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PERSPETIVISMO E ARGUMENTAÇÃO

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PERSPETIVISMO

E ARGUMENTAÇÃO

Nota introdutória de Manuel Maria Carrilho

Rui Alexandre Grácio

Obras publicadas na Coleção Poiesis

1. Ricardo Grácio, «Não percebo poesia»

«Neste pequeno mas precioso livro que agora pu-blica, Perspetivismo e Argumentação, Rui Alexandre Grácio propõe-se proceder a um oportuno balanço e a uma síntese do seu percurso. E fá-lo a partir de uma pergunta central — como teorizar a argumen-tação? — que desdobra em duas vertentes: a do apuramento dos fenómenos que a teoria da argu-mentação estuda, e a das suas tarefas descritivas fundamentais».

Mostrar e explorar os modos pelos quais se constroem visibilidades, inte-ligibilidades e modos de compreensão do mundo. Saber pensar com as ferra-mentas que, tanto individualmente como em sociedade, utilizamos para fazer com que o mundo se nos mostre. Alimentar a curiosidade e o espanto, fundamentais para todos aqueles que, no seu percurso pelo nosso tempo, queiram e procurem exercer o espaço da criatividade que é nada mais nada menos que o espaço possí-vel da sua liberdade. Dar a ver, intro-duzir, seduzir o maior número possível de pessoas para a compreensão das www.ruigracio.com R u i A le x a n d re G rá ci o P E R S P E T IV IS M O E A R G U M E N T A Ç Ã O

Rui Alexandre Grácio é investigador, autor e editor. A sua formação nas áreas da filosofia e da comunicação levou-o a focalizar as suas investiga-ções no domínio da linguagem, da retórica e da argumentação.

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PERSPETIVISMO

E ARGUMENTAÇÃO

Nota introdutória de Manuel Maria Carrilho

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FICHA TÉCNICA Diretor da coleção poiesis:

Ricardo Grácio

Título:

Perspetivismo e argumentação

Autor:

Rui Alexandre Grácio

Nota introdutória: Manuel Maria Carrilho

Revisão: Heitor Grillo Capa: Grácio Editor Design gráfico: Grácio Editor 1ª Edição: Abril de 2013 ISBN: 978-989-8377-42-5 Dep. Legal: © Grácio Editor

Avenida Emídio Navarro, 93, 2.º, Sala E 3000-151 COIMBRA

Telef.: 239 091 658 e-mail: editor@ruigracio.com sítio: www.ruigracio.com Reservados todos os direitos

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NOTA INTRODUTÓRIA

Manuel Maria Carrilho

Rui Alexandre Grácio é autor de uma das mais in-teressantes obras que, no âmbito da retórica e da teoria da argumentação, se têm vindo a publicar em Portugal. Iniciada há vinte anos com o livro Racionalidade

Argumentativa, e depois prosseguida num regular

con-junto de trabalhos, ela adquiriu um estatuto incontorná-vel entre 2009 e 2012, com obras como Discursividade e

Perspetivas, A Interação Argumentativa, Fenomenolo-gia, Hermenêutica, Retórica e Argumentação e,

final-mente, Teorias da Argumentação.

Neste pequeno mas precioso livro que agora publica,

Perspetivismo e Argumentação, Rui Alexandre Grácio

propõe-se proceder a um oportuno balanço e a uma síntese desse percurso. E fá-lo a partir de uma pergunta central — como teorizar a argumentação? — que desdobra em duas vertentes: a do apuramento dos fenómenos que a teo-ria da argumentação estuda, e a das suas tarefas descri-tivas fundamentais.

O que interessa a Rui Alexandre Grácio é avaliar as teorias da argumentação em termos de adequação

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descri-tiva, isto é, de uma compreensão que, como afirma, consiga captar, sem ilusões formais nem funcionalistas, a dinâmica prática e o sentido vital dos processos argumentativos.

O essencial da sua estratégia é procurar a “boa dis-tância” que possa abrir caminho à inteligência da efetivi-dade argumentativa, aceitando naturalmente situá-la sempre num determinado contexto, mas resistindo à “do-mesticação criteriológica” que tende sempre a apagar tanto a conflitualidade como a contingência, na variedade das suas múltiplas declinações argumentativas.

É justamente esta opção que leva Rui Alexandre Grácio a valorizar a articulação da argumentação com o perspeti-vismo, porque a seu ver é nela que justamente se concretiza sempre o “confronto de visões e de versões que é inerente à problematicidade de toda a questão argumentativa”.

Deixo naturalmente ao leitor o convite para seguir o meticuloso percurso conceptual que Rui Alexandre Grácio propõe, em torno de noções como a de “assunto em ques-tão”, “oposição” ou “tematização”, e com que procura abrir um novo caminho entre as teorias restrita e generalizada da argumentação, entre uma orientação mais descriti-vista e uma avaliação mais normatidescriti-vista, um caminho que se concentra na interação argumentativa e assume o seu incontornável registo tensional.

Mas não quero deixar de sublinhar um ponto: é que o recurso ao perspetivismo que inspira Rui Alexandre Grá-cio nesta sua original abordagem da argumentação me

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pa-rece tão fundamentado como fecundo. Com efeito, apesar da discrição com que o mobiliza, é ele que permite libertar a tematização argumentativa dos constrangimentos mais ou menos formais do raciocínio, para a ligar à plasticidade que sempre caracteriza qualquer perspetiva.

E o perspetivismo, é bom lembrá-lo, foi desde as suas já remotas mas muito esquecidas raízes nietzscheanas, uma radical inversão das prerrogativas da ordem dos fac-tos sobre o registo da interpretação. E o que ele consagrou com esta inversão, foi um novo tipo de primado, o da in-terpretação, que interdita a prevalência de uma qualquer perspetiva particular, ao mesmo tempo que apresenta o mundo como o resultado de uma combinatória, sempre aleatória e em aberto, de múltiplas perspetivas. É por isso que, como Rui Alexandre Grácio bem assinala, a perspe-tiva remete para uma “inultrapassável retoricidade da linguagem, para a coexistência de versões alternativas e para um registo tensional conflitual.”

Perspetivismo e Argumentação dá ao leitor o

ba-lanço prometido e a síntese anunciada. E fá-lo com um respeito exemplar pelas contribuições fundamentais que, desde a antiguidade grega até à atualidade mais recente, pontuam o essencial da reflexão sobre a argumentação e as suas teorias.

Mas este livro tem também um lastro prospetivo, que abre vias para o futuro e leva a pensar que a teoria da in-teração argumentativa de Rui Alexandre Grácio, se for

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articulada com a temática da racionalidade, conduz a uma possibilidade nova: a de pensar a racionalidade, não nos tradicionais moldes da convicção e da persuasão, mas em termos de coexistência e de convivialidade. É justa-mente este, a meu ver, o desafio que agora se coloca ao al-cance de Rui Alexandre Grácio e da sua nova concepção da atividade argumentativa.

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1.

INTRODUÇÃO

Como teorizar a argumentação?

Eis a pergunta que aqui pretendo abordar, descre-vendo algumas etapas do meu caminho de investigação sobre este tema e assinalando algumas das propostas teóricas a que esse percurso me conduziu.

Do mapa da trajetória faz parte a tradução portu-guesa de diversos artigos e livros, de que destaco O

im-pério retórico, de Chaïm Perelman, em 1993, e A argu mentação, de Christian Plantin, em 2010, e a

au-toria de livros como Racionalidade argumentativa (1993), Consequências da Retórica (1998),

Discursivi-dade e perspetivas (2009), A interação argumentativa

(2010) e, mais recentemente, Fenomenologia,

Herme-nêutica, Retórica e argumentação (2011) e Teorias da argumentação (2012).

Diga-se, antes de mais, que enunciar a questão «como teorizar a argumentação?» significa que a constatação da diversidade de vias teóricas — grande parte das vezes altamente dissonantes — que podemos encontrar neste domínio de estudos levou a que ques-tionasse a teorização da argumentação em termos da sua adequação descritiva.

As perguntas que me nortearam foram as de saber que fenómenos estuda a teoria da argumentação (o

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dis-curso? O funcionamento da língua? Os mecanismos de influência persuasiva? As normas do bom raciocínio? A avaliação de argumentos? A interação argumenta-tiva?...) e quais as suas tarefas descritivas.

um aspeto decisivo na resposta a estas perguntas — e assumindo que a distância a que se coloca a lente analítica, alterando a escala entre o macro e o micro, fo-caliza efeitos diferentes — passava por saber a que dis-tância colocar afinal a lente teórica de modo a captar a

dinâmica prática e o sentido vital dos processos

argu-mentativos.

Tratava-se, por conseguinte, de achar aquilo a que se poderia chamar «a boa distância». E, ao mesmo tempo, de tecer uma crítica às distorções que uma ex-cessiva diferenciação funcional na abordagem da argu-mentação — perspetiva que tem na sua base a crença na fecundidade que pode resultar da aliança entre pro-cedimentos analítico-proposicionais e a formulação de critérios lógico-normativos de avaliação — acaba por introduzir na compreensão das dinâmicas das práticas argumentativas vivas. Em termos clássicos, a questão de fundo que aqui está presente é o da decisão teórica im-plicada na forma de conceber a articulação entre os pla-nos lógico, argumentativo e retórico.

Se hoje a importância da noção de «contexto» é um adquirido nos estudos da argumentação, o facto é que muitos teorizadores — com Douglas Walton à ca-beça — procuram tipificar esses contextos como

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«for-mas de diálogo». Apesar de se filiarem na chamada ló-gica informal, procuram formalizar os contextos de diá-logo e apostam numa teorização funcional da argu mentação centrada na elucidação dos argumentos em termos de raciocínio.

No entanto, do meu ponto de vista, a teorização ba-seada na diferenciação funcional acaba por subtrair às práticas argumentativas a sua ligação a visões essencial-mente filosóficas e políticas que estão no cerne da abor-dagem dos assuntos na vida prática e tendem a con vertê-las em técnicas resolutivas e padronizadas, dando a impressão que, ao seu contexto matricial de in-certeza e de imprecisão, aos requi sitos de criatividade e de performance que convocam e à situação oposicional que então emerge, se pode sobrepor a priori uma qual-quer criteriologia lógica, seja esta formal ou informal.

É por isso que a domesticação criteriológica da ar-gumentação, se bem que propícia à pedagogia e a uma bizarra emergência da figura especializada do «argu-mentólogo», é incomensurável com a tematização re-tórico-problematológica que eu subscrevo e que é sensível às questões da conflitualidade social, da esco-lha política e da liberdade.

Com efeito, a primeira tende para a assepsia da po-lítica — entendida como inscrição numa perspetiva e tomada de posição relativamente a um assunto em questão —, valorizando assim não o momento perspe-tivo, mas o ajustamento justificativo; a segunda, pelo

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contrário, insiste num confronto de visões e de versões inerente à problematicidade de toda a questão argu-mentativa, relativamente à qual se pode procurar fazer prevalecer, em termos práticos, tendências de resposta, mas não soluções teóricas que a fariam desaparecer.

A primeira, para além propor guias de interpreta-ção, tende a conduzir o estudo da argumentação à aná-lise e avaliação de raciocínios; a segunda reconhece a inevitabilidade do conflito das interpretações e valoriza as noções de problema, de assunto em questão, de

oposi-ção e de tematizaoposi-ção como definidoras da focalizaoposi-ção

que convém à abordagem das situações de argumenta-ção. Neste sentido as próprias ideias e critérios, na sua articulação com o assunto em questão são argumentos, e não apenas o movimento da sua justificação.

A primeira aponta para instâncias meta-argumen-tativas na avaliação das argumentações. A segunda atém-se à ideia que qualquer avaliação de uma argu-mentação é sempre uma forma de participar numa ar-gumentação e não um exercício douto de comentário magistral.

Finalmente, ao contrário da perspetiva da pri-meira, que pensa nos termos mais domésticos da con-formidade às «regras do jogo», a segunda pensa nos termos mais desafiantes e dinâmicos das regras a des-cobrir, das soluções que ainda não temos e das hipóte-ses que simultaneamente testamos e nos testam.

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Este plano está, aliás, bem evidenciado na passa-gem do livro de G. Bateson, Steps to an Ecology in Mind (pp. 19-20) e, particularmente, no texto «Sobre os jogos e ser-se sério», onde se pode ler:

«F: És tu quem faz as regras, paizinho? Isso é justo? P: Isso, filha, é um golpe baixo. E, provavelmente, também injusto. Mas vou aceitar isso como um valor nominal. Sim, sou eu quem faz as regras — afinal, não quero que enlouqueçamos. F: Está bem. Mas, paizinho, também mudas as

re-gras? Às vezes?

P: Hmm... mais um golpe baixo. Sim filha. Mudo--as constantemente. Não todas, mas algumas. F: Gostava que me dissesses quando as vais mudar! P: Hmm — sim — uma vez mais. Quem me dera poder. Mas não é assim. Se fosse como o xadrez ou a canasta, podia dizer-te as regras e podía-mos, se quiséssepodía-mos, parar de jogar e discutir as regras. E depois poderíamos começar um novo jogo com as novas regras. Mas que regras nos aguentariam entre os dois jogos? Enquanto es-tivéssemos a discutir as regras?

F: Não percebo.

P: Sim. O objetivo destas conversas é descobrir as «regras». É como a vida — um jogo cujo pro-pósito é descobrir as regras, as regras que estão sempre a mudar e sempre indescobríveis».

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2.

A QUESTÃO DA ADEQUAÇÃO

DESCRITIVA NA TEORIZAÇÃO DA

ARGUMENTAÇÃO

Importa, todavia, explicitar melhor o que entendo por «adequação descritiva», sublinhando dois aspetos: em primeiro lugar, esta expressão não aponta para qual-quer aspiração de correspondência entre a teorização que irei propor e a realidade: trata-se, com efeito, de um dispositivo retórico destinado a fazer emergir uma certa forma de inteligibilidade; em segundo lugar, esta expres-são significa uma opção por um determinado modo de ver que creio poder ser fecundo e que assume não só que os processos de seletividade se dão ao nível da própria descrição como, ainda, que eles são incontornáveis na produção de qualquer teoria.

Para esclarecer melhor os processos seletivos da des-crição no que diz respeito à teorização da argumentação vale a pena recorrer a dois excertos de Aristóteles.

O primeiro, retirado dos Tópicos, circunscreve o âmbito da argumentação, remetendo-o para um domí-nio que nem é próximo nem longínquo — ela exerce-se num plano intermédio — e diz o exerce-seguinte:

«não é necessário analisar nem toda a tese, nem

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a dificuldade proposta pode dificultar alguma das que necessitam de argumento. (...) A controvérsia nunca se deve criar nem acerca de assuntos cuja

monstração é próxima, nem de assuntos cuja de-monstração é longínqua. No primeiro caso não há

qualquer dificuldade e, no segundo, as aporias são muito grandes para um simples exercício

disputa-tivo» (Aristóteles, 1987: 105a: subl. meu).

Realce-se, desta passagem, a ideia de que numa ar-gumentação nunca está tudo em questão, havendo de-terminados aspetos que são considerados como adquiridos — o que significa que a argumentação re-mete para uma ancoragem contextual e pressuposicio-nal — e a de que ela se exerce no registo da controvérsia e da disputa — o que indica que, mais do que com o discutível, ela se ocupa com o ato de discussão e com que realmente é discutido.

Mas um terceiro aspeto importa salientar, que é a indicação do caráter intermédio em que se situam as controvérsia argumentativas, balizadas entre uma

evi-dência que dispensaria a disputa e a utilização de meios demonstrativos que requereriam especialização.

Poderíamos dizer, por conseguinte, que a compe-tência retórico-argumentativa deve ser considerada como solidária de uma certa espontaneidade inerente ao

homem comum na sua dimensão de ser social. vão, aliás,

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que «é manifesto que a retórica não é uma simples teoria das formas do discurso e dos meios de persuasão, mas que a partir de uma aptidão natural podemos dela ter uma mestria prática, mesmo sem proceder a uma reflexão teórica sobre os meios de que ela dispõe» (1982: 125). Acrescentaria, ainda que sem aprofundar, que este ponto é fundamental para, mais do que falar na argu-mentação como técnica ao serviço de objetivos, e por-tanto, de uma forma meramente instrumental, salientar o caráter vinculativo dos processos argumentativos na sua relação com o Si (Self), postos em evidência, por exemplo, por H. Johnstone Jr. (1965: 6) quando es-creve que «uma pessoa que opta por argumentar opta, de facto, por ela mesma».

Desta mesma ideia faz eco Marc Angenot quando refere que «os humanos argumentam e debatem, tro-cam ‘razões’ por dois motivos imediatos, logitro-camente anteriores à esperança, razoável, pouca ou nenhuma, de persuadir o seu interlocutor: argumentam para se

jus-tificarem, para encontrarem face ao mundo uma

justi-ficação (...) inseparável de um ter razão — e eles argumentam para se situarem relativamente às razões dos outros, testando a força e a coerência que imputam às suas posições, para se posicionarem (eventualmente com elas) e, segundo a metáfora polémica, para susten-tarem estas posições e se colocarem em posição de re-sistir» (2008: 441).

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O segundo extrato de Aristóteles, desta vez prove-niente da Ética a Nicómaco, diz respeito ao caráter das conclusões nos processos de argumentação: elas não são demonstrativas no sentido de uma necessidade de tipo lógico-matemático, até porque não se tecem no nível da microscopia da articulação formal dos raciocínios, mas remetem para formas de abordar discursivamente

assuntos em que o que está em causa é apresentar perspe-tivas sobre eles. A passagem é a seguinte:

«damo-nos, portanto, por satisfeitos se, ao tratar-mos destes assuntos, a partir de pressupostos que admitem margem de erro, indicarmos a verdade

grosso modo, segundo a sua caracterização apenas

nos traços essenciais. Pois, para o que acontece o mais das vezes, com pressupostos compreendidos

apenas grosso modo e segundo a sua caracterização nos traços essenciais, basta que as conclusões a que

chegamos tenham o mesmo grau de rigor. (...). Na verdade, parece um erro equivalente aceitar con-clusões aproximadas a um matemático e exigir de-monstrações a um orador» (Aristóteles, 2009: 1094b. Itálicos meus).

Por conseguinte, o nível intermédio em que se exerce a argumentação é correlativo não do detalhe e do rigor dos raciocínios matemáticos, mas de visões que lidam com o grosso modo e com os traços essenciais. Se

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a tradição filosófica e científica, em virtude da sua ins-piração no modelo de pensamento matemático, levará a desvalorizar as ideias comuns como vagas e confusas, o facto é que, neste excerto, Aristóteles atribui-lhes levância tendo certamente presente a ideia de que a re-tórica e a dialética se ocupam «de questões mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e não corres-pondem a nenhuma ciência em particular» (1998: 43).

Numa outra passagem refere ainda que a função da retórica «consiste em tratar das questões sobre as quais deliberamos e para as quais não dispomos de artes es-pecíficas, e isto perante um auditório incapaz de ver muitas coisas ao mesmo tempo ou de seguir uma longa cadeia de raciocínio» (1998: 51).

Façamos um pequeno parêntesis a propósito destas duas últimas afirmações, propondo que elas sejam com-preendidas não a partir daquilo a que hoje poderíamos designar como a assimetria entre leigos e especialistas e da tendência para converter estes últimos em palavra de autoridade mas, antes, no quadro da valorização de uma paridade cidadã e da competência de participação na vida comum para que a própria noção de cidadania remete.

Este aspeto torna-se, aliás, crucial para distinguir aquilo que poderíamos designar como um uso mera-mente técnico e instrumental da argumentação, que no contexto do atual individualismo e de uma sociedade fascinada pelo poder dos meios é vulgarmente temati-zado sob o signo da eficácia — pondo-se então a tónica num receituário técnico de estratégias de comunicação

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de acordo com as finalidades de diferentes áreas de ati-vidade profissional que presumidamente melhorarão o

resultado dos desempenhos1— de um uso

não-profis-sional da argumentação, essencialmente ligado às visões gerais que a todos importam e que remetem não para o êxito ou para o brilho individual, mas para a delibe-ração partilhada e portadora de um sentido simultanea-mente singularizado e comunitário.

Aliás, é colocando a prática argumentativa neste úl-timo quadro, ou seja, como algo que ocorre no âmbito de uma sociedade civil e no quadro da participação ci-dadã que podemos preservar a sua conceptualização da-quilo que seria uma subordinação contranatura às cegueiras da eficácia e ao dogmatismo da autoridade, seja esta personificada pela imagem do juiz que detém a última palavra, pelos mecanismos que desautorizam a palavra de quem se exprime ou por diferenciações fun-cionais que não permitem questionar as perspetivas a partir das quais se pensa.

É que, para além do mais, movemo-nos aí na zona do provável, a qual, como assinala Angenot (2008: 69), embora seja uma «zona do conhecimento onde, nos melhores dos casos sabemos coisas, mas vagamente e de uma forma imprecisa». se revela todavia indispensável 1Note-se como, Roger Fisher , William ury e Bruce Patton, autores do livro Como

Conduzir uma Negociação (1993, Edições ASA), intitulam o primeiro capítulo com um sugestivo «Não discuta posições» como regra da ouro para o «Getting Yes» (título original da obra). E justificam: «discutir posições dá origem a acor-dos insensatos» (p. 24).

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para lidar com o mundo «dóxico» da sociabilidade, do viver juntos e da geração de afinidades na qual se joga o destino comum. Com efeito, como bem assinalou M. M.ª Carrilho (2012: vol II, p. 37), a racionalidade «não é o privilégio de nenhuma cultura, mas a matriz, muito diversificada, do modo como os homens lidam com as tradições que herdam, os contextos em que vivem, os problemas que enfrentam e os sonhos que os movem». Donde, se a propósito da argumentação podemos falar de racionalidade, ser fundamental saber onde colocar a tónica. Direi, a este propósito, que não se trata de con-vencer, mas de conviver.

Este ponto — o da importância do nivelamento das práticas argumentativas com o estatuto de cidadão pertencente a uma sociedade civil pautada pelo mutua-lismo dialógico — foi bem referido por Hamblin, num texto que vale a pena citar, e no qual ele renuncia ou-torgar aos lógicos a possibilidade de se investirem como juízes dos argumentos: «se ele [o lógico] disser ‘As pre-missas do Smith são verdadeiras’ ou ‘O argumento do Jone é inválido’, está a tomar posição no diálogo exata-mente como se fosse um dos participantes; mas, a não ser que ele esteja de facto envolvido num diálogo de se-gunda ordem com outros observadores, a sua observa-ção mais não diz do que ‘Aceito as premissas do Smith’ ou ‘Não aprovo o argumento do Jone’. Aos lógicos é certamente permitido exprimirem os seus sentimentos, mas há algo de repugnante na ideia da Lógica ser o

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veí-culo da expressão dos próprios juízos de aceitação ou de desacordo do lógico relativamente a afirmações ou a argumentos. O lógico não se situa acima e fora da ar-gumentação prática ou necessariamente emite sobre ela juízos. Não é um juiz nem um tribunal de apelo, e não existe um tal juiz nem um tal tribunal: quando muito, ele é um advogado com experiência. Daqui decorre que não é um trabalho específico do lógico declarar a ver-dade de qualquer afirmação, ou a valiver-dade de qualquer

argumento» (1970: 244).

Pensamos, pois, que é no âmbito do quadro de uma certa paridade comunitária e no quadro de uma convivencialidade dialógica (posicionar-se, ser ouvido, ser tido em conta) possibilitadora da emergência de um Si (Self) — portador de uma posição a considerar e com as prerrogativas de duvidar, questionar, de propor e de contra-argumentar — que podemos encontrar a espe-cificidade do campo da argumentação.

Entendemos, por outro lado, que é neste enquadra-mento que verdadeiramente tem sentido falar das práticas argumentativas como forma de co-construção na qual se ensaia, com todos os inevitáveis constrangimentos, a con-cretização do possível. E é também por essa via que, como nota Plantin (1996: 21), podemos ligar a argumentação «se não a uma sociedade democrática, pelo menos a uma situação democrática». Ou que podemos dizer, como de-fende Wolton (1995: 11-13) que há uma «filiação direta entre democratização, comunicação e argumentação»,

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sendo que «sem argumentação, não há comunicação. Talvez haja expressão, mas não há troca (...). Comunicar com outrem, entendido como um outro, igual a , implica pois o recurso à argumentação. (...) A argumentação é a ‘prima direita’ da liberdade de comunicação». Podemos, finalmente, invocar as palavras de Bauman quando subli-nha que «a verdade é um conceito essencialmente anta-gonístico» (2006: 186) e que, por isso, mais do que prever, o orador deve saber esperar e dar tempo ao tempo, porque depende da palavra do outro. Refere assim este sociólogo que «o facto dos outros discordarem de nós (não prezarem o que prezamos e prezarem justamente o contrário; acreditarem que o convívio humano possa be-neficiar de regras diferentes daquelas que consideramos superiores; acima de tudo, duvidarem de que temos acesso a uma linha direta com a verdade absoluta e também de que sabemos com certeza onde uma discussão deve ter-minar antes mesmo de ter começado) não é um obstáculo no caminho que conduz à comunidade humana. Mas a convicção de que as nossas opiniões são toda a verdade, nada além da verdade e sobretudo a única verdade exis-tente, assim como a nossa crença de que as verdades dos outros, se diferentes das nossas, são ‘meras opiniões’, esse sim, é um obstáculo (2006: 184).

Fechemos este parêntesis, onde procurámos subli-nhar a ligação entre as práticas argumentativas e o exer-cício da cidadania, e voltemos aos textos de Aristóteles acima citados.

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Em ambos os excertos, assim me parece, estamos perante a problemática da adequação descritiva, ou seja, face à indicação da especificidade do campo da argu-mentação relativamente a outros domínios.

O mesmo acontece com os três excertos em seguida apresentados, cuja preocupação — e esta preocupação remete já para aspetos de confrontação na abordagem teórica da argumentação — continua a ser a da adequa-ção descritiva.

O primeiro assinala a irredutibilidade da dinâmica das situações argumentativas à análise lógica, seja esta formal (validade) ou informal (plausibilidade). Diz o seguinte:

«como seria caricato se uma situação argumentativa tivesse de ser interrompida a todo o tempo e vezes sem conta só para que os respetivos destinatários, munidos de lápis, se pudessem certificar da forma lógica de cada

argumento, da sua validade formal, ou mesmo da sua plausibilidade» (Tito Cardoso e Cunha e Américo

de Sousa, 2005: 1834-1835. Itálicos meus).

Esta passagem caricatura não só a adequação da aná-lise da dinâmica das argumentações do ponto de vista ló-gico como subentende que esse tipo de abordagem passa ao lado do que realmente acontece numa situação

argu-mentativa (conceito este, de situação argu men tativa, que

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argu-mentação na sua ligação ao contexto como, ainda, para o abrir à multidimensionalidade e a uma pluralidade de aspetos que é preciso considerar). Podemos, com efeito, perguntar de quantos raciocínios se faz uma argumen-tação. Tal como podemos pensar na relação entre a ar-gumentação e o tempo útil em que ela se desenrola. Perelman, por exemplo, não se cansou de assinalar a im-portância do papel — e dos constrangimentos — da temporalidade nas argumentações, tal como Aristóteles (1998: 155. Itálico meu) já havia referido, na sua

Retó-rica, que é «indispensável, antes de tudo, ter selecionado

sobre cada assunto o conjunto de propostas do que é

possível e mais oportuno».

Esse mesmo aspeto — ou seja, o caráter infrutífero da colocação da tónica na análise dos processos lógico-inferenciais quando se trata de compreender e analisar argumentações — não passou desapercebido a Thomas Conley que, vincando a dimensão situacional dos mentos e, ao mesmo tempo, afastando as análises argu-mentativas dos esquemas argumentativos considera dos isoladamente, salientou que «reescrever um argumento numa forma silogística ou pôr a nu o seu esquema infe-rencial subjacente é o equivalente a explicar uma ane-dota. E todos sabemos o que acontece quando fazemos isso. A anedota deixa de ter piada».

E pergunta: «não faz muito sentido criticar um ar-gumento — ou um poema, ou uma novela — criticando a sua reescrita, pois não? (...) Em suma, se uma anedota é boa ou não — e, de facto, aquilo que a anedota é — é

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um assunto profundamente situacional, envolvendo o contador, o auditório, as convicções e os valores parti-lhados e a propriedade da anedota: precisamente as mes-mas coisas que figuram na decisão de saber se um argumento é bom ou não» (2003: 269-271).

Donde, conclui o autor, «a tradição valoriza a reescrita sobre o discurso original, o latente sobre o ma-nifesto e exige rigor matemático e elegância matemática acima de tudo. Há talvez momentos e lugares em que tais coisas são importantes. Mas as pessoas que adotam uma tal visão quando se trata de inventar, analisar e jul-gar argumentos, simplesmente não captam, na minha opinião, a coisa» (idem: 274).

Na segunda citação vemos também a recusa da consonância da análise da lógica categorial relativa-mente às situações de argumentação, falando o seu autor numa escala intermédia e do «mais ou menos» da lógica variável:

«a argumentação se enquadra inteiramente no reino do problemático», [sendo que] «lida com o proble-mático e ignora o trivial ou o certo, que depende das perceções e das escolhas das pessoas que decidirão se ver uma atividade como uma argumentação é apro-priado e que ela se situa na escala intermédia do

con-tinuum mais ou menos da lógica variável e não da lógica categorial» (Brockriede, 1992: 74 e 77).

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Esta citação faz eco da centralidade que Perelman atribuiu — abandonando a tradicional dicotomia entre a verdade e a falsidade — às ideias de intensidade e de

adesão no âmbito da sua teoria da argumentação. É aliás

de Perelman e de L. Olbrechts-Tyteca, a terceira das ci-tações que, no meu entender, se relaciona com a ques-tão da adequação descritiva:

«insistimos, antes de proceder ao estudo analítico dos argumentos, sobre o caráter esquemático e arbi-trário deste. Os elementos isolados com vista ao es-tudo formam, na realidade, um todo: eles estão em

interação constante e isso em vários planos: interação

entre os diversos argumentos enunciados, interação

entre estes e o conjunto da situação argumentativa,

entre estes e a suas conclusões e, finalmente, intera-ção entre os argumentos contidos no discurso e aqueles que os tomam por objeto» (Perelman e Ol-brechts-Tyteca, 1988: 610. Itálicos meus).

Nesta passagem, não se pondo em causa a sua uti-lidade, diz-se que o estudo dos argumentos é essencial-mente esquemático e arbitrário e apresenta-se, como fulcro das situações argumentativas, o seu dinamismo interativo.

É agora o momento para acrescentar que à questão inicial de que parti, ou seja, a questão da adequação des-critiva, que, como referi, se prendeu com a constatação de

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uma grande heterogeneidade na teorização da argumen-tação e, sobretudo, com a sensação de que, apesar da fe-cundidade das intuições das diferentes vias de teorização existia um fosso entre teoria e prática (como se o poder explicativo das teorias falhasse a compreensão das dinâ-micas práticas que mais importam), se juntou um duplo esforço: o de deslocar os fenómenos argumentativos da égide de uma razão que em si mesma encontra recursos para proceder à avaliação das argumentações e o de pensar a categoria do razoável como inclusiva do discurso do outro, o que implica uma dinâmica entre discurso e tradiscurso, entre falar e ouvir, entre argumentos e con-tra-argumentos a propósito de um assunto em questão.

Mas, se tomarmos como boa esta hipótese, então há que proceder a uma teorização da argumentação centrada em conceitos diferentes daqueles que estão generalizados, privilegiando, por um lado, a interação (a bilateralidade e a eventual progressão para além do díptico argumentativo inicial) em vez do discurso ou do texto e, por outro, no seu caráter situado, circunstanciado e episódico, em vez de normas formais, corretivas e ortopédicas.

A estas considerações relativas ao problema da ade-quação descritiva — e que obrigam, naturalmente, à te-matização de uma noção de argumentação —, associaram-se motivações provenientes da minha expe-riência enquanto estudioso e professor da argumenta-ção e retórica.

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3.

RUMO A UMA TEORIA GERAL

DA ARGUMENTAÇÃO: NEM

GENERALIZADA, NEM RESTRITA

Referi já, anteriormente, a diversidade teórica que ca-racteriza o atual estado da arte dos estudos da argumen-tação. Esta constatação é, aliás, assinalada por vários teóricos. Por exemplo, van Eemeren (2003: 2) escreveu que «o estudo da argumentação não resultou ainda numa teoria universalmente aceite. O estado da arte caracteriza-se pela coexistência de uma variedade de abordagens que diferem consideravelmente na conceptualização, propó-sito e grau de refinamento teórico, apesar de todas as abordagens modernas estarem fortemente influenciadas pela retórica e pela dialética clássicas e pós-clássicas».

Pelo seu lado, Plantin (2001: 71-92) observa que «o domínio dos estudos da argumentação não está es-truturado por qualquer coisa como um ‘paradigma’; para se chegar a um paradigma, seria preciso um mí-nimo de diálogo teórico — não significando obvia-mente diálogo um acordo, mas pelo menos uma forma de partilha de objetos, de métodos e mesmo de proble-máticas, que no momento não existe. Na ocorrência, cada obra se constitui como um paradigma».

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Finalmente, eis o que escreveram Marianne Doury e Sophie Moirand (2004: 9-10):«os investigadores que se reclamam da argumentação tentam assim definir um campo em , um campo inteiramente à parte, particular e autónomo. Mas a unidade deste campo afigura-se desde logo problemática em virtude da variedade de disciplinas conexas que encontram no caminho das suas investigações factos que relevam da argumentação sem que esta esteja forçosamente no centro das teorias ou das metodologias próprias destas disciplinas: assim acontece com a análise do discurso e com a linguística textual, com as ciências da comunicação e da informa-ção e com as ciências cognitivas nas suas relações com a linguagem humana e com as línguas naturais. Isso sem falar dos domínios de aplicação, como o ensino (pela via das formas e do prisma dos conectores), o marketing ou a comunicação política (pela via da influência sobre o outro e da força da persuasão), etc.».

Se esta heterogeneidade dá naturalmente que pen-sar — mesmo quando se põe de lado qualquer preten-são de homogeneizar ou estabelecer consenso —, a minha experiência na docência da argumentação e da retórica reforçou também este impulso reflexivo.

No que diz respeito às abordagens teóricas da ar-gumentação, subscrevi a ideia segundo a qual os pontos de partida das teorizações contêm inevitavelmente de-cisões especulativas (inerentes à língua, às ideias prévias com que se chega ao estudo da argumentação ou à

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apropriação disciplinar que dela é feita) e que, do ponto de vista do debate teórico, essas ideias devem ser postas em questão e problematizadas. Por outro lado, verifi-quei que, de um ponto de vista teórico, se constata a existência de dois extremos no que diz respeito à teori-zação da argumentação.

um, que classifiquei de «pan-argumentativista», tende a ver em qualquer manipulação simbólica uma es-tratégia argumentativa (o que acaba por diluir a argu-mentação na linguagem e na comunicação); estamos aqui numa espécie de um «tudo é argumentativo». Exemplos bem explícitos desta perspetiva podem ser en-contrados na seguintes passagens:

• «comunicar as suas ideias a alguém é sempre, pouco ou muito, argumentar» (Grize, 1997: 9). • «todo o discurso pode ser uma argumentação. Ele

propõe certas imagens, imagens situadas que têm por finalidade suscitar no destinatário inferências que vão no sentido desejado» (Grize,1996: 18). • «identificando esta [nova retórica] com o

dis-curso persuasivo, que visa ganhar adesão, tanto intelectual como emotiva, de um auditório, seja ele qual for, afirmamos que todo o discurso que não aspira a uma validade impessoal depende da retórica. Desde que uma comunicação tenda a in-fluenciar uma ou mais pessoas, a orientar os seus pensamentos, a excitar ou a apaziguar as

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emo-ções, a dirigir uma ação, ela é do domínio da re-tórica» (Perelman, 1977: 177).

• «a argumentação não é um tipo de discurso entre outros: ela faz parte do discurso como tal e abrange tanto as informações televisivas como uma descrição, uma narrativa de uma viagem, uma conversa em família» (Amossy, 2006: 245) e é «um ramo da análise do discurso» (Amossy, 2006: 246).

• «a minha tese é que a argumentatividade cons-titui uma característica inerente do discurso. A natureza argumentativa do discurso não implica o uso de argumentos formais, nem significa impor uma ordem sequencial premissa-conclu-são num texto oral ou escrito. Orientar o modo como a realidade é percebida, influenciar um ponto de vista e direcionar um comportamento são ações desempenhadas por todo um espectro de meios verbais. Nesta perspetiva, a argumenta-ção está totalmente integrada no domínio dos es-tudos da linguagem» (Amossy, 2009b: 254).

Outro, foi encontrar, sob a designação de «teoria da argumentação» formas muito restringidas de abor-dar a argumentação (por exemplo, o centramento da argumentação nos mecanismos da língua ou então no raciocínio). Exemplos disso podem ser os seguintes:

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• «Quando falamos de argumentação, referimo-nos sempre a discursos que comportam pelo menos dois enunciados E1 e E2, dos quais um é dado para autorizar, justificar ou impor o outro; o primeiro é o argumento, o segundo a conclu-são» (Anscombre e Ducrot, 1997: 163)

• A lógica informal é o «estudo normativo do ar-gumento. É a área da lógica que procura desen-volver padrões, critérios e procedimentos para interpretação, avaliação e construção de argu-mentos e da argumentação usados na linguagem natural» ( Johnson e Blair, 1987b: 148). • «em termos gerais, o discurso argumentativo é

considerado como persuasão racional se consistir num conjunto de proposições, avançadas como razões para se aceitar outra proposição ou para levar a cabo uma ação, as quais pretendem estar de tal modo relacionadas com isso que seria in-consistente (de algum modo) aceitar o conjunto de razões e não aceitar a proposição ou desenvol-ver a ação em questão» (Blair, 1992: 358). • «o conceito de proposição é fundamental para a

argumentação crítica, porque os argumentos são feitos de premissas e conclusões que são proposi-ções. uma proposição tem duas características de-finidoras. Em primeiro lugar, é algo que, em princípio, é verdadeiro ou falso. (...) uma segunda característica (...) [é que] enunciados ambíguos não são proposições. (...) A razão disso é que não

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têm a propriedade de, por si próprios, serem ver-dadeiros ou falsos» (Walton, 2006: 9-10). • «a lógica é a avaliação do raciocínio nos

argumen-tos» (Walton, 1990: 417). E esclarece: «do ponto de vista da lógica, a ciência do raciocínio deveria ser o estudo de saber em que medida as conclusões podem ser extraídas corretamente de premissas (as-sunções) a partir do momento em que seja claro o que é que essas assunções são no contexto do argu-mento. A lógica tem também a ver com a definição das assunções, com o identificá-las corretamente e com a avaliação de que sua putativa conclusão pode ser corretamente derivada de um dado conjunto de premissas» (ibidem).

O problema que se colocou perante estes dois ex-tremos foi, pois, a questão da adequação descritiva, que pode ser formulada da seguinte forma: que fenómenos estuda a teoria da argumentação? Quais as suas tarefas descritivas? Que foco de incidência se ajusta ao seu es-tudo?

O problema revelava-se tanto mais complicado porquanto não é difícil reconhecer a multidimensiona-lidade dos fenómenos argumentativos, da qual o es-quema apresentado na página ao lado pode dar uma imagem sintética.

No que diz respeito à experiência do ensino da ar-gumentação salientarei dois pontos:

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A A R G U M E N T A Ç Ã O É U M F E N Ó M E N O : S O C IA L R E T Ó R IC O IN T E R A C T IV O L IN G U ÍS T IC O C O G N IT IV O F IL O S Ó F IC O L Ó G IC O A F E C T IV O A ct iv a « p ré -c o n st ru íd o s» c u lt u ra is . Im p li ca o a ge n ci am en to , a o rg an iz aç ão e o p ro -ce ss am en to d e in fo rm aç õ es e d e co n h ec im en to s. P ro d u z es q u em at iz aç õ es d is cu rs iv as . Im p li ca a e m er gê n ci a d e in te re ss es p ar ti lh ad o s. P re ss u p õ e efi cá ci a d o p o n to d e vi st a d a co m u n i-ca çã o. Im p li ca a p ro d u çã o d e ra ci o cí n io s. P er m it e id en ti fi ca r a p re se n ça d e es tr u tu -ra s e es q u em as . R ec o rr e a p ro ce d im en to s il at iv o s (s e. .. en tã o ). D iz a o S i ( S el f) q u em é e o n d e se p o si ci o n a. Su p õ e a p er sp et iv aç ão d o s as su n to s em q u es tã o . R em et e p ar a a as su n çã o d e d ec is õ es es p ec u la ti va s e d e p ri n cí p io s. E sc re ve P la n ti n ( 2 0 0 4 : 1 7 2 ): « S e d ef in im o s o o b -je ct o d a ar gu m en ta çã o co m o u m e n co n tr o d e d is -cu rs o s d iv er ge n te s, e n tã o a si tu aç ão a rg u m en ta ti va é fu n d am en ta lm en te m ar ca d a p o r em o çõ es c o m o a in ce r-te za , o e m b ar aç o , a in q u ie -tu d e, a c ó le ra , o a rr ep en d i-m en to , e tc » . Im p li ca a s o ci ab il id ad e d a li n -gu ag em . C o lo ca o p ro b le m a d a au to ri d ad e. T em im p li ca çõ es c o m a d ox a . N ão h á u so d a p al a-vr a se m r ec u rs o a u m a lí n gu a. S ig n ifi ca r é o ri en ta r. Im p li ca a a va li aç ão d o d is cu rs o d e u m p el o d is -cu rs o d o o u tr o. N es te se n ti d o t ra ta -s e d e u m a in te ra çã o c rí ti ca e p ro -b le m at iz an te .

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a) a exposição de diferentes perspetivas teóricas sobre a argumentação, a exemplificação de certas técni-cas argumentativas e de certos esquemas argumen-tativos ficavam sempre, de algum modo, aquém das expectativas — compreensíveis, diga-se — dos alunos;

b) não era tanto a capacidade de construírem ou analisarem um discurso argumentado aquilo que lhes interessava, mas o serem postos à prova em situações concretas em que, mais do que dis-correr, se viam envolvidos em situações de con-fronto oposicional regidos por turnos de palavra e nos quais o jogo tensional dos argumentos e dos contra-argumentos era fundamental. Ora, aquilo que eu lhes tinha para ensinar — e isto pondo de parte os momentos em que organizava deba-tes sobre um assunto fraturante — revelava-se dema-siado restrito e até um pouco frustrante relativamente às suas expectativas. Faltava-lhe uma componente prá-tica, artística e viva. Ou seja, a teoria tornava-se silen-ciosa quando chegávamos à interação, sendo que a interação no mínimo bilateral parecia ser o fulcro das situações de argumentação.

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4.

ELEMENTOS CONCEPTUAIS

PARA A TEORIZAÇÃO

DA ARGUMENTAÇÃO

De tudo isto decorreu a necessidade de ir para além de um «tudo é argumentativo» ou de uma dimensão analítica do discurso feita a vários níveis, mas pouco consonante com a prática real, na qual a bilateralidade, ou seja, o ping-pong dos turnos de palavra, é de facto cen-tral. É preciso uma teoria geral: nem generalizada (ou seja, centrada no discurso e no uso da linguagem: argu-mentar = falar), nem restritiva (ou seja, centrada nos ra-ciocínios desligados das perspetivas e das situações de oposição discursiva nas quais é tão relevante a capaci-dade de discorrer como a de ouvir e contradiscorrer).

Dito de outra maneira, mais do que uma teoria geral do discurso ou de uma teoria que toma como seu ponto de partida a noção de argumento, é preciso uma teoria que partisse da interação e a compreendesse no registo tensional em que ela se desenvolve. Acrescente-se, aliás, que é esta dimensão de confronto, de jogo entre discurso e contradiscurso, aquela que mais evidencia a relação in-trínseca entre argumentação e estratégia, ou, se quisermos recorrer às palavras de Meyer, aquilo que não permite

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nem confundir, nem dissociar argumentação e retórica (ver a este respeito, por exemplo, Meyer, 2005: 15-16).

Mas é preciso também articular duas noções nu-cleares na teorização da argumentação, a saber, por um lado, a noção de orientação (típica das perspetivas des-critivas) e a noção de avaliação (típica da abordagens normativas), definindo o âmbito em que se realiza esta articulação.

Refira-se ainda que a noção de orientação tem o seu foco de investigação na construção das interpretações no âmbito da problemática da influência e dos efeitos, seja a um nível macro (interdicurso) seja a um nível micro (mecanismos da língua). Por seu turno, a noção de avaliação tem o seu foco de incidência nos critérios

de racionalidade das argumentações. Foi meu propósito

tentar conciliar estas duas visões, reconhecendo no co-ração das argumentações quer a dimensão de

orienta-ção, quer a de avaliação.

Para isso secundarizei a análise dos fenómenos ar-gumentativos enquanto produtos de linguagem anali-sáveis por si mesmos e coloquei no centro das situações argumentativas a dinâmica interativa em que os argu-mentos e as argumentações devem não só ser percebi-das em tensão com outras argumentações e argumentos como também enquanto moldados pela situação espe-cífica em que ocorrem.

Este deslocamento levou-me a dizer que o polo es-sencial das situações argumentativas são os «assuntos

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em questão». um assunto é algo de indissociável de

processos de tematização, estando qualquer tematiza-ção ligada à notematiza-ção de orientatematiza-ção por via da seletematiza-ção e ar-ticulação de recursos. Neste sentido, um assunto é algo de plástico e suscetível de ser configurado pela seletivi-dade daquilo que convocamos para o abordar. A essa seleção chamo tematização e a este termo ligo a noção de perspetiva, não a de raciocínio.

Donde, em primeiro lugar, a ideia de que a argu-mentação tematiza assuntos e, concomitantemente, que os assuntos são tematizáveis porque para eles não nos limitamos a oferecer respostas para perguntas, mas por-que através da seletividade dos considerandos convo-cados configuramos questões em termos da uma problematicidade a que procuramos responder. Michel Meyer não se cansou, aliás, de defender este aspeto na sua incisiva crítica ao proposicionalismo, à ideia da posição como unidade mínima do raciocínio, pro-pondo, num golpe que tudo obriga a reequacionar, a categoria de problema e o enquadramento problema-tológico da argumentação.

Mais especificamente, podemos caracterizar a noção da assunto da seguinte forma:

• o termo «assunto» é um termo da linguagem corrente ou comum e corresponde a uma orga-nização mental que é simultaneamente uma forma de focalizar (no sentido de delimitar) e de referenciar um espaço potencialmente

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problemá-tico, mas que remete não só para elementos par-tilhados e comuns como para posicionamentos diversos (do ponto de vista da tematização, um assunto é uma categoria multidimensional ligada à problematicidade);

• o termo «assunto» não remete apenas para uma pergunta informativa, que se esgotaria a ser res-pondida, mas também para um conjunto de con-siderandos que a seu propósito é preciso colocar, nomeadamente, os dados, as questões e as dife-rentes posições (donde a diferenciação entre per-guntas e questões); a sua abordagem convoca a possibilidade de várias incidências (o que implica processos de seleção e procedimentos de filtra-gem e saliência ligados a valorizações, desvalori-zações e hierarquias);

• um assunto é algo intermédio entre as ideias e as proposições, entre o claro e o obscuro, sendo to-davia suscetível de tematização e de enquadra-mento;

• é algo de situacional e referenciado (parte sempre de dados e considerandos), comportando uma dimensão prática;

• é uma noção muito flexível e suscita posiciona-mentos e perspetivas; abre possíveis e cruza o possível com o preferível;

• quando «aquilo de que se trata» está envolto em polémica, um assunto surge como «um caso»;

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• é algo relativamente ao qual as pessoas tendem a posicionar-se ou, pelo menos, com que têm de lidar da melhor maneira.

No entanto, para captar o dinamismo e a interação e, por outro lado, para diferenciar as situações de argu-mentação de um processo de comunicação generica-mente considerado, torna-se necessário especificar com o «em questão» o modo de abordagem dos assuntos que caracteriza a oposição argumentativa.

Não se trata aqui de um questionamento filosófico, mas de um denominador comum às próprias dissensões circunstanciadas. um «assunto em questão» significa que o choque entre discursos faz emergir uma questão argumentativa, uma questão para a qual são sempre possíveis pelo menos duas respostas opostas. E, como já anteriormente referi, é na tematização dessa dissensão que podemos ver os lances e as intervenções que dão corpo à argumentação.

E o que caracteriza o «em questão»? Neste ponto deparam-se-nos três possibilidades.

a) Adotando uma conceção dialógica e polifónica da linguagem, podemos dizer que a oposição de vozes é inerente ao discurso argumentado. É essa a perspetiva subscrita por Amossy quando diz que «todo o enunciado confirma, refuta e pro-blematiza as posições antecedentes, sejam estas expressas de uma forma precisa por um dado

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in-terlocutor ou de forma difusa no interdiscurso contemporâneo» (2006: 35). um exemplo disto será, nomeadamente, a antecipação de objeções. b) uma segunda hipótese consiste em dizer que

todo o discurso é resposta a uma questão que, pela sua natureza, é ambígua, no sentido de pos-sibilitar sempre, pelo menos duas respostas (Meyer).

c) uma terceira possibilidade — e é para essa que tendemos — é que o «em questão» representa a presença efetiva de um discurso e de um contra-discurso, ou seja uma situação de conflito e de dis-sonância em que se dá a crítica do discurso de um pelo discurso do outro.

Esta preferência impõe contudo algumas distin-ções adicionais, a primeira das quais entre

argumenta-tividade e argumentação.

Reconhecemos que a argumentatividade, enquanto componente da orientação e da força do discurso, é ine-rente à discursividade, mas propomos reservar o termo argumentação para as situações de oposição discursiva polarizada num assunto em questão. Há, assim, que distinguir a argumentatividade enquanto processo sócio-comunicacional de construção da relevância e o modo como esses processos são postos a funcionar numa situação em que se dá a tematização de discursos em oposição.

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Porque, acrescentemos, consideramos que uma si-tuação de argumentação, mais do que dialógica, é dia-logal (no sentido de ter de ser compreendida no quadro de uma interação real e não apenas virtual), mais do que monogerida, é poligerida (no sentido em que nela está em causa a definição dos termos do assunto em ques-tão) e, finalmente, mais do que unilateral é, no mínimo, bilateral. Argumentar é argumentar com e, como diz Willard (1989: 61), são precisos dois para dançar o tango.

Nesta perspetiva compartilhamos a crítica, feita por Jeanine Czubaroff, à tradição que encara a retórica se-gundo o paradigma persuasivo: «o problema da tradição da retórica-como-persuasão é, por conseguinte, a sua ten-dência para privilegiar modos de poder e de influência monológicos, unilaterais e o eclipse dos modos de poder e de influência dialógico-multilaterais. Aquilo que o diá-logo tem para contrabalançar os abusos cometidos em nome da persuasão monológica é a multilateralidade, a disponibilidade e a responsabilidade, a vontade de per-manecer no seu próprio terreno e de conceder ao outro o mesmo direito» (Czubaroff, 2007: 15).

Estas palavras fazem eco, aliás, das críticas à advo-cacia adversarial que Makau e Marty formularam, afir-mando que «em primeiro lugar, mesmo que os objetivos de quem advoga sejam alcançados, este pa-drão unilateral de sucesso não é fiável. Mede a eficácia quase inteiramente nos termos de quem advoga —

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ca-ráter, intenções e desempenho — e, por conseguinte, privilegia a perspetiva do que advoga às custas dos ou-tros. Em segundo lugar, este padrão unilateral reduz ne-cessariamente as competências de receção ativa do auditório — escuta atenta, reflexão crítica e avaliação — a meros indicadores do sucesso do orador. Conse-quentemente, o retorno substantivo e a consulta são desvalorizados, na medida em que apenas são conside-rados — se é que realmente o são — nos termos de quem advoga. Por fim, a advocacia adversarial viola o espírito dialógico inerente às comunidades deliberati-vas. Esta violação permite a quem advoga tratar os ou-tros com pouco respeito. um tal comportamento, em si e por si mesmo, é um abuso de poder que põe em causa a integridade relacional e a confiança no comum» (Makau e Marty, 2001: 197-198).

Com as distinções anteriormente referidas torna-se possível voltar ao nó górdio da teorização da argumen-tação, ou seja, a articulação entre a noção de orientação (que coloca no centro a questão da interpretação, mas que corre o risco de se fixar no registo hermenêutico e de cair no problema da interpretação infinita) e a noção

de avaliação (que, em virtude da oposição, põe em cima

da mesa a questão dos critérios como imanente às prá-ticas argumentativas). Tomando como unidade meto-dológica de análise das argumentações o «assunto em questão» podemos dizer que as situações de argumen-tação são aquelas em que se dá a crítica e a avaliação do

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discurso de um pelo discurso do outro e que é esse o fe-nómeno que o analista da argumentação deve descrever. Plantin formulou com rigor esta ideia quando escreveu que, por um lado, «uma dada situação linguageira co-meça assim a tornar-se argumentativa quando se mani-festa uma oposição de discursos. Dois monólogos justapostos, contraditórios, sem alusão um ao outro, constituem um díptico argumentativo. É sem dúvida a forma argumentativa de base: cada um repete a sua po-sição. A comunicação é plenamente argumentativa quando esta diferença é problematizada numa Questão e se destacam nitidamente os três papéis de atuação do Proponente, do Oponente e do Terceiro» (Plantin, 2005: 63, itálicos nossos) e, por outro, que «a prática da avaliação dos argumentos é guiada por um princípio simples: aquele que não admite um discurso é o pri-meiro, porventura o melhor crítico e, antes de mais, ele fala; é pois preciso considerar a sua palavra. Esta última afirmação é um princípio normativo que diz respeito, não à atividade argumentativa, mas ao método em teoria de argumentação. A tarefa desta teoria é a de inteirar-se o melhor possível desta atividade crítica e não substituí-la. A conclusão inspirar-se-á em Guzot: laissez faire,

lais-sez aller — e deixem dizer! Não existe um superavaliador

capaz de parar o processo crítico por uma avaliação ter-minal que a todos faria calar. E quanto mais avaliações houver, mais argumentações apaixonantes haverá para descrever» (2009 b).

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Esta visão que liga, por conseguinte, a crítica do dis-curso de um pelo disdis-curso do outro ao funcionamento de processos de avaliação cujos critérios, insista-se, são imanentes e não transcendentes à situação de argumen-tação, pode ser traduzida filosoficamente através da

in-dissociabilidade entre argumentação e perspetivismo,

remetendo este último para uma inultrapassável retori-cidade da linguagem, para a coexistência de versões al-ternativas e para um registo tensional e conflitual, associado à prevalência de versões, e que indissocia a ra-cionalidade argumentativa da rara-cionalidade sociológica (cruzamento das questões de argumentação com as questões de poder e com as dimensões do ethos, do

pat-hos e do logos). Para o dizer de uma forma simples — e

contrariando a tendência de definir a argumentação pela finalidade da persuasão — mais do que persuadir, trata-se de coexistir e de assumir que a coexistência é atraves-sada por uma conflitualidade recorrente que torna incontornável a gestão das diferenças.

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5.

UMA DEFINIÇÃO

DE ARGUMENTAÇÃO

Foi deste modo que cheguei à seguinte noção: a

argumentação é a disciplina crítica de leitura e interação entre as perspetivas inerentes à discursividade e cuja di-vergência os argumentadores tematizam em torno de um assunto em questão. Desta definição destaco os

seguin-tes aspetos:

• Disciplina: tomo a palavra «disciplina» como a capacidade de focalização e coordenação discur-siva e contradiscurdiscur-siva requeridas pelas situações argumentativas; do ponto de vista interativo (que tem o seu caso paradigmático numa forma espe-cífica de comunicação interpessoal), a obtenção de progresso numa argumentação depende da ca-pacidade dos participantes focalizarem o assunto em questão, que co-constroem, e da coordenação que é exigida para que se mantenha uma conec-tividade mínima entre os turnos de palavra que compõem a argumentação.

• Crítica: tomo a palavra «crítica» no sentido da construção de uma oposição discursiva, do seu desenvolvimento e da sua progressão; não se trata

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apenas de focalizar o assunto, mas de o abordar enquanto questão, de lidar com ele como pro-blema resultante de uma dissensão e de uma di-vergência de perspetivas que suscita confronto e avaliação. Neste sentido, a polarização da intera-ção num assunto tornado numa questão a deba-ter é diferente das escaramuças argumentativas que não dão nem espaço, nem tempo, à emergên-cia de versões diferentes, nem à crítica do dis-curso de um pelo disdis-curso do outro.

• Leitura e interação: utilizo a palavra «leitura» pre-ferencialmente à palavra «análise» e associo-a à palavra «interação» para especificar o caráter es-sencialmente dinâmico e tensional, efetivado por turnos de palavra, das situações argumentativas; • Perspetivas: assinalo com esta palavra o que está

em causa nas argumentações, ou seja, uma diver-gência de perspetivas.

• Tematização e assunto em questão: assinalo, com «assunto em questão» o pólo em torno do qual se verifica a divergência de perspetivas e com a pa-lavra «tematização» a necessidade de uma confi-guração do assunto que vai para além de simples episódios de contradição conversacional. Com efeito, segundo Plantin, as contradições conversa-cionais podem distinguir-se dos diferendos argu-mentativos, nomeadamente porque as primeiras se caracterizam por acontecerem e se

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desenvolve-rem de uma forma não planificada, enquanto os segundos devem ser ratificados e tematizados, fo-calizando e aprofundando o conflito que assim instalam.

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(51)

6.

CONSEQUÊNCIAS

EM TERMOS DO ESTUDO

E DO ENSINO DA ARGUMENTAÇÃO

Deste ponto de vista que, centrando-se nos «as-suntos em questão», evita tomar a linguagem e o dis-curso como o ponto de partida para explicar as situações de argumentação, decorrem consequências em termos de uma didática da argumentação. Limitar--me-ei a assinalar três.

a) A valorização da leitura argumentativa como uma leitura crítica que se realiza tendo um olho na produção de um contradiscurso, na capaci-dade de originar um díptico argumentativo onde se confrontam perspetivas e em produzir sequências contradiscursivas nas quais se verifica a retoma do discurso do outro e em que está em causa a progressão (neste sentido as nossas pro-postas valorizam sobretudo a noção de intera-ção, que consideramos como essencial). Pensando que uma situação argumentativa implica papéis (proponente, oponente e questão) e turnos de palavra, podemos, como propõe a pragma-dialética, distinguir:

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• a fase da confrontação (e aqui se dá a constituição de um díptico argumentativo ou uma stasis); • a fase da abertura (e aqui se dá a focalização na

questão que divide e nela se negoceiam os termos da questão);

• a fase da argumentação (e aqui cada uma das par-tes procura reforçar a sua perspetiva e argumen-tos relativamente à perspetiva e argumenargumen-tos das outras partes);

• a fase do fecho (e esta fase assinala a interrupção da argumentação e da situação argumentativa. Porque penso que pode sempre haver boas e ricas argumentações sem resolução, prefiro chamar a este estádio fase do fecho em vez de fase da con-clusão).

Esta proposta descritiva é interessante na medida em que permite ver a argumentação em termos de progres-são, ao mesmo tempo que possibilita também descartar a ideia de que as pessoas argumentam o tempo todo.

Na realidade, aquilo a que assistimos frequente-mente é à tendência para a formação de dípticos argu-mentativos que, no entanto, é mais exato classificar como episódios de contradição conversacional do que como diferendos argumentativos.

Aliás, há autores que, como Willard, defendendo que a argumentação implica a assunção da oposição, não hesita a afirmar que «‘estamos a argumentar’ é uma coorientação, a definição de uma relação, uma atribui-ção episódica. A minha assunatribui-ção é a de que os atores

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agem de uma forma única quando estão a ‘argumentar’. O foco da investigação sobre a argumentação deve ser a forma como o fazem» (Willard, 1979: 188).

Nesta mesma linha, tem sentido falar, como o fez Pamela Benoit, em «guião da argumentação», reque-rendo este «que aqueles que interagem considerem as suas posições como uma oposição. Se esta pré-condição não é satisfeita uma argumentação não pode ocorrer. (...) uma segunda pré-condição afirma que uma argu-mentação deve ser merecedora do investimento reque-rido para concretizar o guião. Esta pré-condição nota que a argumentação não ocorre em todas as situações em que se observa um desacordo» (Pamela Benoit, 1992: 176-177).

Por outro lado, afirma ainda Benoit, «o guião de uma argumentação deixa de correr quando as pré-con-dições deixam de ser satisfeitas. uma pré-condição im-plícita da argumentação na interação é a de requerer pelo menos duas partes. Quando uma das partes abandona abruptamente a interação, a argumentação finaliza, pelo menos até as partes se voltarem a encontrar. As argumen-tações requerem oposição explícita e esta pré-condição é violada quando o parceiro desiste, se chega a algum acordo ou o tópico se altera para algum assunto relativa-mente ao qual não há desacordo. O guião da argumen-tação requer também o acordo conjunto de que vale a pena continuar o guião e, por isso mesmo, considerar a argumentação como escusada é suficiente para o guião deixar de correr» (Benoit, 1992: 179).

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Assim, e de um ponto de vista descritivo, podemos dizer que a análise de uma argumentação implica ter em consideração os seguintes aspetos:

• a existência de um contexto conversacional e de uma situação de comunicação desenvolvida por turnos de palavra e, por conseguinte, implicando dois ou mais participantes;

• a polarização do intercâmbio num assunto mini-mamente estabilizado que se vai construindo como problemático em função da divergência e da dimensão alternativa de perspetivas reveladas pelas intervenções dos participantes;

• a emergência de uma expectativa de justeza rela-cional ou de um contexto ético ( para utilizar um termo de M. Gilbert, de uma certa coalescência); • procedimentos de tematização (processados atra-vés de técnicas de associação e de dissociação) dos quais decorrerá a emergência de argumentos (que implicam a seleção circunstanciada de recursos es-pecíficos e de vária ordem) em função dos quais o desenho do assunto em questão será perspetivado no quadro da interação, ou seja, tendo em consi-deração o assunto em questão, as intervenções dos argumentadores e as respostas a serem-lhes dadas; • movimentos que assinalam a entrada ou o

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b) uma revisão da noção de «falácia», a qual deve ser concebida não como uma falta argumenta-tiva, mas como uma estratégia de argumentação que espelha um momento de avaliação do dis-curso do outro (aquilo a que Plantin chama a

fa-lácia das fafa-lácias).

Referindo-se a transformações que importa operar no ensino da argumentação, M. Gilbert (1995b) aponta três eixos essenciais: a) a escassez que representa perspe-tivar a argumentação em termos de «falácias», o que leva a privilegiar questões de raciocínio em detrimento de aspetos comunicacionais e situacionais cuja com-preensão e consideração são fundamentais; b) o facto da perspetiva negativa da «caça às falácias» ser prejudicial para uma abordagem coalescente da argumentação; c) e, finalmente, o facto do centramento nos raciocínios ten-der a fazer esquecer os argumentadores. Ora, escreve Gil-bert, «a argumentação é, no princípio e no fim, uma sub-espécie de comunicação, e a comunicação é um ato complexo que integra simbolismo cultural e sub-cultu-ral, atores sociais e contexto local» (1995b: 127).

E acrescenta: «se formos lidar com os argumentos de uma forma mais do que crítica precisamos de mudar o foco do argumento para o argumentador, dos artefactos que foram escolhidos para os propósitos comunicativos da situação na qual tais artefactos funcionam como um

Referências

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