• Nenhum resultado encontrado

UMA PANDEMIA DE LONGA DURAÇÃO: VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA MULHERES

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "UMA PANDEMIA DE LONGA DURAÇÃO: VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA MULHERES"

Copied!
13
0
0

Texto

(1)

Artigo

UMA PANDEMIA DE LONGA DURAÇÃO:

VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA MULHERES*

**Cláudia de Jesus Maia

Resumo: o Brasil apresenta uma das legislações e políticas públicas mais avançadas do

mundo no enfrentamento da violência de gênero contra mulheres. Entretanto, as estatís-ticas têm mostrado o número crescente desse tipo de violência, sobretudo, da violência letal. Esse artigo reflete por que essa política pública não tem sido capaz de conter a vio-lência de gênero, ressaltando a necessidade de investimento político em ações de longo prazo, como a educação voltada para igualdade de gênero e o combate às desigualdades sociais e econômicas.

Palavras-chave: violência de gênero. Mulheres. Desigualdades. Educação. Precariedade.

A LONG DURATION PANDEMIC: GENDER VIOLENCE AGAINST WOMEN

Abstract: Brazil has one of the most advanced laws and public policies in the world in

addressing gender-based violence against women. However, statistics have shown an increasing number of such violence against women, especially lethal violence. This article reflects why this public policy has not been capable to contain of gender-based violence, highlighting the need for political investment in long term actions such as education focused on gender equality and the fight against social inequalities and the economy.

Keywords: Gender violence. Women. Inequalities. Education. Precariousness.

E

m dezembro de 2019, teve início uma pandemia com proporções jamais vistas. Em pouco

tem-po, a COVID-19 se espalhou por países de todo o mundo, obrigando os governos a estabelecer medidas de isolamento social da população. Dentre os vários temas que ocuparam o centro do debate nesse contexto – ao lado das mortes, das valas coletivas, dos desgovernos, da indiferença pelo sofrimento do outro, da precariedade dos serviços públicos de saúde, da pobreza e das imensas

* Recebido em: 10.11.2020 Aprovado em: 10.11.2020.

** Pós-Doutora em História pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora em História pela Universidade de

Brasília. Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Uni-versidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Pesquisadora do CNPq.

(2)

desigualdades sociais em todo mundo – esteve o aumento da violência de gênero contra mulheres, verificado em vários países. Esse acontecimento levou as Nações Unidas a alertar os governos quanto ao aprofundamento das desigualdades de gênero preexistes, durante a pandemia, e recomendar uma série de medidas para o enfrentamento da violência contra mulheres, que inclui o investimento em serviços de atendimento online, alertas de emergências, abrigos temporários para mulheres vítimas, dentre outras (ONU, 2020).

No Brasil, pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a partir de dados de registros fornecidos pelas secretarias estaduais de Segurança Pública, verificaram que em comparação com o primeiro semestre de 2019, houve uma diminuição de -9,9% nos registros de lesão corporal dolosa com vítimas do sexo feminino; -15,8% nos registros de ameaça e -22,2 nos registros de estupro. Em contrapartida, houve aumento de 3,8% na quantidade de ligações para o disque denúncia 190, relativas à violência doméstica (FBSP, 2020b). Em outra pesquisa, o FBSP (2020a) analisou relatos de brigas de casais, publicados em redes sociais no mês de março, e verificou um aumento de 431% em relação a março de 2019. Na sequência da publicização dos resultados dessa pesquisa, em abril, relatos de violência doméstica contra mulheres ocuparam os noticiários e circularam ainda mais nas redes e meios digitais, acompanhados de fotos, vídeos e áudios. Esses dados indicam, por um lado, que na prática não houve diminuição na violência em si, mas apenas nos seus registros. Mesmo numa situa-ção ordinária, registrar uma denúncia não é uma asitua-ção/decisão fácil para uma mulher vítima devido a vários motivos. Durante a pandemia, essa ação encontrou novos impedimentos.

Em pesquisa anterior, procurei entender, a partir da história de vida de três mulheres vítimas de violência doméstica na cidade de Montes Claros (MG), por que elas permaneciam em uma relação violenta, ou seja, o que as impedia de romper a relação e denunciar companheiros violentos. Entre os motivos mobilizados por elas em suas narrativas estava, em primeiro lugar, a vergonha e o constran-gimento de expor publicamente a violência sofrida, isso porque na maioria das vezes elas se sentiam responsáveis, “culpadas” pela violência do marido. Outros impedimentos apontados por elas foram: a falta de apoio da família; a preocupação com os filhos, especialmente, por privá-los da convivência com pai; a dependência econômica; questões religiosas ligadas, sobretudo, à ideologia do casamento indissolúvel e do perdão; mas, também, o medo provocado pela coação, chantagem emocional, pelo terrorismo misógino feito pelos companheiros e a insegurança gerada pela ausência de respostas eficazes da polícia, da justiça, e da assistência social (MAIA, 2012).

Com a pandemia, a situação de vulnerabilidade das mulheres foi maximizada. Assim, além desses motivos somam-se, ainda, o fato de a vítima estar quase todo o tempo no mesmo ambiente que seu agressor, em alguns casos em situação de cárcere; a insegurança econômica, tendo em vista o desemprego causado pela pandemia e o fato de que muitas mulheres vítimas são trabalhadoras in-formais – as mulheres negras em sua maioria – que ficaram sem meios de subsistência. Além disso, muitas delas não têm para onde ir, já que a realização de uma denúncia ou representação não significa ter o imediato afastamento do agressor, pois há todo um processo lento e burocrático a ser enfrentado o que, por sua vez, aumenta o risco de morte delas.

Por outro lado, os dados da pesquisa realizada pelo FBSP (2020a), durante a pandemia, também evidenciaram uma tendência já apontada nos estudos sobre a violência de gênero no Brasil (IPEA, 2019; 2020; FLASCO, 2015): o aumento da letalidade contra as mulheres. Os registros de feminicídios do mês de março de 2020, comparados com o mesmo período do ano anterior, apresentaram aumento de mais de 100% em alguns estados, como Acre, Mato Grosso e Rio Grande do Norte.

Diante do exposto, este artigo pretende refletir as seguintes questões: por que as políticas públicas não têm sido capazes de frear a violência contra mulheres no Brasil? Quais os avanços e limites dessas políticas? A análise se centrará, especialmente, na lei Maria da Penha, sem dúvida, a mais completa e avançada política pública de enfrentamento à violência de gênero contra mulheres no Brasil.

UMA PANDEMIA PARA ALÉM DA COVID-19

Com a pandemia da Covid-19, não especificamente devido à sua aleatoriedade na contamina-ção, mas precisamente em razão de escolhas e decisões políticas do Estado, a precariedade de alguns

(3)

indivíduos foi maximizada, alguns ao extremo: insegurança devido ao caos que virou a condução do governo, ansiedade, desemprego, diminuição da renda e endividamento, perda de amigos e familiares, dentre outros. Tudo isso afetou os/as brasileiros/as de algum modo, mas as mulheres – especialmente as negras e mais pobres –, para além disso, também foram afetadas de maneira mais drástica pela violência de gênero que aumentou com todos esses fatores mencionados, conforme já assinalei.

Mas, essa violência não surgiu com a pandemia, ela se inscreve numa longa duração histórica e encontra seus fundamentos na cultura patriarcal colonizadora e nas relações desiguais de poder entre homens e mulheres. Nessa perspectiva, as mulheres são entendidas como propriedades de pais e depois de maridos; a violência é cotidianamente acionada como forma de fazê-las obedecer, submeter, corrigir, punir, servir e subalternizá-las. O problema é que essa assimetria de poder e essas construções de gênero – isto é, os atributos sociais e culturais historicamente associados a homens e mulheres – são tão antigas que acabaram sendo naturalizadas, vistas como parte das relações costumeiras, não causando espanto, indignação ou comoção.

Foi precisamente a partir dos de 1970 que as feministas brasileiras passaram a denunciar essas formas de violência e iniciaram um trabalho intenso de desnaturalização, com objetivo de torná-las visíveis e criminalizáveis. A construção do conceito de gênero, no final dos anos de 1980, foi funda-mental nesse processo. Nessa perspectiva, o gênero foi entendido como “um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995), ele consiste em tecnologias políticas e sociais (LAU-RETIS, 1994) que constroem e modelam padrões referenciais do que se concebe como masculino e feminino numa sociedade. Dessa maneira, o fenômeno da violência contra mulheres só é possível ser compreendido como algo que acontece dentro de uma relação de poder. A violência contra mulheres é, assim, fundamentalmente uma violência de gênero.

Os estudos nesse campo também avançaram no sentido de mostrar que a violência de gênero não é um fenômeno restrito às camadas mais pobres, embora seja a que mais recorra à polícia e esteja mais exposta ao problema, devido à situação de exploração e vulnerabilidade. A violência de gênero atinge mulheres em todo o mundo ocidental, de todas as classes, raças, faixas etárias e de escolaridade. Por isso, podemos dizer que ela se configura como uma pandemia de longa duração e que, infelizmente, ainda está muito longe de ser erradicada.

O barulho das ativistas e pesquisadoras feministas no Brasil resultou em inúmeras conquistas, ações e políticas de visibilidade e enfrentamento da violência de gênero das quais, sem dúvida, duas são centrais: a lei 11.340 de 2006, conhecida por lei Maria da Penha e a lei 13.104 de 2015, conhecida por lei Feminicídio.

No que diz respeito à Lei Maria da Penha, já é lugar comum destacar seu caráter avançado, inovador e abrangente, resultado das pressões sociais – e também individuais, haja vista a luta pes-soal da mulher que deu nome a lei – e do diálogo com os movimentos de mulheres, ONGs, pesquisa acadêmica e o Estado em sua concepção e construção.

A referida lei cuidou das questões criminais, como a tipificação das violências sofridas pelas mulheres; a proibição das transações penais que haviam banalizado a violência e disseminado a ideia de ser esse um crime menor e o sentimento de impunidade; instrumentalizou as polícias com as medidas protetivas, dentre outras. Como uma importante política pública, a lei Maria Penha também cuidou e lançou diretrizes para a esfera jurídica, assistencial e para ações de prevenção. Na primeira esfera, destaca-se a previsão da criação dos juizados especiais com poder civil e criminal para julgar os crimes incluídos na a Maria da Penha; esses juizados deveriam contar com uma equipe multidisciplinar para auxiliar o juiz em suas decisões. Na segunda, ou seja, a assistencial assinalou para medidas de empoderamento e autonomia financeira das mulheres vítimas (MAIA, 2016).As diretrizes para ações de prevenção se voltaram, especialmente, para a pesquisa e educação, de que falarei mais adiante.

Ao lado de outras políticas – aqui se faz necessário destacar a importância da Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres ligada à presidência da República no período de 2003-2018 e dos Planos Nacionais de Políticas Públicas para mulheres – pode-se afirmar que a lei Maria da Penha possibilitou a expansão das Delegacias de Mulheres, Casas Abrigo, Centro de Referência da Mulher e vários outros serviços de atenção às mulheres em situação de violência.

(4)

As mulheres vítimas passaram a ser priorizadas, por lei, em programas do governo federal como o “Minha Casa Minha Vida” e “Mulheres Mil”; sendo muitas delas beneficiadas pelo “Programa Bolsa família”(FREITAS, 2020).

A lei do feminicídio, por sua vez, embora tenha um caráter conservador – ao substituir o ter-mo “ter-motivações de gênero” por “sexo” – e tardio, pois foi uma das últimas na América Latina, não só criou um agravante ao considerar os assassinatos de mulheres motivados por questões de gênero como crime hediondo, aumentando a pena, mas também tornou esse crime uma preocupação pública. Acredito que o maior mérito dessa lei, até o momento, foi ter possibilitado que o conceito de

femini-cídio, o assassinato de mulheres, cometido por razões de gênero, extrapolasse a academia e chegasse

aos tribunais, às delegacias, às mídias, ou seja, ter colocado a sociedade para debater essa violência letal contra mulheres e suas motivações (MAIA, 2019).

A violência contra mulheres ganhou maior centralidade nos noticiários, em programas de televisão, tornou-se por algum tempo tema de novelas, de campanhas educativas e deixou de ser algo restrito ao âmbito doméstico, uma mera briga entre marido e mulher, para se tornar uma preocupa-ção pública, social e do Estado. Assim, outro grande efeito dessas políticas foi, sem dúvida, colocar a sociedade para falar, debater, pensar, estudar sobre as inúmeras violências sofridas pelas mulheres e, mais recentemente, seu caráter interseccional.

Antes naturalizada e invisibilizada, hoje a violência contra mulheres entrou para as estatísticas e relatórios, inclusive os oficiais, como fenômeno a ser destacado. Estatísticas como as já citadas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), do DataSenado, do Mapa da Violência (FLASCO) e das próprias Secretarias Estaduais de Segurança Públicas dão conta da amplitude desse fenômeno e demonstram, em números, o caráter interseccional dessa violência, já que mulheres negras e pobres são as mais atingidas. Dentre os inúmeros fatores importantes desses documentos/estatísticas está o fato de que eles deixam evidente que não se pode fechar os olhos para essa violência devido aos números que ela apresenta.

Por outro lado, esses mesmos números também apontam para os limites das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres, como demonstra a tabelas 1:

Tabela 1: violência contra mulheres no Brasil 2016-2018

Tipo de violência 2016 2017 2018 2019

Homicídio de Mulheres 4245 4556 4340 3730

Feminicídio 929 1075 1229 1326

Lesão corporal 194.273 252.895 248.439 266.310

Estupro vítimas mulheres 50.598 55.811 55.499

Medidas protetivas de urgência 275.158 349.942

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2019 ; 2020.

Conforme os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 houve um aumento de 5,2% no número de registros de lesões corporais em relação a 2018, que havia apresentado uma pequena diminuição em relação ao ano anterior. Em 2019, a cada um minuto uma mulher foi agredida no Brasil e, a cada oito minutos, ocorreu um estupro. Do total de assassinatos de mulheres registrados em 2019, 35,5% foram feminicídios; enquanto o homicídio de mulheres diminuiu 14,7%, o número de feminicídios aumentou 7,1% em relação a 2018; dos feminicídios ocorridos em 2019, 66,6% foram de mulheres negras; 56,2% das vítimas tinham entre 20 e 39 anos; e 58,9% das mortes aconteceram numa residência (FBSP, 2020b).

A partir de dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), uma pesquisa do IPEA analisou a mortalidade feminina no período de 2007-2017, no qual se verificou o crescimento expres-sivo de 30,7% no número de homicídios de mulheres no país durante a década analisada, sendo que somente no último ano da série, o aumento foi de 6,3% em relação ao anterior (IPEA, 2019, p. 35).

(5)

Nesse período, a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5%, enquanto a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%. Segundo o Atlas da Violência (2019), “em números absolutos a diferença é ainda mais brutal, já que entre as não negras o crescimento é de 1,7% e entre mulheres negras de 60,5%” (IPEA, 2019).

O Atlas da Violência de 2020 considerou o período entre 2008 e 2018 e verificou que, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%. Do total de mulheres assassinadas em 2018, 68% eram negras. Assim, constata a pesquisa,

“enquanto entre as mulheres não negras a taxa de mortalidade por homicídios no último ano foi de

2,8 por 100 mil, entre as negras a taxa chegou a 5,2 por 100 mil, praticamente o dobro” (IPEA, 2020, p. 37). O crescimento exorbitante dos assassinatos de mulheres negras em relação as não negras eviden-cia as dificuldades do Estado brasileiro em assegurar a universalidade das políticas públicas e chama a atenção para a importância do racismo estrutural como elemento central para entender o caráter interseccional da violência e os elevados índices de letalidade contra as mulheres negras.

O aumento no número dos feminicídios tem sido frequentemente apontado, especialmente por autoridades policiais, como decorrente de uma melhor qualificação dos policiais que passaram a ter uma maior compreensão conceitual do fenômeno, fato refletido nos registros das ocorrências e noti-ficações. Entretanto, dados das pesquisas do IPEA (2019; 2020) assinalam que esse aumento pode ser efetivo, uma vez que foram verificadas, nos estudos, duas tendências: por um lado, há uma significativa diminuição do número de assassinatos ocorridos fora das residências (3,3% no período de 2007-2017); por outro lado, o crescimento no número de assassinatos de mulheres dentro de residências, que foi 17,1% no período de 2007-2017 e de 8,3% entre 2013 e 2018, sendo isso um indicativo do crescimento dos feminicídios. O relatório observa ainda que, “nesse mesmo período, o aumento de 25% nos homicídios de mulheres por arma de fogo dentro das residências, por sua vez, parece refletir o crescimento na difusão de armas, cuja quantidade aumentou significativamente nos últimos anos” (IPEA, 2020, p. 38). Os dados da violência de gênero durante a pandemia, como já apontado, também evidenciaram o aumento da violência letal contra mulheres. É importante destacar ainda que em alguns estados, como Minas Gerais, são registrados como feminicídios somente os assassinatos ocorridos em relações interpessoais, isto é, os feminicídios íntimos. Os feminicídios não íntimos são contabilizados como homicídios, segundo a SSPMG (2019), devido à dificuldade de caracterizá-los.

Mediante a esses números, devemos nos perguntar: por que os avanços legislativos não foram capazes de diminuir de forma mais significativa a violência contra as mulheres?

OS LIMITES DAS POLÍTICAS

Os dados citados, de certa forma, mostram que as lutas, as leis, as políticas públicas, as estra-tégias institucionais têm dado poucos resultados, especialmente no que diz respeito à violência letal e às formas de crueldades sofridas pelas mulheres. Quando essas estratégias apresentam resultados, são especialmente as mulheres brancas, de classe média, dos grandes centros urbanos e de regiões mais centrais do país as beneficiadas e que conseguem se “incluir” nos direitos, como demonstrou a pesquisa coordenada por Daniel Cerqueira (2015) e o DataSenado (2015).

Mesmo que se considere que o crescimento da violência se deve ao aumento de denúncias por parte das mulheres ou do melhor registro de feminicídio por parte da polícia, ainda assim, “se cons-tata que não conseguimos freá-la”, pois, como adverte Rita Laura Segato, “(...) o imaginário de gênero que se encontra por detrás delas, como seu caldo de cultivo, se encontra intacto. Não há sinal de que esses outros tipos de violência não letal estão sendo detidos pelas leis, ou seja, por nossas lutas dentro do campo estatal” (SEGATO, 2017, p. 154). Ao contrário, a letalidade do gênero cresceu, assim como a crueldade que envolve os crimes.

Frear a violência contra as mulheres é uma decisão política. Isso implica entender essa violência para além do espaço privado, das relações entre homens e mulheres, da falta de qualificação de agentes do Estado, da precariedade dos serviços, etc., concebendo-a como um problema social e político, não das mulheres, mas de toda a sociedade. Implica pensá-la no âmbito de uma biopolítica, ou seja, dos cálculos do poder sobre a vida das mulheres.

(6)

O termo biopolítica foi proposto por Michel Foucault (1988; 2008) para expressar a entrada da vida natural numa estratégia política, assinalada pelo surgimento de um tipo de poder que, diferente do poder soberano, de “deixar morrer”, se institui pelo biopoder com o objetivo de “fazer viver”. Nessa perspectiva, Judith Butler (2016) introduziu a noção de “precariedade” para problematizar a própria noção de “vida” na biopolítica contemporânea. Segundo ela, a precariedade consiste no “fato de que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do outro”; que ela necessita de ser mantida e para isso depende de “condições sociais e políticas, e não somente de um impulso interno para vi-ver...” (BUTLER, 2016, p. 40). A precariedade é, portanto, uma condição politicamente induzida, pois cada sociedade constitui historicamente um conjunto de ações, práticas, leis, organizações sociais e políticas com objetivo de “maximizar a precariedade para alguns e minimizar a precariedade para outros” (BUTLER, 2016, p. 41). É esse cálculo político que define quais vidas devem ser preservadas, protegidas; e quais podem ser lesadas e enquadradas sob o espectro do “deixar morrer”.

O que quero ressaltar, portanto, é que a ausência de uma vontade política de ir a fundo para acabar com a violência de gênero maximiza a precariedade da vida de nós mulheres e indica que, nos cálculos do poder, importamos menos, nossas vidas não são passíveis de luto, para usar a expressão de Butler. Um olhar mais atento sobre as políticas de enfrentamento da violência de gênero demonstra a ausência dessa vontade política por parte do Estado Brasileiro.

Os estudos sobre violência têm ressaltado a importância de investir e aprofundar a prevenção integral como forma de conter a violência contra mulheres. Nesse sentido, são necessárias ações tan-to ao nível das vítimas, como das não vítimas, de forma a abranger tan-toda a sociedade, considerando estratégias de curto, médio e longo prazo (LISBOA, 2017). De certa forma, essas ações estão previstas na Lei Maria da Penha (LPM).

No primeiro nível, em que o foco é a vítima, são necessárias intervenções pontuais e ime-diatas, como as medidas protetivas e outras que visem a autonomia financeira e o empoderamento das mulheres. A LMP cuidou disso ao estabelecer as medidas protetivas, mas como demonstram as pesquisas, nem sempre elas são expedidas conforme o prazo de 48hs que define a lei. Além disso, os estados, em geral, não dispõem ou disponibilizam equipamentos policiais e sociais para acompanhar o cumprimento de tais medidas. Por isso, não é incomum o fato de que muitas mulheres vítimas de feminicídio possuíam medidas de proteção (MAIA, 2016).

É necessário criar ou fortalecer as redes integradas e operacionais que dão respostas às situa-ções cotidianas de violência. Embora previstas na lei, percebe-se grandes dificuldades em articulá--las, especialmente pela ausência de responsabilização e do poder público. Em muitas situações, os serviços existem, mas não estão articulados, fazendo com que a vítima necessite repetir o histórico da violência e acabe desistindo no percurso. O número de casas abrigo, de Centro de Referência é ainda bastante reduzido, as Delegacias da Mulher que existem em maior número raramente funcionam 24 horas e possuem equipes multidisciplinares. Além disso, esses equipamentos de proteção, em geral, se concentram nas capitais e cidades maiores.

No que se refere ao empoderamento, ou seja, a assistência, em especial às mulheres em maior situação de vulnerabilidade, embora os Planos Nacionais de enfrentamento a violência tenham esta-belecido metas na saúde, educação, habitação, empregabilidade, etc., na prática elas não se efetivaram e estão ainda mais distante de se efetivarem com a expansão do modelo de Estado mínimo em curso no país.

No segundo nível da prevenção, que se refere às medidas de médio prazo, destinadas às não vítimas, por um lado, têm crescido a qualificação e o interesse de profissionais e operadores da lei, bem como de agentes públicos, envolvidos com a violência contra mulheres. Mas é preciso ir além, tornando a violência de gênero conteúdo obrigatório nos cursos de formação de advogados, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, professores, dentre outros profissionais que de forma direta ou indireta lidam em suas práticas profissionais com essa forma de violência. Igualmente, tornam-se necessárias medidas de intervenção contra os agressores, com vistas a evitar repetições. Os progra-mas conhecidos que operam nesses casos são insuficientes e os resultados ainda pouco significativos. Além disso, a LMP tem tido resultados restritos no sentimento de proteção e de justiça. Para citar apenas um exemplo, em audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da

(7)

Assembleia de Minas Gerais, no dia 12 de março de 2020, na cidade de Montes Claros, o Ministério Público Estadual apresentou alguns elementos que corroboram para essa realidade no município supracitado: ausência de autuação dos flagrantes delitos relacionados à violência contra mulheres na Delegacia Especializada; interrupção do atendimento da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher – considerada uma delegacia modelo no Estado – durante o horário do almoço, no período noturno, finais de semana e feriados; pessoal insuficiente para análise e encaminhamento dos registros de ocorrência policial; retenção de inquéritos na Delegacia sem o encaminhamento necessário ao Poder Judiciário em tempo hábil para a denúncia; demora no cumprimento das requisições ministeriais.

No que se refere à ação do Poder Judiciário, o documento do Ministério Público apresen-ta resulapresen-tado de pesquisa realizada a partir de 500 ações penais relativas à violência doméstica e familiar contra mulheres na comarca, no período de 2010 a 2015, que constatou que mais 70% das ações penais foram encerradas sem responsabilização criminal, porque prescreveram sem terem sido julgadas. Do total de ações analisadas, apenas 16% terminaram com a condenação em primeira instância, mesmo assim, desse pequeno percentual, 20% teve a prescrição reconhecida pelo Tribunal de justiça. “É dizer, a cada 10 (dez) casos de violência doméstica que efetivamente se transformaram em ação penal, em apenas um deles o agressor foi efetivamente responsabilizado penalmente” (MPMG, 2020, p. 8).

Esse exemplo, que certamente não deve ser uma exceção, aponta de maneira mais específica para a necessidade de medidas de efetivação da LMP, dentre elas a criação do Juizado Especial ainda em número bastante reduzido no país; a ampliação do corpo de servidores nas delegacias, a destina-ção de orçamento, dentre outras. Essa realidade também assinala a ausência de interesse político em efetivar medidas que contenham a violência contra mulheres.

No período mais recente, com o início do governo de Jair Bolsonaro – governo de caráter conservador e neoliberal – temos acompanhado o sucessivo desmantelamento de importantes polí-ticas, como a Secretaria Especial de Políticas Públicas para mulheres (SPM) e a Secretaria Especial de Igualdade Racial (SEPPIR), campanhas públicas de conscientização, fomento à pesquisa sobre gênero e violência, dentre outras, que embora não fossem suficientes, eram políticas fundamentais para conter a violência.

Além disso, conforme assinalei no início deste artigo, em resposta ao aumento da violência de gênero durante a pandemia da COVID-19, a ONU emitiu 14 recomendações aos governos de medidas a serem adotadas para amenizar a vulnerabilidade das mulheres e dar respostas eficazes à situação de violência.Ao comparar as medidas adotadas por alguns países, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública verificou que, no Brasil, a única ação adotada foi apenas a ampliação dos canais de denúncia. O relatório conclui que,

Se a violência contra a mulher foi acentuada na pandemia e o registro de boa parte dos crimes não acompanhou essa tendência, isso indica que as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para realizar a denúncia não foi fruto apenas de medos e receios pessoais, mas principalmente da ausência de medidas de enfrentamento adotadas pelo governo para auxiliá-las em um momento tão difícil (FBSP, 2020, p. 39).

Isso reflete uma tendência no enfrentamento da violência contra mulheres no Brasil: a de prio-rizar a dimensão policial, especialmente a denúncia, sem contemplar as outras dimensões, mesmo que estejam previstas nas políticas públicas. Não é prioridade do governo brasileiro o investimento em ações de longo prazo que visem não apenas “atender” mulheres vítimas, mas minimizar a preca-riedade das suas vidas e conter, descontinuar a violência a gênero.

Nesse sentido, gostaria de ressaltar a importância das medidas de prevenção a longo prazo, que devem incluir a educação e o combate às desigualdades de gênero, sociais e econômicas.

DESCONTINUAR A DURABILIDADE

Os feminismos já mostraram que a violência contra mulheres é histórica e cultural. Resulta das construções sociais que definem padrões de feminilidade e da masculinidade. Nessas construções, o

(8)

padrão de feminilidade está baseado na submissão e obediência feminina (da mulher) em relação aos homens (pai, marido e, muitas vezes, o filho); na dependência emocional; no trabalho compulsório doméstico e dos cuidados; no dispositivo amoroso de que nos fala Tânia Swain (2007), isto é, na re-núncia de si mesma em detrimento do outro.

Enquanto que, os atributos de masculinidade, como destaca Rita Segato, são construídos a partir de um conjunto obrigatório de potências: sexual, física, econômica, intelectual, moral e política. Acontece que, nas sociedades capitalistas, sobretudo aquelas pautadas pelo neoliberalismo financeiro, com alta concentração de renda e de desigualdade, um grupo cada vez mais reduzido de homens con-centra essas potências, pois são os que detêm meios econômicos para isso. Rita Laura Segato nomeia esse processo de “mandato de masculinidade”, isto é, “a obrigação de ter que demonstrar-se homem e não poder fazê-lo por não ter os meios” (SEGATO, 2018).

A masculinidade é um título, a feminilidade, não. O mandato de masculinidade é algo que, ao mesmo tempo em que assegura um poder às pessoas que carregam um corpo masculino, também os obriga, para manter esse poder, a determinados sacrifícios, sendo um deles a obrigação de ter que se titular diariamente. Conforme Segato,

[..] nunca cair na suspeita de seus pares, de seus confrades, do seu grupo corporativo; nunca cair na suspeita de se ter degradado um pouquinho em sua masculinidade; isso se aprende desde pequeno, então as exigências são exigências de capacidade e indiferença à dor dos ou-tros, baixo nível de empatia, de capacidade de crueldade, capacidade de desafiar os perigos (SEGATO, 2018).

Tudo isso faz parte de um conjunto de potências que varia em cada cultura e em cada tempo histórico, que tem longa duração na história da humanidade, mas se intensifica ao se entrecruzar com a precariedade da existência. (SEGATO, 2017).

Conforme aponta Rita Segato, a ausência desse conjunto de potências, que permite ao homem mostrar-se viril perante seus pares e perante a sociedade, pode levá-lo ao desespero devido à falta de autoridade e poder. Sem a posse e o controle de um território, ele não se titula como homem, por isso ele busca restaurar sua autoridade, sua potência, sua moralidade e soberania perdidas pela posse e controle do corpo da mulher, entendido como um território. Esse corpo-território torna-se objeto e meio de sua titulação (SEGATO, 2018).

A partir do conceito de necropolítica, formulado por Mbembe (2018), usado para se referir às políticas que, ao contrário de fazer viver, fazem morrer, provocam a morte, Tedechi (2019) propôs a noção de necromasculinidade para se referir a essas formas de masculinidade que provocam a morte, em específico, de mulheres. Podemos buscar no “mandato de masculinidade”, nessa “necromasculini-dade” as razões das violências, cada vez mais intensas e mais cruéis contra as mulheres: os estupros, os feminicídios, a violência não letal e, sobretudo, a intensificação da crueldade.

São essas formas de masculinidade e feminilidade que determinam e elucidam o feminicídio. Esse é um crime que expressa o ódio pelas mulheres, em especial a mulher que está fora do padrão de feminilidade a que me referi. Por isso, ele tem caráter disciplinador, o assassino se apresenta como um moralizador que quer recolocar a mulher de volta ao seu lugar de obediência, posse e submissão. Por esse motivo que, como ressaltou muito bem Rita Segato, o feminicídio é um crime assinado e emite uma mensagem, não a uma mulher específica, aquela que teve seu corpo assinado, mas à mulher genérica, ao conjunto de mulheres. O corpo da mulher se torna texto e território de inscrição do poder masculino, por meio do qual ele recupera a potência perdida (SEGATO, 2005; 2017; MAIA, 2019).

Pensar essas masculinidades como uma obrigação, um mandato, não significa, contudo, reti-rar dos homens a agência ou a responsabilidade de seus atos, mas ressaltar como eles fazem uso da sua posição de poder e autoridade e, sobretudo, enfatizar que a violência contra mulheres precisa ser analisada numa dimensão mais ampla que envolva a compreensão das decisões políticas de governos sobre a vida (biopolítica) e os efeitos necropolíticos do neoliberalismo.

Nesse sentido, argumento que, para erradicar a pandemia da violência de gênero é preciso investimentos políticos em duas direções fundamentais: na mudança de valores, de práticas

(9)

histórico-culturais e no combate às desigualdades (sociais, econômicas, etc.). Para finalizar, apresento breves reflexões para melhor elucidar meu argumento.

a. Educação para transformação

No livro Las estructuras elementares de la violência, Rita Segato ressalta que: “(...) o gênero tem um tempo tão longo como o tempo da espécie, um tempo lentíssimo, muito mais lento que o da história das mentalidades. É um tempo quase cristalizado, parece um tempo natural. É por isso que é tão difícil modificar a opressão de gênero” (SEGATO, 2003, p. 153).

Para realmente acabar com a opressão e conter a violência contra as mulheres é preciso “romper o cristal duro do gênero”. Uma das maneiras de se fazer isso é por meio da educação, em seu sentido mais amplo. É necessário substituir as pedagogias da crueldade por pedagogias mais libertárias e li-bertadoras e apostar num modelo de educação voltada para igualdade, para o aprendizado e a prática dos direitos humanos, da empatia, do respeito pela diversidade e diferença.Uma educação que não produza e reforce estereótipos de gênero e assimetrias entre meninos e meninas, numa perspectiva que envolva toda a sociedade.

A lei Maria da Penha, atenta à importância da educação no processo de prevenção e erradicação da violência de gênero, define no seu artigo 8º diretrizes para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, por meio de um conjunto articulado de ações que evolvem a União, os Estados e os Municípios e de ações não-governamentais, que incluem a educação. Dentre elas,

- Promoção de estudos e pesquisas com perspectivas de gênero;

- A promoção e realização de campanhas educativas de prevenção à violência doméstica e familiar e à difusão da lei;

- A capacitação dos profissionais e diferentes agentes que trabalham com o tema;

- A promoção de programas educacionais que disseminem o respeito à dignidade humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia;

- Inclusão nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher; e a disseminação dos valores éticos (BRASIL, 2012; grifos meus).

Embora no governo brasileiro, entre 2003 e 2015, se possa observar esforços para incluir a temática de gênero na escola e fomentar a qualificação de professores com os cursos sobre gênero e diversidade na escola (OLTRAMARI; GESSER, 2019), por exemplo, o que temos verificado nos últimos anos, no entanto, é o avanço de uma frente estatal-empresarial-midiático-cristã sobre o Estado e com ela, projetos como o “Escola Sem Partido” (FRIGOTTO, 2017; MOURA, 2016). Sob a roupagem de uma suposta neutralidade política, o projeto visa retirar qualquer menção a gênero dos currículos escolares e criminalizar professore(a)s que insistem na discussão dessa problemática. Como resultado do avanço desse projeto, assistimos no campo da educação, mais especificamente a partir de 2015, a expansão da chamada “ideologia de gênero”, algo inventado no âmbito, sobretudo, do cristianismo conservador na América Latina para implantar – com finalidades políticas – um pânico moral na população (MI-KOLSCI; CAMPANA, 2017; GUIMARÃES, 2020) e suprimir as discussões sobre gênero na educação.

Ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha se pronunciado em definitivo sobre a incons-titucionalidade desses projetos – muitos dos quais já haviam sido aprovados em vários municípios brasileiros –, essas proposições atrasaram o debate em muitos anos, criaram certa aversão às discussões em torno das desigualdades de gênero e, de fato, evitaram que esse tema fosse efetivamente incluído nos currículos escolares, como prevê a Lei Maria da Penha.

A interferência política na educação, por meio da censura dos temas relacionados ao gênero, aponta para uma vontade de frear os avanços e manter as desigualdades, os padrões de comporta-mento e de feminilidade, de masculinidade e seu mandato. Isso é, sem dúvida, um grande empecilho para a construção de qualquer política de longo prazo que objetive o enfretamento da violência com vistas à sua erradicação.

(10)

b. Combater outras formas de desigualdades.

Por fim, quero ressaltar a importância de medidas que visem acabar ou pelo menos diminuir as profundas desigualdades sociais, fundamentais em qualquer projeto de governo que realmente pretenda implantar uma cultura de não-violência às mulheres. Segundo o Relatório de Desenvol-vimento Humano de 2016, num ranking de mais de 140 países, o Brasil ocupa a 10º posição do país mais desigual do mundo.

O relatório A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras, da OXFAM, aponta que em 2017 eram 16 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza; o 1% mais rico da população recebia, em média, mais de 25% de toda a renda nacional. As mulheres ganharam em média apenas 62% do valor dos rendimentos dos homens, elas são a maioria (65%) na faixa salarial de 0 a 1,5 salários mínimos. Quando considerada a raça, os níveis de desigualdades são ainda mais aprofundados. Os negros são 67% dos brasileiro(a)s que recebem até 1,5 salários mínimos, no geral, 80% da população negra do país ganha até dois salários mínimos. “Tal como acontece com as mulheres, os negros são menos numerosos em todas as faixas de renda superiores a 1,5 salários mínimos, e para cada negro com rendimentos acima de 10 salários mínimos, há quatro brancos” (OXFAM, 2017, p. 94).

Esse relatório não interseccionou gênero e raça. Ao considerar essa intersecção, Ana Maria de Freitas mostrou em sua pesquisa que, em 2015, enquanto os homens negros ganharam em média R$ 1.547,50, as mulheres negras ganharam em média R$ 1.184,30 reais; em 2018 elas eram 47, 8% do total da população na informalidade (FREITAS, 2020, p. 41-46). A posição das mulheres negras nos índices de desigualdade como as mais pobres, mais desprotegidas de direitos previdenciários e as mais afetadas pela insegurança financeira, reflete sua posição nas estatísticas da violência como, também, as que mais apanham, mais morrem e as que menos têm acesso aos serviços de proteção.

Uma pesquisa do IBGE, em 2018, mostrou que de toda a renda do país, 40% estava concentrada nas mãos de 10% da população. Os 5% mais pobres ganharam 3% a menos, enquanto que os mais ricos, que representam 1% da população, tiveram aumento nos seus rendimentos em 8%. A renda dos mais ricos foi 33,8 vezes maior que a média dos 50% mais pobres, o que representa um recorde na série histórica do IBGE, que começou em 2012. Além disso, o Índice de GINI, que mede a desigualdade de um país, subiu em 2018, atingindo o pior resultado da pesquisa (G1, 16/10/2019). O número de pessoas beneficiadas pelo Programa Bolsa Família, por sua vez, caiu de 15,9% para 13,7%. Em 2019, dos 33,9% da população brasileira que viviam em situação de pobreza e extrema pobreza apenas 10,65% eram beneficiários do Programa Bolsa Família (FREITAS, 2020, p. 144).

Conforme ressalta Segato (2017) “a precariedade da existência leva à violência”. Com os índices de desigualdades apontados aqui, nota-se que dificilmente uma política pública de erradicação da vio-lência de gênero terá êxito se não procurar, ao mesmo tempo, erradicar a pobreza e as desigualdades.

Portanto, a violência contra mulheres resulta de relações assimétricas de poder entre homens e mulheres e de representações de masculinidade e feminilidade historicamente estabelecidas. Sua intensificação, por sua vez, decorre da ausência de interesse político do Estado e da expansão do ne-oliberalismo financeiro aliado ao racismo estrutural.

Do ponto de vista institucional, embora avançada e bastante abrangente, ao considerar di-retrizes para a esfera policial, jurídica e assistencial, bem como de prevenção em seus três níveis (curto, médio e longo prazo), envolvendo pessoas vítimas e não vítimas, a Lei Maria da Penha tem sua efetividade bastante reduzida e circunstancial, na medida em que faltam ações e investimentos políticos governamentais, tanto para operacionalizar as medidas que essa política pública prevê, quanto para formar cidadãos dentro de um cultura de não-violência e eliminar as outras formas de desigualdades, que ao lado das de gênero, são propulsoras da violência contra mulheres em sua longa duração histórica.

Notas

1 A palavra pandemia tem origem grega e significa ‘todo o povo’. A OMS utiliza o termo pandemia para se referir a epidemias que se espalham por diferentes continentes. O sentido figurado do termo, conforme o

(11)

dicionário Aurélio é “qualquer coisa que, concreto ou abstrato, se espalha rapidamente e tem uma grande extensão de atuação”. Utilizo o termo pandemia aqui justamente para me referir a um fenômeno que está

espalhado por todos os continentes e que tem aumentando em grandes proporções. Utilizo o termo longa

duração no sentido atribuído por Fernand Braudel para se referir a história do acontecimento lento, quase

imóvel, o tempo duro das estruturas difíceis de romper: “certas estruturas, por viverem muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações: embaraçam a história, incomodam-na, e assim comando seu fluxo (...). Pense-se na dificuldade de quebrar certos quadros geográficos, certas realidades biológicas, certos limites da produtividade, até mesmo certas sujeições espirituais: os quadros mentais são também prisões de longa duração” (BRAUDEL, 1965, p. 268).

2 Em Minas Gerais, foi criado o Programa Central de Penas Alternativas (CEAPA), que tem por objetivo acompanhar e monitorar a execução de penas restritivas e afirmar o sentido educativo da pena a fim pre-venir a reincidência criminal. O Programa atende, em média, 16 homens por mês em Montes Claros, em casos relativos à violência doméstica (OLIVEIRA et al. 2019). Um número reduzido diante do volume de ocorrências.

3 A noção de “mandato de masculinidade” surgiu a partir de pesquisa realizada em 1994, no Presídio da Papuda em Brasília-DF, com 16 internos condenados pelo crime de estupro. Foi publicada, originalmente, no texto: “A estrutura de gênero e a injunção do estupro” (SEGATO, 1999).

4 No original: “El mandato de masculinidad es algo que simultáneamente le da una investidura a aquellas personas que cargan un cuerpo masculino y, al mismo tiempo, para mantener esa investidura tienen que hacer una lista grande de sacrificios y uno de ellos es titularse diariamente, nunca caer en la sospecha de sus padres, de sus cofrades, del grupo corporativo, nunca caer en la sospecha de que se ha degradado un poquito en su masculinidad, eso se aprende desde chiquito entonces las exigencias son exigencias de ca-pacidad e indiferencia en el dolor ajeno, bajo nivel de empatía, de caca-pacidad de crueldad, de caca-pacidad de desafiar los peligros”(SEGATO, 2018).

5 Para uma maior compreensão sobre essa noção do corpo feminino como território consultar SEGATO (2005) e MAIA (2019).

6 Conforme levantamento de Fernanda Pereira de Moura (2016) presente em sua dissertação de mestrado, em 2016 eram 150 PLs municipais, 11 PLs Estaduais e 1 no senado. Esse número de projetos continuou crescente. Em 2018, Belo Horizonte foi a primeira capital a aprovar o projeto Escola Sem Partido. Em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal julgou como inconstitucional a proposta de um municí-pio goiano, abrindo, assim, jurisprudência para questionar outros projetos municipais. Cf. (FOLHA, 24/04/2020).

Referências

BRASIL. Lei Maria da Penha. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2012.

BRAUDEL, F. História e ciências sociais. A longa duração. Revista de História, ano 16, v. 30, p. 261-294, 1965.

BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

CERQUEIRA, D. et al. Avaliando a efetividade da Lei Maria da Penha. Texto para Discussão,

2048. Brasília: IPEA, 2015.

DATASENADO. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília: Secretaria de Transparência, ago. 2015.

FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Coord. Samira Bueno e Renato S. de Lima. São Paulo: FBSP, 2020b.

FBSP. Nota Técnica. Violência Doméstica durante a pandemia de Covid-19. São Paulo: FBSP/ Decode, 2020a.

FLASCO Brasil. Mapa da Violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil. Brasília WAISELFISZ, Jacob J. (coord.). Disponível em: Acesso em: 30 nov. 2016.

(12)

FOLHA, Por unanimidade, Supremo declara inconstitucional Lei Municipal de Ideologia

de Gênero’. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/04/stf-forma-maioria-para-declarar-inconstitucional-lei-que-veta-discussao-de-genero-nas-escolas.shtml. Acesso em: 05 nov. 2020.

FOUACULT, M. Direito de morte e poder sobre a vida. In: História da sexualidade.

ALBUQUERQUE, Maria Thereza da Costa; ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon (trad.). 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988. v. 1.

FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FREITAS, A. M. L. Políticas Públicas, gênero e autonomia econômica das mulheres. 2020, 259f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Social) - PPGDS/Unimontes, Montes Claros.

FRIGOTTO, G. (org.) Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017.

G1. Desigualdade aumentou no Brasil em 2018, aponta IBGE. Disponível em: https://g1.globo.com/ jornal-nacional/noticia/2019/10/16/desigualdade-aumentou-no-brasil-em-2018-aponta-ibge.ghtml. Acesso em: 24. 10. 2019.

GUIMARÃES, G. Teoria de gênero e ideologia de gênero: cenário de uma disputa nos 25 anos da IV Conferência Mundial das Mulheres. Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 12, n. 29, jan./abr. 2020. IPEA. Altas da violência 2019 - 2020. CERQUEIRA, Daniel; BUENO, Samira (coord.). Brasília: IPEA, 2019 - 2020.

LAURETIS, T. de. As tecnologias de gênero. In: BUARQUE DE HOLANDA. H. (org.). Tendências

e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242.

LISBOA, M. G.(coord.). Inquérito municipal à violência doméstica e de género no Conselho de Lisboa. Lisboa: ONVG, 2017.

MAIA, C. J. Rompendo o silêncio - histórias de violência conjugal contra mulheres no norte de Minas (1970-2007) In: MAIA, C.; CALEIRO, R. (org.). Mulheres, violência e justiça no norte

de Minas. São Paulo: Annablume, 2012, p. 15-52.

MAIA, C. Sobre o (des)valor da vida: feminicídio e biopolítica. História. Franca/Assis, UNESP, v. 38, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0101-90742019000100309.

MAIA, C. Vidas que não importam: violência contra mulheres e biopolítica no norte de Minas, os efeitos da Lei nº 11.340/2006. Labrys: estudos feministas. Brasília, jul. 2016. Disponível em: https://www.labrys.net.br/labrys30/patriarcado/claudia.htm#:~:text=Vidas%20que%20 n%C3%A3o%20importam&text=Resumo%3A,prec%C3%A1ria%20formulada%20por%20 Judith%20Butler. Acesso em: 02 nov. 2020.

MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.

MISKOLCI, R.; CAMPANA, M. Ideologia de gênero: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Rev. Sociedade e Estado. v. 32, n. 3, set./dez. 2017.

MOURA, F. P. de. Escola sem partido: relações entre Estado, Educação e Religião e os impactos no ensino de História. Rio de Janeiro, UFRJ, 2016. Dissertação.

MPMG. Ofício da 16ª Promotoria de Justiça, assinado pelo promotor Guilherme Roedel Fernandez Silva. Montes Claros (MG), 12 de mar. 2020.

OLIVEIRA, G. G. et al. CEAPA: desafios e possibilidades da responsabilização em liberdade. Belo Horizonte: Inst. Elo, 2019.

OLTRAMARI, G. C.; GESSER, M. Educação e gênero: histórias de estudantes do curso Gênero e Diversidade na Escola. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 27, n. 3, p. 1-14, 2019.

(13)

ONU Mulheres. Gênero e COVID-19 na América Latina e no Caribe: dimensões de gênero na resposta. Brasília: ONU Mulheres Brasil, mar. 2020.

OXFAM Brasil. A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras. S.l.: Brief Comunicação, 2017.

SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-100, jul./dez. 1995.

SEGATO, R. L. A estrutura de gênero e a injunção do estupro. In: SUAREZ, M.; BANDEIRA, L. (org.). Violência de gênero e crime no Distrito Federal. Brasilia: UnB, 1999. p. 387-430. SEGATO, R. L. La guerra contra las mujeres. Madrid/Argentina: Traficantes de Sonhos, 2017. SEGATO, R. L. La masculinidade es um título, la feminidad no. Pressenza: International Press Agency. Quito, 17/09/2018. Disponível em: https://www.pressenza.com/es/2018/09/la-masculinidad-es-un-titulo-la-feminidad-no-rita-segato/. Acesso em: 02 nov. 2019.

SEGATO, R. L. Las estructuras elementares de la violencia: ensyos sobre género entre la

antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2003.

SEGATO, R. L. Por qué la masculinidad se transforma en violencia. La Voz. Buenos Aires, 2017. Disponível em: https://www.lavoz.com.ar/ciudadanos/por-que-la-masculinidad-se-transforma-en-violencia. Acesso em: 02 nov. 2019.

SEGATO, R. L. Território, soberania e crimes de segundo Estado: a escritura nos corpos das mulheres de Ciudad Juarez. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 13, n. 2, maio/ago. 2005. SSPMG. Diagnóstico de violência doméstica e familiar nas regiões integradas de segurança pública

de Minas Gerais. Registros tentados e consumados. Belo Horizonte: Secretaria de Segurança

Pública, mar. 2019.

SWAIN, T. Entre a vida e a morte, o sexo. Labrys. Brasília, n. 10, jul./dez. 2006.

Disponível em: http://www.tanianavarroswain.com.br/chapitres/bresil/entre%20a%20vida%20 e%20a%20morte.htm.

TEDESCHI, L. A. O necropoder e suas ramificações: a necropolitica e a necromasculinidade.

In: GOMES, Ana Maria; REIS, Aparecido Dos; SILVA, Viviam da Veiga (org.). Gênero, sexualidades e conservadorismos. Campo Grande: LIFE editora, v. 1, p. 45-60, 2019.

Imagem

Tabela 1 : violência contra mulheres no Brasil 2016-2018

Referências

Documentos relacionados

Desta forma, a qualidade higiênico-sanitária das tábuas de manipulação dos Laboratórios de Técnica Dietética, Tecnologia de Alimentos e Gastronomia e das

Os principais objectivos definidos foram a observação e realização dos procedimentos nas diferentes vertentes de atividade do cirurgião, aplicação correta da terminologia cirúrgica,

psicológicos, sociais e ambientais. Assim podemos observar que é de extrema importância a QV e a PS andarem juntas, pois não adianta ter uma meta de promoção de saúde se

transientes de elevada periodicidade, cujos poros de fusão, de maior diâmetro, se mativeram abertos durante mais tempo. A expressão das quatro isoformas de HCN foi confirmada

Todavia, nos substratos de ambos os solos sem adição de matéria orgânica (Figura 4 A e 5 A), constatou-se a presença do herbicida na maior profundidade da coluna

In an attempt to data mine TFs that are potentially involved in cell wall biosynthesis in sugarcane, we built a co-expression network using the R-package WGCNA (Langfelder and

Como objetivos específicos pretendeu-se iden- tificar os taxa existentes nesta gruta, determinar a riqueza de es- pécies de sua comunidade; verificar a influência de fatores

São considerados custos e despesas ambientais, o valor dos insumos, mão- de-obra, amortização de equipamentos e instalações necessários ao processo de preservação, proteção