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O CLUBE LIGA AFRICANA E SEU “INOLVIDÁVEL FUNDADOR” JOÃO ALABÁ: estratégias de ação política e redes de solidariedade no pós-abolição carioca (cc. 1900-1920)

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Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354 Vol. 5 | Nº. 2 | Ano 2019

Eric Brasil

O CLUBE LIGA AFRICANA E SEU

“INOLVIDÁVEL FUNDADOR” JOÃO ALABÁ:

estratégias de ação política e redes de

solidariedade no pós-abolição carioca (cc.

1900-1920)

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RESUMO

Esse artigo busca analisar as estratégias e experiências desenvolvidas criativamente por membros da sociedade carnavalesca Liga Africana, e especialmente através da ação de seu “inolvidável fundador”, João Alabá, assim como as limitações impostas pelas forças republicanas. Buscamos, portanto, compreender os fios que costuraram suas variadas redes de sociabilidade, entre as décadas de 1910 e 1920, através de dois conjuntos principais de fontes: as fontes policiais – majoritariamente a documentação referente ao licenciamento de clubes, registrado, avaliado e despachado pela chefia de polícia da capital da república, reunidos no fundo GIFI do Arquivo Nacional – e os periódicos da cidade, preservados e disponibilizados para consulta pela Biblioteca Nacional. Concluímos que a Liga Africana representava uma associação negra cujos membros elaboraram redes de sociabilidade e usaram a seu favor os mecanismos legais para legitimar e proteger espaços de autonomia festiva e religiosa durante anos de tanta repressão e controle ente as décadas de 1910 e 1920 e mobilizaram elementos culturais da diáspora africana presentes na cidade do Rio de Janeiro para fortalecer sua identidade.

PALAVRAS-CHAVE: Liga Africana; João Alabá; Pós-Abolição; Rio de Janeiro

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ABSTRACT

This article aims to analyze the strategies and experiences creatively developed by members of the Liga Africana carnival association, and especially through the action of its “unforgettable founder”, João Alabá, as well as the limitations imposed by the republican forces. We seek, therefore, to understand the threads that sewed their diversified social networks between the 1910s and 1920s, through two main sets of sources: the police sources - mainly the documentation regarding club licensing, which were analyzed by the police chief of the capital of the republic, gathered at the fund called GIFI of the National Archive – and the city's newspapers and magazines, preserved and made available for consultation by the National Library. We concluded that the Liga

Africana represented black association whose members developed

social networks, and used to their advantage the legal mechanisms to legitimize and protect spaces of festive and religious autonomy during years of such repression and control between the 1910s and 1920s and mobilized cultural elements from the African diaspora present in the city of Rio de Janeiro to strengthen their identity.

KEY-WORDS: Liga Africana; João Alabá; Post-Emancipation; Rio de Janeiro.

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br capoeira.revista@gmail.com

Editores

Marcos Carvalho Lopes marcosclopes@unilab.edu.br Pedro Acosta-Leyva leyva@unilab.edu.br

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Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 43

O CLUBE LIGA AFRICANA E SEU “INOLVIDÁVEL

FUNDADOR” JOÃO ALABÁ:

estratégias de ação política e redes de solidariedade no

pós-abolição carioca (cc. 1900-1920)

Eric Brasil*

Resumo:

Entre as várias centenas de agremiações carnavalescas fundadas na cidade do Rio de Janeiro entre 1900 e 1920, raras são àquelas que escolheram assumir referências ao continente africano em seus estandartes e títulos, ainda que muitas fossem formadas majoritariamente por afrodescendentes, como demonstrado por Brasil (2018) e Pereira (2017, p. 66–67). De um total de aproximadamente mil pedidos de licença analisados encontrei apenas a Liga Africana e os Africanos de Ramos com referência nominal à África.1 Justamente por essa excepcionalidade estatística, uma análise minuciosa das escolhas e estratégias desses grupos representa oportunidade real de nos aproximarmos das experiências de mobilização social e política de sujeitos negros e dos sentidos múltiplos de se associar à África no Pós-Abolição.

Portanto, esse artigo busca analisar as estratégias e experiências desenvolvidas criativamente por membros da sociedade carnavalesca Liga Africana, e especialmente através da ação de seu “inolvidável fundador”, João Alabá., assim como as limitações impostas pelas forças republicanas. Quais as redes sociais elaboradas por seus membros? Que relações estabeleceram com associações civis – tanto de trabalho quanto de lazer – e religiosas? Como construíram espaços de negociação e diálogo com políticos republicanos e as forças policiais e conquistaram o direito de existir como agremiação? Analisar os sentidos por trás dessas escolhas nos ajuda a compreender algumas possibilidades de criar, ampliar e reivindicar espaços de autonomia e experiências cidadãs para sujeitos sociais descendentes de africanos nas duas décadas após a abolição da escravidão na cidade do Rio de Janeiro.

O artigo está organizado em três tópicos. O primeiro pretende caracterizar as estreitas relações entre carnaval e religiosidades no Rio de Janeiro, mostrando as conexões entre o grupo carnavalesco Liga Africana, o candomblé e a igreja de Nossa Senhora do Rosário e São

* Professor de História da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, Campus

dos Malês, BA (UNILAB/BA). Contato: profericbrasil@unilab.edu.br. ORCID ID: http://orcid.org/0000-0001-5067-8475

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O clube Liga Africana e seu “inolvidável fundador” João Alabá

________________________________________________________________________________________________________________________________ Benedito; o segundo ponto analisa as tensas relações entre forças policiais, políticas e as práticas festivas e religiosas negras, destacando as estratégias do grupo Liga Africana para ampliar espaços de autonomia através da conquista de licenças. O terceiro, busca desvelar outros aspectos dessas redes de sociabilidade tecidas pelos membros da Liga, aproximando seu grupo de outras agremiações carnavalescas e operárias. Os três tópicos abordam temas já bastante explorados pela historiografia do pós-abolição, entretanto, nesse artigo, busco reelaborá-los à luz da atuação do presidente da Liga Africana e liderança religiosa da mais importante casa de candomblé do Rio de Janeiro à época: João Martins Alabá.

Para tanto, um conjunto amplo de fontes primárias foram coletadas, organizadas e analisadas. As fontes utilizadas podem ser divididas em dois grupos principais: as fontes policiais – majoritariamente a documentação referente ao licenciamento de clubes, registrado, avaliado e despachado pela chefia de polícia da capital da república, reunidos no fundo GIFI do Arquivo Nacional. Foram analisados e catalogados em um banco de dados a documentação referente a pedidos de licença de clubes e associações entre o início da república e 1917. Esse banco de dados contem os seguintes campos: nome do grupo carnavalesco, data do pedido, endereço da sede, tipo de licença, estatuto (sim/não), notação arquivística, número da imagem, observações, transcrever (sim/não). Este banco possui aproximadamente 1200 entradas.

A pesquisa nos periódicos foi realizada através da busca nominal na hemeroteca digital brasileira. A metodologia utilizada, desenvolvida durante a pesquisa de doutorado, buscou combinar a leitura continuada de periódicos ao longo dos dias de carnaval, assim como do mês anterior e posterior, entre os anos de 1900 e 1920, com a busca nominal pelos membros das diretorias das associações carnavalescas, os agentes do governo que apareceram nas fontes relacionadas e as associações compostas por membros majoritariamente negros, cruzando as fontes da imprensa, da polícia e do governo (presentes no banco de dados supracitado).2

Essa metodologia de História Digital, combinando ferramentas digitais de pesquisa com o rigor metodológico da pesquisa em história possibilitou o estabelecimento de conexões e redes sociais complexas, que seriam inexequíveis sem o uso do software de banco de dados (MS Access) e da Hemeroteca Digital Brasileira. As redes, seus sentidos e estratégias serão analisados a partir de agora.

Carnaval e religiosidade no Rio de Janeiro

1 Em pesquisa de doutorado financiada pelo Cnpq (BRASIL, 2016a). Essa documentação se encontra preservada no

Fundo GIFI do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

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Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 45 Nos anos de 1912, 1913 e 1914 encontrei requerimentos de licenças anuais de funcionamento do grupo intitulado Clube Liga Africana no Arquivo Nacional, nos maços referentes aos pedidos de licenças de associações civis para atuar na cidade Arquivo Nacional, GIFI 6C367). Nesses três anos, sua sede permaneceu inalterada, localizada na Rua Barão de São Félix, n. 174.

Apesar de só ter encontrado documentos no Arquivo Nacional referentes aos anos citados, ao buscar informações em outras fontes, pude encontrar a Liga Africana atuando publicamente no Rio de Janeiro entre 1911 e 1927. Aparecendo como licenciada para sair às ruas nos Carnavais entre 1911 e 1921 em vários periódicos da cidade do Rio. Nos anos de 1922, 1925, 1926 e 1927 o grupo aparece convocando os interessados para missas em homenagem a membros falecidos.3

No pedido de licença de 1912, constam as seguintes informações sobre o clube Liga Africana:

O Clube ‘Liga Africana’, com sede a Rua Barão de São Félix, 174, por seu presidente abaixo assinado, tendo seus estatutos aprovados por esta secretaria, mui respeitosamente, vem solicitar a V. Exc.ª a necessária licença para continuar a funcionar regendo-se pelos seus estatutos, no corrente ano de 1912. Confiado na Justiça do pedido Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1912.

João Martins – Presidente. (Arquivo Nacional, GIFI, 6C367. Grifos meus)

Segundo Roberto Moura, no número 174 da Rua Barão de São Félix estava localizada a casa de João Alabá de Omolu, conforme depoimentos de mulheres que conviveram na casa e foram lá iniciadas, como D. Carmen e Lili Jumbemba (Moura, 1983).4 Sua casa é reconhecida, tanto pela memória e história oral, quanto pela historiografia, como uma das primeiras casas de candomblé do Rio de Janeiro. Nela foram iniciadas inúmeras filhas de santo muito emblemáticas para a história do candomblé na cidade, entre elas Tia Ciata e importantes sambistas e carnavalescos eram seus ogans, como João da Baiana e Hilário Jovino (Conduru, 2010; Gama, 2011).

Ao ler essa fonte, logo surgiu a questão: a Liga Africana estaria sediada na casa de João Alabá, dividindo espaço com o candomblé? A confirmação da ligação desse grupo com a famosa casa de candomblé é explicitada na seguinte nota do Jornal do Brasil de 14 de dezembro de 1926:

Liga Africana João Martins (Alabá)

3 O Paiz: 28/01/1911, 14/02/1917, 2/01/1926, 12/01/1926. Jornal do Brasil: 04/04/1912, 22/02/1914, 13/07/1915,

06/02/1921, 01/04/1925. A Noite: 13/02/1915, 09/02/1917. Correio da Manhã: 10/03/1917, 15/02/1920. Fundação Biblioteca Nacional – seção de periódicos.

4 Algumas fontes jornalísticas coevas e o próprio repórter e cronista João do Rio, apresentam informações

contraditórias quanto à numeração da casa na rua Barão de São Félix. É bastante comum esse tipo de confusão numérica nos jornais do período.

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O clube Liga Africana e seu “inolvidável fundador” João Alabá

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O Club Liga Africana, fundamente desolado com o infausto passamento de seu

inolvidável fundador, presidente e benemérito João Martins (Alabá) fará celebrar depois

de amanhã, 5ª feira, 16 do corrente, 30º dia de seu passamento, no altar-mor da Igreja de

Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito, às 9 e ½ horas, uma missa pelo eterno repouso

de sua alma, convidando, por este meio a família, pessoas de amizade e conhecidos a assistirem a este ato religioso e caridade, confessando-se antecipadamente gratos. (Jornal do Brasil, 14/12/1926. P23. Grifos meus.)

Portanto, o presidente que assinou os pedidos de licença nos anos de 1912, 1913 e 1914, João Martins, era o próprio pai de santo João Alabá e foi a Liga Africana quem convocou missa após um mês de seu falecimento. Os membros da associação reafirmam a importância de João Martins para o grupo, marcando sua posição na memória coletiva como inolvidável fundador, presidente e benemérito. Essa descoberta abre novas possibilidades de entendimento das relações estreitas entre carnaval, casas de candomblé e as estratégias desses grupos formados por homens e mulheres negras para enfrentar as limitações racistas impostas pelas forças policiais e autoridades republicanas nas primeiras décadas do século XX.

Wlamyra Albuquerque, ao analisar os sentidos tecidos pelas performances carnavalescas dos grupos Embaixada Africana e Pândegos d’África, na cidade de Salvador, entre o final do século XIX início do XX, afirma que, ao se assumirem africanos no carnaval, esses sujeitos históricos, por um lado, “enfatizavam e subvertiam o lugar de marginalidade que lhes cabia na sociedade do período, ao passo em que podiam atualizar vínculos comunitários. Por outro lado, os negros que se ‘africanizavam’ poderiam não estar negando, talvez, até reafirmassem, uma identidade brasileira e baiana.” (ALBUQUERQUE, 2009, p. 184–185).

Em sua pesquisa, pândegos e embaixadores são estudados para além da simplificadora dicotomia assimilação/resistência. Essa visão dicotômica entende que certos grupos negros teriam aceitado as formas, estruturas e mesmo sentidos das práticas carnavalescas brancas, exemplificando, assim, um processo de assimilação perante ideais de branqueamento cultural (FRY; CARRARA; MARTINS-COSTA, 1988). Segundo Albuquerque, é preciso mirar nossa análise nas “mensagens cifradas que, oportunamente, eram traduzidas no interior da própria comunidade negra”. Assim seria possível pensar “como o passado africano estava compondo a experiência daqueles que lidavam com os estigmas do escravismo e os limites da cidadania negra” (ALBUQUERQUE, 2009, p. 200).

A Rua Barão de São Félix estava localizada no oitavo distrito da Gamboa – entre a atual Estação Central do Brasil, o Morro do Livramento e o Morro da Conceição, passando pelo Cais do Valongo e a Pedra do Sal. A região representava, segundo Maria Clementina Pereira Cunha, a parcela do centro do Rio de Janeiro mais densa, com maior concentração de negros e imigrantes pobres, “repleta de cortiços, candomblés, maltas de capoeira e habitada também pela parte da população egressa da chamada ‘diáspora baiana’” (Cunha, 2001, p. 165) e inúmeros clubes carnavalescos.

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Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 47 As oportunidades de trabalho oferecidas pela zona portuária e a média de preços mais baixos das moradias eram pontos fundamentais para a atração de migrantes vindos das mais variadas regiões do Rio de Janeiro, do resto do Brasil e de imigrantes europeus (Arantes, 2005; Carvalho, 2010; Cruz, 2017). A migração de trabalhadores negros para a cidade do Rio esteve muito calcada na recepção dos que chegavam por parentes já instalados na cidade (Costa, 2008). Muitíssimos vieram do Vale do Paraíba fluminense, das antigas fazendas de café, outros vieram das Minas Gerais e do Nordeste como um todo (Abreu; Agostini; Matos, 2016). Trouxeram suas tradições e experiências de trabalho, família e lazer. Contudo, para se estabelecer na cidade, foi preciso dialogar, ceder, tecer, elaborar novas formas de sociabilidade a partir das redes preexistentes nos emaranhados culturais do Rio de Janeiro.

Segundo relatos de cronistas e memorialistas, o baiano João Alabá teria chegado ao Rio da Bahia ainda no último quartel do século XIX, já iniciado no candomblé (Moura, 1983; Vagalume, 1933). A importância da sua casa para a formação do candomblé do Rio de Janeiro também vem sendo analisada por historiografia recente. Elizabeth Gama traçou as ligações religiosas e históricas entre terreiros da Baixada Fluminense e a casa de Alabá. Leandro Silveira analisou o papel destacado da atuação religiosa e social do pai de santo na formação do candomblé no centro do Rio, e especialmente na formação de territórios negros na cidade nas três primeiras décadas do século XX, e como sua memória tem papel de destaque em muitos terreiros fluminenses (Gama, 2011; Silveira, 2012).

É provável que em 1911 – quando encontramos a primeira fonte sobre a Liga Africana –, ele já estivesse na cidade há aproximadamente trinta anos. Casado com Deolinda Martins, João Martins faleceria no ano de 1926, cinco meses antes de sua esposa, completando meio século de moradia na cidade. No Jornal do Brasil de 31 de maio de 1927, a diretoria da Liga Africana publicava nota convidando “amigos e parentes” para missas em homenagem póstuma ao casal na Igreja de Nossa Senhora do Rosário.

Entre 1920 e 1927, nove missas seriam anunciadas nos jornais em nome da Liga Africana, homenageando membros da associação. Cinco delas na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Esta era tradicionalmente a igreja mais associada à população negra desde o período colonial e estabelecia importantes relações com associações negras e operárias no Rio de Janeiro e em várias outras cidades do país (Cord, 2003; Paiva, 2009; Ribeiro, 2010).

Um dos homenageados foi Domingos Joaquim Santa Cecília. Poucas são as informações que pude encontrar sobre esse “prezado irmão” da Liga Africana, cuja missa ocorreu em 03 de maio de 1920. Era filho de Wenceslau Joaquim Santa Cecília, baiano, pedreiro que faleceu de tuberculose em 1901, aos 47 anos (Jornal do Brasil. 23/07/1901. P.3). Domingos, além de membro da Liga Africana, foi eleitor municipal da 11ª pretoria (Gazeta de Notícias, 04/04/1903.

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O clube Liga Africana e seu “inolvidável fundador” João Alabá

________________________________________________________________________________________________________________________________ P.4) e assinou, como artista do Arsenal da Marinha, um abaixo assinado da “representação das classes operárias” em 1904, “contra a vacinação obrigatória” (Anais da Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro. Ed. 0005. 1904, pp. 62-65). O perfil desse membro da Liga Africana é revelador das relações sociais e políticas do grupo: filho de imigrante baiano, que sabia ler e escrever e tornou-se eleitor; atuou ativamente em momentos de tensão política da cidade, participando como representante das “classes operárias” nos debates sobre a vacinação obrigatória que desembocaria na Revolta da Vacina de 1904.

Personagens como esses, e a própria vida pública do Clube Liga Africana, apontam para a hipótese trabalhada por Erika Arantes de que é impossível separar a história social do trabalho da história social da cultura nesse contexto geográfico e temporal. Portanto, a separação entre operários (organizados em sindicatos, que fazem greves) e foliões (que fazem carnaval, festas, candomblés) é epistemologicamente insuficiente para analisar as experiências sociais desses sujeitos (Arantes, 2015: 27).

A missa de sétimo dia celebrada na Igreja do Rosário também possibilita entender melhor outras redes desses indivíduos. As Irmandades religiosas de homens pretos e pardos, especialmente aquelas ligadas a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia, Santo Elesbão, sobressaem na história do Rio de Janeiro com suas folias e reisados ao longo do período colonial e no Império. Tais práticas festivo-religiosas tiveram papel de destaque nas experiências negras para a formação de agremiações festivas, mas que também contemplavam sempre um espírito de solidariedade e identidade coletiva (Soares, 2000)

.

Segundo Nicolau Parés, a

Reconstrução, reinvenção e reinstitucionalização das religiões africanas no Brasil ocorreu não só como uma forma coletiva de resistência cultural (...), mas, em primeira instância, como uma necessidade para enfrentar o infortuito ou os ‘tempos de experiência difícil’, dos quais a escravidão é sem dúvida um dos casos mais extremos (Parés, 2006: 109).

A busca por curar e manter a fortuna frente o infortúnio, fez com que as práticas de trabalho assistencial e os rituais fúnebres tenham sido aspectos das tradições africanas mais recorrentes no Brasil. O que nos ajuda e entender as razões da “população negra [recorrer] às irmandades católicas que, além de outras vantagens e funções, garantiam, sobretudo, assistência aos enfermos e um enterro decente” (Parés, 2006: 110).

Desempenhando papel sócio-religioso, tais irmandades garantiam benefícios importantes na vida de escravos e libertos – como a realização de missas, sacramentos, orações pelos mortos, lugar para enterrar membros, acúmulo de dinheiro para a compra de alforrias, ou para socorrer membros necessitados, construir capelas, realizar procissões e festas para seus oragos (Karash, 2000: 130–133).

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Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 49 Assim, as irmandades religiosas, e especialmente àquela ligada à Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, ocupavam uma posição destacada na cultura negra carioca, aproximando catolicismo e práticas de matriz africana. A diretoria da Liga Africana homenageou seus membros com missas numa das igrejas mais intrinsecamente ligadas à experiência religiosa e festiva da população negra carioca, dentre eles o afamado pai de santo João Alabá. Essa aproximação cultural e política é importante para compreendermos como sujeitos negros na cidade do Rio de Janeiro, muitos dos quais migrantes de variadas regiões do país, percebiam os espaços de atuação já estabelecidos e buscavam ampliar suas redes e alianças recorrendo a símbolos culturais profundamente conectados à diáspora africana no Brasil.

Polícia, política, carnaval e religião: novos olhares sobre negociações urbanas

As licenças de funcionamento, de ensaio e para saída nos dias de carnaval, eram concedidas após uma breve investigação sobre os membros da diretoria e, quando possível, dos demais sócios, assim como era preciso saber onde era a sede do clube e recolher informações com o inspetor local.

É importante ressaltar que o Clube Liga Africana obteve licenças sucessivas para funcionar ao longo de mais de uma década, mesmo estando tão fortemente vinculado a uma casa de candomblé e com título fazendo referência ao continente africano, apesar da intensa repressão às religiões afro-brasileiras, como a historiografia vem demonstrando (Dantas, 1988; Maggie, 1992; Sampaio, 2009). As perseguições aos cultos de matriz africana basearam-se sobremaneira em argumentos científicos, acusando seus participantes de charlatanismo, feitiçaria. Seriam enquadrados em artigos da constituição de 1891 e do Código penal de 1890 relacionados à tranquilidade e saúde pública. As penas envolviam multas pesadas e prisão.

Segundo Edmar Ferreira Santos, em estudo sobre perseguição e resistência nos candomblés no recôncavo baiano, especialmente na cidade de Cachoeira, era comum ler na imprensa “a clara intenção dos jornalistas de desacreditar processos terapêuticos alternativos praticados por mulheres e homens negros que, aos olhos de alguns setores letrados, eram desqualificados” (Santos, 2009: 73–78). No Rio de Janeiro, entre 1889 e 1940, as religiões afro-brasileiras e seus praticantes foram alvo de adjetivos bastante parecidos com os usados na imprensa baiana: anomia, poluição, sujeira, vício.

Formalmente, o código penal de 1890 e a constituição de 1891 garantiriam a liberdade de culto. Na prática cotidiana, porém, a repressão se fazia sob a capa do discurso científico, com ares modernos, de combate a atos médicos ilícitos, mas explicitava uma faceta duradoura do racismo estrutural da sociedade brasileira (Possidônio, 2015).

A instituição estatal que atuava diretamente em contato com grupos populares, tanto comunidades religiosas quanto associações de lazer, era a polícia. O próprio funcionamento,

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O clube Liga Africana e seu “inolvidável fundador” João Alabá

________________________________________________________________________________________________________________________________ existência e legalidade destes, dependia das relações estabelecidas com as forças policiais ao longo da Primeira República. Até o início da década de 1910, havia uma multiplicidade de órgãos repressivos agindo na capital federal, o que, segundo Bretas, “contribuía para a constante indefinição do limite entre ação policial e arbitrariedade, criando uma zona cinzenta mal regulada, onde se moviam policiais e marginais em confrontos que se definiam em si, de forma extralegal” (Bretas, 1997: 36).

Além dessa constante indefinição das tarefas coercitivas, boa parte dos policiais que circulavam nas ruas, especialmente os praças da Brigada Militar, era oriunda das populações mais pobres, muitas vezes negros e mestiços, e atuavam próximos aos seus locais de moradia. Segundo Cristiane Myasaka, em pesquisa sobre casos de contravenção nas freguesias suburbanas, 57% das testemunhas em casos de contravenção eram policiais, e parte significativa desses residiam e trabalhavam na mesma região. Portanto, desempenhavam papel de testemunha pois conseguiam reconhecer facilmente os “vagabundos da área” (Miyasaka, 2008). Isso era fundamental para o exercício da vigilância policial no início da República.

Questionado sobre os membros da Liga Africana pelo Chefe de Polícia, o comissário da delegacia de polícia do 8º Distrito da Gamboa responde que não havia inconveniente em conceder a licença, “pois que esta ‘sociedade’ é composta de pessoas ordeiras” (Arquivo Nacional – GIFI, 6c367). A licença foi concedida, como já havia ocorrido em 1911. Nos dois anos seguintes, 1913 e 1914, estes fatos se repetem, com os mesmos pareceres das autoridades: a licença de funcionamento anual pode ser concedida, pois os membros do Clube seriam “pessoas idôneas e ordeiras”, nada constando “em desabono à idoneidade de sua diretoria e mais membros”.

Que o Chefe de Polícia – autoridade responsável por assinar o documento concedendo ou não a licença para os grupos carnavalescos –, e talvez o segundo delegado, não soubessem da existência da casa de candomblé no mesmo endereço da Liga Africana é possível supor, mesmo que seja pouco provável. Contudo, é pouco verossímil que o delegado do 8º distrito policial, assim como o comissário e o inspetor da área, desconhecessem o fato de a Liga Africana dividir o endereço com a casa de candomblé e ter João Alabá como presidente.

Não seria fácil ou tranquilo para um inspetor de quarteirão atestar contra a “idoneidade e boa conduta” dos membros da Liga Africana, por exemplo, sem que as relações pessoais cotidianas fossem estremecidas. As diretorias das sociedades sabiam muito bem os trâmites para a conquista de licenças. Sabiam que o Chefe de Polícia receberia informações sobre os membros e a sede do grupo através de relatos dos Delegados das Pretorias, que por sua vez receberiam informações dos inspetores e comissários, com auxílio dos praças que circulavam nas ruas. Logo, uma licença negada correspondia, geralmente, a acusações contra os membros da

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Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 51 associação feitas por agentes que conheciam e circulavam pelas ruas, quem encontrariam regularmente.

Por isso, é importante um breve olhar na atuação social do inspetor que avalizou a licença. Entre 1907 e 1913, Norberto Augusto Cordeiro, aparece como membro da Guarda Nacional, membro de centro republicano, membro de uma congregação evangélica e agente da força policial. Além disso, Cordeiro era membro do conhecido grupo carnavalesco Yayá Me

Deixe.5 Conhecia, portanto, as ruas da Gamboa como inspetor de polícia, ao mesmo tempo em

que entendia os espaços festivos e os personagens carnavalescos a partir de sua atuação no Yayá Me Deixe. O afamado pai de santo não seria um desconhecido para o inspetor, por conseguinte.

Outro dado relevante presente na documentação policial é o fato de os estatutos do Clube Liga Africana terem sido aprovados em anos anteriores. Isso demonstra que a sociedade soube produzir um documento escrito capaz de contemplar boa parte das exigências policiais. Estipulou preços de joias e mensalidades, nomeou diretoria, estabeleceu normas de conduta e objetivos para a associação, definiu o funcionamento das assembleias, as regras das eleições e os critérios para quem desejasse se tornar membro, pois só com a presença de todos ou da maioria desses elementos escritos, os estatutos em deferidos. Infelizmente, suas velhas páginas se perderam entre os papéis da polícia republicana e não temos como analisá-las com mais detalhes.

A conquista da licença de funcionamento anual para o Clube Liga Africana representava sua legitimação perante as forças policiais. Com a licença, a sociedade tinha direito a se reunir em sua sede, realizar assembleias, promover bailes e ensaios, angariar fundos através de mensalidades e joias, além de sair às ruas nos dias de Carnaval. Aquele pedaço de papel, assinado pelo Chefe de Polícia, tornava a casa de número 174 da Rua Barão de São Félix um espaço legalizado para a reunião de pessoas, desde que se mantivessem dentro do padrão de ordem aceito e tolerado pela polícia. Serviria, portanto, como garantia legal para a existência da própria casa de candomblé.

Tal hipótese é corroborada pelo relato de Vagalume de 1928, ao afirmar que Alabá teria sido o primeiro pai de santo a conseguir uma licença junto ao governo para o funcionamento de sua casa de candomblé. Francisco José Gomes Guimarães (1877-1947) era um homem negro que foi repórter e alcançou patente de capitão da Guarda Nacional. Foi ferrenho defensor do carnaval popular e durante a década de 1910 foi o principal elo da estreita relação entre o Jornal do Brasil e os grupos carnavalescos; era membro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, e da Associação Beneficente da Federação dos Homens de Cor do Brasil (Coutinho, 2006: 44; Efegê, 2007).

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O clube Liga Africana e seu “inolvidável fundador” João Alabá

________________________________________________________________________________________________________________________________ Coutinho afirma ainda que o compromisso político de Vagalume “era com a cultura popular de matrizes negras” (Coutinho, 2006: 99). Mantinha relações de amizade e admiração com o pessoal que frequentava a casa de Tia Ciata e no ano de 1933, publicou o livro “Na roda de Samba”, uma obra fundamental para a história do gênero e do Rio de Janeiro (Vagalume, 1933).

As alianças de Alabá com figuras importantes no cenário político institucional da cidade tiveram peso determinante na sua estratégia de preservação de autonomia religiosa e festiva. Segundo Vagalume, João Alabá, um “preto de estatura mediana cheio de corpo, bigodes grisalhos”, era consultado constantemente pelo senador Pinheiro Machado (A Crítica, 13/01/1929, p. 5)

O gaúcho Pinheiro Machado, nascido em 1851, foi senador pelo Rio Grande do Sul por 24 anos. Ao longo da década de 1900, firmou sua posição como grande liderança republicana e suas articulações políticas garantiram a vitória do Marechal Hermes da Fonseca no pleito contra Rui Barbosa em 1910. Líder do Partido Republicano Conservador, em 1915 foi eleito novamente senador, mas foi assassinado naquele mesmo ano com facada nas costas desferida por Francisco Manso de Paiva Coimbra, num crime cujas circunstâncias nunca foram esclarecidas. Pinheiro Machado controlava a Comissão de Verificação de Poderes do Congresso Nacional, o que lhe garantia um controle bastante eficaz dentro da máquina política da Primeira República (Santos, 2005).

Mesmo se a presença recorrente de tão ilustre político na casa de Alabá fosse um exagero literário de Vagalume, não temos porque duvidar do seu prestígio junto a poderosos círculos da cidade. Em conjunto de matérias especiais intitulada “Mistérios da Mandinga”, Vagalume afirma que os “candomblés” de Alabá na casa da rua Barão de São Félix reunia:

funcionários públicos de alta categoria, como o senador Irineu Machado, coronel Dammas Proença Gomes, secretário geral da Polícia; o Dr. Raul Autran, delegado de Polícia e depois subinspector do Corpo de Segurança; tenente Horário Pestana, despachante municipal; Dr. Monteiro Lopes, advogado; Dr. Nabuco de Freitas, medico: coronel Abílio de Santa Anna, do Estado Maior do Exército; o famoso tenente-capitão-major coronel Costa, o Costão, da Brigada Policial e muitos outros. (A Crítica, 13/01/1928, p.5)

A constante referência à presença de políticos renomados, policiais, profissionais liberais, membros do exército nos “formidáveis candomblés” de João Alabá, por um lado explicita o grande esforço de Vagalume em demonstrar a importância política e cultural das tradições afro-cariocas na formação da sociedade como um todo, projeto político do cronista que tinha o

5 O Século, 1907. Ed. 0312, p.2. O Século, 1907. Ed. 0167, p.3. Gazeta de Notícias, 1909 ed 0142, p.4. O Paiz,

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Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 53 carnaval e o samba como principais expoentes (Pereira, 2015). Por outro, reforça o argumento de Santos, de que “na luta contra a perseguição da qual foi vítima, o povo-de-santo se valeu de uma ampla rede de alianças com indivíduos de diferentes classes sociais” (Santos, 2009: 118). Mais do que isso, aponta para as relações políticas como uma realidade entre os grupos e associações religiosas e de lazer cariocas, contrariando, como afirmou Leonardo Pereira, todo o esforço do projeto de poder hegemônico em “afastar os trabalhadores cariocas da política” (Pereira, 2017, p, 85). Segundo ele, analisando os clubes dançantes da cidade e sua relação com importantes políticos republicanos, no mesmo período aqui estudado, os trabalhadores conseguiram articular nesses “espaços compartilhados de experiência redes de solidariedade que ajudaram a transformá-los em sujeitos relevantes do cenário político da capital federal, indicando a construção de um caminho de participação eleitoral que não se resumia ao exercício do voto” (Pereira, 2017: 85-86).

João Alabá, recorrendo tanto ao clube carnavalesco quanto, e principalmente, à sua posição de liderança religiosa, construiu essas redes de solidariedade e ampliou sua influência junto à políticos de renome, policiais e seus pares devotos e foliões.

A estratégia de conquistar a licença não é nova nem invenção do grupo de Alabá. Já em 1905, numa crônica de João do Rio, Benzinho Bamboxê, neto de Bamboxê Obitikô, recorre ao cronista-repórter carioca para pedir uma licença de funcionamento para seu afoxé: “Venho ver se V. S. me arranja uma licença. (...) para o Afoché (sic)” (Gazeta de Notícias, 02/03/1905. P1-2).6 Segunda Lisa Earl Castillo, é provável que Alabá tenha conhecido Bamboxê Obitikô, importante pai de santo africano, radicado na Bahia que teve papel destacado na formação de redes sociais, culturais, religiosas e comerciais conectando Salvador, Recife, Rio e Lagos (Castillo, 2016, 2017), assim como o seu neto Benzinho.

As aspirações pela licença da polícia, pelo reconhecimento público do direito de exercitar sua fé e/ou seu lazer e diversão seriam uma constante nas estratégias de mobilização negra nas Américas (Brasil, 2016b; Butler, 2017; Dewulf, 2018). No caso carioca, esse esforço visava a manutenção de um direito de organização e liberdade religiosa, que estava garantida pela constituição de 1891 mas era negada pelos mecanismos racistas da sociedade. A tessitura dessas redes, mesclando carnaval e religião, demonstra como os membros da Liga Africana, especialmente seu fundador, presidente e benemérito João Alabá, estavam cientes da necessidade da documentação escrita, produzida dentro de padrões aceitos pelas autoridades.

0001, p.12. Jornal do Commercio, 1913, ed. 260, p.1.

6Apesar das crônicas de João do Rio terem um peso racista evidente, e essa de 1905 não é diferente, como já afirmou

Juliana Barreto, “chama atenção que as ideias racistas e evolucionistas que permeavam parte de sua produção literária e jornalística ainda continuem tão pouco exploradas” (Farias, 2010: 253)

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O clube Liga Africana e seu “inolvidável fundador” João Alabá

________________________________________________________________________________________________________________________________ As tensões permaneceriam; as suspeitas e vigilância policial sobre a casa de João Alabá continuariam preocupando os que participavam do seu candomblé, sem dúvida. Contudo, a licença em nome da Liga Africana, associada às alianças construídas por João Alabá com figuras importantes da política institucional carioca, possibilitaria uma nova argumentação em defesa da autonomia de suas reuniões, o direito ao espaço para realizar suas práticas sem o incômodo da ação policial.

Expandindo redes de sociabilidade: festa e trabalho

A Liga Africana não restringiu sua atuação apenas à Rua Barão de São Félix e muito menos à casa de candomblé, como estamos vendo até aqui. Entre 1911 e 1927, seus membros estabeleceram redes de sociabilidades amplas, aproximando lazer, religião e política. Um elemento importante dos fios que costuram essas redes, são as alianças com outras associações carnavalescas e operárias.

Em anúncio do Jornal do Brasil de 13 de julho de 1915, encontramos:

S. D [Sociedade Dançante] Kananga do Japão – Senador Euzébio, n. 44

Hoje grande baile em benefício da LIGA AFRICANA, grande TOMBOLA a efetuar-se hoje 13 do corrente sendo um finíssimo guarda-chuva para cavalheiro e outro para Exmas. Damas.

Esse expediente era comum entre grupos recreativos e carnavalescos: associações “coirmãs” – num termo corrente da época – promoviam bailes em benefício, sobretudo, financeiro, umas das outras. A Sociedade Dançante Kananga do Japão, segundo Jota Efegê, possuía, em 1911, como diretor de harmonia ninguém menos que João Machado Guedes, o popular João da Baiana, que se tornaria famoso sambista carioca. Filho de tia Perciliana, ele frequentou desde jovem, com sua mãe, o terreiro de João Alabá, foi estivador na zona portuária da cidade em que nasceu em 1887 (Efegê, 2007; Arantes, 2015: 23).

É recorrente, tanto na historiografia quanto nas obras de memorialistas e cronistas, a presença de importantes personagens do mundo do samba e do carnaval carioca como ogans do terreiro de João Alabá. Além de João da Baiana, Hilário Jovino e Donga assumiram papel de destaque nas articulações do grupo (Efegê, 2007; Moura, 1983; Vagalume, 1933). Segundo Santos, os ogans desempenhavam um importante papel político para os terreiros. Eles acionavam as redes nos momentos de maior necessidade, articulavam alianças em diferentes espaços e se empenhavam em proteger os candomblés (Santos, 2009: 118).

Fundada em 5 de novembro de 1910, também na rua Barão de São Félix, n. 189, a Kananga do Japão teve nome inspirado na “moda nipônica” no carnaval daquela década (Efegê,

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Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 55 2007: 64). Após seu primeiro carnaval em 1911, ressurgiria em 1914 na rua Senador Euzébio 44, com o lema “Liberdade e ordem”. Sinhô era pianista comum nos bailes da sociedade, que durou até 1940.(Efegê, 2007)

No ano de 1915, o chefe de polícia já havia caçado a licença de funcionamento do Rancho Recreio das Flores, sob acusação de que seus frequentadores eram “ladrões, vigaristas e indivíduos que vivem exclusivamente de jogos de azar” (Arantes, 2015: 34). Segundo Roberto Moura, o Recreio das Flores era o rancho do sindicato “Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café” (Moura, 1995: 72 apud Arantes, 2015: 33). Tanto João Alabá quanto João da Baiana ficariam cientes dessa notícia e avivariam a lembrança da constante ameaça de ter seu direito de associação cassado pelo arbítrio policial. A “tombola” – um sorteio, uma rifa – e o baile promovidos pelo Kananga do Japão visava angariar fundos para o auxílio da Liga Africana. Seria, portanto, mais uma das ações articuladas entre o líder religioso e carnavalescos para a proteção e ampliação da autonomia das associações negras da cidade. Os laços identitários construídos no interior das agremiações de trabalhadores (Pereira, 2002: 427) aqui se apresentam numa rede mais ampla, formando identidades e solidariedades inter e intra associações formadas majoritariamente por homens e mulheres negras.

Os membros da Liga Africana também estavam presentes em manifestações operárias. Em 09 de maio de 1911, o clube comunicou à imprensa que compareceria à manifestação operária em homenagem ao aniversário do presidente da República Marechal Hermes da Fonseca. Dezenas de outros grupos também confirmaram presença, dentre eles, outras sociedades carnavalescas como o Flor do Abacate, Ameno Resedá e Caçadores da Montanha. A homenagem era em função do início da construção de uma vila operária em Manguinhos, cuja pedra fundamental teria sido lançada no dia 01 de maio daquele ano. A “manifestação operária”, com seu nítido caráter oficial, formou um grande préstito com 88 grupos distintos (O Paiz, 12/05/1911. P1).

Dentre eles, encontramos uma grande maioria de associações operárias – não apenas da cidade do Rio de Janeiro, mas também do interior do estado e mesmo de outras regiões do país –, grupos de estudantes, ajuda mútua, funcionários públicos, autoridades e grupos recreativos e carnavalescos (Brasil, 2018).

A presença da Liga Africana entre agremiações operárias, civis, festivas e estudantis de várias regiões do Brasil é a única referência ao continente africano dentre os 88 grupos presentes. Assim, o grupo demonstra publicamente seu apoio ao novo presidente, Hermes da Fonseca, que vinha num esforço para se aproximar dos trabalhadores, com discursos de valorização do dia 01 de Maio e com políticas habitacionais (Arêas, 1997). Com isso pretendem marcar posição naquele ato como parte de um projeto político entendido como uma possibilidade de diálogo

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O clube Liga Africana e seu “inolvidável fundador” João Alabá

________________________________________________________________________________________________________________________________ entre as classes operárias e o chefe do poder executivo. Assim como, buscavam ampliar e reforçar os laços das redes sociais e políticas preestabelecidas, tanto com outros grupos carnavalescos quanto com associações operárias. Faziam isso com uma performance que, segundo Vagalume, era a representação “do carnaval africano” (Diário Carioca, 12/02/1930, p.5).

Considerações finais

A estratégia de mobilização tanto do clube quanto de seu “inolvidável findador” aponta para o associativismo negro como um elemento fundamental no combate ao racismo e à exclusão política, social e simbólica da população negra na diáspora. Segundo Petrônio Domingues (2014, p. 254), o associativismo negro é “uma noção dinâmica envolvendo um processo contraditório e conflitivo que combina resistência, assimilação e (re)apropriação de ações coletivas e formas organizativas para a defesa dos interesses específicos do grupo”. Tais grupos articularam “retóricas de igualdade racial (…) no âmbito de sonhos e expectativas de inclusão social, reconhecimento e plena participação na vida nacional” (271). Portanto, o Clube Liga Africana coletivamente, e João Alabá em sua trajetória como sujeito histórica, combinam esse mesmo horizonte com a defesa e valorização de uma conexão direta com uma África. Por conseguinte, estabelecem uma identidade na diáspora africana que, como afirmou Michelle Wright (2005, p.2), incorpora a diversidade das identidades negras ao mesmo tempo que conecta “todas essas identidades para demonstrar que eles de fato constituem uma diáspora, ao invés de um grupo de pessoas agregadas desconectadas, apenas conectadas por nome” [tradução livre do autor].

A importância da casa de João Alabá para a história do candomblé no Rio de Janeiro já foi ressaltada pela historiografia, contudo a ligação direta de João Martins com uma agremiação intitulada Liga Africana não foi apontada nas análises anteriores. Segundo o cronista carnavalesco Vagalume, “João Alabá formou um rancho em estilo africano, que saiu apenas um ano, em 1906” (Vagalume, 1933, p. 133) Algumas análises falam da formação de um Afoxé, liderado pelos membros da casa de João Alabá para ridicularizar os velhos Cucumbis cariocas (Brasil, 2014; Cunha, 2001). Contudo, mesmo que essa seja a sua origem, a institucionalização do grupo carnavalesco, sua relação com outras associações civis, religiosas e festivas e sua longevidade comprovam que a Liga Africana representava uma organização recreativa cujos membros elaboraram redes de sociabilidade e usaram a seu favor os mecanismos legais para legitimar e proteger espaços de autonomia festiva e religiosa durante anos de tanta repressão e controle ente as décadas de 1910 e 1920. Para isso, foi fundamental a posição política de João Alabá na sociedade carioca do período, lidando com a polícia e os políticos, assim como com demais personagens dos meios religiosos, festivos e operários, que comumente circulavam por

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Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.5 | Nº. 2 | Ano 2019 | p. 57 todas essas esferas. Alabá e sua Liga Africana estabeleceram, portanto, uma luta política mobilizada pela cultura negra carioca.

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