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O significado da diferença: a dimensão crítica da noção de projeto de tradução literária

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(1)Tradução e Comunicação Revista Brasileira de Tradutores Nº. 18, Ano 2009. Mauricio Mendonça Cardozo Universidade Federal do Paraná - UFPR maumeluco@uol.com.br. O SIGNIFICADO DA DIFERENÇA: A DIMENSÃO CRÍTICA DA NOÇÃO DE PROJETO DE TRADUÇÃO LITERÁRIA. RESUMO Assumindo uma compreensão genérica da tradução como poiesis da relação, como uma prática discursiva que instaura todo um complexo de relações, traduções demandam uma leitura centrada no significado de suas diferenças – em que apontar diferenças pode constituir um dos pontos de partida da crítica de tradução, mas não um fim em si mesmo -, i.e., uma leitura centrada no significado das relações de que emergem percepções como as de diferença e identidade. Partindo de uma noção de tradução como atividade crítica – nos termos propostos por Antoine Berman, em seu Pour une critique des traductions, e numa compreensão da tradução e da crítica literária no contexto do Romantismo alemão –, propõe-se, aqui, discutir as possibilidades críticas que a noção de projeto de tradução abre tanto para a prática de tradução quanto para a crítica de tradução literária. Palavras-Chave: tradução literária; crítica de tradução; crítica literária; projeto de tradução.. ABSTRACT Assuming a general understanding of translation as poiesis of relation, as a discursive practice that builds up a whole set of relations, translations demand a reading centred on the meaning of their differences – whereby the pointing out of difference is to be understood as one of the starting points of translation criticism, and not as an end in itself –, i.e., a reading centered on the meaning of the relations from which differentness and identity stem. Regarding the translational practice as a critical undertaking – in the terms discussed by Antoine Berman in his Pour une critique des traductions, and on the basis of the understanding of literary translation and criticism in the context of the German Romanticism –, I intend to scrutinise the critical possibilities that the notion of translation project opens up for the translation practice itself, as well as for the literary translation criticism. Keywords: literary translation; translation criticism; literary criticism; translation project.. UNIBERO Centro Universitário Ibero-Americano Contato rc.ipade@unianhanguera.edu.br Artigo Original Recebido em: 21/7/2009 Avaliado em: 11/8/2009 Publicação: 30 de setembro de 2009. 101.

(2) 102. O significado da diferença: a dimensão crítica da noção de projeto de tradução literária. 1.. INTRODUÇÃO Em maio de 1946, em uma de suas reflexões “Sobre o ofício do escritor”,1 o escritor suíço Max Frisch faria a seguinte anotação em seu diário: O que é importante: o indizível, o branco entre as palavras – palavras estas que falam sempre das desimportâncias, daquilo que não queremos dizer. O que nos importa, própria e efetivamente, pode, na melhor das hipóteses, ser perifraseado – e isso significa, literalmente: escrever em torno, no entorno, acerca de algo, ao seu redor. Dizemos o que não contém nunca nossas próprias experiências, que permanecem indizíveis. Dizemos o que só é capaz de circunscrever, tão próxima e exatamente quanto possível. E o que nos é próprio, o indizível, manifesta-se, na melhor das hipóteses, como uma tensão entre tudo aquilo que é dito. Supostamente, nosso esforço se orienta no sentido de pronunciar tudo o que é dizível. A linguagem é como um cinzel, que desbasta tudo o que não é mistério – e todo dizer significa um afastar. Portanto, não nos deveria causar espanto o fato de que tudo o que se torna palavra um dia, cai num certo vazio. Dizemos o que a vida não é. E o dizemos por amor à vida. Assim como o escultor ao manejar o seu cinzel, a linguagem trabalha ao impelir o vazio, o dizível, na direção do mistério, na direção do que tem vida. Há sempre o risco de destruir o mistério; bem como um outro risco, o de desistir prematuramente, de entornar o caldo, de não deixar que o mistério se estabeleça, de não comportá-lo – não sem o peso de tudo o que ainda possa ser dito [...] (FRISCH, 1998, p.378-379, tradução minha).. Ao refletir sobre o “ofício do escritor”, o texto de Frisch dá testemunho da condição que habitamos e que permeia toda prática de escrita e de leitura, toda a atividade de interpretação e de produção discursiva. Trata-se da condição – algo misteriosa – em que tem lugar a cena da significação e em que se instauram, portanto, práticas como a da criação, da crítica e da tradução. Todavia, ao tematizar o fazer do escritor, Frisch não se refere centralmente ao que o escritor diz ao escrever. Contrariando as expectativas, concentra o foco de sua reflexão naquilo que ele entende ser o mais importante: o escritor fala do que inevitavelmente não se diz ao escrever, fala do não-dito e do indizível, do mistério que habita todo o dito, de seus silêncios. Pensar a tradução – ou qualquer outra prática discursiva – a partir de uma condição em que o silêncio convive com o dito significa pôr em questão noções de linguagem e de comunicação que servem de base a diferentes concepções de tradução que teriam, em comum, o fato de fundarem-se exclusivamente na dimensão do dito. Concebidas idealmente sob o signo da neutralidade, da totalidade e da perfeição – dando sustentação a uma imagem da tradução como mera operação de transferência ou transporte de ditos, como unidades fechadas e estanques –, tais concepções não levariam em conta a tensão significativa entre o dito e o não-dito, ignorando, ainda, uma certa instabilidade, vagueza e opacidade que permeiam a cena da significação não como defeito de origem, mas sim, como condição do dizível e do indizível.. 1. O título da anotação de Frisch em alemão é Zur Schriftstellerei.. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(3) Mauricio Mendonça Cardozo. 103. Ora, se entendemos que os caminhos da significação são singulares, tanto para o tradutor quanto para o crítico; se entendemos que ao tradutor não basta apenas se resignar diante de uma tão proclamada impossibilidade de sua prática, mas sim, que cabe a ele a escolha, consciente ou não, de caminhos que viabilizem a construção de uma relação possível entre os universos que sua tradução relaciona; e se entendemos que essa relação não se constrói segundo parâmetros ideais, mas dentro dos limites e possibilidades da linguagem que o tradutor usa e habita; nesses termos, a prática de tradução não pode mais ser entendida como uma simples atividade mecânica de substituição lingüística, mas sim, como propõe o teórico francês Antoine Berman, como uma “atividade de ordem crítica”. Por sua vez, a crítica de tradução passaria a ser entendida como “a crítica de um trabalho que já é, por si só, resultado de uma atividade de ordem crítica” (BERMAN, 1995, p.41, tradução minha). Essa condição impõe um redimensionamento de questões práticas e éticas tanto da tradução quanto de sua crítica. E isso implica em redimensionar tanto as concepções fundadoras das práticas de tradução quanto o lugar dessa prática, o espaço de relações em que essa prática se instaura.. 2.. A NOÇÃO DE TRADUÇÃO COMO ATIVIDADE DE ORDEM CRÍTICA Uma prática crítica fundada num modo dito tradicional de pensar a tradução acabaria por restringir o espaço de ação da crítica e, por sua vez, a própria natureza dessa prática. Pois se à tradução coubesse apenas ser cópia fiel do outro em nossa língua, à crítica não caberia senão o cumprimento de uma espécie de controle fiscal dessa operação, de um controle de qualidade responsável por aferir e conferir em que medida a transferência foi ou não executada com sucesso. Se entendermos que esse modo de pensar a tradução está muito próximo de uma noção perpetuada pelo senso comum, é portanto revelador, e não nos deveria causar grande surpresa, o fato de que a lógica da perda e ganho – na verdade, uma lógica regida pelo ideal da menor perda possível – ocupe um lugar tão central e dominante, como fundamento maior de uma certa crítica de tradução, especialmente em sua manifestação jornalística, no corpo de resenhas de obras recém lançadas. Todavia, se a prática tradutória for compreendida como uma prática produtora de significados – reconhecendo-se assim o tradutor como sujeito dessa prática –, é preciso reconhecê-la como atividade de ordem crítica. Na Alemanha, já no final do século XVII, a tradução literária seria discutida como uma atividade de natureza intelectual e com grande potencial crítico, chegando a. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(4) 104. O significado da diferença: a dimensão crítica da noção de projeto de tradução literária. representar, para os românticos alemães – a exemplo das reflexões de Friedrich Schlegel e Novalis –, um caso extremo e radical da própria crítica. Nesse contexto, a tradução integraria a matriz de realização do ideal orgânico da obra literária romântica, que vislumbrava, a um só tempo, a crítica como tradução da obra literária, a tradução como obra literária em si e a obra literária como crítica e tradução (cf. SCHLEGEL, 1997; UERLINGS, 2000). Essa organicidade seria fundamental para a constituição do princípio de potenciação da obra literária – crítica e tradução como poesia da poesia – e para a construção de seu caráter transcendental – traço decisivo da própria definição de obra de arte no âmbito do romantismo alemão. Na primeira metade do século XX, essa relação orgânica entre crítica, obra literária e tradução encontraria expressão como matriz fundadora da obra tradutória, poética e ensaística de Ezra Pound (1885-1972), para quem a tradução alcançaria uma dimensão crítica e estética de tal modo pronunciada, a ponto de não mais se poder dissociar essas três práticas: a exemplo do que ocorre em sua obra máxima, os Cantos (cf. POUND, 1988). Augusto de Campos, em “As antenas de Ezra Pound” – prefácio à edição brasileira do ABC da Literatura (CAMPOS, 1977, p.11) –, e Haroldo de Campos, em “Da tradução como criação e como crítica” (CAMPOS, 1992, p.36), dão destaque também à noção poundiana de “criticism by translation”, uma das cinco modalidades críticas vislumbradas por Pound, cuja operacionalização se daria diretamente via prática tradutória. Entender a tradução como uma prática de natureza crítica implica, ainda, redefinir a natureza do próprio ofício do tradutor, que, para Haroldo de Campos, seria “um exercício de intelecção e, através dele, de crítica ao vivo” (CAMPOS, 1992, p.44, grifo meu). Delimitando-se desse modo a natureza da prática de tradução, abre-se imediatamente uma outra perspectiva também para a prática crítica que a tem como objeto. Agora não mais como uma prática burocrática, simplesmente contábil – como inventário dos desacertos –, mas sim como uma prática que muito se aproxima da própria Crítica literária, no sentido do que Berman define como uma “Crítica, com C maiúsculo”, cujas bases teriam sido firmadas no contexto do romantismo alemão, sobretudo por Friedrich Schlegel – para Berman, o fundador da crítica moderna –, e cujo paradigma seria integrado por figuras como Walter Benjamin, Maurice Blanchot, Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luis Borges, entre outros (BERMAN, 1995, p.13, tradução minha). A uma prática crítica, concebida nesses termos, caberia realizar, segundo Berman, a “análise rigorosa de uma tradução, de seus traços fundamentais, do projeto que. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(5) Mauricio Mendonça Cardozo. 105. lhe deu origem, do horizonte em que surgiu, da posição [crítica] do tradutor” (idem, p.13f., grifo meu). Em outras palavras, ao reconhecer a natureza crítica da prática tradutória, Berman aponta para a necessidade de transcenderem-se os limites do simples cotejo e da crítica meramente impressionista e judicativa. Desse modo, o teórico francês estabelece um novo espaço de ação para a crítica de tradução, entendendo essa prática no sentido schlegeliano de uma crítica produtiva, mais preocupada em discutir o significado dos movimentos críticos implicados na tradução – e, com isso, por exemplo, apontar possíveis caminhos críticos ainda inexplorados pelas traduções, realimentando a própria dinâmica de produção de futuras traduções –, do que restringir-se meramente ao jogo de flagrar diferenças pontuais entre tradução e original. No entanto, dizer da tradução que ela é uma atividade de ordem crítica, logra dizer algo de um de seus atributos, mas ainda deixa em aberto a discussão em torno do que seja propriamente a tradução. E uma concepção de tradução como simples transferência de significados, como discutido anteriormente, não seria capaz de subsidiar nem um estatuto crítico para a prática tradutória, nem um espaço de ação para uma crítica produtiva de tradução. Assim, no sentido de se pensar uma concepção de tradução que possa dar sustentação à compreensão da tradução como atividade de ordem crítica, parte-se aqui do princípio de que a prática de tradução pode ser entendida como um movimento fundado num fazer relacional, na construção de uma relação (cf. CARDOZO, 2006, p.154f.; 2007a; 2009).. 3.. A NOÇÃO DE TRADUÇÃO COMO POIESIS DA RELAÇÃO É possível remontar tal modo de conceber a tradução à conferência “Sobre os diferentes métodos de traduzir”, proferida em 1813 pelo teólogo e filósofo alemão Friedrich Schleiermacher. (SCHLEIERMACHER,. 2001).. Nessa. perspectiva,. a. reflexão. de. Schleiermacher representaria um momento de sistematização de um novo paradigma no modo de se pensar a tradução, na medida em que ele não articularia mais sua reflexão exclusivamente com base nas variações dicotômicas da relação letra-espírito – prática recorrente na história do pensamento sobre a tradução, da Antigüidade clássica até princípios do século XIX –, mas o faria levando em conta, agora centralmente, o fato de que toda tradução é também um modo de equacionar a relação entre autor e leitor e, conseqüentemente, um modo de equacionar a relação entre duas obras, duas línguas, duas culturas.. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(6) 106. O significado da diferença: a dimensão crítica da noção de projeto de tradução literária. Nesses termos, entender a tradução como poiesis da relação2 significaria entender a prática de tradução como um modo de relacionar, de construir uma relação, de pôr em relação e, portanto, também como um modo de equacionar uma determinada relação. E se, na linguagem, diferenças e semelhanças não se dão a priori – de modo essencial ou monolítico –, mas, antes, manifestam-se apenas na relação, a partir da relação, a prática da tradução surgiria, assim, como ocasião e modo de equacionar a própria dimensão de alteridade, em suas figuras da diferença e da identidade. Sob esse ponto de vista, uma concepção dita essencialista de tradução tenderia a admitir uma única relação possível, pautada pelo princípio máximo da equivalência entre original e tradução – uma relação marcada pelo signo da totalidade, da completude –, situação em que o único projeto concebível de tradução seria aquele que primasse pela melhor realização possível desse ideal. Já uma compreensão da tradução fundada na noção de relação – abrindo espaço para sua compreensão como atividade de ordem crítica – implicaria entender a tradução como uma prática que tem em vista a construção de uma relação que seja, em alguma medida, representativa da visão crítica dos sujeitos envolvidos no processo tradutório. Nesse contexto, é preciso repensar tanto a noção de responsabilidade – como atributo da relação entre tradutor, autor e crítico – quanto a noção de projeto de tradução, que deixa de ser apenas um constructo ideal e utópico, passando a valer como arquitetura crítica de uma realização concreta da prática de tradução.. 4.. A NOÇÃO DE RESPONSABILIDADE Em “O decálogo da desconstrução: tradução e desconstrução na obra de Jacques Derrida” (LIMA; SISCAR, 2000), Marcos Siscar e Érica Lima sublinham, a partir de questões suscitadas pelo viés da desconstrução, o “caráter inevitável da tradução” como percurso singular de leitura e de escrita, que, para se realizar, não pode abrir mão nem da lógica da falta, nem da lógica do corte, da cisão – da decisão: “A desconstrução [...] procura dramatizar o caráter inevitável da tradução, num sentido mais amplo, isto é, o caráter inevitável da leitura e suas próprias exclusões” (idem, p.101f.). Voltando-se contra um certo modo de se compreender a desconstrução – que a acusaria de um pretenso relativismo e indeterminação –, os autores destacam a idéia de um aumento da responsabilidade do tradutor como implicação direta das discussões contemporâneas. 2 Para uma problematização da noção de tradução como poiesis da relação, vide os artigos “Ilóquio ou Por uma mecânica ética da tradução” (CARDOZO, 2007a) e “Tradução e o trabalho de relação: notas para uma Poiética da Tradução” (CARDOZO, 2009).. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(7) Mauricio Mendonça Cardozo. 107. promovidas a partir do momento em que se leva em conta a condição pós-moderna: “Os estudos recentes sobre as implicações da desconstrução na prática da tradução mostram [...] a tendência de se sublinhar uma espécie de hiper-responsabilização do tradutor” (ibidem, p.100, grifo meu). No final do artigo “Jacques Derrida, o intraduzível” (SISCAR, 2000), Marcos Siscar encaminha uma problematização dessa noção de responsabilidade, reformulando sua dimensão ética a partir do gesto que se orienta no sentido de uma resposta ao outro. Para Siscar: A responsabilidade não pode ser algo que se assume, simplesmente, equilibradamente, tomando sobre si ou para si a direção, a custódia ou o destino do outro (que supomos, no caso, fora de nós); [...] devemos lembrar que a responsabilidade não consiste apenas na apropriação mais ou menos respeitosa do outro [...]. A responsabilidade teria também algo de resposta, de atenção, ao chamado de um outro. Ela pode ser entendida como momento ético da tradução, como momento crítico no sentido da crise da escolha, assunto de fato pouco sublinhado e que tem conseqüências reais na prática da tradução. (idem, p. 68f.). Essa rediscussão da noção de responsabilidade vai ao encontro da problematização encetada também na tese Solidão e Encontro: prática e espaço da crítica de tradução literária (CARDOZO, 2004), onde Cardozo discute “uma noção de responsabilidade que pode ser entendida de modo um pouco diferente do que o sentido coloquial de ‘obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros’”. Para Cardozo, a noção de responsabilidade deveria ser entendida, nesse contexto, como “uma capacidade de responder ao Outro” (idem, p. 111). Em outras palavras, a noção de responsabilidade estaria fundada em uma capacidade ou, ao menos, em uma disposição de dar ouvidos ao Outro e de procurar responder ao seu apelo. Essa discussão redimensiona a noção de responsabilidade do tradutor e traz à luz a natureza crítica da prática de tradução. A relação do tradutor com o texto traduzido – que se ofereceria então ao leitor como um apelo, um chamado, uma demanda de atenção – não é nem pode ser fundada numa pressuposição de totalidade. Sua resposta apresenta-se, antes, como uma dentre inúmeras possibilidades e, portanto, como o resultado de um percurso singular. É nisso que se evidencia a condição de singularidade de sua prática, condição esta que representa justamente a sua dimensão crítica – o que não implica em pressupor um tradutor plenamente consciente e senhor absoluto de todos os seus atos. Tanto uma prática de tradução quanto uma prática crítica fundadas nessa noção de responsabilidade seriam, portanto, de natureza dialógica. Não no sentido de um diálogo que pressupõe idealmente o encontro com o outro – a compreensão total do dito, do chamado, do apelo –, enfim, não no sentido da efetivação ideal do face-a-face, mas sim, no sentido de uma prática discursiva que pressupõe tanto a abertura quanto a separação:. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(8) 108. O significado da diferença: a dimensão crítica da noção de projeto de tradução literária. uma prática que pressupõe uma disposição para a relação com o outro, mas não ignora nem sua própria condição de enclausuramento, nem uma certa condição de opacidade desse outro com quem nos relacionamos. Enfim, uma relação que se manifesta menos como uma linha que corta ou tange a outra num determinado ponto, e mais como uma assíntota, que tende a um ponto de aproximação, de encontro com o Outro, mas que nunca o alcança, ainda que se projete infinitamente em sua direção. Nesse sentido, tomando essa noção de responsabilidade como um imperativo ético que se impõe em sua prática, cabe ao tradutor, mas também ao crítico, assumir que traduzir significa entrar num jogo fundado na condição do dizível e do indizível, em que o dito é um domínio tanto do que se diz quanto do que se cala. Essa condição, que traz à luz a singularidade e a natureza crítica da atividade tradutória, impondo ao tradutor responsabilidades práticas e éticas, não faz mais do que tornar explícita a necessidade de uma reflexão crítica nos termos de um projeto de tradução.. 5.. A NOÇÃO DE PROJETO DE TRADUÇÃO A idéia de um projeto de tradução poderia dar a entender que se pressupõe aqui, meramente, uma relação linear e ideal, de causa e efeito, entre uma etapa anterior de projeto e sua conseqüente realização, a tradução. Seja ele entendido como algo implícito – como encadeamento de decisões (mais ou menos conscientes) no contexto do próprio ato tradutório –, seja ele entendido como algo explícito – como espaço de definições prévias, de estudo crítico num momento anterior à realização da tradução –, nenhum projeto de tradução, por mais que o entendamos como princípio fundador, matriz ou diretriz crítica, é capaz de prever, controlar ou garantir uma tomada plenamente consciente e consistente de decisões ao longo de todo o processo de tradução. Em outras palavras, a noção de projeto de tradução convive, aqui, com o pressuposto de que nenhum processo tradutório abolirá o acaso, nem eximirá o tradutor das dimensões imponderáveis de uma prática discursiva que se inscreve dentro dos limites e das possibilidades de sua condição humana. Além disso, é preciso levar em conta também que, por mais que fosse desejável, nem sempre um projeto de tradução apresenta-se de modo sistematizado, seja para uso restrito do próprio tradutor, como esboço arquitetônico de sua prática, na intimidade de sua oficina de textos, seja para a informação do leitor, na forma de um paratexto que se oferece como carta de intenções. No entanto, por mais que as diretrizes críticas de uma tradução não encontrem um espaço de expressão na forma dispersa ou sistemática de. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(9) Mauricio Mendonça Cardozo. 109. notas, prefácios etc., toda tradução se funda num conjunto de decisões que instaura a própria ordem crítica dessa prática discursiva. É essa natureza crítica da prática tradutória que a noção de projeto de tradução procura aqui sintetizar e enfatizar. Nesse sentido, à crítica de tradução caberia – para além de realizar o seu tradicional inventário de diferenças e semelhanças, fundado exclusivamente numa lógica da perda e do ganho – depreender, da leitura da própria tradução, bem como do cruzamento de toda a sorte de informações de que se puder valer, o movimento crítico que, de seu ponto de vista, seria constitutivo de um projeto de tradução, ou seja: a matriz crítica, o conjunto de decisões que possa ter orientado a proposta de tradução em questão. Mas e o que dizer das dificuldades que tais condições parecem impor à prática da crítica de tradução? Em que medida um crítico seria capaz de delinear ou esboçar tal projeto? Antes de mais nada, é preciso considerar que esse modo de compreender a tradução – que transcende uma concepção mimética, segundo a qual o único horizonte possível da tradução seria o de tornar-se o próprio original – demanda também um modo especial de leitura da tradução. Segundo o teórico francês Antoine Berman, não estamos acostumados a ler uma tradução enquanto tal: portanto, é preciso, antes, “aprender a ler uma tradução” (BERMAN, 1995, p. 65, tradução minha), não como jogo dos sete erros, nem como obra que apenas faz as vezes do original – dando-nos a ilusão de que ocupa o seu lugar –, mas sim, como um texto que, a um só tempo, diz o original e diz do original, além e apesar daquele texto que lhe serviu de partida. Assim, parte-se aqui do princípio de que os limites e as possibilidades desse movimento de leitura crítica são da mesma ordem e natureza que os da própria crítica literária. As dificuldades envolvidas na discussão e no esboço de construção do projeto de uma determinada tradução não seriam, quanto a sua natureza, de todo diferentes, por exemplo, das questões pertinentes à discussão do projeto poético da obra de um determinado autor. É verdade que, excetuados os casos de obras programáticas, concebidas no âmbito de um determinado programa ideológico ou estético, talvez fosse mais adequado, no caso da crítica literária, pensar a noção de projeto como algo implícito, ou seja, não como um arcabouço pré-concebido, que serviria de diretriz da produção poética do indivíduo, mas sim, como algo que, para o poeta ou escritor, constrói-se ao longo de sua trajetória e que, para a Crítica, é sempre objeto de uma construção a posteriori. Em outras palavras, para a crítica de tradução – bem como para a crítica literária –, não se trata de delinear e discutir o projeto do tradutor propriamente dito, mas sim, de Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(10) 110. O significado da diferença: a dimensão crítica da noção de projeto de tradução literária. construir aquilo que ela, a partir de uma perspectiva que lhe seja própria, entende como sendo uma leitura válida do projeto crítico da tradução em questão. Também para a Crítica, trata-se de fazer um percurso singular e, a partir disso, de propor caminhos que se ofereçam à discussão. A concepção de projeto que fundamenta a noção de projeto de tradução proposta neste trabalho remonta ao princípio romântico do fragmento. Distancia-se, portanto, de um ideal de completude e sistematicidade e aproxima-se do princípio fundamental do fracionamento (cf. SUZUKI, 1997), de uma unidade que só se estabelece na tensão de partida em que o indivíduo – o não dividual, o indiviso, o indivisível – é, ao mesmo tempo, uma parte, um pedaço, fração, fratura ou fragmento de si mesmo. Para Friedrich Schlegel: Um projeto é o germe subjetivo de um objeto em devir. Um projeto completo teria de ser ao mesmo tempo inteiramente subjetivo e inteiramente objetivo, um indivíduo indiviso e vivo. Segundo sua origem, inteiramente subjetivo, original, somente possível justamente nesse espírito; segundo seu caráter, inteiramente objetivo, física e moralmente necessário. [...] O essencial é a capacidade de ao mesmo tempo idealizar e realizar imediatamente os objetos, de os complementar e em parte executar em si (SCHLEGEL, 1997, p. 50).. Em outra passagem, Schlegel destaca os limites e possibilidades de operacionalização dessa lógica do fragmento3: “Para entender alguém que se entende somente pela metade, se tem primeiro de o entender por inteiro e melhor do que ele mesmo, mas então também apenas pela metade e exatamente tanto quanto ele mesmo” (SCHLEGEL, 1997, p.128). A relativização de Schlegel explicita a impossibilidade da compreensão do todo. Ainda assim, o olhar crítico constrói o outro como unidade, como totalidade; e é logo relativizado pela própria condição de indivíduo fragmentado, tensionando-se entre a força propulsora do olhar crítico totalizante e a força de retenção da condição fragmentária, numa espécie de dialética do fragmento. Portanto, a tradução – bem como a leitura, a criação literária e a crítica – não estaria numa condição diferente de toda e qualquer outra prática de significação. Daí não caber discuti-la a partir de uma perspectiva de inferioridade ou de superioridade, numa relação de valor hierárquico com a obra dita original, mas sim, como fragmento representativo de uma visão crítica da obra, visão esta que, por sua vez, é parte, também, do próprio objeto da crítica de tradução. No Brasil, a noção de projeto de tradução, como diretriz estética e crítica de uma proposta de tradução, é utilizada, por exemplo, por Haroldo de Campos em seu já citado ensaio “Da tradução como crítica e como criação” (CAMPOS, 1992) – apresentado como. 3 Na verdade, um princípio idealizado, construído e partilhado também por outras figuras de destaque do romantismo alemão, entre eles Novalis, August Schlegel (o irmão mais velho de Friedrich Schlegel) e Schleiermacher.. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(11) Mauricio Mendonça Cardozo. 111. conferência numa primeira versão em 1962 –, em referência à prática de tradução de Odorico Mendes: No Brasil, não nos parece que se possa falar no problema de tradução criativa sem invocar os manes daquele que, entre nós, foi o primeiro a propor e a praticar com empenho aquilo que se poderia chamar uma verdadeira teoria da tradução. Referimonos ao pré-romântico maranhense Odorico Mendes (1799-1864). [...] Odorico Mendes [...] soube desenvolver um sistema de tradução coerente e consistente, onde seus vícios (numerosos sem dúvida) são justamente os vícios de suas qualidades, quando não de sua época. Seu projeto de tradução envolvia desde logo a idéia de síntese [...], seja para demonstrar que o português era capaz de tanta ou mais concisão do que o grego e o latim, seja para acomodar em decassílabos heróicos, brancos, os hexâmetros homéricos; seja para evitar as repetições e a monotonia que uma língua declinável [...] ofereceria na sua transposição de plano para um idioma não-flexionado (idem, p. 38, grifo meu).. Nesse mesmo texto, ao referir-se a sua tradução de Maiakovski para o português, Haroldo de Campos estabelece também uma relação entre a prática de tradução e a idéia de um projeto, no sentido do estudo crítico do texto de partida, afirmando que teria realizado “o exercício da tradução [...] tendo em vista sempre o projeto e as exigências do texto maiakovskiano” (ibidem, p.45, grifo meu). No mundo anglófono, Lawrence Venuti, ao discutir a sua proposta de tradução para o inglês das Fantastic Tales, do escritor italiano I. U. Tarchetti (VENUTI, 1998, p.13ff.), refere-se constantemente ao seu projeto de tradução, que se apresenta como um “projeto minorizante”, fundado ideologicamente como uma atitude de resistência às tendências homogeneizantes da tradição anglo-americana. Ainda que fundado numa diretriz ideológica, esse eixo crítico desdobra-se textualmente em suas decisões mais pontuais ao longo de todo o processo de tradução. Em síntese, podemos dizer que o eixo de um projeto de tradução pode se fundar tanto numa questão de caráter propriamente crítico-literário – no sentido, por exemplo, de uma tradução fundada numa proposta de releitura da obra – quanto em questões de caráter editorial – no caso de edições críticas que implicam o próprio estabelecimento do texto original –, de caráter político-ideológico – como na proposta de Venuti –, de caráter ético – como na proposta de tradução anti-etnocêntrica de Berman –, de caráter políticoformativo – no sentido da reflexão romântica sobre tradução no contexto da Bildung alemã –, de caráter estético-formativo – no sentido do paideuma poundiano –, entre outras. Não se trata, portanto, de uma novidade: ainda que nem sempre seja explicitada como tal, é comum encontrarmos em textos críticos e teóricos, bem como em paratextos que acompanham a publicação de obras traduzidas – ensaios, apresentações, prefácios, posfácios, notas de rodapé, notas liminares, etc. –, uma preocupação com o delineamento de uma diretriz crítica para a prática de tradução, o que muito se aproxima disto que aqui sintetizamos em torno da noção de projeto de tradução. É o que ocorre, por exemplo, no ensaio “Cinco e Meio”, de Ana Cristina César, em que a poeta e tradutora discute Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(12) 112. O significado da diferença: a dimensão crítica da noção de projeto de tradução literária. preliminarmente questões que lhe parecem pertinentes à compreensão crítica dos poemas de Emily Dickinson para, então, concluir: “Foram esses os limites que estabeleci para a fidelidade da minha tradução” (CÉSAR, 1999). Ou a exemplo, ainda, do que Haroldo de Campos, de modo um pouco mais explícito, apresenta em seu post scriptum intitulado “Transluciferação Mefistofáustica” (CAMPOS, 2008), em que o tradutor, ao discutir criticamente a proposta de tradução de algumas passagens do segundo Fausto de Goethe, define, assim, o horizonte de sua prática: “[...] chegar ao poema transcriado como reprojeto isomórfico do poema originário” (idem, p.181, grifo meu).. 6.. PROJETO DE TRADUÇÃO COMO ESPAÇO DA CRÍTICA DE TRADUÇÃO LITERÁRIA Parte-se aqui do princípio de que uma perspectiva crítica que leve em conta a tradução literária exclusivamente sob o ponto de vista tradutório – no sentido, por exemplo, de tratar a tradução literária apenas como texto traduzido e não como texto literário – tanto deixaria de explorar relações fundamentais e constitutivas que essa tradução instaura (e que fazem dela, numa determinada comunidade, uma tradução literária) quanto deixaria de dialogar com as instâncias para as quais essa tradução tem uma especificidade enquanto objeto literário. Do mesmo modo, uma perspectiva que olhe para a tradução literária exclusivamente sob o ponto de vista literário – no sentido, por exemplo, de referir-se ao texto traduzido como se tivesse em mãos o próprio texto original, sem reconhecer uma instância de tradução como produtora do texto em questão, ou seja, sem dar ouvidos ao que o tradutor cala e diz dos seus caminhos e sem considerar o fato de que o texto analisado é resultado de uma prática de ordem crítica, que equaciona diferenças lingüísticas, culturais, literárias, ideológicas, e assim por diante – enfim, uma perspectiva assim tanto deixaria de explorar as relações que fazem desse texto uma tradução, quanto deixaria de dialogar com as diferentes instâncias integrantes do espaço complexo de relações que se instaura a partir da prática tradutória. Não se trata de esboçar, aqui, perspectivas para uma crítica ideal, como um movimento capaz de apontar a totalidade das relações ou de dialogar com e dar respostas a todas as instâncias pertinentes à crítica de tradução literária. Trata-se apenas de chamar a atenção para a importância de se levar em consideração um leque de relações que é constitutivo do objeto enquanto tal e que nem sempre é devidamente considerado pela crítica.. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(13) Mauricio Mendonça Cardozo. 113. Nesse sentido, desconsiderar o leque de relações que faz da tradução um objeto literário seria o mesmo que desconsiderar o próprio objeto em sua dimensão literária. Uma crítica da tradução de um soneto de Shakespeare, por exemplo, que se referisse à tradução exclusivamente sob uma perspectiva que ignora o fato de que seu objeto, para além de ser um texto, propõe-se também como um texto literário, não conseguiria dar respostas às instâncias para as quais esse texto é também um poema de Shakespeare. Nesses termos, a crítica de tradução literária parece traduzir-se numa prática orientada, ao mesmo tempo, por uma dupla perspectiva: uma perspectiva crítico-literária e uma perspectiva crítico-tradutória (cf. CARDOZO, 2007b, p.221; 225). Essas duas perspectivas não representam duas partes ou duas etapas da prática crítica. Constituem, antes, dois focos de atenção de um mesmo olhar, voltados para aspectos distintos, mas indissociáveis, de um determinado objeto. Na qualidade de perspectivas da relação (a críticoliterária e a crítico-tradutória), essas duas visadas estão intimamente relacionadas, na medida em que, no caso da tradução literária, a primeira delimita o espaço de ação da segunda, assim como a segunda pode ser entendida como o espaço possível de realização da primeira.. 7.. A CRÍTICA DO PROJETO DE TRADUÇÃO: UMA PERSPECTIVA CRÍTICOLITERÁRIA Trata-se aqui de uma perspectiva que procura explorar as relações críticas que norteiam o projeto de tradução. Nessa perspectiva, a crítica de tradução literária, como já mencionado anteriormente, aproxima-se da própria crítica literária, tanto do ponto de vista das suas possibilidades e objetivos, quanto do ponto de vista de suas limitações – sem, no entanto, confundir-se com ela, uma vez que a crítica de tradução literária, à diferença da crítica literária, levaria também em conta as especificidades do seu objeto enquanto tradução. Essa perspectiva crítico-literária tem em foco o projeto de tradução e, nesse sentido, a delimitação crítica do espaço de ação do tradutor. Encontramos um exemplo pontual dessa delimitação crítica na tese de doutoramento intitulada Tradução e significância nos Caligramas de Apollinaire: o espaço gráfico, o metro e a textura fônica, em que Álvaro Faleiros (2003) faz uma longa e profunda análise dos princípios rítmicos e métricos do francês e do português, com o intuito de definir um padrão formal para a sua tradução dos Caligramas – e o faz não apenas para a sua tradução, na medida em que essa parte de sua reflexão poderia ser válida também. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(14) 114. O significado da diferença: a dimensão crítica da noção de projeto de tradução literária. para se pensar outros projetos de tradução do verso francês para o português. Faleiros sintetiza o seu trabalho nos seguintes termos: Foi feita [...] uma análise histórica, formal e lingüística do ritmo do octossílabo francês e foi proposta uma maneira de traduzi-lo de acordo com os princípios rítmicos e retóricoformais do português, o que me levou a optar pela redondilha maior, diferentemente do que se pratica normalmente. Já em relação ao alexandrino, a reflexão sobre os aspectos lingüísticos e retórico-formais, levou-me a preferir reescrever os poemas em dodecassílabos também em português. Dessa forma foi possível apresentar, para os dois metros regulares presentes na obra [de Apollinaire], parâmetros que podem orientar futuras traduções. (idem, p. 201). Ao tomar essas decisões com base em seu estudo crítico, aqui apenas sintetizado em linhas gerais, Faleiros delimita, portanto, um espaço de ação para o tradutor da obra em questão: a redondilha maior e o alexandrino. O projeto de tradução define, nesse caso, um aspecto formal relevante a ser observado ao se traduzir a obra de Apollinaire para o português do Brasil. No entanto, um projeto de tradução fundado em uma matriz crítica poderia surgir também a partir de outras formas de delimitação do espaço de ação do tradutor, privilegiando ou contestando uma determinada tradição de leitura da obra, objetivando um determinado modo de inserção da obra no contexto da cultura de chegada, visando, enfim, à construção de um diálogo específico que represente os interesses figurados na leitura do tradutor ou do corpo editorial responsável pelo projeto. A interdependência dos planos de relação da tradução literária tem uma implicação direta para a crítica de tradução, na medida em que o plano das relações crítico-literárias não só estabelece o espaço de ação da prática tradutória, como também o próprio espaço de ação da crítica. Numa perspectiva crítico-literária, caberia ao crítico discutir o trabalho do tradutor sob o ponto de vista de seu percurso crítico-argumentativo até chegar às opções nomeadas acima. No caso da proposta de Faleiros, um dos movimentos críticos possíveis nesse plano poderia se dar, por exemplo, no sentido de se colocar em discussão os argumentos que sustentam sua defesa da redondilha maior para a tradução dos octossílabos de Apollinaire. É importante observar que o exercício crítico, nessa perspectiva crítico-literária, ainda não teria centralmente em foco o texto traduzido em si. Este seria o objeto de uma perspectiva crítico-tradutória.. 8.. A CRÍTICA DO TEXTO TRADUZIDO: UMA PERSPECTIVA CRÍTICO-TRADUTÓRIA Trata-se aqui de uma perspectiva crítica que tem em vista a prática de tradução literária a partir das relações que a constituem propriamente enquanto tradução.. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(15) Mauricio Mendonça Cardozo. 115. Essa perspectiva se volta para as possibilidades de realização da tradução no espaço de ação delimitado pelo projeto de tradução. No caso do projeto de Faleiros para a tradução dos Caligramas de Apollinaire, esse espaço foi determinado a partir da definição de um aspecto formal dos poemas a serem traduzidos. Aliás, talvez seja interessante notar que é justamente o estabelecimento crítico desse limite, que instaura, no plano das relações tradutórias, o espaço de liberdade do tradutor. Uma vez discutido o projeto, cabe agora à crítica, numa perspectiva críticotradutória, discutir em que medida o tradutor realiza aquilo a que se propõe, tendo em vista centralmente, agora sim, o próprio texto traduzido. Nesse sentido, uma crítica hipotética que, a partir do simples cotejo entre o texto de Apollinaire e o texto de Faleiros, se limitasse a apontar, como aspecto negativo da tradução, o fato de que Faleiros troca octossílabos por redondilhas – partindo, talvez, do pressuposto irrefletido de que octossílabos devessem ser sempre traduzidos por octossílabos –, seria, do ponto de vista da visada crítica aqui discutida, uma prática que ignora a própria natureza crítica da tradução, que ignora o tradutor, como sujeito da prática de tradução, e toda a reflexão crítica que sustenta suas decisões. Este seria, portanto, um exemplo de prática crítica que não dá ouvidos4 ao que o tradutor diz dos seus caminhos ao dizer os seus caminhos, uma prática que não tem em vista o que o tradutor diz: quando diz e quando cala.. 9.. À GUISA DE CONCLUSÃO A proposta crítica apresentada aqui, fundada numa concepção de tradução como poiesis da relação e na noção de projeto de tradução, pretende evidenciar o caráter crítico da prática de tradução. É nesse sentido que esta reflexão se insere numa tendência do pensamento moderno que remonta a um modo de pensar a tradução presente desde o pensamento romântico alemão e cujos pressupostos se diluem em frentes distintas das mais diversas correntes de pensamento contemporâneo sobre linguagem, leitura, literatura e tradução. Essa tendência do pensamento moderno consiste, sobretudo, em resgatar a figura do tradutor de sua condição de infância – valorizando-se aqui o traço etimológico desse termo: de infância como “dificuldade de falar”.5 Essa condição de infância aproxima-se muito da imagem social do tradutor nos termos em que é perpetuada pelo senso comum,. Para uma discussão da visada ética da crítica de tradução, vide Cardozo (2004). O poeta Manoel de Barros também nos chama a atenção para essa acepção do termo em seu poema Ascensão: “Ausência da voz é infantia, com t, em latim” (BARROS, 2001, p. 41).. 4 5. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(16) 116. O significado da diferença: a dimensão crítica da noção de projeto de tradução literária. como se o tradutor fosse alguém que não tem direito à voz por não ser capaz de falar sozinho, por não ser capaz de falar por si mesmo. Sem menosprezar a tensão indissolúvel entre o silêncio e o dito, esta reflexão põe em causa o fato de que o tradutor tem voz. E diz, tanto ao dizer quanto ao calar, ainda que certas manifestações da prática crítica não tenham por hábito dar-lhe ouvidos, ainda que uma certa prática crítica não lhe conceda o direito à voz6, silenciando-o em sua própria condição de existência como sujeito tradutor: silenciando uma voz que se inscreve sempre de modo singular no espaço de relações instaurado pela prática de tradução e, nisso, entornando o caldo, destruindo a chance e o risco do mistério, carregando consigo o peso de silenciar tudo o que ainda possa ser dito.. REFERÊNCIAS BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro, BR: Record, 2001. BERMAN, Antoine. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris, FR: Gallimard, 1995. CAMPOS, Augusto de. As antenas de Ezra Pound. In: POUND, Ezra. ABC da Literatura, trad. por Augusto de Campos e José Paulo Paes, 3. ed., São Paulo, BR: Cultrix, 1977, p. 9-14. CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como crítica e como criação. In: Metalinguagem & outras metas. São Paulo, BR: Perspectiva, 1992, p. 31-48. ______. Transluciferação Mefistofáustica. In: Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo, BR: Perspectiva, 2008, p. 179-209. CARDOZO, Mauricio Mendonça. Ilóquio ou por uma mecânica ética da tradução. In: Tradução em Revista, n. 4. Rio de Janeiro, BR: PUC-Rio (on-line), 2007a. ______. Espaço versus prática da crítica de tradução literária no Brasil. In: Cadernos de Tradução (UFSC), v. XIX, 2007b, p.205-234. ______. e o mar vai virar sertão: anotações de viagem. In: STORM, Theodor. O centauro bronco. tradução e posfácio de Mauricio M. Cardozo. Curitiba, BR: Editora UFPR. 2006, p.153-163 ______. Solidão e encontro: prática e espaço da crítica de tradução literária. 2004. Tese (Doutorado) - FFLCH, Uniersidade de São Paulo, São Paulo, BR. ______. Tradução e o trabalho de relação: notas para uma Poética da Tradução. In: PIETROLUONGO, Márcia A. (Org.). O trabalho da tradução. Rio de Janeiro, BR: Contra Capa, 2009. CELAN, Paul. Von Schwelle zu Schwelle. Vorstufen – Textgenese – Endfassung. Tübinger CelanAusgabe, editada por Jürgen Wertheimer. Frankfurt, DE: Suhrkamp, 2002. CESAR, Ana Cristina. Cinco e Meio. In: Crítica e Tradução. São Paulo, BR: Ática, 1999, p. 383-398. FALEIROS, Álvaro Silveira. Tradução e significância nos Caligramas de Apollinaire: o espaço gráfico, o metro e a textura fônica. 2003. Tese (Doutorado) – FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, BR.. 6 A criança também tem voz, apesar de não lhe ser concedido o direito de expressá-la, uma vez que não é considerada responsável. A idade adulta implica, portanto, a responsabilidade: tanto no sentido genérico do termo, de arcar com as conseqüências de seus próprios atos, quanto no sentido específico empregado nesta reflexão, de ser capaz de dar ao outro uma resposta.. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

(17) Mauricio Mendonça Cardozo. 117. FRISCH, Max. Gesammelte Werke in zeitlicher Folge. v. II, 1944-1949. Frankfurt, DE: Suhrkamp, 1998. LIMA, Érica; SISCAR, Marcos. O decálogo da desconstrução: tradução e desconstrução na obra de Jacques Derrida. In: ALFA – Revista de Lingüística, v. 44, São Paulo, BR: Fundação Editora da UNESP, 2000, p. 99-112. POUND, Ezra. A Draft of XXX Cantos. Londres, UK: Faber and Faber, 1988. SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Tradução, apresentação e notas de Márcio Suzuki. São Paulo, BR: Iluminuras, 1997. SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre os diferentes métodos de tradução. In: HEIDERMANN, Werner. Clássicos da teoria da tradução, v. 1, Florianópolis, BR: UFSC, Núcleo de Tradução, 2001, p.25-87. SISCAR, Marcos. Jacques Derrida, o intraduzível. In: ALFA – Revista de Lingüística, v. 44. São Paulo, BR: Fundação Editora da UNESP, 2000, p. 59-69. SUZUKI, Márcio. A gênese do fragmento. In: SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos, tradução, apresentação e notas de Márcio Suzuki. São Paulo, BR: Iluminuras, 1997, p. 11-18. UERLINGS, Herbert (Org.). Theorie der Romantik. Stuttgart, DE: Reclam, 2000. VENUTI, Lawrence. The translator’s invisibility. Londresm UK e Nova Iorque, US: Routledge, 1995. ______. The scandals of translation: towards an ethics of difference. Londres, UK e Nova Iorque, US: Routledge, 1998. Mauricio Mendonça Cardozo Doutor em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São Paulo, USP. Período sanduíche em Universitat Leipzig (Karl Marx). Professor Adjunto da Universidade Federal do Paraná. Atua no curso de Bacharelado em Letras com Ênfase nos Estudos da Tradução e no Programa de Pós-graduação em Letras, na área de concentração dos Estudos Literários, com linha de pesquisa em Estudos da Tradução.. Tradução e Comunicação - Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 18, Ano 2009 • p. 101-117.

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