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Líder ou Instrutor_refletindo sobre o papel da autoridade_Wortmeyer

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1 “LÍDER OU INSTRUTOR?”

REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DA AUTORIDADE NO PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO MILITAR

Daniela Schmitz Wortmeyer A

Resumo

Tornar-se militar implica vivenciar um processo de socialização organizacional, caracterizado pela aprendizagem da cultura organizacional militar. Os docentes mediadores de tal processo são levados cotidianamente a lidar com questões ligadas ao domínio, ao poder, à autoridade, à liderança. No presente artigo são discutidos aspectos desse relacionamento entre docentes e discentes sob uma ótica psicossociológica, abordando-se as dimensões formais e informais do exercício da autoridade, incluindo o viés da liderança. São articuladas considerações teóricas e observações realizadas na Academia Militar das Agulhas Negras, no intuito de fornecer subsídios para a reflexão dos agentes de ensino e o constante aprimoramento das práticas educacionais.

Palavras-chave: socialização militar, autoridade, liderança, relacionamento docente-discente, educação militar.

1. Introdução

Tornar-se militar implica aprender um papel profissional, que é caracterizado pelo domínio de determinados conhecimentos teóricos e técnicos e, mais que isso, pela incorporação dos valores, crenças, símbolos, normas e padrões de conduta próprios da cultura organizacional militar.

Para tanto, faz-se necessário vivenciar um processo de socialização, que consiste no processo educacional por intermédio do qual um indivíduo passa efetivamente a fazer parte de uma sociedade ou de um setor dela, pela internalização de suas instituições e papéis. Desta forma, passa a compartilhar subjetivamente uma visão de mundo considerada como “real” e verdadeira por determinada coletividade1.

Quando tal processo ocorre no âmbito de uma organização – como, no caso,

A

A autora é Capitão do Quadro Complementar de Oficiais do Exército (Turma 2001/EsAEx), graduada em Psicologia (FURB) e mestre em Psicologia Social (UERJ). Atualmente desempenha a função de professora de Psicologia na Academia Militar das Agulhas Negras. Comentários e sugestões sobre o texto podem ser remetidos para: daniela77@uol.com.br.

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2 as forças armadas – costuma ser denominado socialização organizacional. A socialização organizacional ocorre toda vez que um indivíduo atravessa “fronteiras organizacionais”, isto é, passa por mudanças de status ou papel e necessita adaptar-se à nova situação, desenvolvendo conhecimentos, habilidades e atitudes. Essa aprendizagem do papel pelo novato é intermediada pela convivência com os membros mais experientes da organização, quer isto ocorra de maneira intencional ou não. Ao ingressarem em um novo grupo, as pessoas precisam ser iniciadas em seus valores, crenças, normas e práticas, vivenciando um processo de aculturação, que lhes permitirá empreender a comunicação e a integração ao fazer coletivo 2 3 4.

Denominam-se agentes de socialização aqueles membros da organização que têm a seu cargo, de modo formal ou informal, a educação dos novatos. Dentre os múltiplos fatores que influenciam os resultados da socialização organizacional, a atuação dos agentes de socialização continua sendo apontada como de fundamental importância por pesquisas contemporâneas 5 6. A qualidade do vínculo estabelecido pelos novatos com tais agentes refletir-se-á no grau em que assimilarão as mensagens socializadoras, isto é, no nível em que a socialização, de modo global, será bem-sucedida.

O processo de socialização dos oficiais combatentes de carreira do Exército se desenvolve inicialmente em um período de cinco anos: o primeiro ano corresponde ao curso preparatório da Escola Preparatória de Cadetes do Exército; e os quatro anos seguintes correspondem ao curso de formação da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Nesse último estabelecimento de ensino, a autora deste artigo concentrou sua atuação como profissional e pesquisadora por cerca de nove anos, e é nessa experiência que serão embasadas as considerações a seguir. Entretanto, as concepções aqui apresentadas poderão ser aplicadas a outras escolas militares, particularmente às de formação, desde que realizadas as devidas adaptações.

No caso da AMAN, os principais agentes formais de socialização são os oficiais do corpo docente. Em função desse papel, estes oficiais são levados a lidar cotidianamente com diversas questões ligadas ao domínio, ao poder, à autoridade, à influência social, à liderança. Tais questões traduzem-se em desafios, a serem enfrentados subjetiva e institucionalmente na operacionalização das ações educativas. Por vezes, as diferentes nuances relacionadas ao papel exercido pelos oficiais dão origem a verdadeiros dilemas, tais como: “Quando devo ser líder e quando devo ser instrutor junto aos cadetes?”; “Como conciliar liderança e exigência?”; para os quais

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3 têm sido adotadas soluções distintas ao longo do tempo. Em um dos polos do dilema básico, encontra-se uma concepção de liderança carismática e persuasiva e, no outro polo, uma concepção do que vem a ser um “bom instrutor” de cadetes, associada à exigência, à rigidez e à frustração que seriam necessárias para “forjar o combatente”. Tais representações foram construídas historicamente em torno da liderança militar: a primeira denota uma visão mais moderna da liderança, colocada por vezes como um ideal a ser atingido pelos oficiais; a segunda, por sua vez, é herdeira do ideário tradicional relacionado à chefia militar, fortemente arraigado na cultura organizacional.

No presente artigo, tentaremos iluminar alguns aspectos desse dilema. Inicialmente, revisaremos brevemente conceitos clássicos ligados ao exercício do poder nas organizações modernas - dentre as quais figuram as forças armadas - focalizando a dimensão formal da autoridade. Na sequência, analisaremos sua dimensão informal, que inclui aspectos do papel da autoridade no tocante à dinâmica grupal e às expectativas e carências dos indivíduos, explicitando algumas das raízes psicossociológicas desse tipo de vínculo. Abordaremos ainda a questão da autoridade sob o viés da liderança, que passou a ser uma tônica do exercício da chefia em diversas forças armadas após a Segunda Guerra Mundial. Revisaremos tendências que historicamente têm permeado o estudo do tema, na tentativa de desmistificar conceitos e sinalizar possibilidades da efetiva emergência da liderança no contexto organizacional. Finalmente, procuraremos explorar alguns desafios que os oficiais necessitam administrar em seu relacionamento com os cadetes, para que venham a se constituir em autênticas figuras de autoridade - e, quiçá, em líderes - com vistas a contribuírem para o real êxito do processo de socialização organizacional militar.

2. O ponto de partida: autoridade na esfera formal

Dentre as diversas dimensões do relacionamento entre oficiais e cadetes na AMAN, provavelmente a primeira a se destacar refere-se à autoridade de uns sobre outros. Logo no primeiro contato com um oficial, fica evidente, para os cadetes, a desigualdade existente entre as duas partes no tocante ao acesso a determinadas bases de poder. Descreveremos, a seguir, de que maneira esse constituirá o ponto de partida da interação a ser estabelecida.

Para o sociólogo norte-americano Richard Sennett 7, autoridade é uma relação desigual estabelecida entre duas pessoas, em que uma ocupa posição de superioridade em relação à outra. Essa desigualdade está ligada ao acesso a

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4 determinados recursos, tais como: diferença de conhecimentos, de experiência, de bens materiais, do acesso ao uso de meios coercitivos, etc. Em sentido análogo, French e Raven 8 identificaram que o poder de um indivíduo sobre outros no interior de uma organização pode estar ancorado em cinco diferentes bases de poder, quais sejam: poder coercitivo, baseado na possibilidade de aplicar punições ou realizar ameaças; poder de recompensa, baseado na possibilidade de oferecer prêmios ou recompensas; poder legitimado, sustentado na autoridade formal decorrente de posição hierárquica; poder de especialista, derivado da posse de determinado conhecimento ou habilidade relacionado ao trabalho; e poder de referência, resultante do fato de um indivíduo ser respeitado, admirado e apreciado pelos demais.

Seguindo essa linha de raciocínio, a autoridade pode possuir acesso a diferentes bases de poder, mas não necessariamente de modo simultâneo - ou seja, o indivíduo pode possuir autoridade de especialista, mas não possuir acesso ao poder legitimado ou ao poder coercitivo, etc. No caso dos oficiais da AMAN, cabe observar que as primeiras quatro bases de poder citadas tendem a marcar, de imediato, sua diferenciação em relação aos cadetes, mesmo que de forma indireta.

O sociólogo alemão Max Weber analisou o exercício do poder em função de sua legitimidade. Denominou “dominação” a forma de exercício da autoridade em que há “probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas”9

. Nessa concepção, as razões para a submissão à autoridade podem ser: tradição, afetividade, interesses materiais ou motivos ideais. O autor afirma que “certo mínimo de vontade de obedecer, isto é, de interesse (externo ou interno) na obediência, faz parte de toda relação autêntica de dominação”10

. Dado que há uma medida de voluntariedade no vínculo dos subordinados com a autoridade, excluem-se dessa definição formas de relação como a escravidão.

Um dos tipos de dominação identificados por Weber refere-se à dominação de caráter racional, “baseada na crença da legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens, estão nomeados para exercer a dominação”11

. Corresponde à dominação legal, exercida modernamente dentro do quadro administrativo burocrático. Em linhas gerais, caracteriza-se pela obediência a uma ordem impessoal (formalismo), que estabelece os direitos e deveres dos membros da “associação”, delimitando a competência objetiva de cada cargo. Existe uma hierarquia oficial, que em sua racionalidade plena coincide com a qualificação profissional. Idealmente, há rígida separação entre a vida privada do indivíduo e suas

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5 responsabilidades profissionais, inclusive em relação à propriedade. A documentação dos processos administrativos é outro aspecto marcante na burocracia: tudo deve estar “por escrito”.

Cabe lembrar que as forças armadas modernas são organizações burocráticas, em que a lógica da autoridade segue os moldes da dominação legal descrita por Weber. Samuel Huntington analisa sob este enfoque a constituição do oficialato como profissão:

O oficialato é, ao mesmo tempo, uma profissão e uma organização burocráticas. Dentro da profissão, os níveis de competência são caracterizados pela hierarquia dos postos; dentro da organização, os deveres se distinguem por uma hierarquia de cargos. O posto é inerente ao indivíduo e reflete suas realizações profissionais medidas em termos de experiência, antigüidade, formação e qualidades. [...] Em todas as burocracias, a autoridade deriva do cargo; numa burocracia profissional a elegibilidade ao cargo se origina do posto. Permite-se ao oficial que exerça certos tipos de serviços e funções em virtude de seu posto; mas ele não exerce o posto porque foi designado para um cargo. Embora na prática se registrem exceções a esse princípio, o caráter profissional do oficialato reside na prioridade da hierarquia do posto sobre a hierarquia do cargo.12

Entretanto, ainda que Weber considere a administração burocrática como “a forma mais racional de exercício de dominação, porque nela se alcança tecnicamente o máximo de rendimento”13

, o dia a dia das organizações revela constantemente que o ser humano não é controlado apenas por sua dimensão formal e racional. Ao contrário, os aspectos emocionais e inconscientes mostram-se frequentemente como o calcanhar de aquiles dos burocratas eficientes, impulsionando a multiplicação de estudos acerca dos aspectos informais que permeiam o exercício do poder.

Observamos, portanto, que, na dimensão formal, encontram-se os aspectos do poder conferidos aos indivíduos por determinadas convenções sociais. E que, na dimensão informal, encontram-se as nuances que ultrapassam a superficialidade das convenções sociais, alcançando as representações mentais dos indivíduos, suas necessidades psicológicas e carências afetivas. Em se tratando dos oficiais do corpo docente da AMAN, vimos que todos possuem uma autoridade formal, que mediará seu relacionamento com os cadetes. No entanto, essa autoridade só será consolidada se extrapolar as fronteiras do poder formal, atingindo a esfera informal. Quando isso não ocorre, encontramos figuras de autoridade que não são reconhecidas como legítimas ou verdadeiras, em relação às quais não há autêntico respeito. Em consequencia, buscaremos elucidar, a partir de agora, algumas raízes psicossociológicas das

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6 genuínas relações de autoridade.

3. Desafios no percurso: aspectos psicossociológicos da autoridade

Cada um de nós, ao se deparar com uma figura de autoridade, em qualquer esfera da vida social, dirige-lhe espontaneamente determinadas expectativas. Expectativas que refletem necessidades e carências de ordem individual e coletiva, como veremos adiante. Quando tais anseios não são atendidos, estabelecem-se vínculos negativos com a autoridade, marcados pelo medo, negação ou rejeição14, o que acarreta diversos prejuízos de natureza psicossocial.

Em estudo clássico sobre a dinâmica dos grupos, Anzieu e Martin15 basearam-se em diferentes perspectivas teóricas para explicar os desafios inerentes à formação e perpetuação dos grupos. Tomando por base a perspectiva dialética desenvolvida por Sartre, os autores ressaltam que os grupos adotam diversas medidas de controle social, no intuito de assegurar sua sobrevivência. Dentre estas, situa-se o estabelecimento de regras, visando organizar o trabalho e o processo decisório, para garantir que os objetivos mais distantes do grupo sejam atingidos. “A solução para todo grupo consiste em inventar uma estrutura que concilie o impulso inicial, a intenção e o entusiasmo primeiros com as necessidades práticas das ações que deve preparar e realizar. O chefe é, então, o órgão de integração do grupo.”16

Anzieu e Martin remetem-se também à perspectiva freudiana para explicar determinados fenômenos de grupo, como a relação com a autoridade. Sob esse enfoque, afirmam que “em um grupo social, o chefe assume o lugar de ideal de eu em cada um de seus membros e ele explica a solidariedade psicológica entre estes últimos”. E ainda: “Um grupo social coerente e eficaz representa a seu chefe como um homem superior, que ama com igual amor a todos os membros da coletividade, que conhece as necessidades de cada um deles. [...] A imagem do pai justo e bom é, pois, a que sustenta a coesão grupal.”17

A identificação com o chefe, portanto, permite ao mesmo tempo que se estabeleçam o vínculo com a autoridade e a solidariedade entre os membros do grupo. Pode-se concluir que a percepção da justiça e da igualdade no tratamento dos membros pelo chefe é fundamental para que se estabeleça a cooperação no seio do grupo. Se, pelo contrário, houver preferência do chefe por determinados membros, em detrimento de outros, ressurgirá o ciúme e a competitividade no grupo (pois, em realidade, todos gostariam de ser “o preferido” do chefe), minando sua coesão.

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7 A perspectiva psicanalítica permite ainda que seja iluminada a ambiguidade que permeia as relações com a autoridade. “Todo chefe é objeto de ressentimento. A imagem de um chefe severo e cruel provoca uma hostilidade geralmente consciente. A imagem do chefe ideal também provoca hostilidade, mas esta é quase sempre reprimida e inconsciente.”18

Para Wilson Moura, “a função de chefia traz a ambiguidade do controle e da integração”. Nesse sentido, “toda autoridade ocupa o lugar do juiz”19, isto é, possui a

prerrogativa (mesmo que informal) de punir e recompensar, de estabelecer limites e conciliar interesses. Espera-se que a autoridade atue como referência segura, que forneça um senso de ordem e direção, proporcionando com isso proteção ao grupo e viabilizando o fazer coletivo.

Richard Sennett corrobora o pressuposto da ambiguidade dos laços afetivos. Observa que, em inglês, “a palavra „vínculo‟ tem um duplo sentido. É uma ligação, mas é também, como em „servidão‟, um limite imposto.”20

O autor define a autoridade como uma ligação entre pessoas desiguais e considera essa relação de grande significação para ambas as partes: “A necessidade de autoridade é fundamental. As crianças precisam de autoridades que as orientem e tranquilizem. Os adultos realizam uma parcela essencial de si ao serem autoridades: é um modo de expressarem interesse por outrem.”21

Assim, as autoridades satisfariam nossos desejos de orientação, segurança e estabilidade.

Para compreender os vínculos que as pessoas estabelecem com a autoridade, seria necessário ir além da análise das condições estruturais, que medeiam as relações formais com o poder, e das características pessoais das figuras de autoridade: seria preciso compreender o que as pessoas esperam da autoridade.

Aquilo em que as pessoas se dispõem a acreditar não é uma simples questão da credibilidade ou legitimidade das idéias, regras e pessoas que lhes são apresentadas. É também uma questão de sua própria carência de crer. O que elas querem de uma autoridade é tão importante quanto o que a autoridade tem a oferecer. E, como aspecto destacadamente frisado na obra de Max Horkheimer, a própria carência da autoridade é moldada pela história e pela cultura, assim como pela predisposição psicológica.22

Segundo Sennett, “o amparo – o amor que sustenta os outros – é uma necessidade humana fundamental”, e representaria o que buscamos nas figuras de autoridade. As verdadeiras autoridades seriam as que apresentam a pretensão genuína de cuidar dos outros, ao mesmo tempo em que sustentam uma relação de respeito

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8 quanto à sua singularidade e interesses. “Nenhuma pessoa, por mais bem-intencionada que seja como personalidade, é capaz de dar amparo a outra, como se se tratasse de uma mercadoria. Tampouco se granjeia interesse como quem extrai lucro de um investimento.”23

Em outra obra, Sennett explora a questão do respeito, destacando que as “pessoas não são tratadas com respeito simplesmente em obediência a uma ordem de que isso deva acontecer”, tornando-se necessário um ajustamento na direção do reconhecimento mútuo, o qual “envolve as complexidades tanto do caráter pessoal quanto da estrutura social”24

.

A transparência e a coerência, em termos de propósitos e ações adotados pela autoridade, fornecem suporte para o estabelecimento da confiança, fundamental para o aprofundamento dos relacionamentos interpessoais:

A confiança facilita a aceitação interpessoal e a abertura de expressão. A desconfiança evoca rejeição interpessoal e desperta comportamento defensivo, que dá lugar a distorções de informação e de percepção. [...] Um indivíduo que não confia noutro esconde ou distorce informações, pensamentos ou sentimentos relevantes. Ele também resistirá à tentativa dos outros para influir na seleção de objetivos, escolha de métodos e avaliação do progresso.25

Segundo Wilson Moura 26, para que ocorra a construção da liderança em um relacionamento, é necessário um contínuo investimento recíproco, pautado na autenticidade e na transparência, pois “só confiamos em quem se dá a conhecer”.

Pode-se concluir que os diversos aspectos de natureza psicossociológica, sobre os quais discorremos brevemente, permeiam o relacionamento entre oficiais e cadetes. Conforme mencionado, os docentes se constituem como autoridades perante os discentes, despertando uma série de expectativas relacionadas não somente ao desempenho de seu papel formal, mas também às necessidades psicológicas deflagradas pelo exercício do poder e pela dinâmica do grupo de aprendizes. Diante dessa miríade de aspectos, como é possível situar o tão propalado fenômeno da liderança? Buscaremos, na próxima seção, contextualizar o desenvolvimento do estudo da liderança ao longo das últimas décadas, bem como sua emergência como objetivo no âmbito das forças armadas, fornecendo subsídios para a resposta à questão.

4. Liderança militar: objetivo ou consequência?

O estudo da liderança como processo de influência social percorreu diversos caminhos ao longo dos tempos. Na verdade, tantas definições e enfoques têm sido dados a esse fenômeno, que o sociólogo norte-americano James Meindl 27 chegou a

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9 afirmar que “liderança é, ao mesmo tempo, tudo e nada”.

Inicialmente, o interesse pelo tema da liderança na psicologia social parece haver surgido em função de um contexto sociopolítico, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, em que se destacaram representantes da Escola de Frankfurt no estudo de temas como a personalidade autoritária (Adorno) e as consequências sociais dos estilos de liderança (Lewin). No âmbito das organizações, observou-se que o estabelecimento de relações de liderança entre o chefe e seus subordinados produzia uma dinâmica grupal qualitativamente diferente da que ocorria na simples relação de subordinação formal, o que de alguma maneira parecia incrementar a produtividade. Para muitos, a liderança afigurou a “fórmula mágica” que auxiliaria as organizações a solucionarem os problemas de gestão emergentes.

Na mesma época, a emergência do tema da liderança ocorreu no âmbito das forças armadas. Ilustra esse fato o estudo sobre a problemática da profissão militar norte-americana após a Segunda Guerra, desenvolvido por Morris Janowitz 28, em que é contextualizada a transição do paradigma de “comando” para o de “liderança” no exercício da chefia militar, em um capítulo sugestivamente intitulado “Disciplina e Metas de Combate”. O título é significativo, porque reflete que as mudanças na ideologia da chefia deveram-se à necessidade de adaptação dos mecanismos de controle (disciplina), para fazer face às novas demandas relacionadas às metas organizacionais (metas de combate).

Janowitz estabelece um contraste entre a disciplina militar característica do final do século XIX, baseada na dominação autoritária, e as concepções de disciplina que começaram a emergir no início do século XX, caracterizadas pela utilização de “manipulação, persuasão e consenso grupal”29

.

O oficial tático já não corresponde mais à imagem do oficial de cavalaria de voz ríspida, bradando ordens para homens que ele supunha ignorantes. Ao invés disso, [...] é um “junior executive”, confrontado com a tarefa de coordenar especialistas e demonstrar pelo exemplo que é competente para dirigir uma batalha. Quando a disciplina militar se baseava na dominação, os oficiais tinham de demonstrar que eram diferentes dos homens a quem comandavam. Hoje, os líderes devem continuamente demonstrar sua competência e capacidade técnica, para que possam comandar sem recorrer a sanções arbitrárias e extremas. Antigamente, o lema nas forças armadas era “Faça continência às divisas, e não ao homem”, porquanto a autoridade era formal. Os papéis militares contemporâneos, porém, dependem das qualidades dos homens que ocupam posições profissionais.30

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10 militar decorre das mudanças operadas na estrutura social, no perfil da população e na tecnologia da guerra, entre outros fatores.

A demanda popular de igualdade de tratamento cresce com a industrialização. À medida que aumenta o padrão de vida, diminui a tolerância aos desconfortos da vida militar. O ceticismo da vida urbana é levado para as forças armadas em grau maior que em gerações anteriores, de modo que os homens já não atuarão mais às cegas, mas exigirão alguma espécie de explicação de seus comandantes. Relações sociais, liderança pessoal, benefícios materiais, doutrinação ideológica e a justiça e o significado dos objetivos da guerra, tudo isso agora faz parte do moral militar.31

Janowitz destaca que a evolução da tecnologia da guerra representou um aumento do poder de fogo e a necessidade de maior especialização dos combatentes. Para fazer frente ao poder destrutivo dos novos armamentos, as tropas foram levadas à descentralização, o que gerou a necessidade de maior autonomia e iniciativa dos militares dispersos. A proficiência técnica passou a ser um fator de dependência mútua entre os militares, interferindo na estrutura disciplinar formal:

A tecnologia da guerra é tão complexa que a mera disciplina autoritária não é garantia da coordenação de um complexo grupo de especialistas. Os membros de um grupo militar reconhecem que sua dependência mútua baseia-se mais na proficiência técnica de cada um de seus membros que na estrutura disciplinar formal.32

A psicologia aplicada às relações humanas nas forças armadas conduziu a um modelo de chefia que buscava equilibrar sanções negativas e estímulos positivos. Ou seja, embora se admitisse que a violência e a crise extrema, que caracterizam as situações de combate, justificassem o direito ao exercício de sanções drásticas por parte da autoridade militar, esse exercício não deveria ser incompatível com a “ênfase em objetivos de grupo” e o “uso de técnicas indiretas de controle”. Nesse contexto, “„comando‟ dá lugar à „liderança‟ na linguagem das forças armadas”33

.

Contudo, Janowitz ressalta que essa transição não seria isenta de resistências no seio da organização:

Todas as organizações mostram pressões inerentes para a inércia humana. Nas instituições militares, em particular, a inovação tecnológica marcha mais depressa e com maior eficiência que a transformação organizacional. [...] Talvez a maior tensão com que se confronta o “administrador” militar seja o caráter episódico do combate. O sentimento de urgência, a realidade do combate imediato, é um estímulo que torna a autoridade militar efetiva. Na guerra fria, removida a pressão imediata do combate, há uma tendência para o retrocesso a velhos padrões de disciplina autoritária, não mais efetiva.34

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11 1960 e 1970, as teorias contingenciais. De modo geral, essas teorias colocavam em relevo variáveis situacionais da liderança, isto é, o estilo de liderança deveria adequar-se a fatores tais como as características dos liderados e da tarefa a adequar-ser executada. Como exemplos, temos o enfoque de Fiedler, que defendia que os estilos de liderança seriam eficazes segundo fatores situacionais e de relacionamento, e o enfoque de Hersey e Blanchard, que defendiam que o líder deveria adequar seu estilo à “maturidade” dos seguidores, em termos de habilidade, motivação e autoconfiança.35

Em fins dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, a liderança carismática tornou-se o foco dos estudos relacionados ao tema. Para muitos, a liderança passou a ser considerada como uma decorrência da personalidade do líder. Outros focalizavam quais comportamentos do líder poderiam produzir determinadas reações nos seguidores. Outros, ainda, enfocavam aspectos como o uso inspiracional da linguagem e da comunicação no exercício da liderança. Sem desejar descrever exaustivamente essas tendências, destacamos o fato de que o enfoque baseado nas características do líder, em seus diversos aspectos, continuou a predominar até a década de 1990, encontrando grande proliferação no meio gerencial. Passou-se a acreditar que era possível “treinar” os gerentes para serem líderes, como se houvesse um modelo mais ou menos padronizado de liderança eficaz.36

Contudo, já no final da década de 1970, começaram a surgir críticas quanto à metodologia empregada no estudo da liderança e à ênfase dada ao fenômeno no campo organizacional. Argumentou-se que a utilização de instrumentos de pesquisa em que os indivíduos eram convidados a avaliar seus superiores, quanto a traços de liderança predefinidos, exercia o efeito de “sugestão” na avaliação.37

Ao mesmo tempo, a liderança foi identificada como parte de um discurso social, não necessariamente embasado cientificamente.38 O papel da liderança também foi colocado em xeque: dado que o objetivo da liderança seria atingir os propósitos do grupo, verificou-se que tais propósitos poderiam ser atingidos de outras formas, por meio da potencialização de diferentes variáveis na organização.39 Por fim, Meindl e colaboradores realizaram uma crítica ao “romance da liderança”, no qual se “pinta um quadro de liderança em termos de um processo que o líder controla no final”.

Meindl considera um erro confundir os papéis ocupados pelos indivíduos na hierarquia formal da organização com a emergência de liderança. Para ele, a liderança se situa nos aspectos informais das relações entre as pessoas, e não na subordinação formal. Ou seja, a liderança é um enriquecimento do relacionamento formal: ela

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12 modifica o tipo e a profundidade da influência social que ocorre na simples subordinação. Podemos situar esta concepção de liderança, por conseguinte, no campo das demandas psicossociológicas das relações de autoridade.

A alternativa proposta coloca os seguidores como objetos e os líderes como alvos – ou seja, a emergência da liderança dependeria mais dos seguidores do que do líder. Nesse enfoque, a liderança é interpretada como uma ideologia: para existir como tal, deve emergir nas mentes dos seguidores. Meindl observou que os liderados têm teorias implícitas e protótipos cognitivos a respeito do que seja liderança eficaz ou ineficaz, os quais interferem em sua avaliação acerca dos comportamentos evidenciados pelas pessoas. É como se, ao identificar uma figura que corresponda às expectativas, às crenças e à autoimagem do próprio grupo, este a qualificasse como liderança. O autor destaca, ainda, o processo de contágio social que caracteriza a liderança carismática. Isto é, sua construção não ocorreria na interação direta do líder com cada um dos seguidores individualmente, mas seria difundida através dos canais sociométricos do grupo.

Meindl analisa também o contexto sociopsicológico que propiciaria a emergência da liderança. Um dos contextos que parece exercer forte influência sobre o fenômeno é a crise. A sugestão levantada é que a crise e as experiências emocionais ligadas a ela seriam precursores importantes para o início de uma liderança carismática. Assim, a emergência da liderança seria funcional para o grupo, protegendo-o dos efeitos nocivos dos agentes causadores de estresse.

Para Meindl, “se a personalidade tem um papel significativo no fenômeno da liderança carismática, então está provavelmente refletido nos atributos pessoais e características dos seguidores”40

. O relacionamento carismático que se desenvolve entre um líder e um seguidor seria sintomático de forças sociais maiores e necessidades do sistema, que se integrariam na psicologia e personalidades dos seguidores, transmitidas e amplificadas pelas interações sociais que ocorrem entre eles. As personalidades dos líderes e sua relevância para a emergência da liderança carismática seriam simplesmente um componente derivativo dentro de um sistema tipo circuito integrado, um complexo de forças sociais e psicológicas que criam e sustentam o grupo.

Essa pode ser uma explicação para o “fracasso”, observado por Janowitz, da psicologia na seleção de líderes potenciais: “Após quarenta anos de pesquisa e desenvolvimento de métodos de seleção de pessoal militar, está hoje copiosamente

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13 demonstrado que não existe nenhuma técnica satisfatória ou segura para a localização de elementos capazes de liderança.”41

Como vimos, a liderança não seria uma qualidade intrínseca ao líder, mas uma dinâmica relacional que se estabelece entre líder e liderados em um dado contexto, na qual interferem aspectos desses três fatores em interação. Portanto, não bastaria fazer uma avaliação da personalidade de um indivíduo para identificar seu potencial para a liderança: seria necessário verificar como ocorre a interação desse indivíduo com determinado grupo, considerando as características do próprio grupo, bem como o contexto cultural, organizacional e situacional em que essa interação tem lugar. No cenário brasileiro, pesquisas contemporâneas têm fornecido importantes subsídios para que as Forças Armadas continuem avançando na compreensão e no manejo do fenômeno da liderança, pari passu com o desenvolvimento científico na área, tais como os trabalhos da Capitão de Mar e Guerra Erica Nobre 42, do Major do Exército Paolo D´Ávila 43 e do Capitão do Exército Túlio Valente 44, referenciados ao final deste artigo.

Verificamos, assim, que a liderança constitui um fenômeno social complexo, que não pode ser explicado pela existência isolada de determinadas variáveis. Tampouco pode ser “fabricado”, em uma tentativa de manipulação dos subordinados, com base na adoção de técnicas de influência social ou de maneirismos comportamentais pelos superiores. Por outro lado, em se tratando do relacionamento em uma estrutura hierárquica formal, como ocorre entre oficiais e cadetes na AMAN, o aprofundamento dos laços da autoridade com seus subordinados, ao longo de uma história compartilhada, pode, sim, trazer como consequência a emergência da liderança. A fim de alinhavar algumas conclusões, após essa breve incursão em um vasto território, buscaremos sintetizar os principais tópicos abordados, relacionando-os aos desafios encontrados na interação entre docentes e discentes no processo de socialização militar.

5. Conclusão

Conforme abordamos ao longo deste artigo, quem ocupa um lugar de poder carrega a tarefa de servir de referência aos demais. Não há como fugir às expectativas dos subordinados em relação à autoridade: ainda que seja pela omissão ou pela negação do poder, ainda que suas atitudes provoquem a rejeição dos outros, o vínculo será estabelecido com a figura que representa a autoridade em um dado contexto. Considerando a importância do vínculo com a autoridade no tecido social e,

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14 particularmente, no processo educacional, torna-se fundamental a reflexão sobre as implicações da atuação dos agentes de socialização sob uma perspectiva psicossociológica.

Em se tratando dos oficiais do corpo docente da AMAN, vimos que estes possuem, como ponto de partida de seu relacionamento com os cadetes, uma autoridade formal, cujo sentido está atrelado aos objetivos organizacionais. É, pois, a dedicação ao exercício desse papel formal que permitirá o aprofundamento progressivo dos laços com os discentes, o qual, transcendendo o formalismo, favorecerá ao longo do tempo a emergência da liderança organizacional B.

Tal processo se torna mais claro na análise de situações concretas. Por exemplo, será possível imaginar um bom professor ou instrutor, que não se preocupe com o sucesso da aprendizagem dos discentes? Será possível imaginar um bom comandante, que não se preocupe com o bem-estar de seus subordinados? Será possível tornar-se uma efetiva autoridade, sem atender às expectativas básicas dos subordinados, tais como ser uma referência firme e segura, atuar com justiça e transparência, tratar com consideração os interesses do outro? O próprio exercício do papel organizacional exige o equacionamento das variáveis tarefa e relacionamento, tendo que lidar necessariamente com o aspecto relacional C. Por outro lado, há uma “pressão” dos subordinados para que seja ultrapassada a mera formalidade, no relacionamento cotidiano com a autoridade.

Sob essa perspectiva, cabe aos oficiais da AMAN, em primeiro lugar, ocuparem-se em bem exercer seu papel organizacional: instrutores, professores, comandantes. Em serem efetivos educadores, já que esse deve ser o objetivo maior de todas as ações voltadas aos discentes.

Um desafio que permeia esse exercício de papel é a integração dos aspectos

B

Ao tratar de liderança organizacional, referimo-nos àquela liderança cuja influência contribui para a consecução dos objetivos organizacionais, embora transcenda tais objetivos em direção aos anseios dos indivíduos. Em outras palavras, a liderança auxilia as equipes e cada um de seus integrantes a trabalhar melhor, pois valoriza os aspectos pessoais, tendo como horizonte a tarefa a ser cumprida. Por esse motivo, a estrutura formal da organização é tomada como ponto de partida para a construção do relacionamento interpessoal.

C

Ou seja, é necessário manter um equilíbrio dinâmico entre tarefa e relacionamento. Há momentos em que o “pêndulo” pode pender para um dos polos, como, por exemplo, quando a execução da tarefa exige sacrifícios pessoais por parte da equipe; ou, no outro extremo, quando uma situação de ordem pessoal necessita ser priorizada, em detrimento da tarefa. Entretanto, em ambos os casos é imperativo, após certo período, retomar o equilíbrio. O foco desmesurado na tarefa, em detrimento do aspecto relacional, produz, ao longo do tempo, o empobrecimento das relações no seio da equipe, a inibição da criatividade, o desgaste físico e mental e, em última análise, a queda na produtividade. Por outro lado, o foco exacerbado no aspecto relacional resulta na falta de objetividade, no decréscimo de ações voltadas à tarefa e, por fim, no fracasso quanto às metas organizacionais.

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15 ambíguos inerentes às autênticas relações de autoridade, ao invés de enxergá-los como alternativas mutuamente excludentes. Isto significa que o quadro da liderança militar será composto por cores de amparo, respeito e proteção, ao lado de tonalidades de controle, estabelecimento de limites e atribuição de punições e recompensas, assumindo dessa forma a globalidade das responsabilidades da autoridade.

Vale ressaltar que, dada a natureza da profissão militar, faz-se necessário o desenvolvimento de diversos atributos pelos cadetes ao longo do processo de socialização, fundamentais para o desempenho eficaz de seu papel profissional. Com esse intuito, são realizadas ações educativas que por vezes envolvem situações de pressão psicológica, à semelhança do que ocorreria em um cenário de combate. É estimulada a autossuperação dos discentes, a expansão dos limites físicos e psicológicos e o desenvolvimento do autocontrole. Contudo, tais ações educativas necessitam possuir objetivos claros, tanto para os docentes, quanto para os discentes, pois do contrário provocarão um contexto de desamparo psicológico, que suscitará atitudes defensivas indesejáveis para o processo de socialização. Ou seja, tais ações jamais deveriam macular a relação de confiança estabelecida entre oficiais e cadetes, principalmente quando se trata de oficiais pertencentes à cadeia de comando à qual se vincula determinado pelotão D.

Pode-se comparar a situação descrita com o que ocorre em um relacionamento psicologicamente saudável entre pai e filho: este último, ainda que se encontre diante de ações firmes e restritivas do pai, podendo circunstancialmente vivenciar desagrado ou incompreensão a respeito, sabe em verdade que o pai age motivado pelas melhores intenções, cujo esteio é o amor paterno, rocha firme na qual sempre poderá se apoiar. Tal perspectiva é corroborada pela Capitão de Mar e Guerra Erica Barreto Nobre, psicóloga e pesquisadora da liderança na Marinha do Brasil, ao afirmar que: “O líder militar é representado no imaginário dos subordinados como um 'PAI', simultaneamente severo e humano, que pune justamente, mas também provê as necessidades, acolhe no sofrimento, orienta e oportuniza novas chances.”45

Aprofundando-se a questão, surge então a pergunta: qual seria o ponto de inflexão da liderança? Em que momento o aprofundamento dos laços formais com a autoridade atingiria esse grau?

D

Conforme já mencionado, o estabelecimento de um vínculo positivo dos novatos com os agentes de socialização é fundamental para o êxito de todo o processo, inclusive para o desenvolvimento do comprometimento organizacional, uma vez que os oficiais tendem a ser percebidos como porta-vozes da organização pelos cadetes.

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16 A despeito da complexidade que caracteriza o fenômeno da liderança, destacada ao longo deste artigo, seu ponto de inflexão parece ser o interesse genuíno pelo outro. A partir do momento em que o superior passa a considerar seu subordinado como mais do que uma “peça”, que faz parte da engrenagem organizacional – como um ser humano de fato, com suas necessidades e anseios – começa a ser construída uma atitude de reconhecimento e respeito, que no decorrer de uma história compartilhada produz o aprofundamento dos laços. Dessa forma, é necessário um contínuo investimento recíproco para que, numa perspectiva histórica (e não de uma hora para a outra), se consolide a liderança. O mesmo ponto de inflexão parece ter sido identificado por Samuel Marshall, ao analisar a atuação dos comandantes nas duas grandes guerras mundiais, como ilustram as citações a seguir:

A idéia mais radical apresentada é a de que o líder, para ter certeza do acerto de suas operações, nada melhor pode fazer do que concentrar a atenção em seus homens. Não existe caminho melhor do que este. Ilude apenas a si mesmo, quem crê na existência de um tipo de eficiência militar que consiste em caminhar com elegância, expedir papéis, conseguir perfeição nas informações e, ao mesmo tempo, menospreza ou ignora a natureza humana de seus comandados. A arte de comandar, em operações de pequena ou grande envergadura, é a arte de lidar com seres humanos: de trabalhar com inteligência em proveito dos homens, de ser compreensivo com eles, mas, igualmente, de sentir que encaram de frente os seus próprios problemas. Estas são as bases reais das mais importantes cogitações do comando.46

Um comandante nunca está perdendo tempo, quando fala aos seus homens a respeito de seus problemas. Mais freqüentemente do que se pensa, o problema lhe parecerá insignificante, mas, desde que pareça importante para o homem, não pode ser resolvido com um aceno de mão. Ele crescerá na estima dos seus homens, na medida em que tratar dos seus casos com respeito.47

Entre os mais sérios problemas com que se defronta um comandante está a procura de meios para quebrar a timidez natural da grande maioria dos seus comandados. Isto só será conseguido se ele possuir suficiente domínio de si mesmo, para poder sair da sua concha e dar aos seus homens oportunidade para compreendê-lo como um ser humano e não como um autocrata que dá ordens. Nada de mais desastroso pode suceder a um comandante do que vir a ser encarado, por seus subordinados, como um indivíduo inabordável, cuja reputação o isola dos principais problemas da sua unidade, bem como de suas melhores recompensas. Mas, quando seu retraimento é devido à timidez e não a idéias errôneas sobre a melhor atitude a adotar no posto que ocupa, o único remédio é mergulhar a fundo no problema e, assim, adquirir confiança em si, à medida que aumentam seus conhecimentos sobre a personalidade dos homens e a natureza humana, em geral.48

Em consequência, para compreender de que modo podem favorecer a emergência de laços de liderança, faz-se mister que os oficiais desenvolvam um

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17 interesse genuíno por conhecer as ansiedades e expectativas dos cadetes, a cada fase do curso de formação, e que se sensibilizem quanto aos interesses de seus subordinados, sob a perspectiva do respeito mútuo. Interesse que se converta na disponibilidade para a escuta dos diferentes pontos de vista e na demonstração de empatia. Quanto a isso, cabe ressaltar novamente que ninguém manifesta interesse genuíno em obediência a uma ordem, tampouco encenando um personagem, que não corresponda às suas reais convicções. A capacidade para tanto não reside apenas nas esferas racional e comportamental, mas fundamentalmente nos campos afetivo e ético – cujo desenvolvimento escapa a uma perspectiva instrucionista. A Capitão de Mar e Guerra Erica Nobre considera que os verdadeiros líderes militares seriam “íntegros, exigentes e, também, justos, sábios e humanos”, com um perfil ético caracterizado por quatro virtudes básicas:

a integridade, que se baseia na defesa de convicções éticas; a responsabilidade pelas consequências das decisões e por servir aos outros; a compaixão, que significa importar-se ativamente com os outros; o perdão, isto é, a capacidade de aceitar o erro como inerente à natureza humana, reconhecendo a si próprio e aos outros como passíveis de falha e de recuperação.49

Vimos que a emergência da liderança está fortemente imbricada ao contexto vivido pelos liderados, particularmente às expectativas e inseguranças que derivam das características desse contexto. Tendo em vista a natureza da profissão militar, um aprofundamento a respeito das implicações de situações de crise e da realização de atividades de risco sobre a psicologia do indivíduo e a dinâmica grupal seria de grande valia para a compreensão das demandas da liderança em tais contextos. No caso específico da AMAN, torna-se de grande importância para o educador analisar as particularidades do processo de socialização vivenciado pelos cadetes, a fim de visualizar as expectativas depositadas pelos discentes sobre as figuras de autoridade. Nesse cenário, podem ser identificadas diversas “crises” ou problemas característicos de cada etapa da formação, para os quais os discentes precisam buscar respostas e construir soluções. Para os oficiais, torna-se fundamental identificar e compreender tais necessidades coletivas e individuais, a fim de que possam atuar como referência, transmitir segurança e proporcionar o necessário amparo.

Obviamente, isso não significa atender sem restrições às demandas do educando, nem estabelecer uma relação de “fusão” com o outro, em que se perde a noção dos limites e papéis. Significa, sim, reconhecendo e compreendendo a desigualdade existente, em termos de hierarquia, conhecimento, experiência e papéis,

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18 conceder ao outro o direito de ser tratado com dignidade. Mais ainda, significa aceitar que sua autoridade apenas torna-se genuína e produtiva se for exercida em benefício do outro e que, em última análise, só existe verdadeiramente em função deste outro, e não como um fim em si mesma.

Referências 1

BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 22. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.

2 VAN MAANEN, J. Processando as pessoas – estratégias de socialização

organizacional. In: FLEURY, M.T.L.; FISCHER, R.M. (Coord.) Cultura e poder nas organizações. São Paulo: Atlas, 1989.

3

SCHEIN, H. E. Organizational Culture and Leadership. 2. ed. San Francisco: Jossey-Bass Publisher, 1992.

4

HOFSTEDE, G. Culturas e organizações: compreender a nossa programação mental. Lisboa: Sílabo, 1997.

5

Cf.KIM, T.Y.; CABLE, D. M.; KIM, S. P. Socialization tactics, employee proactivity, and person-organization fit. Journal of Applied Psychology, v. 90(2), p. 232-41, mar. 2005.

6

Cf.THOMAS, H. C.; ANDERSON, N. Newcomer adjustment: the relationship between organizational socialization tactics, information acquisition and attitudes. Journal of Occupational and Organizational Psychology, 75, p. 423-437, Dec 2002.

7

SENNETT, R. Autoridade. Rio de Janeiro: Record, 2001.

8

1959 apudRIGGIO, R. E. Introduction to industrial/organizational psychology. New Jersey: Prentice-Hall, 2000.

9

WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB, 1999. v. 1. p. 139.

10

Ibid. loc. cit.

11

Ibid. p. 141.

12

HUNTINGTON, S. P. O soldado e o estado: teoria e política das relações entre civis e militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996. p. 35.

13

WEBER, M. Op. cit. p. 145.

14

SENNETT, R. Op. cit.

15

ANZIEU, D.; MARTIN, J.Y. La dinâmica de los grupos pequeños. Buenos Aires: Kapelusz Editorial, 1971.

16 Ibid. p. 44, tradução e grifo nossos. 17

Ibid. p. 48, tradução nossa.

18

Ibid. p. 49, tradução nossa.

19

MOURA, W. Curso de Psicologia Social do Poder. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social. Rio de Janeiro, 2005.

20

SENNETT, R. Op. cit. p. 14.

21

Ibid. p. 27.

22

(19)

19

23

Ibid. p. 165.

24

SENNETT, R. Respeito: a formação do caráter em um mundo desigual. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 295.

25

SOUZA, E. L. P. Treinando gerentes para o futuro. São Paulo: Edgard Blücher, 1992. p. 74-75.

26

MOURA, W. Op. cit.

27

MEINDL, J. M. Reinventing Leadership: A Radical, Social Psychological Approach. In: MURNINGHAM, J.K. Advances in Theory and Research. New Jersey: Prentice-Hall, 1993. p. 89-118.

28

JANOWITZ, M. O soldado profissional: um estudo social e político. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1967. 29 Ibid. p. 40. 30 Ibid. p. 46-47. 31 Ibid. p. 41. 32 Ibid. p. 43. 33 Ibid. p. 45. 34 Ibid. p. 48-49. 35

MEINDL, J. Op. cit.

36

Ibid.

37

STAW, 1975 apud MEINDL, op. cit.

38

CALDER, 1977 apud MEINDL, op. cit.

39

KERR; JERMIER, 1978 apud MEINDL, op. cit.

40

MEINDL, J., op. cit. p. 115.

41

JANOWITZ, M., op. cit. p. 51.

42

NOBRE, E. B. Crenças de superiores e subordinados sobre o perfil do líder militar-naval brasileiro neste final de século. Rio de Janeiro, 1998. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social, Cognitiva e da Personalidade.

43

D´ÁVILA, P. R. Teorias de liderança e desenvolvimento da liderança no Exército Brasileiro. Rio de Janeiro, abril, 2004. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social.

44

VALENTE, T. A. Capacitação de liderança militar: análise de resultados. Rio de Janeiro, maio, 2007. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social.

45 NOBRE, E. B. Construção de uma consciência ética na formação militar: uma

abordagem psicológica. Revista Villegagnon, Escola Naval, n. 3, 2008. p.7.

46 MARSHALL, S. L. A. Homens ou fogo? Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2003.

p. 164.

47

Ibid. p. 175.

48

(20)

20

49

NOBRE, E. B. Construção de uma consciência ética na formação militar: uma abordagem psicológica. Revista Villegagnon, Escola Naval, n. 3, 2008. p.8.

Agradecimentos

O presente artigo constitui uma adaptação da monografia “Desafios da autoridade na socialização profissional de oficiais combatentes do Exército”, desenvolvida no Curso de Psicologia Social do Poder, ministrado pelo Prof. Dr. Wilson Moura, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2005. Ao Prof. Wilson Moura, meus sinceros agradecimentos pela valiosa orientação proporcionada.

Todos os posicionamentos apresentados neste artigo são de exclusiva responsabilidade da autora. Entretanto, a interlocução com diversos oficiais, que apresentaram suas críticas e sugestões sobre o texto, contribuiu sobremaneira para a elaboração da versão final. A esses oficiais, que nomeio a seguir, expresso minha gratidão pelo companheirismo e engajamento em relação ao tema: Cel Art Wagner Pina Stoffel, Ten Cel Inf Gilberto da Silva Breviliere, Ten Cel Com Marcelo Souza de Araújo, Cap QCO Túlio de Alcântara Valente e 2º Ten OTT Débora Cavalcante Duarte Uchoa.

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