A PALAVRA E O FUZIL: SITUAÇÕES DO CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO E A DITADURA MILITAR (1964-1985)
Antônio João Galvão de Souza¹; Marilúcia Mendes Ramos²
1. Bolsista CAPES, Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística, Faculdade de Letras – Universidade Federal de Goiás (UFG).
2. Orientadora, docente na Faculdade de Letras – Universidade Federal de Goiás (UFG). RESUMO
O trabalho ora apresentado é resultado de pesquisa em pós-graduação desenvolvida junto ao grupo “A releitura da história de além-mar pelas veredas da literatura” (UFG) desde 2005. Entendemos que as diversas possibilidades de aproximação entre a literatura e a história são particularmente significativas no âmbito do século XX. Marcado por “itinerários do desassossego” tais como os regimes ditatoriais e autoritários, as guerras, o genocídio e os movimentos migratórios, ele proporciona amplas reflexões sobre as densas relações entre experiência, trauma e memória. Assim, o objetivo desta comunicação é discutir, em seus aspectos gerais, a situação e a forma do conto brasileiro contemporâneo durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985) e, principalmente, a contística do escritor Caio Fernando Abreu como narrativas curtas que problematizam as relações apresentadas acima e amplim o campo de relações entre a narrativa literária e o discurso histórico, pois trazem representações artísticas da experiência da repressão ao abordar o imaginário social daquele período.
Palavras-chave: literatura brasileira pós-1964, contística, escrita da história. Introdução
O governo militar imposto no Brasil por golpe em abril de 1964 e, posteriormente, o Ato Institucional Número 5 (AI-5), ocasionaram profundos impactos na sociedade brasileira: foram estabelecidas políticas de extermínio e perseguição ideológica aos opositores do regime; suprimiram-se direitos arduamente conquistados ao longo da história civil nacional; praticou-se
tortura sistematicamente e com conseqüente imposição de brutal sofrimento físico, repressão e censura indiscriminada. Enfim, exercitou-se o poder político de modo completamente arbitrário. Assim, uma das principais questões que se impõem ao exercício intelectual crítico, oposto à versão tida como oficial dos acontecimentos, é a de investigar como a produção literária brasileira configura-se nessa ambiência. Tal consideração acerca da produção literária no Brasil, no âmbito da repressão da ditadura militar, conduziu-nos ao estabelecimento de uma problemática: investigar os percursos desenvolvidos pelo escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996) na elaboração de uma contística imersa em uma circunstância de catástrofe, principalmente na última década da ditadura militar. De forma angustiante, seus contos evocam uma temática da errância e do deslocamento, a qual parece transubstanciar-se numa narrativa com características ímpares no contexto da referida época. A importância do estudo da contística desse autor justifica-se pela intrínseca relação mantida com a recuperação da memória do “sufoco” (Franco, 2003) manifestada, principalmente, em contos cuja temática é a do exílio e a do estranhamento. Assim, o objetivo geral deste projeto de pesquisa é investigar as relações entre arte e sociedade, a partir de uma perspectiva de resistência cultural e artística durante o regime militar brasileiro (1964-1984) e analisar a literatura produzida nessa ambiência, nela se destacando a contística de Caio Fernando Abreu. E, como objetivo específico, situar a contística de Caio Fernando Abreu na última década da ditadura militar e identificar a forma literária como seus contos reconstituem a memória do sufoco, da repressão e do cerceamento. Também queremos delinear a fundamentação teórica e crítica que norteará as análises em questão; depreender as constantes estilísticas que a narrativa de Caio Fernando Abreu assume; e analisar suas implicações na linguagem e na configuração de personagens, tempo e espaço.
Material e métodos
Ainda durante a graduação em Letras (2003-2007), quando este projeto teve início sob a forma de pesquisa vinculada ao Programa Institucional de Iniciação Científica (PIVIC), levantou-se toda a produção bibliográfica de Caio Fernando Abreu e também de bibliografia sobre a obra do autor. Desse modo, foram adquiridos todos os livros publicados pelo escritor. Alguns, mais relevantes, em mais de uma edição, exceto aqueles cuja distribuição está esgotada. Já a aquisição bibliográfica sobre a narrativa de Caio e sobre a fundamentação teórica multidisciplinar que
sustenta esta pesquisa foi bastante profícua: ao longo da pesquisa foram estudados capítulos, ensaios, artigos e livros com abordagens teórica e crítica nas áreas de literatura, principalmente, mas também em história, filosofia, sociologia e antropologia. Procedendo à leitura dos contos selecionados e ao estudo da fundamentação teórica que subsidia o cotejo dos textos, a contística de Abreu foi confrontada com teorias literárias e com as leituras críticas acima mencionadas, o que levou à redação de fichamentos e relatórios apresentados à orientadora nas reuniões do grupo de pesquisa. Inerente à metodologia dessa pesquisa foi a redação de artigos e a apresentação desses em eventos e congressos literários e científicos atinentes a nossa área de pesquisa.
Resultados e discussão
Os resultados obtidos com este projeto de pesquisa têm sido apresentados em diversos eventos científico-literários desde o segundo semestre de 2005 em distintas modalidades como pôsteres, comunicações individuais e coordenadas e mesas-redondas, não somente em Goiânia como também em outras instituições de ensino superior no Brasil. Não obstante, este projeto obteve o terceiro lugar no V Prêmio UFG de Iniciação Científica, concedido em 2007, além de ter sido conduzido ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística, na Faculdade de Letras desta instituição, sob a forma de pesquisa de dissertação de mestrado em Estudos Literários. Tais resultados têm contribuído significativamente para o desenvolvimento desta pesquisa na medida em que foram conhecidos outros pesquisadores atuantes na mesma área de investigação que a deste trabalho; outras linhas de pesquisa adjacentes a esta foram descobertas; e a participação em encontros, reuniões, colóquios, congressos, seminários e simpósios permitiram publicações em cadernos de resumos e anais desses eventos e também em revistas de nossa área. Assim, ao suscitar discussões sobre a narrativa de Caio Fernando Abreu, temos divulgado, ainda que de modo incipiente, os estudos sobre a obra desse escritor, o que ressalta a pertinência desta pesquisa já que ela se concentra sobre a produção literária de um contista não muito estudado academicamente e que como poucos conseguiu representar os cenários sociais brasileiros das décadas de 1970 e 1980. Dentro de nossa proposta de pesquisa, selecionamos a narrativa “Lixo e purpurina”, escrita em 1974. Ela varia entre o diário, a crônica e o conto, e combina referências históricas e ficcionais que constroem um conjunto de imagens perturbadoras da década de 1970. O conto somente foi publicado vinte e um anos depois, na coletânea “Ovelhas negras”, em 1995.
O eixo de “Lixo e purpurina” é o exílio e esse exílio pode ser entendido de dois modos. O primeiro é o auto-exílio político, isto é, o ponto de vista do narrador é o de um brasileiro que se encontra em Londres, o qual elabora uma tensa relação entre passado e presente, Brasil e Inglaterra, identidade e alteridade, e que recompõe constantemente as referências de entendimento da realidade ao seu redor. Um segundo modo de entender esse exílio consiste em pensá-lo em termos de constituição do sujeito que narra a sua experiência. O estudo “Exílio e tortura” revela a condição habitual do narrador exilado, que é a de ter as perspectivas em colapso. Há nesse caso uma busca dispersa e difusa que busca estabelecer um novo lugar, o qual nunca é inteiramente conquistado. Então, o sujeito exilado caracteriza-se justamente por sua condição de marginalidade e pelo seu incessante deslocamento em relação às mínimas condições necessárias para sua socialização. Assim sendo, a experiência não é apenas de cisão e de frustração, mais do que isso é a autodestruição desse sujeito/narrador cuja estabilidade dificilmente é vislumbrada.
Conclusões
O narrador de “Lixo e purpurina” mostra-se fragmentado, o que ressalta as perdas e estabelece uma relação tensa com o presente inquietante, já que marcado pela memória da repressão da qual se quer fugir, e o futuro esvaziado de expectativas, condição limite imposta pelo auto-exílio. Assim, de um lado tem-se o “testimonio” latino-americano (Seligmann-Silva, 2003) de um exilado que quer registrar suas impressões acerca de sua experiência. De outro, a dificuldade dessa narração posto que o trauma do “real” inviabiliza sua escrita, o que permite tecer considerações sobre essa narrativa produzida durante a ditadura militar brasileira. Podemos pensar em “Lixo e purpurina” como uma das tendências literárias no recorte histórico aqui estudado. Alfredo Bosi (1975) denomina-a de “brutalismo” na introdução de “O conto brasileiro contemporâneo”. Assim, suas principais características são: os limites da prosa, da trama e da verossimilhança realista são tensionados ao máximo; há a profusão de um jogo verbal com excessos e silêncios, repetições e fragmentos no interior da narrativa, os quais ressaltam os conflitos de uma realidade agressiva, violenta e despedaçada. Como o percurso de existência é o da não constituição, nem de superação de impasses, ele se estabelece em “Lixo e purpurina” como perplexidade constante. O conhecimento do mundo ocorre como uma cadeia de choques, o
que define um narrador em constante estado de alerta: “Não tenho mais nada a perder. Não sabia que o mundo era assim duro, assim sujo. Agora eu sei.” (Caio Fernando Abreu, 1995, p. 195). Sensação que também persiste no seguinte trecho: “Que eu continue alerta. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre” (Idem, 1995, p. 214 e 215).
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