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Os Jovens e seus territórios: um estudo de caso acerca da sociabilidade de uma adolescente em cumprimento de Medida Socioeducativa

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Academic year: 2021

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Os Jovens e seus territórios: um estudo de caso acerca

da sociabilidade de uma adolescente em cumprimento

de Medida Socioeducativa

No presente texto, discutiremos a importância do território, compreendido como espaço de produções discursivas, na sociabilidade de jovens pobres envolvidos na criminalidade. Através de uma breve narrativa sobre um caso atendido no Serviço de Medidas Socioeducativas de Belo Horizonte, pretendemos pontuar as incidências de contingências excludentes em sujeitos sociais que já se encontram à margem e só consolidam, na opção pelo crime, este lugar de segregação. A busca pelo reconhecimento faz com que estes jovens ressignifiquem o espaço comunitário, utilizando-o na construção e no fortalecimento de identidades grupais e criando, muitas vezes, forças de resistência a uma ordem social e econômica marcada pela exclusão.

Bianca, 15 anos, mora em um bairro da zona norte da cidade de Belo Horizonte com sua mãe, duas irmãs e o padrasto. Aos sete anos fugiu de casa e começou a transitar, sozinha, ou com grupos de outros adolescentes, comandados por adultos aliciadores, por diversas regiões da cidade. Até que, em uma dessas passagens, cometeu um ato infracional que a fez chegar ao Serviço de Medidas Socioeducativas, com uma determinação judicial para cumprimento de Prestação de Serviços à Comunidade.

Quando se apresentou ao Serviço de Medidas para iniciar seu acompanhamento, a mãe da adolescente nos informou que esta era, até então, a primeira política pública que acompanharia sua filha.

Luciano Rodrigues Costa1 Ana Pereira dos Santos2

1Sociólogo pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Professor Adjunto da Universidade Federal de Viçosa.

2 Psicóloga e Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Viçosa.

Correspondência: Ana Pereira dos Santos

anacontato@yahoo.com.br C o sta, L .R . & Sa n to s, A. P .

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Uma queixa bastante pertinente da mãe, neste momento, é que apesar de toda trajetória de vida nas ruas, e de problemas com drogas, Bianca nunca tinha sido atendida pelo serviço de saúde, não havia recebido, portanto, acompanhamentos referentes à psiquiatria e psicologia, por exemplo, e mesmo a escola não existia na vida da adolescente havia oito anos. Importante salientar que o acesso ao sistema de garantia de direitos se dava, naquele momento, para esta adolescente, e como acontece com outros inúmeros jovens que chegam aos Serviços de Medidas Socioeducativas, através da Justiça, com todas as consequências de um acompanhamento deste caráter como a coerção, já que é obrigatória e pressupõe o acompanhamento da vida social do jovem, que tem ainda que prestar contas dos seus atos. Mas é também educativa-assistencial, porque garante aspectos de proteção, inserção comunitária, manutenção de vínculos familiares, da frequência à escola e inserção no mercado de trabalho.

Vários relatos de Bianca nos chamaram a atenção, entre eles o histórico de violência doméstica, sua relação com o próprio corpo e com o sexo, as diversas ameaças de morte a que estava submetida, mas, sobretudo, provocou-nos muito o relato que a adolescente trazia sobre o território onde vivia com a família e sua relação com o tráfico de drogas daquele local. Foi preciso desenhar com Bianca o esquema de sociabilidade desta comunidade e compreender como ela se inseria neste circuito para que, só assim, pudéssemos intervir em relação ao seu processo de responsabilização. E, ainda, refletir sobre a importância destas interações nas quais Bianca se sentia sujeito, mesmo que sendo, a todo momento, fantoche de relações permeadas pela violência e pelos apelos consumistas que sustentam várias das trajetórias dos adolescentes que estão no tráfico de drogas.

Bianca morava na rua que concentrava todos os pontos de tráfico de drogas do seu bairro. Sua casa ficava no início dela, ponto privilegiado para controle e vigilância de uma entrada surpresa de policiais. Dois destes pontos eram chefiados por homens, os mais tolerantes e pacientes com as confusões arranjadas pela adolescente.

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Os outros dois estavam sendo chefiados por mulheres após a morte de seus companheiros. Estas eram mais intolerantes, violentas e ciumentas, autoras da maioria das ameaças proferidas a Bianca, como também outras agressões a pessoas da comunidade que as desobedeciam. Para concorrer com o bairro vizinho e conseguirem manter o sucesso das vendas, estes quatro traficantes tentavam conviver da melhor forma possível, evitando chamar atenção. Mesmo porque todos eles estavam sendo procurados pela polícia e sabiam que se fossem pegos, não conseguiriam sair da cadeia rapidamente.

Em meio a esta constante tensão quanto ao sigilo da identidade dos criminosos e a pressão para o sucesso das vendas, Bianca vivia o que demonstrava ser, para ela, os anos gloriosos da sua juventude. Avessa aos cálculos dos riscos de se viver no lugar onde se vendia a melhor cocaína de Belo Horizonte, caminhando também para o sucesso da qualidade do crack, Bianca transitava pelos grupos rivais querendo fazer muitos amigos, conseguir alguns namorados e se divertir, sem as habilidades necessárias para se viver num lugar regido pelos códigos do tráfico de drogas. Despreocupada, ou desabilitada, para aprender estes códigos, Bianca falava demais, não guardava segredos, não se fidelizava a apenas um líder e desobedecia a comandos importantes. Depois de uma ameaça de morte por ter se envolvido com o namorado de uma das traficantes, Bianca foi inserida no programa do Estado para proteção de adolescentes ameaçados de morte. Quando retornou do curto exílio, pois fugiu do lugar da proteção, comentou com a sobrinha de um traficante, considerada por ela como uma amiga, sobre o processo de inclusão no programa – cujos critérios exigem, entre outras burocracias, autorização judicial e a ida da adolescente ao Judiciário para ser ouvida, mas, além disso, absoluto sigilo sobre a inclusão e o lugar para onde foi encaminhada - mas, colocando-se em um risco eminente, completou dizendo que nesta passagem pelo Judiciário havia dito para o juiz algumas coisas que estavam acontecendo na comunidade. Neste mesmo dia, Bianca foi brutalmente agredida pelos traficantes e quase morreu queimada. Sua

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sorte foi que alguém correu para avisar a sua mãe que, acostumada com as confusões da filha, construiu um discurso convincente para negociar a vida de Bianca quando necessário. Neste discurso, sua mãe conseguiu convencer que a filha era louca, que fazia uso de remédio controlado (o que não era verdade) e que eles não podiam deixá-la entrar nestas confusões. A mãe suplicou que eles não aceitassem e não recrutassem a adolescente para nada. E, finalmente, conseguiu salvar a filha, devido sua própria fama de íntegra e trabalhadora.

Este teatro da mãe teve que ser usado tantas outras vezes durante nosso acompanhamento nas Medidas Socioeducativas. Como, por exemplo, quando Bianca brigou com o padrasto em casa e saiu para a rua chamando a polícia, na tentativa de esclarecer sobre seus direitos em relação à discussão familiar. Vigiada, rapidamente os traficantes relacionaram este encontro de Bianca com os policiais na rua com uma posterior apreensão de drogas no local. Ameaçada novamente de morte, conseguiu fugir e ficou por algum tempo fora de casa.

Indiferente aos esquemas de vigilância do território onde morava e às regras de conduta aplicadas aos moradores pelos traficantes, Bianca, naquele momento, demonstrava estar imersa nos valores pós-modernos que afetam a todos, mas, em especial, a juventude. Sua busca pelo prazer, que encontrava, principalmente, frequentando baile funks do bairro, se drogando e se relacionando sexualmente com meninos e meninas, se fortalecia, ou se iniciava, nos esquemas criminosos propostos pelo tráfico local. A “boca” mais importante da região alguns dias funcionava como casa agenciadora de adolescentes; Bianca era uma das meninas mais assíduas. Além disso, sua alienação nas figuras de poder do crime e a pressa por se tornar uma mulher popular fazia dela a melhor vendedora de drogas da rua. Em seus relatos, só conseguíamos saber o que ela era, e sobre seus projetos de vida futuros, a partir do que ela vivenciava neste território. Ser funkeira, ser quase uma traficante naquele comércio ilegal e ser popular, criavam condições de possibilidade para consumir, relacionar-se e, finalmente, existir.

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Bianca é um exemplo de um dos muitos adolescentes cuja construção do laço social e, consequentemente, seu processo de sociabilidade, se dá nos holofotes sedutores da vida criminosa e das subculturas que produzem, em oposição à invisibilidade perversa dos padrões segregadores de nossa cultura do consumo. Nossa hipótese neste texto se fundamenta, portanto, na ideia de que o território, com suas dimensões geográficas e afetivas, podem interferir diretamente na construção de trajetórias criminosas, se alimentado, muitas vezes, da ausência da interferência do Estado e do jogo de identificações e simbolismos, que desembocam no reconhecimento social e na fidelidade destes sujeitos a estas configurações de vida.

Sobre o conceito de território, Milton Santos diz:

É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto de análise social. Trata-se de uma forma impura, um híbrido, uma noção que, por isso mesmo, carece de constante revisão histórica. O que ele tem de permanente, é ser nosso quadro de vida. Seu relacionamento é, pois, fundamental para afastar o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco da renúncia ao futuro (SANTOS, 1994, p. 18).

E sobre os traçados das mobilidades urbanas nas periferias, Vera Telles comenta:

(...) Pois não se trata propriamente de ilegalidades, mas de uma crescente e ampliada zona de indiferenciação entre o legal e o ilegal, entre o lícito e o ilícito, que passa por todo o entramado da vida social, pelas práticas e suas mediações, pelos circuitos da vida urbana e as conexões que se fazem nas dobraduras da vida social, projetando uma inquietante linha de sombra no conjunto da vida urbana e suas formas políticas. Zona de indiferenciação que cria situações, cada vez mais freqüentes, que desfazem formas de vida e transformam todos e cada um em “ vida matável” (Agamben). Por isso mesmo, são nesses terrenos incertos entre o legal e o ilegal, no embaralhamento de suas fronteiras, que será preciso se deter. Ou melhor: será preciso se deter as práticas, mediações e conexões que se processam justamente nesses terrenos incertos que não se reduzem às fronteiras físicas (se é que elas existem) do que chamamos periferia, pois passam por todo o entrelaçado da vida

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social, pelas práticas e suas mediações, pelos circuitos da vida urbana e pelas conexões que se fazem nas dobraduras da vida social (TELLES, 2007, p. 10).

O espaço ganha sentido a partir dos significados dados pelas pessoas que nele transitam ou moram. Milton Santos fala de um uso que vai além do território como geografia, mas como aquele que também abarca em seus contornos, e afeta diretamente, as experiências de vida. Em suas determinações econômicas e na sua dinâmica política, o espaço ganha uma dimensão afetiva que pode promover o que Telles (2007) caracteriza como as fronteiras entre o ilegal, o informal e o ilícito. Vemos que, em espaços como o que vive Bianca, tudo parece fazer conexões com poder de definir, diretamente, a vida: o trabalho (que pode ser no tráfico local, mas, se não for, a figura de “trabalhador e honesto” tem repercussões); o lazer, que está diretamente ligado ao comércio e às regras de convivência; o reconhecimento social e a vida em comunidade, afetados, diretamente, pelas possibilidades que estão logo ao alcance das mãos. Podemos pensar, sobretudo, que a gestão das ilegalidades está inscrita nos agenciamentos práticos da vida cotidiana (TELLES, 2007, p. 01).

Territórios podem ganhar contornos espaciais-comunitários, com dimensões políticas, e o reforço de estereótipos e estigmatizações de importantes segmentos sociais do espaço urbano, constituindo novas redes de sociabilidade e o aparecimento das relações de poder que demarcam estes territórios (MISSE, 1997, p.12). Quando se trata, especificamente, do público jovem, pensar em redes sociais e relações de poder são fundamentais para que se compreendam os modos de vida juvenis e a escolha pelo crime, processos identificatórios muito presentes em jovens que vivem em comunidades violentas. Fazer a opção pelo crime como meio de sobrevivência ou de sociabilidade, ou mesmo os dois, faz com que este grupo estabeleça contratos sociais considerados de trabalho dentro de facções criminosas e compartilhem boa parte do tempo de ser jovem em relações permeadas pela violência, pela opressão e regulação, seja do próprio sistema

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totalitário, no qual o tráfico se organiza, no enfrentamento com a polícia, ou nas repetidas Medidas socioeducativas recebidas.

Em relatos de adolescentes atendidos nas Medidas Socioeducativas de Belo Horizonte, era possível observar que a apreensão pela polícia e o agravamento dos crimes os tornavam mais temidos na comunidade. Quando retornavam de uma internação, por exemplo, depois de cometer crimes hediondos (ameaça grave à vida), aumentavam, consideravelmente, as chances dos mesmos adquirirem no grupo criminal a que pertenciam, um cargo de maior importância. Os chefes eram sempre aqueles que colecionavam mortes e vinganças.

Zaluar (1994) considera que o indivíduo é um espelho do mundo, ao qual tem necessariamente que se submeter:

Neste caso, não resta outra saída para o que almeja a independência senão marginalizar-se, recusar o social como totalidade, na ilusão de que, pela transgressão, possa finalmente expressar sua singularidade e, portanto, sua liberdade. (ZALUAR, 1994, p. 53).

E a mesma autora ainda completa:

Forma-se entre os jovens, a partir de suas próprias experiências e da observação da vida de seus pais, uma visão negativa do trabalho, termo que equiparam à escravidão. Escravidão é trabalhar de “segunda a segunda” por irrisórios salários durante quase todo o tempo em que se está desperto. Escravidão é também submeter-se a um patrão autoritário que humilha o trabalhador com ordens ríspidas, que não o ouve nunca, que o vigia sempre. (...) Como fazê-los, portanto, admirar e tomar por modelo o pai que se curva a esta árdua rotina, à exploração e ao autoritarismo? Seus heróis são outros. Na falta de um movimento operário forte, onde saiam líderes trabalhadores com fama, eles se voltam para os eternos valentes da nossa cultura popular que desafiam, passam rasteira e se negam a este mundo do trabalho. (ZALUAR,1994, p. 113).

A escolha por uma trajetória criminosa pode se dar por diversos fatores e passar por processos identificatórios distintos. O território, suas incidências e suas implicações políticas, reunidas com outras

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motivações como, por exemplo, cita Alba Zaluar, a falta de grandes ídolos, que sustentem, para estes jovens, projetos mais afinados com a vida, são apenas alguns dos fatores que influenciam o que temos chamado de sociabilidade.

Existe uma significativa e concreta dificuldade de se transitar pela cidade. Aquelas com grande número de habitantes, transportes públicos como metrô e ônibus não estão, definitivamente, acessíveis aos adolescentes pobres, cuja circulação se restringe ao espaço onde moram, como relatado por um adolescente de doze anos, já bastante conhecido no Serviço de Medidas Socioeducativas pela sua trajetória, e que nunca havia ido ao centro da cidade. Mas também não queria ir. Sair de sua comunidade e de junto dos seus iguais era ameaçador, pois o colocava vulnerável a outros códigos que não àqueles já dominados. Como não podem, portanto, circular por outros territórios que os provoquem do ponto de vista cultural, político, afetivo, entre outros, constroem, junto aos grupos sociais que convivem, espaços de resistência que se fortalecem como guetos que não dialogam, senão com aqueles considerados iguais, parceiros. É sabido que jovens com trajetórias de criminalidade são, em grande maioria, negros, pobres e com baixa escolaridade. Este conjunto de fatores fortalece para que estes meninos e meninas vejam em sua comunidade as possibilidades e os limites de sua existência.

Circunscrever os processos socializadores de um jovem envolve discutirmos instituições como a religião, a família, a escola, a mídia, a relação com os pares, entre outras. À luz dos valores pós-modernos, podemos observar que autoridades solidamente construídas passam a ser questionadas e saberes e lugares consolidados dão espaço para uma maior liberdade de ação dos indivíduos. Com isso, os principais espaços socializadores têm sido interpelados a se reposicionarem diante de uma juventude com modos de vida tão singulares. Como cita Setton (2010):

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Em outras palavras, não se sanciona uma regra de comportamento, não se obedece a uma autoridade por ser tradicional. As autoridades, sejam elas da tradição ou não, só se justificam a luz de sua razoabilidade ou poder coercitivo. Assim, o impacto das forças da modernidade contribui para repensar as relações institucionais, as autoridades e as formas de controle dos mais velhos e a negociação/ autonomia dos mais jovens. Em síntese, a reestruturação institucional e cultural pela qual passam as agências socializadoras força-nos a repensar as relações entre adultos e jovens. (SETTON, 2010, p. 75)

Podemos pensar que a crise das instituições socializadoras fortalece, e muito, outros espaços de organização juvenil, como, por exemplo, os ilegais. Em alguns casos a tomada de consciência da segregação faz com que os jovens construam respostas violentas que, muitas vezes, não extrapolam os limites do seu bairro. Se armar contra uma sociedade que não lhe confere visibilidade delimita, para este sujeito, algum lugar político na contemporaneidade? Quais as ressonâncias públicas de um discurso que se forma e se caracteriza pela singularidade de uma experiência que nasce a partir de uma posição de excluído, com precária potência de transformação?

Marcos discursivos ilícitos se legitimam socialmente para muitos jovens que, como Bianca, estão transitando por momentos cujos processos identificatórios se tornam extremamente importantes. Alimentado pela questão do trabalho, como uma categoria de sociabilidade relevante, o tráfico de drogas se encaixa em valores pós-modernos importantes e facilmente adotados pelos jovens, como a falta de projetos de longo prazo, acesso a bens de consumo e ampliação do status individual no grupo. Interessante observar que, com dinâmicas sociais transformadas, podemos notar que o que seria ilícito aparece como dimensão constitutiva das atividades e das rotinas familiares. O mundo do crime torna-se, portanto, parte da comunidade, e não seu oposto.

Estes grupos que organizam o crime na comunidade assumem o papel das forças de coerção que normatizam as regras de convivência nas favelas. Os traficantes são grandes articuladores sociais, estabelecendo

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não só regras de convivência adaptadas à realidade local, como também códigos restritos àqueles que para eles trabalham, determinando hierarquias e coesão. Quem pertence a este seleto grupo passa a dominar mais que os códigos comuns da sociabilidade da favela, mas também se distingue dos moradores que compõem a ordenação social daquele território. Esta distinção tem grande importância frente ao grupo de sociabilidade e ao sistema político no qual se organizam as comunidades.

Os marcos discursivos incidem, e mesmo se fortalecem, na organização territorial de uma comunidade. Esta organização não só delimita oportunidades e condições de acesso, como faz com que sujeitos sociais marcados pela exclusão consigam reconhecimento e possam partilhar experiências que os incluem, mesmo que equivocadamente. A política de Medidas Socioeducativas no Brasil, seja em meio aberto ou mesmo fechado, tem como um dos seus objetivos o esforço de problematizar, junto a esses jovens, não só o ato infracional em si e suas consequências na vida do adolescente e na vida pública em geral, como também construir junto a eles outros discursos que estejam afinados com a realização pessoal, a vida em comunidade e a construção do laço social.

Vale ressaltar que as Medidas Socioeducativas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade, como no caso que relatamos acima, está localizada no âmbito da assistência social, sendo um dos serviços existentes na média complexidade dessa política, compondo o quadro dos serviços dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS. Quando a assistência social assume essa tarefa, a questão se desloca unicamente do âmbito da segurança pública para que, intencionalmente, se promova o debate dos temas sobre violação de direitos e das mais diversas privações nas quais muitos dos jovens que chegam às Medidas se encontram.

O nível de complexidade na qual se encontra o serviço de Medidas Socioeducativas no âmbito do SUAS – Sistema Único de Assistência Social, exige que o atendimento seja direcionado a partir de

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acompanhamentos individuais, com foco na família, e com cuidado no que tange a flexibilidade nas ações protetivas. Nesse sentido, sustenta-se a proposta de um acompanhamento monitorado, a longo prazo, com vista à superação da situação na qual o adolescente se envolveu e que culminou em sua entrada o sistema de segurança pública. Com base nas diretrizes que regem a política de assistência social, não é um serviço que trabalha sozinho e de forma isolada dos demais dispositivos que compõe o sistema de garantia de direitos e a rede de serviços de proteção social da comunidade na qual está inserida a família do adolescente. A perspectiva de complementariedade das ações é uma condição para que se desenvolva o acompanhamento, levando, portanto, em consideração que, para o adolescente refazer suas escolhas, é preciso garantir acesso e permanência a um leque de serviços e programas das mais diversas naturezas, respeitando o interesse do jovem e a singularidade de cada história.

Outras normativas Federais como o SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, fortalecem e direcionam a política de atendimento do adolescente infrator. Lançado em 2006 e regulamentado pela Lei 12.594 de 18 de janeiro de 2012, esse aguardado documento materializa algumas diretrizes importantes no acompanhamento como a individualização do atendimento, evitando assim a massificação e a generalização das ações, formas de gestão tão comuns na história das políticas públicas para a infância e adolescência no Brasil. Como também atualiza, no âmbito das Medidas Socioeducativas, a doutrina da proteção integral, legitimada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que defende as importantes particularidades dessa fase do desenvolvimento e a necessidade de promover uma atenção cuidadosa e peculiar para com nossos jovens.

Além de instituir a necessidade de projetos políticos-pedagógicos para as instituições que fazem a gestão das Medidas Socioeducativas, o SINASE estabelece o uso do PIA – Plano Individual de Atendimento do Adolescente para que se individualize toda e qualquer ação junto

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ao adolescente. O PIA, como noz diz o documento, não pode ser utilizado, em momento algum, de forma burocrática, funcionando unicamente como mais um formulário no dia a dia do acompanhamento do adolescente. Construído junto com o jovem e com sua família, o Plano é um recurso importante para direcionar técnicos, o próprio adolescente assim como sua família na perspectiva das mudanças necessárias para o rompimento com a trajetória infracional. Sua potência se faz na construção de possibilidades concretas e possíveis de serem realizadas, levando em consideração as dificuldades e projetos pessoais do adolescente, suas limitações pessoais ou mesmo de acesso à cultura, a espaços de educação formal ou não-formal, ao atendimento à saúde, ao lazer entre outros.

No que tange a Prestação de Serviços à Comunidade, medida cumprida pela adolescente em questão nesse artigo, trata-se de uma das mais interessantes alternativas de responsabilização dos adolescentes autores de atos infracionais. Além de proporcionar a possibilidade de localizarmos o adolescente num fazer concreto, afinado com seu modo de vida e sua linguagem, a medida de PSC auxilia na construção ou reconstrução dos laços sociais com a cidade e com outros grupos de convivência que não apenas os ligados a práticas criminosas. A PSC possibilita criar outros laços de pertencimento quando se bem adequada às aptidões e limitações do jovem. O trabalho a ser desenvolvido, longe de proporcionar alguma relação de servidão ou burocracia, pode apresentar condições de promover o desejo e as suas motivações em torno dos projetos de profissionalização. Além disso, a sua sociabilidade é desafiada quando precisa criar meios para se comunicar com outras pessoas do seu convívio a partir de outras linguagens e outros códigos de convivência. Se o ato infracional cristaliza um lugar de segregação, a medida de Prestação de Serviços à Comunidade pode promover, além do desenvolvimento da autonomia, oportunidades de invenção de um novo. A escolha em conjunto da instituição parceira na qual o adolescente prestará o serviço e o seu educador de referência na

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instituição garante condições de promover um espaço socioeducativo e potencializador.

Embora tenha um caráter impositivo, já que se trata de uma determinação judicial, o vínculo que pode ser criado entre o técnico que faz o acompanhamento e o adolescente pode permitir o que Garcia (2004) chamou de “modalização” da lei. Singularizar o que de antemão é generalizante, a determinação judicial a cumprir, a partir de uma escuta genuína do adolescente na construção de um “projeto”. O projeto para Garcia (2004) seria um impulso, um acontecimento novo que faz o sujeito abrir mão de suas representações habituais para se lançar em direção a uma nova produção na qual não se tem controle absoluto. Para o técnico que acompanha o adolescente, sua tarefa, diante dessas contingências, seria a de provocar uma passagem na tentativa de inserção no registro do simbólico (GARCIA, 2004) apostando assim na possibilidade de se faze laço social e fazer parte de uma sociedade tal como ela é organizada, em suas normas e leis. Não é possível pensar a adolescência, a juventude, sem levar em consideração a relação do sujeito com a cidade. O seu pertencimento enquanto cidadão de um espaço tempo, de uma história que é coletiva, de uma comunidade. No acompanhamento dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas o espaço tempo de viver, se divertir, trabalhar, estudar, amar está insistentemente na pauta do acompanhamento e deve guiar a escuta do técnico. Bianca nos apresenta isso muito bem.

A cidade e seus recortes territoriais contribuem na construção subjetiva e nos modos de vida dos sujeitos que ali habitam. Ítalo Calvino, no seu livro Cidades Invisíveis, descreve o que nos soa, na relação jovens-criminalidade-território, como um ponto nodal de alienação:

A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer.

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Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha oito horas por dia como minerador de ágatas ônix crisóprasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo. (CALVINO, 1990, p. 74).

Pertencimento versus segregação é o jogo travado por jovens que não estão, de antemão, pertencentes aos grupos que possuem visibilidade. O fato é que a forma como questionam parece colocá-los, cada vez mais, distantes de algum lugar legítimo de pertencimento. Nos territórios em que vivem pode ser o que é possível ser, naquele momento, sem ser interpelado em suas precariedades. A partir disso, reúnem-se, trocam experiências, travam guerras, sentem-se envolvidos em processos identificatórios que podem colocá-los na condição de sujeitos, ainda que, por isso, paguem um preço alto. Às vezes a própria vida, ou, quando sobrevivem, toda uma existência.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8.069 de 13 de julho de 1990. Secretaria de Direitos Humanos, 2002.

BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Sistema Nacional

de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Brasília: CONANDA,

2006.

BRASIL. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social, 2004.

CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

DAYRELL, Juarez; MOREIRA, Maria Ignez Costa; STENGEL, Márcia. Juventudes Contemporâneas: um mosaico de possibilidades. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2011.

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GARCIA, Célio. Clínica do Social. Belo Horizonte:Projeto, 2000. ______. Psicologia Jurídica: Operadores do Simbólico. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

MISSE, Michel. As ligações perigosas: mercado informal ilegal, narcotráfico e violência no Rio. In: Revista Contemporaneidade e

Educação, v. 1, n. 2, P. 93-116, 1997.

SANTOS, Milton. Território, Globalização e Fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1994.

TELLES, Vera da Silva; HIRATA, Daniel. Cidade e Práticas Urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. In: Revista

Estudos Avançados, São Paulo, n° 61, ano 21, 2007.

ZALUAR, Alba. Condomínio do Diabo. Rio de Janeiro: Revan, 1994.

Referências

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