento, crescimento e alargamento indefinidos. Todo o processo poderia ser imaginado como uma espécie de espiral. Desta forma, a epistemologia

genética permanecerá essencialmente "aberta". E são as leis desta construção circular de conjunto que constituem o "limite" geral dos desenvolvimentos particulares estudados pela epistemologia genética.

Foram essas considerações que levaram Piaget a distinguir dois tipos de epistemologia: epistemologia genética restrita e epistemologia genética generalizada. A primeira consiste em fazer uma análise psicogenética ou histórico-crítica sobre os modos de crescimento dos conhecimentos, apoiando-se sobre um sistema de referência constituído pelo estado do saber admitido no momento considerado. A segunda consiste em estudar o sistema de referência, porém situado dentro de um processo genético ou histórico. Esta

concepção pode ser precisada com exemplos. Com efeito, Piaget, com os recursos de seu saber psicológico, estuda, com objetivos claramente epistemológicos, a génese da noção de número na criança. Ele faz epistemologia genética no sentido restrito. Michel Foucault, ao estudar em Les mots et les choses um momento do devir das ciências humanas, faz o estudo da relação existente nos séculos XVII e XVIII entre o estado de base dos conhecimentos e da cultura da época e o que se realiza nas ciências humanas. E isto, para compreender como, a partir daí, as ciências humanas se constituíram nas formas que elas têm presentemente. Seu método, não psicogenético, mas

histórico-crítico (ele prefere chamá-lo de "arqueológico"), pode ser compreendido como um método de epistemologia genética "generalizada" (no sentido de Piaget). Porque o

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que ele toma em consideração é o modo pelo qual os textos do século XVII e do século XVIII, referentes à economia, à linguagem ..., atestam uma certa visão epistemológica desses diversos domínios do saber e que não é mais a nossa. O objetivo de Piaget, quando faz certo número de considerações histórico-críticas, é o de reinserir as

epistemologias regionais e restritas na perspectiva de uma epistemologia "generalizada". Esta adquire, cada vez mais, um caráter filosófico ou quase-filosófico.

Esta apresentação sintética da epistemologia genética possibilita-nos fazer-algumas precisões:

1. Toda a obra de Piaget visa a constituição de uma epistemologia capaz de fazer a transição entre a Psicologia genética e a Epistemologia geral, que ele espera enriquecer pela consideração do desenvolvimento. Sua convicção fundamental é a de que os

conhecimentos resultam de uma construção. Eles constituem, pois, uma criação contínua de estruturas sempre novas. Podemos sintetizar o programa e os métodos dessa

epistemologia dizendo que ela é comandada por um duplo imperativo: a) de um lado, visa a garantir a colaboração entre psicólogos do desenvolvimento, lógicos e especialistas das diversas disciplinas científicas que se interessam por problemas de ordem

epistemológica: ela é essencialmente interdisciplinar; b) do outro, visa a reduzir esses problemas a formulações que possam ser tratadas pelos métodos da psicologia

experimental. Portanto, trata-se de um "projeto" eminentemente interdisciplinar que deve substituir todos os tipos de ensinos compartimentados das ciências. Para que seja realizado tal empreendimento, é necessário que se estabeleça uma estreita união do Ensino e da Pesquisa, especialmente para a solução dos problemas novos. Além disso, é indispensável que as pesquisas sejam feitas por uma "equipe interdisciplinar", capaz de realizar uma colaboração entre as disciplinas

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e entre os setores heterogéneos de uma ciência, de tal forma que haja certa

reciprocidade nas trocas e os pesquisadores venham a enriquecer-se mutuamente. Todavia, convém que se distinga um enfoque meramente "multidisciplinar", de que dependem as aproximações concretas, das pesquisas propriamente "interdisciplinares?

Estas, segundo Piaget, exigem um nível de abstração muito elevado, pois trata-se de extrair das ciências humanas, por exemplo, os seus mecanismos comuns, e não somente algumas colaborações episódicas e sem integração metodológica.

2. Não sendo completamente hostil à filosofia, pois compreende sua necessidade como reflexão valorizadora da relação homem-mundo, e não nega sua legitimidade ou sua importância ("ela é mesmo indispensável a todo homem completo, por mais cientista que ele seja"), Piaget fica surpreso com a fraqueza das diversas teorias filosóficas do

conhecimento, pois em geral elas se contradizem, sem haver nenhum critério objetivo que nos permita decidir. Elas permanecem especulativas. Trata-se de refletir sobre a ciência de modo objetivo, com critérios permitindo um "controle intersubjetivo".

Diferentemente do positivismo, que empreende uma cruzada contra todo tipo de especulação, e condena em bloco toda filosofia, Piaget acha que o cientista que não passa pela filosofia permanece portador de uma ''doença incurável". E é por isso que ele se insurge também contra o positivismo, que se prende única e exclusivamente aos fatos "observáveis". Insurge-se, também, contra a especulação que não seja capaz de fornecer instrumentos de controle e de verificação.

Por isso, Piaget concebe a possibilidade de uma passagem da especulação a uma ciência experimental, no domínio da teoria do conhecimento. Entre a reconstituição especulativa e a teoria científica, quando se

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trata de criar um modelo dos mecanismos do conhecimento, ele não vê um abismo, como pretende o neopositivismo. Há, isto sim, um limiar a ser transposto, porque a especulação se elabora a partir de dados que são tomados de empréstimo a outros domínios. O

grande mérito de Piaget, e que marca seu nome na história, é o de ter criado uma base de experimentação própria para a epistemologia. Ele conseguiu isolar os problemas concernentes à articulação de base do crescimento dos conhecimentos, e a formulá-los numa linguagem possibilitando o controle experimental. Fazendo isto, conseguiu inventar modalidades de experimentação e subtrair a teoria do crescimento dos conhecimentos à reconstituição meramente histórico-crítica. Assim, sua psicologia da inteligência, ou da criança, por mais importante que ela possa parecer, é apenas um aspecto derivado (e secundário) de um empreendimento epistemológico.

3. O que Piaget prova experimentalmente, é que há dois tipos de abstração bem diferentes. Em primeiro lugar, há a abstração de tipo aristotélico, que leva em conta certos aspectos da realidade e descarta outros: ela dá origem a um esquema do

existente, mas nunca se transforma em operações de pensamento. Em segundo lugar, há a abstração réfléchissante, tendo por função extrair as estruturas do pensamento, os esquemas assimiladores e seu funcionamento específico. Este segundo tipo de abstração, cujo papel é o de coordenar a organização, liga-se aos dados, da mesma forma que o primeiro tipo. Contudo, ao passo que a abstração do primeiro tipo é uma assimilação dos dados a estruturas mentais existentes, a abstração réfléchissante é a própria organização das estruturas mentais tendo em vista sua acomodação. Uma é assimiladora e representa o aspecto estático do conhecimento; a outra é acomodadora e representa seu aspecto dinâmico. Nesta última abstra-

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ção, o Objeto desempenha o papel apenas de "ocasião", quer dizer, não se inscreve tal qual, com suas qualidades físicas, neste tipo de abstração, pois esta é uma modalidade de organização, de coordenação das abstrações simples. A coordenação das ações do Sujeito é de caráter lógico-matemático. Ela se prolonga em "operadores" que efetuam uma descentração relativamente ao sujeito individual, dando origem ao sujeito do conhecimento, o "Sujeito epistêmico" (aquilo que há de comum nos vários sujeitos individuais ou egocêntricos).

4. Piaget estabelece que o ponto de partida do conhecimento é o conhecimento sensorio-motriz. Quatro níveis irão formar a escala de maturação do esquematismo mental: 1. a ausência de diferenciação entre á atividade, real ou imaginária, exercida sobre o objeto (reunir, dissociar, ordenar, mudar de ordem, etc.); 2. as operações concretas, com diferenciação dos dois aspectos mencionados; 3. as operações formais, com diferenciação tão forte que as coordenações extrapolam e precedem a realidade experimental, de que se liberam por completo; 4. as construções axiomatizadas, que transformam as coordenações reais em simples casos particulares das coordenações possíveis. Portanto, a criança adquire seus conhecimentos agindo sobre os objetos. Fazendo isto, ela não organiza apenas os objetos, mas (mentalmente e de modo não consciente) sua própria atividade. E esta é a fonte de duas espécies de organização: a primeira, referente ao objeto, a segunda, a ela mesma. O conhecimento se realiza pela dialética dessas duas estruturas de transformação, e são elas que a inteligência elabora enquanto é um prolongamento da ação. Por isso, todo conhecimento comporta um aspecto de elaboração nova. E o problema da epistemologia consiste em conciliar essas criações de novidades com o duplo fato: no plano formal, as novidades são

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mente elaboradas; no plano real, elas permitem a conquista do real, quer dizer, da objetividade. Portanto, a epistemologia genética visa a remontar às fontes, isto é, à própria gênese dos conhecimentos, pois a epistemologia tradicional só conhecia seus estados superiores. O próprio da epistemologia genética consiste em procurar descobrir e extrair as raízes dos diversos conhecimentos, desde suas formas mais elementares, e seguir seu desenvolvimento através dos níveis ulteriores, até o pensamento científico inclusive. No fundo, o próprio Piaget confessa que sua epistemologia é "naturalista" sem ser "positivista"; que ela evidencia a atividade do sujeito sem ser "idealista"; que ela se apoia sobre o objeto, mas considerando-o como um limite. O importante é que ela deve ver no conhecimento, sobretudo, uma construção contínua.

5. Diferentemente da epistemologia lógica, que utiliza métodos estritamente

formalizantes, para fazer um estudo da linguagem científica e uma pesquisa das regras lógicas que devem presidir a todo enunciado correto (positivismo anglo-saxônico); e diferentemente da epistemologia histórica, que privilegia os métodos histórico-cri ticos para a elucidação da atividade científica a partir de uma análise, não só da história das ciências e de suas revoluções epistemológicas, mas das próprias dé-marches do espírito científico (Bachelard, Canguilhem, Foucault), a epistemologia genética de Piaget tem por objetivo central a elucidação da atividade científica a partir de uma psicologia da

inteligência. Esta orientação epistemológica recebeu por caução uma enorme quantidade de pesquisas experimentais acumuladas pelos psicólogos há quase um século. Ela encontrou em Piaget e em seus colaboradores de Genebra intérpretes não só

meticulosos mas realmente competentes. Qual a ótica dessa "escola"? Não se trata, de forma alguma, de acei-

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tar o fato da linguagem científica ou comum, a fim de se medir sua validade relativamente à sua simplicidade, à sua coerência, à sua exaustividade ou aceitabilidade banal. A

epistemologia genética não hesita em perguntar-se como a inteligência se constrói, desde os primeiros agenciamentos práticos e perceptivos da criança "trabalhando" sobre um objeto ou sobre o domínio de suas coordenações corporais, até a elaboração dos conceitos que estão na origem dos conhecimentos da física, da matemática, etc.

6. O que mais poderia ser contestado à epistemologia de Piaget é o fato de ela ser, paradoxalmente, profundamente kantiana. Kant, com efeito, para justificar a física elaborada por Galileu e Newton, no fim do século XVIII, construiu toda uma teoria do conhecimento procurando evidenciar o fato de que o objeto conhecido seria ao mesmo tempo um dado e um construído. Na perspectiva kantiana, haveria o dado (o irreversível) que somente a experiência podia cernir, sem jamais poder reduzi-lo por completo. Por outro lado, haveria também uma organização prévia, a priori, inconsciente deste dado, proveniente da natureza mesma do sujeito cognoscente. Ora, o estruturalismo genético e construtivista de Piaget parece esforçar-se por determinar experimentalmente as

condições reais em que se constrói tal sujeito cognoscente. Para tanto, ele luta contra "as sabedorias e ilusões da filosofia", pois estas se dão arbitrariamente uma configuração da relação Sujeito-Objeto afirmada como eterna, como se ela pertencesse ao mesmo tempo a uma ordem preestabelecida da natureza e do próprio homem. Por isso, Piaget tenta mostrar como, geração após geração, a filosofia se construiu a partir de uma experiência comum elementar. O exemplo que ele toma é a noção de causalidade. Ele afirma

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do espírito humano, nem pode ser .o resultado ou efeito que a ordem natural impõe a uma consciência autêntica. A causalidade é o resultado de um longo trabalho operado pela criança, em seus gestos, em suas palavras, em suas coordenações sensório-motrizes e, posteriormente, psicolinguísticas. E não são poucas as experiências invocadas por Piaget para comprovar este fato. O que ele pretende mostrar é que é a inteligência que se monta, que se estrutura a si mesma, na dialética dos ensaios e dos erros, nas retificações que introduzem as diferenças, nos fracassos que fazem surgir as contradições e nas sínteses que promovem os progressos. E é esta inteligência que está na origem mesma da atividade científica. Os conceitos fundamentais da ciência têm por causa real os movimentos de exploração da criança. É nesses movimentos que ela procura reconhecer-se para definir-se e poder agir.

7. Apesar do número impressionante das experiências, cada uma sendo convincente, quando tomada de per si, temos o direito de nos perguntar: afinal de contas, de que se trata? E daí? Piaget responde que se trata de mostrar que todos os conceitos

determinantes das ciências passadas, presentes e futuras devem inscrever-se numa necessidade psicológica, experimentalmente controlável, contanto que se adotem bons critérios de experimentação e de controle. Sem dúvida, é muito interessante sabermos como uma criança, hoje em dia, chega a conhecer a noção de causalidade. É até muito útil para aqueles que se ocupam de psicopedagogia e que se dedicam ao ensino. Todavia, podemos perguntar: em que tudo isso pode esclarecer o funcionamento da ciência ou da não-ciência? De que adianta o deslocamento do problema para a criança "manipuladora"? Rebaixar o problema ao nível da atividade pueril explica tanto quanto elevá-lo- o nível da metalinguagem, quer dizer, pouca

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