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O Açoite da Seca: Família e Migração no Ceará (1780-1850)

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O Açoite da Seca: Família e Migração no Ceará (1780-1850)

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Antonio Otaviano Vieira Junior USP/CEDHAL - UFPA

Palavras-chaves: Ceará – história da família, seca, migração.

O Açoite da Seca

Este ensaio tem enquanto foco central a discussão da relação entre a seca e a migração de grupos familiares cearenses entre os anos de 1780-1850.

No rastro de uma história que Braudel chamou de quase imóvel, que destacava a relação do homem com seu meio, que não negligenciava a influência dessa história lenta na história social das populações cearenses, procurei pelo menos mencionar algumas influências da natureza cíclica das secas no movimento populacional1.

O processo de ocupação dos espaços na Capitania do Ceará que se deu através da expansão da produção pastoril e a conseqüente expulsão e pacificação dos índios, também foi marcada por um outro elemento: as secas. A escassez de água foi uma constante em toda a história do Ceará, marcando profundamente o dia-a-dia das famílias sertanejas – sendo um fenômeno climático e social compartilhado por outras Capitanias nordestinas, entre elas o Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. A persistência das secas foi responsável, no final do século XVIII, pelo enfraquecimento do processo de ocupação do Sertão nordestino2.

Destacava-se o caráter cíclico da escassez de chuvas. Entre os anos de 1780-1850 o território cearense fora assolado por secas nos anos de 1754, 1777-8, 1790-3, 1804, 1809, 1816-7, 1824-5, 1830 e 1844 –5 3 . Esses anos foram períodos de extrema

* Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado

em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.

1 BRAUDEL, Fernad. Escritos sobre a História. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1992, pp. 13-4.

2 VILLA, Marco Antonio. Vida e Morte no Sertão: História das secas no Nordeste nos séc. XIX e

XX. São Paulo, Ática, 2000, p.21.

3 STUART, Guilherme. Climatologia e epidemias no Ceará. Fortaleza, Fundação Waldemar Alcântara,

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miséria, com destaque para a seca de 1790-3 que causou uma séria baixa no rebanho cearense.

Tal flagelo açoitava todo o Sertão nordestino, deixando um rastro macabro de mortes e fomes. No Rio Grande do Norte, o Pe. Joaquim José Pereira testemunhou a seca de 1792-3 e deixou registrado seu depoimento marcado por fatos calamitosos, e entrecortado por espanto e desespero. A seca andava de mãos dadas com a fome e a morte:

Ah! Quem pensara que estas creaturas haviam de servis de pasto as aves nocturnas amigas do sangue? Ellas pousavam nos seus próprios aposentos, e correndo pelo chão trepavam sobre as creaturas, que já estavão prostradas pela fraqueza, e a vista das mesmas pessoas que as cercavam, lhes bebiam o sangue, e naquelle que derramavam pela terra, se achavam nelle ensopadas aquellas tristes e desgraçadas victimas do acaso exhalando os últimos espíritos da vida, sem que podessem haver alguém que, pela fraqueza em que se achavam todos, vigiasse a reparar o lamentável estrago que faziam sobre aquellas mesmas victimas o espantoso numero dos morcegos...4

A seca e a fome impunham a muitos sertanejos uma morte na míngua, a ausência de uma alimentação regular gerava o desespero onde qualquer coisa poderia servir de comida. Comiam de tudo e estes alimentos por sua qualidade deletérios da saúde e da vida d’aquelles habitadores, produziam nelles inchações disformes, vômitos de sangue extraordinários, dysenterias ferinas, males cutâneos cruéis, marasmos últimos; vindo por este motivo a povoarem as sepulturas dos campos e dos povoados 5. Na Paraíba

foram mencionados atos de antropofagia em diversas localidades. Era muito comum o envenenamento por meio de mucunan, petó, cole, maniçoba e outras plantas tóxicas, que o povo faminto usava como sustento – embora fosse corrente que elas só eram nocivas quando não comidas com rapadura6.

4 PEREIRA, Joaquim José. Memória. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo

LXII, p. 179.

5 Idem, p. 176.

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Entre os anos de 1780-1850 nenhuma seca conseguiu tanta atenção como a ocorrida entre os anos de 1791-3, chamada de Seca Grande, e que ganhou destaque por parte dos administradores das Capitanias. As narrativas associadas à Seca Grande corroboram o cenário de tragédia que sucede a escassez de chuvas.

Grande secca no Ceará. Começou em 1791 e terminou em 1793. São tristes as notícias, que ficaram desta quadra. Procurando abrigo, o padre João Bandeira veio fazer, no Jardim, as primeiras plantações; e foi isto parte para formar-se alli o arraial, depois via d’aquelle nome. Houve grande peste de variola. No Aracaty, onde deo-se muita agglomeração de retirantes dos sertões, morreram 600 pessoas. Segundo informações do capitão-geral de Pernambuco ao rei, pereceo um terço da população da Capitania geral. Esta informaçào contem exagero; mas a perda em homens, sobre tudo em animaes, foi muito grande. Os indios morreram ou fugiram para o interior do Piauhy e Maranhão, restando mui poucos7.

Antonio Gomes de Albuquerque e o Sargento-mor Manuel Francisco de Vasconcelos, arrematantes dos dízimos da vila de Sobral, no ano de 1794 pediram a rainha D.Maria I uma consignação de suas dívidas à Coroa. O motivo alegado para esse pedido era justamente a intensidade da seca de 1791-3; alega os solicitantes:

Sucedeu huma seca tal que morrendo no referido anno de 1791, e no seguinte de 1792 a maior parte do gado grosso, e miudo chegando a tal excesso que até aves e animaes silvestres perecerão, de sorte que não houverão plantas, nem fructos de qualidade alguma nem viveres de primeira necessidade, padecendo o mesmo Povo a fome chegando 03 mesmos prezos das cadeas a morrer de fome, e acharem pelas cazas muitas pessoas mortas à necessidade não só na referida villa, e seu Termo, mas em toda a Capitania8.

7 BRÍGIDO, João. EPHEMERIDADES do Ceará . Revista do Instituto do Ceará, vol: XIV, 1900,

p.148.

8Requerimento de Antonio Gomem Albuquerque e do Sargento-mor Manuel Francisco de

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O discurso acima foi produzido com o claro objetivo de delimitar um quadro de miséria, visando a atenuação de dívidas com o Estado português. No próprio requerimento foram arroladas outras pessoas como testemunhas que produziram falas no mesmo sentido da exposição das misérias impostas pela seca. Possíveis exageros à parte, a narrativa pontuava um cenário de escassez total de víveres, mostrando o impacto da seca numa das maiores vilas do Ceará, situada ao norte da Capitania e na ribeira do caudaloso Rio Acaraú.

Ao sul da Capitania, noutra importante vila, mesmo após sete anos do término da Seca Grande a Câmara de Vereadores de Icó ainda se queixava da miséria a qual sucumbira. Em carta ao príncipe regente D. João os vereadores narravam o cotidiano de miséria imposto pela pouca ou nenhuma chuva durante os anos de 1791-3. Daquelle ainda não visto castigo, os brados da pobreza, os gemidos dos que tinhão o impróprio nome de ricos, a dissolução dos Povos, e dos animaes, a consternação dos racionaes viventes ... se arojam a comer toda, e qualquer ... ave immunda que fose a carne dos mesmos, as raixes das arvores, com que se intranhão em grandes males 9.

Vista como um castigo que poderia descer do céu ou subir do inferno, a seca era representada como um ponto de intersecção entre pobre e ricos. A morte aproximava esses estamentos sociais, pois cobrava reações insanas na garantia de sobrevivência. Carnes em estado de putrefação e raízes venenosas compunham essa dieta do desespero. O fenômeno da Seca Grande foi narrado da mesma forma em discursos oriundos de vilas que se situavam em extremos opostos da Capitania. O que era indício da amplitude dessa seca, principalmente quando se considera que tais vilas eram áreas economicamente desenvolvidas e tinham destaque no cenário agro-pastoril cearense. Ambas situavam-se próximas de rios, o Jaguaribe e o Acaraú, e ambas tiveram na pecuária a principal atividade motriz de seu desenvolvimento. Distantes fisicamente, mais próximas economicamente às vilas de Icó e Sobral sentiram a força do sopro da seca.

Em determinadas épocas do ano o coração sertanejo batia mais apertado, seu olhar vagava pelo horizonte, buscando aterrorizados sinais da chegada da seca. Os habitantes dos sertões paraibano, piauiense, potiguar e cearense destinavam parcela de

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seu tempo à observação do céu: observavam com o maior interesse a barra de Natal e do Anno-Bom, isto é, o modo porque apparece a aurora de cada um desses dias; e, baseados nesse exame, dão o seu juizo a respeito do próximo inverno. O Sette-estrelo, o Carreiro, a Mancha do Sul, o circo da lua, o ocaso do sol, o céu, etc. Tudo era observado pelos moradores dos sertões, e quando vizinhos, parentes e amigos se reuniam, tratavam minuciosamente em seus serões ou palestras à noite, quando se reúnem no alpendre ou copiar da casa, tirando augúrios ou conclusões encontradas10.

Todos continuavam olhando para o céu, alguns mais atentos aos corpos celestiais e outros aos desígnios divinos. Nas missas os pensamentos eram elevados às experiências de Santa Luzia; assim como ao partir das hóstias nas missas de Natal e Ano-Bom: se ellas dão um estalido secco, concluem em desfavor do anno; se ao contrario emittem som surdo, apenas perceptível, têm como bom signal de inverno11. O

calendário continuava avançando e as esperanças de bom inverno se prolongavam até o dia de S. José:

Todas as manhãs, cingindo ao lado da bruaca de provisões, (às vezes alguns punhados de farinha de macambira e rapadura), segue para o mato, onde passa o dia queimando o facheiro, chique-chique, para fazer a comida de seu gado que cada dia vê diminuindo, voltando às ave-maria com feixes de ramos para as rezes cahidas e em trato nos curraes12.

Nessa immensa luta com a natureza vê elle chegar o fim do prazo, passar Março, entrar Abril, sem que o céo mude de aspecto; então, quando as carniças e arcabouços, empestando o ar, assignalão por toda parte o anniquilamento da criação, o misero, já abatido de forças, fica completamente desenganado ou antes o infortúnio esmaga-o moralmente; quasi que não pensa mais, somente o instincto de conservação que o impelle a deixar o torrão natal; mas, ainda assim, é com lagrimas que se despede dos

10 JOFFILY, op. cit., p. 175. 11 JOFFILY, op. cit., p.175. 12 Idem, p. 95.

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seus últimos e inúteis haveres, a casa, o roçado do rio, vasto recinto de solo poeirento, e os curraes de porteiras fechadas13.

Mas, quando o céu acusava chuva e inverno os sertanejos sentiam seus corações mais aliviados, pois tinham a certeza que naquele ano não iriam passar fome e não seriam obrigados a se deslocarem em busca de pasto para o gado e comida para a família. O professor Ximenes Aragão, memorialista cearense, nos conta a recepção da chuva no Ceará no ano de 1828:

Estavamos todos sentados na salla reunidos lastimando a nossa sorte... Por hum lado tratando de maneira por que havíamos de escapar da secca... quando vimos huma nossa escrava chegar na porta, que dá entrada para o interior da casa dizer – Venhão Vm cês ver que chuva bonita vem! ... – Duvidamos todos ao principio o dito da negra, segundo a limpeza do temppo, porem depois levantando-nos fomos olhar ao nascente: vinha com effeito huma chuva, que com pouco chegou nós, inda com sol aberto, sem vento, nem trovoada alguma. Tomamos fôlego, e demos mil graças a Deus por nos haver socorrido 14.

Os discursos relacionados às memórias das secas geralmente eram apaixonados, entrecortados por adjetivos e agradecimentos aos céus. Um olhar acadêmico sobre tais discursos poderia ressaltar as generalizações das falas, e as distâncias sociais negligenciadas por seus autores. Os grandes fazendeiros ou comerciantes não experimentavam a seca da mesma maneira que seus escravos, ou da forma com que vivenciavam os pequenos proprietários, embora os aproximassem na fome.

A escassez de chuvas também atingia de maneira diferenciada as Capitanias nordestinas. Como exemplo, cito o caso do Piauí que durante inúmeras secas serviu como ponto de escape para moradores e rebanhos de diversas regiões. Em outras ocasiões, após o fim de estiagens, fazendeiros de várias Capitanias buscavam sementes

13 Idem. Joffily escreveu sua narrativa sobre a Paraíba em fins do século XIX, mas ao falar da seca o

autor remete parte de seu trabalho para as primeiras décadas dos oitocentos.

14ARAGÃO, Manuel Ximenes. Memórias. In: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, Typogrfia

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para a reconstrução de suas criações nas margens dos rios Canindé, Piauhy e Gurugueia15.

Outro ponto a destacar era a manipulação imediata dos discursos, que muitas vezes foram gestados para perdão de dívidas, justificar fragilidades administrativas, para ressaltar a força ou sofrimento de determinada família. Assim, não era raro encontrar documentos que se privilegiavam imagens fortes da miséria da seca com o intuito de referendar solicitações quanto ao prazo de dívidas, ou pedir mais apoio das autoridades portuguesas para determinadas vilas ou Capitanias.

Foi o caso do ofício do Governador do Ceará João Carlos Augusto d’Oeynhauser, que em 1804 ainda se referia a Seca Grande: diz o Governador que o rendimento da Capitania advindo do algodão, do gado e do comércio continuava a cair sensivelmente em função dos estragos cometidos pela seca, que contribuía para empobrecer ainda mais a Capitania do Ceará 16. Em 1803 a Câmara de Vereadores de Fortaleza enviava ao príncipe Regente uma carta onde eram relatadas as dificuldades atravessadas pela Capitania devido à seca de 1791-3, que havia prejudicado a agricultura e as rendas reais17.

Embora tais discursos fossem repletos de estratégias, generalizações e omissões eles não perdem seu valor enquanto instrumento de análise. E todos eles eram unânimes ao destacarem a influência da seca no cotidiano familiar cearense, pois quando as esperanças de um bom inverno acabavam a necessidade de se locomover, para não morrer, aparecia; de modo que elles [habitantes do Sertão] por este principio estão sempre no estado de principiarem, porque não tem outro modo de poderem subsistir do que o da criação de seus gados e animaes, e ainda do lanígero e cabrum 18. Principia a

viagem. Entre as linhas de A Bagaceira, livro escrito no início do século XX, a imagem do retirante da seca se materializou evitando anacronismos:

Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam... Fugiam do sol e o sol

15D’ALENCASTRE, José Martins.Memória chronologica, histórica e corographica da Província do Piauhí. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brazileiro. Tomo XX, 1857, pp. 13-163. 16Ofício do Governador do Ceará ao Secretario de estado e Negócios da Marinha Ultrama, 19.05.1804. 17Carta da Câmara de Vereadores de Fortaleza, 28.05.1803.

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os nesse forçado nomadismo... Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes. Nada mais19 .

Seca e Migração

Os domicílios eram afetados pela pobreza e miséria que se acentuavam com a escassez das chuvas. A falta de água e de alimentos para a população fazia dos deslocamentos familiares uma estratégia de sobrevivência. O cearense, em especial o sertanejo, aprendeu a conviver com a seca: deslocando-se, reconstruindo suas vidas e suas habitações.

O viajante escocês George Gardner, na divisa entre o Ceará e o Piauí, em 1837, encontrou uma fazenda de gado devastada pela seca. A propriedade totalizara aproximadamente 300 cabeças de gado, mas com a ausência de chuvas o rebanho havia sido reduzido a 40 cabeças20. Esse relato evidenciava que mesmo os grandes

fazendeiros não conseguiam livrar seu rebanho, e suas fazendas, da ação devastadora da seca.

A carta do Governador da Capitania do Ceará, em 1792, segundo ano da Seca Grande, apontava para o efeito calamitoso da seca na criação de gado e na agricultura:

por causa da nunca vista seca, que tem devastado esta Capitania com perda de inumeraveis gados de toda a sorte, destruição de lavouras tanto de mandioca como de algodão, em razão do que se tem visto huma grande parte destes Povos na precizão de emigrarem de humas para outras terras encontrando em toda a parte a fome...21

O deslocamento da população e a diminuição do rebanho eram conseqüências diretas da seca, podendo infligir o despovoamento de fazendas e vilas. Ainda sobre a seca entre os anos de 1791-3, o historiador cearense Barão de Studart compilou uma

19 ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1975, p. 05.

20 GARDNER, George. Viagem ao Interior do Brasil. São Paulo, Belo Horizonte, Edusp, Itatiaia, 1975,

p.114.

21 Carta de Feo e Torres a Martinho de Mello e Castro dando conta dos atos de sua administração, 1792. Apud: STUDART, Guilherme.Notas para a História do Ceará. Lisboa, Typographia do Recreo,

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série de relatos, que registravam o fechamento de fazendas, graças as fugas dos vaqueiros e dos agregados. Um dos casos notórios foi o do fazendeiro chamado Francisco Nobre de Almeida, que morava em Recife. Este foi pessoalmente com sua família combater as conseqüências da seca (1791-3) em suas fazendas no Ceará e Piauí: morreu de fome ele e parte de seus familiares 22.

Não é difícil imaginarmos no Sertão do Ceará fazendas abandonadas ou em estado de precária habitação. A seca era um flagelo que deixava vilas e fazendas desabitadas. Nas suas peregrinações entre o Rio Grande do Norte e Ceará, em 1810, o viajante inglês Henrry Koster encontrou...

uma casa incompleta e desabitada. O proprietário a começara a construir durante as chuvas do inverno passado, e continuou a obra até que as águas se esgotassem (grifo meu). A casa era vasta, coberta de telhas, mas as paredes tinham apenas os enxaméis. Era intenção dessa pessoa estabelecer até uma fazenda mas a falta das fontes d’água teria dissuadido o propósito primitivo 23.

Apesar de afetar todo o Ceará, e outras Capitanias, a seca poderia atingir de maneira diferenciada as regiões cearenses. Áreas como Aracati que tinham um fluxo de capital maior, que não resumia sua atividade econômica a criação de gado, mas também incluía a exportação de algodão e comércio com o Sertão, resistiam com menor dificuldade ao flagelo. A vila de Crato rica em nascentes de água acabava catalisando parte do fluxo migratório no sul do Ceará, por ter um poder maior de resistência à seca, Crato aumentava seu contingente populacional e tinha seu comércio incrementado principalmente em épocas de escassez de chuvas 24.

Mas nas regiões do Sertão, de economia baseada na pecuária e na agricultura, a seca significava morte ou deslocamento. Os rebanhos eram conduzidos para outras paragens, como o Piauí, em busca de um melhor pasto. Essa rota de sobrevivência do

22Apud: STUDART, op. cit., pp. 419-2.

23 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife, Secretária de Educação e Cultura de

Pernambuco, vol XVII, 1978, p.123.

24 MENEZES, Luis Barba Alado. Memória sobre a Capitania do Ceará. In: Revista do Instituto

Histórico e Geográfico do Brasil. 1871, tomo XXXIV, pp. 255-86. A memória foi escrita no ano de

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gado era marcada por queixadas espalhadas nas trilhas do Sertão. O Engenheiro Real Silva Paulet, após a seca de 1809-10 e a de 1814, relatou:

Muitas fazendas ficaram inteiramente dezertas de gados, principalmente nas villas de São João do Príncipe, Icó e Campo-maior de Quixeramobim ... Em algumas já não existe gado, porque a gente se tem retirado para outros lugares, e o gado para as serras e sitios paludozos 25 .

A população mais pobre procurava auxílio no litoral:

É espetaculo lastimozo em taes annos [de seca] encontrar pelas estradas poucos passos corpos mortos de pessoas, que do interior fogem a beira mar; retirada em que perecem em caminho exhaustos de forças, pela falta de mantimentos 26.

As memórias do prof. Ximenes Aragão foram profundamente marcadas pela relação entre as imposições climáticas e o seminomadismo familiar. Os pais do professor moravam no sítio Espírito Santo, junto com seu avô, e devido à seca de 1809 foram obrigados a procurarem a Serra-Grande, que sofria menos com o flagelo. Essa é uma das primeiras lembranças registradas pelo professor, e a estratégia de mudar-se para não morrer na míngua o acompanhou pelo resto da vida 27 .

Em 1825 a seca ensaiava retornar, e em 1827 ela chegou com toda força. A família do professor mais uma vez foi obrigada a deslocar-se. O pai foi forsado a vender muitos trastes de caza, ouro, prata, e até huma escrava, por menos de seu valor, por consequênia estava assustadissimo com a nova seca, em cujo os termos determinou procurar hum lugar onde se refugiasse 28. Pai e filho foram até a praia de Mundaú, o

objetivo da viagem era fazer o reconhecimento da área para posterior morada de toda

25 PAULET, Antonio José Silva. Descrição geográfica da capitania do Ceará/ In: Revista do instituto

do Ceará. Fortaleza, Typografia Minerva, 1898, tomo XII, p. 10.

26 Idem, p. 10.

27 ARAGÃO, Memórias, op.cit. 28 Idem, p.84.

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família. O lugar não fora aprovado, a família mudou-se mais uma vez de Sobral para a Serra-Grande (ou Ibiapaba).

Essas constantes mudanças baseavam-se numa lógica de solidariedade familiar, onde os membros da família buscavam se deslocar em conjunto: juntando-se como meu tio Joaquim, que determinou acompanha-lo, sahimos em Setembro as duas famílias juntas, que aliás podião situar huma terra novamente descoberta, pois meu pai tinha onze filhos, e seu irmão oito, ou nove a fora escravos e famílias ...29 O lugar escolhido pelos Aragões não foi a esmo, lá já residia outro tio do professor. Assim, a rede de laços de parentesco se fazia enquanto componente fundamental das estratégias de sobrevivência do homem sertanejo.

No ano seguinte, em 1828, mais uma vez a família se reunia para discutir uma nova retirada contra a seca: Estavamos todos sentados na salla reunidos lastimando a nossa sorte. Parece-me que a decisão de mudar-se, tão comum àquela família, era uma decisão que poderia envolver parcela significativa dos seus membros.

Outro Aragão, que morava no Serrote, havia solicitado ao pai deste que o professor fosse lhe ensinar os netos. Prontamente aceito o convite, o professor, sem a família, partiu mais uma vez – era Dezembro de 1832 30. Esse suposto e distante parente

chamava-se Salles, e era um rico dono de fazenda. No outro ano voltara o professor para a casa de seus pais na Villa Nova: onde tam bem achei meo tio Joaquim com sua familia, que, depois de ter regressado para sua antiga morada do Passo d’ante, a secca o obrigou a tornar a Serra-grande a procurar recursos 31.

Já casado, em 1836, o professor deixou sua esposa na casa do sogro e vai ao Piauí tentar negociar algum couro. Embora as datas sejam confusas na narrativa, parece-me que ele estivera alguns meses comprando e vendendo couro entre o Ceará e o Piauí. Em 1837 sua esposa da a luz a uma menina, e eles residem no ano de 1838 na casa do sogro – Ximenes Aragão passou a exercer a profissão de alfaiate32 . Posteriormente mudou

com a mulher para o Maranhão, onde seu cunhado havia se deparado com uma melhor condição de sobrevivência33, lá encontraram outros cearenses. A narrativa de Ximenes

29 Idem, p.87.

30 ARAGÃO, Memórias, op.cit., p.93. 31 Idem, p.108.

32 Idem, p.139. 33 Idem, p.141.

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Aragão mostra a constância do seminomadismo do sertanejo, um deslocamento que não era apenas masculino, mas que envolvia a família como um todo.

A saga dos Aragões não se constituía uma exceção, pois o seminomadismo foi uma das características das relações domiciliares cearenses. O deslocamento não acontecia de uma única maneira, e sofria a interferência direta do lugar social e das posses do grupo. Outras vezes a variação era em função da parcela da família que se deslocava.

Dentre os proprietários de fazendas era comum à posse de vários sítios em regiões diferentes do Ceará. Maria Rodrigues Pereira tinha terras no sítio chamado Cardeais, no Cavalinho, no Lugar da Posta e casas de morada em Recife (1774)34, Luiza Paes de

Castro tinha terras de criar no Riacho dos Porcos e no Campo Grande (1810)35, José Joaquim Nobre tinha as terras de Imbuzeiro e o sítio Barriguda (1828)36, Germana

Francisca possuía terras no sítio de Imburanas, no sítio João de Lima e no sítio de Sucurana (1850)37, Rita Maria da Conceição possuía casas nos sítios Arara, Santa Rosa e na povoação de Icó (1850)38 e o Capitão-mor da Bernardino Gomes Franco tinha

propriedades no Ceará, Paraíba e Piauí 39.

Essa variedade de propriedade poderia significar uma maior gama de alternativas de deslocamento dos gados e das famílias dos fazendeiros. Os proprietários de tais terras tinham um poder de maior resistência diante da seca, haja vista que seus deslocamentos aconteciam entre as suas propriedades e com isso dependiam menos do auxílio alheio. Ter várias terras em regiões diferentes, principalmente nas sedes das vilas e nas proximidades das serras poderia representar uma estratégia de combate à seca. Estratégia essa que era adotada por segmentos sociais mais abastados, onde esses grupos saiam de uma casa para irem para outra, conforme o período do ano ou a intensidade das secas.

O relato de Alexandre Mourão, na primeira metade do século XIX, era bastante esclarecedor quanto ao deslocamento dos grandes proprietários de fazendas:

34 Inventário de Maria Rodrigues Pereira, vila de Aquiraz 1774. 35 Inventário de Luiza Pais de Castro, vila de Sobral 1810. 36 Inventário de José Joaquim Nobre, vila de Icó 1828. 37 Inventário de Germana Maria de Jesus, vila de Icó 1850. 38 Inventário de Rita Maria da Conceição, vila de Icó 1850. 39 Consulta do Conselho Ultramarino a D. João, 13.02.1802.

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Eufrosino sendo solto volta a seo sitio “Picada” onde passou a sèca de 45 [1845], foi deixar a familia no “Corte”, onde costumava passar o verão, mais perto do “Curtume” e de minha mãe (...) deixou a familia que avisasse minha mãe para se apromptar q’ elle chegando hia deixa-la nos Inhamus. Volta a “Picada” dar suas disposições aos escravos ...40

Por possuir várias terras espalhadas pelo Sertão, Eufrosino cunhado de Alexandre Mourão, se deslocava com a família entre essas terras fugindo da seca e das perseguições políticas. O deslocamento da família se configura como uma estratégia de sobrevivência até mesmo entre os fazendeiros, pois a seca continuava deixando suas marcas. Embora não fosse um antídoto definitivo, a multiplicidade de propriedades poderia evitar que determinadas famílias fossem apanhadas pela fome no meio das estradas e morressem à míngua durante uma caminhada com destino incerto.

Outras famílias, de menor posse, buscavam refúgio onde existia um parente. Eram locais onde determinados membros do grupo familiar havia se estabelecido, em função de um deslocamento anterior, e que acabava sendo área de refrigério para toda a família. Foi o caso do cunhado do professor Ximenes Aragão, que havia se estabelecido numa localidade do Maranhão, vila do Brejo, e que posteriormente recebeu o resto dos parentes. No ano de 1838, após mais uma mudança com sua família o professor relatou:

Fui morar com meu cunhado na mesma caza em quanto achava outra. Apenas chegando recebi o maior agrado de todos os homens do lugar, aos quaes meu cunhado não cessava de me fazer recommendado tecendo-me os maiores elogios ... chegou meui pai no fim de 08 dias, depois de nossa chegada, e foi tratado do mesmo modo, que a mim tratarão41.

A chegada do professor havia sido preparada pelo cunhado, que já estabelecia uma confiabilidade do recém-chegado diante dos moradores da vila de Brejo. Isso poderia significar uma maior facilidade para obter trabalho, apoio da vizinhança e uma

40 MOURÃO, Alexandre. Memórias de Alexandre da Silva Mourão. Revista do Instituto do Ceará,

tomo XLI, 1927, p. 29.

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residência. Nesse caso, ter um teto não foi problema, pois o cunhado abrigou todo os demais familiares em sua casa. Segundo o professor o fato de ser forasteiro no lugar, era precizo que lhe fosse mais difficil passar o rebentão d’aquelle anno 42.

Após a chegada do pai em Brejo, Ximenes Aragão iniciou um pequeno comércio onde trazia legumes do Rio-preto, distante 07 léguas da vila, e levava para vender huma porsão de miudezas. Mais uma vez era fundamental o conhecimento de pessoas certas para comprar e vender seus produtos, e o cunhado do professor se fazia uma peça chave desse comércio, que por morar a mais tempo no Brejo tinha acesso mais fácil aos moradores do lugar, por tanto servia como um abre portas para o incipiente comércio do professor. Os laços de solidariedade e dependência entre familiares foram confirmados com o batizado da filha do professor em novembro de 1838, onde a madrinha era sua irmã Anna que lhe acolheu também em Brejo e o padrinho era um sobrinho de seu cunhado. A trama familiar era reforçada e interferia diretamente na opção de deslocamento de alguns grupos 43.

Outras pessoas resolviam de maneira diferenciada a necessidade de migração diante da proximidade da seca. Os vereadores de Icó afirmaram, ainda relatando a Seca Grande, que os chefes de famílias esquecidos do amor conjugal e paternal, e quaze como dezesperados, dezamparavão as mulheres, e tenros filhos, e passavão a outras diversas Capitanias a remirem suas vidas, apezar de conhecerem que a onra, fama, e vida de suas famílias se perdão inteiramente, como na verdade aconteceo44.

Aqui, foi destacado o fato de uma parte da família partir e a outra ficar, havendo uma separação dentro do núcleo principal do arranjo (pai, mãe e filhos). Esse tipo de deslocamento era, na maioria das vezes masculino, e fazia parte da vida familiar de várias Capitanias45. O homem partia e deixava a mulher com filhos. O que nesses casos

poderia acontecer, para além da observação simplista dos vereadores de Icó, era o fato desses homens servirem como batedores para a família. Eles se deslocavam sozinhos, e com isso ganhavam facilidade para andarem e não sujeitavam a família às agruras do

42 ARAGÃO, Memórias...,op. cit., p. 84. 43 Idem, pp. 142-3.

44 Carta da Câmara de Vereadores de Icó, op. cit..

45 Cf: DIAS, Maria Odila. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2a ed. São Paulo,

Brasiliense, 1995. FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas Famílias. São Paulo, HUCITEC, 1997. Os citados trabalhos pontuam o deslocamento masculino da formação e reconstrução de famílias em São Paulo e Minas Gerais.

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desconhecido, localizavam áreas que tivessem condições melhores de alimentação e voltavam para apanhar o resto dos familiares.

Essa estratégia também foi adotada, no ano de 1828, pelo professor e seu pai. Partiram em busca de novas alternativas de sustento no litoral, verificaram a possibilidade de sobrevivência para a família: Fomos elle e eu tomar conhecimento deste lugar, que na verdade o achamos próprio para o fim que queríamos, por ser abundante em peixes, e próprio para a plantação de verde, e de secca, mas mizeravel de gente, e se nos diz impestadissima de sesões46. Retornaram para casa, mas antes

compraram farinha para abastecer os que ficaram esperando, e com isso acalmar a fome e a expectativa gerada pelo retorno de pai e filho.

Em outros casos os homens partiam e nunca mais voltavam, ou quando voltavam encontravam seus parentes mortos. Não existia um padrão único de deslocamento das famílias sertanejas diante da seca. As estratégias variavam conforme os estamentos sociais e também a circunstância da chegada da escassez de chuvas. Os Aragões serviram para instigar a possibilidade de uma análise que considere a alternância de formas de deslocamento dentro de uma mesma família, ora migravam juntos, ora deslocava-se primeiro pai e filhos mais velhos, ora só o filho partia.

A composição de um cenário marcado pela atividade agro-pecuária, e submetido a constante escassez de chuvas poderia interferir diretamente na composição de domicílios cearenses. A seca se estabelecia enquanto componente da formação e reformulação de grupos familiares. Apesar da inconstância de uma única forma de migração, um ponto pode ser afirmado: o deslocamento era a principal estratégia adotada pelas famílias cearenses diante das secas, e isso poderia gestar domicílios provisórios e uma reconstrução dos arranjos familiares, interferindo diretamente no habitar e no sentido da vida familiar.

Assim, pensar nas famílias cearenses entre os anos de 1780-1850 foi percebê-la em movimento, num migrar forçado e associado à escassez de chuvas, e que muitas vezes poderia significar o devir nos sentidos e representações dos laços de parentescos.

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Referências

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