Johanna Oksala
Como ler Foucault
Tradução:
Maria Luiza X. de A. Borges
Revisão técnica:
Alfredo Veiga-Neto
Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Karla Saraiva
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil
Título original:
How to read Foucault
Tradução autorizada da primeira edição inglesa,
publicada em 2007 por Granta Books, de Londres, Inglaterra, na série How to Read, sob edição de Simon Critchley
Copyright © Johanna Oksala, 2007
Johanna Oksala asserts the moral right to be identifed as the author o this work.
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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Oksala, Johanna,
-O36c Como ler Foucault / Johanna Oksala; tradução Maria Luiza X. de A. Borges; revisão técnica Alredo Veiga-Neto, Karla Saraiva – Rio de Janeiro: Zahar, 11.
Tradução de: How to read Foucault Contém cronologia
Inclui bibliografa e índice 98-85-38-5-6
1. Foucault, Michel, 196-1984. . Título.
: 194
1-646 : 1(44)
Sumário
Introdução 7 1. A liberdade da flosofa 13 2. Razão e loucura 24 3. A morte do homem 35 4. O anonimato da literatura 48 5. Da arqueologia à genealogia 59 6. A prisão 71 7. Sexualidade reprimida 81 8. Um sexo verdadeiro 919. Poder político, racionalidade e crítica 101
10. Práticas de si 114
Notas 125
Cronologia 129
Sugestões de leituras adicionais 133
Agradecimentos 138
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Introdução
M F (1926-84) foi um lósofo de extraordinário talento, um ativista político, teórico social, crítico cultural, historiador criativo, professor na mais prestigiosa instituição acadêmica da França e um intelectual mundialmente famoso que moldou de forma irreversível as maneiras como pensamos hoje. Seu projeto crítico continua a inspirar estudiosos, artis-tas e ativisartis-tas políticos a encontrar modos sem precedentes de construir novas formas de pensar, bem como de destruir velhas certezas — ou ilusões confortadoras, como
frequente-mente se revelam.
Foucault concebia seus livros como uma caixa de ferramen-tas que os leitores poderiam vasculhar em busca daquela de que precisavam para pensar e agir. O manejo dessas ferramen-tas, contudo, pode envolver questões de interpretação, uma vez que o uso de toda ferramenta é sempre determinado pelo contexto e, em última análise, pelo objetivo de nosso traba-lho. Uma pedra pode ser usada com igual ecácia tanto para bater um prego quanto para quebrar uma vidraça. Para chegar mais perto da intenção de Foucault, é útil que estejamos dis-postos a questionar a ordem social rmemente estabelecida, a abrir mão de todas as verdades petricadas, agarrando-nos ao mesmo tempo a um frágil compromisso com a liberdade.
As controvérsias que continuam rondando a obra de Fou-cault decorrem em parte do fato de que ela pode ser usada de muitas formas diferentes. Sua originalidade e atrativo residem
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em sua natureza multifacetada. Em vez de fornecer uma única teoria ou doutrina, ela oferece um corpo diversicado de pen-samento que consiste em várias análises especícas das várias questões em jogo. Usos novos e imaginativos de sua caixa de ferramentas são objetivos essenciais quando lemos sua obra.
É possível, no entanto, encontrar os unicadores nesse cor- pusmultifacetado sem o reduzir a uma teoria ou metodologia
única. A liberdade foi uma questão norteadora para Foucault ao longo de toda a sua carreira losóca. Seu domínio de es-tudo eram as práticas sociais: todo o seu pensamento pode ser mapeado como estudos de diferentes aspectos dessas práticas. As características metodológicas de seu pensamento, a saber, o uso inovador que ele fez da historiograa como método lo-sóco, também conferem à sua obra um caráter uniforme e extremamente original. Foucault foi um lósofo que usou a história para compreender a sociedade contemporânea a m de transformá-la rumo a uma maior liberdade.
Ao lado de pensadores inuentes como Jacques Derrida, Gil-les Deleuze e Julia Kristeva, ele é em geral classicado como um pós-estruturalista, embora recusasse o rótulo e armasse sequer entender o que signicava. Ainda assim, Foucault per-tence à geração de pensadores franceses proeminentes nos anos 60, após o esgotamento do existencialismo. O existencia-lismo e seus mais famosos representantes — Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty e Simone de Beauvoir — promoveram a ideia da losoa como sendo fundamentalmente o estudo do ser humano: sua natureza, o sentido da existência humana e os limites de suas possibilidades. O pós-estruturalismo, por outro lado, caracterizou-se pela negação do ser humano como ob- jeto privilegiado da análise losóca, concentrando-se em vez
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disso nos determinantes sociais, linguísticos e inconscientes do pensamento. Sartre fora o rei inconteste da losoa fran-cesa até os anos 60; Foucault e Derrida tomaram seu lugar nas décadas seguintes.
Os pós-estruturalistas perceberam o esgotamento do exis-tencialismo como uma crise da investigação losóca e, de maneira mais geral, de seus métodos tradicionais. O sujeito pensante havia sido a base do saber losóco desde Descartes e seu famoso argumento do cogito — penso, logo sou. Dado o fracasso do existencialismo em explicar como a linguagem constrói a realidade, os pós-estruturalistas julgaram que a losoa centrada no sujeito chegara ao m. Para revitalizar a losoa eram necessárias abordagens radicalmente novas. Enquanto Derrida desenvolvia seu projeto de desconstrução, concentrado na crítica textual de escritos losócos, Foucault se voltou para a história.
Ele fundiu losoa e história de uma maneira nova, que re-sultou numa estarrecedora crítica da modernidade. Chamou suas obras de “histórias do presente” e tentou mapear o desen-volvimento histórico, bem como as bases conceituais de algu-mas práticas essenciais na cultura moderna — por exemplo de punir e tratar aqueles percebidos como loucos. Os estudos mostram a natureza historicamente contingente e aleatória des-sas práticas e geram um efeito de profundo estranhamento: aspectos de sua cultura que antes negligenciava, o leitor passa a vê-los não só como curiosos e contingentes, mas também, e signicativamente, como intoleráveis e demandando mudanças.
A obra de Foucault costuma ser dividida em três fases dis-tintas. A primeira, em que ele chamava seus estudos históricos de arqueologia, é situada em geral nos anos 60: as principais
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obras desse período incluem História da loucura na Idade Clás-sica (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coi-sas (1966) e A arqueologia do saber (1969). A fase genealógica — “genealogia” sendo o termo que Foucault escolheu para seus
estudos do poder — situou-se nos anos 70 e abrange suas obras mais conhecidas: Vigiar e punir (1975) e História da sexualidade, volume 1 (1976). Por m, a fase ética, quando ele se voltou para
a ética antiga, deu-se nos anos 80 e produziu os dois últimos volumes de História da sexualidade: O uso dos prazeres e O
cui-dado de si (1984). Embora esse esquema tripartite sem dúvida torne mais fácil para iniciantes mergulhar na vasta obra de Foucault, é importante tratá-lo como um modelo heurístico ou pedagógico, não como uma divisão estrita. As três fases não se referem a três diferentes métodos ou objetos de estudo. O que marcou o início de cada “nova” fase foi a introdução de um novo eixo de análise, que resultou numa visão mais abrangente.
Além de inspirar discussões acaloradas entre acadêmicos prossionais sobre os diversos modos de ler e interpretar sua obra, o pensamento de Foucault alimentou controvérsias em debates culturais num nível mais geral. Sua ideia de poder produtivo — poder que produz e incita formas de experiência e conhecimento, em vez de reprimi-las e censurá-las — for-neceu valiosas ferramentas para a contestação de ideias políti-cas conservadoras sobre sexualidade, gênero, delinquência e doença mental. Seu pensamento foi uma importante fonte de inspiração intelectual e política para muitos ativistas gays, bem como para outros radicais da cultura.
Escrever livros críticos sobre tópicos como loucura, sexua-lidade e prisão provavelmente bastaria para criar uma aura
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de subversão e controvérsia em torno de um pensador. No entanto, talvez tenha sido a vida privada de Foucault que pro-vocou as mais violentas tempestades. Pessoas que nunca le-ram ou mesmo vile-ram um só de seus livros muitas vezes têm conhecimento dos aspectos sensacionais de sua vida privada: ele foi um homossexual que morreu de aids, experimentou di-ferentes drogas e práticas sexuais sadomasoquistas, passou um período numa instituição psiquiátrica na juventude, gostava de andar em alta velocidade num Jaguar. Houve quem armasse que tais “experiências-limite autodestrutivas” fornecem uma chave para a resposta a como ler sua obra. O problema com a “leitura de sua vida”, contudo, é que, diferentemente dos seus livros, ela não nos fornece nenhum texto determinado. Temos tão só uma série innita de eventos fugazes, relatos contra-ditórios e lembranças, além de pensamentos e experiências privadas que jamais podem ser conhecidos ou interpretados.
Escolhi ignorar em grande parte o pouco que sei sobre a vida de Foucault. Não por considerá-la irrelevante ou
desinte-ressante: se o lemos com a devida atenção, torna-se evidente como sua obra também incorpora sua vida. A vida de um -lósofo deve ser encontrada no ethos losóco de seus livros, e, para aqueles de nós que não conhecemos Foucault pes-soalmente, talvez essa seja a única maneira de descobri-la. O próprio Foucault observou, acerca das conexões entre obra e vida, que “a vida privada de um indivíduo, suas preferências sexuais e seu trabalho são inter-relacionados não porque sua obra traduza sua vida sexual, mas porque a obra inclui toda a vida tanto quanto o texto.”
O pensamento de Foucault, tal como a sua vida, desaa a categorização sob um único tema — não porque ele tenha
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malogrado muitas vezes e por isso mudado de opinião, mas especialmente porque perseguiu questões que não têm respos-tas denidas e denitivas. Para ele, a losoa não era um cor-po de saber que se acumulava, mas um exercício crítico que questionava de maneira incessante crenças dogmáticas e práti-cas intoleráveis na sociedade contemporânea. Ele nos convidou a continuar essa prática crítica: é para mudar o mundo, nada menos, que devemos lê-lo.