CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS Unidade de Diagnóstico Social
Carlos Serra (dir)
Linchamentos em Moçambique
2.a
EdiçãoFrcHA
rÉcrrcn
Título:
Linchamentos em MoçambiqueCoordenação:
Carlos Serra (dir)Edição:
Imprensa Universitária@
2014:
Imprensa UniversitáriaMaquetização,
Capae
Impressão:
Imprensa UniversitáriaFotos
da
Capae
Contracapa:
Respectivamente do "Diário de Moçambique", de Sérgio Tique e de Arune ValyNúmero de Registo:
8458/RLINLD/2015ISBN:
978-989-99419-1-5Tiragem:
500 ExemplaresLocal:
Maputo2a
Edição:
2015Prefácio
à
2.a
edição
Esta é a segunda edição, em volume agrupddo, de dois livros sobre linchamentos em Moçambique que
foram
publicados pela ImprensaUniversitária
da
Universidade Eduardo Mondlane
em
2008
(o primeiro) e 2009 (o segundo).Há muito
esgotados, estavama
ser
procuradospor
professores, estudantese
públicoem geral.
Daíesta
segunda edição,na
qual operámos apenas pequenas alterações de forma.Os
linchamentosnão
desapareceramapós
a
pibticação
dos
dois livr:os. Regularmente,a
imprensa dá conta deles, como se fizessemjá
pafte de uma cultura enraizada.Ontem
como hoje,
continuaa
ser
imperativo analisá-los para que os decisores estatais possam saber como impedi-los.Analisar não significa estar em acordo ou em desacordo.
Quando
um
médico manda fazerum
raiox a
um paciente que temum
problema
num
determinado
órgão interno,
não
tem
por preocupação saberse
esseórgão
é
bom
ou
mau,
feio ou
bonito, mas saber o que o afecta para, depois, iniciar a terapia.A
função dos
estudantes
do
social
é
um
pouco como
a
dosmédicos:
consiste
em
analisar
fenómenos, vasculhar
as
suas cavidades, encontrar causase
consequências, podendo acontecer que os decisores (que não são eles)tomem
medidas na sequênciados
resultadosobtidos. Poftanto,
a
sua função
não
consiste em saber se os fenómenos são bons ou mais, feios ou bonitos.Estudantes
do
social
são
obviamente
cidadãose
cídadãos
são regidospor
princípiose
regras morais, diferentes que unse
outrassejam. Mas quando
estudam fenómenos sociais
fazem-no
(ou devem fazê-lo) como estudantese
não como cidadãos.Nenhuma ciência
é
possível quando se confunde estudoe
moral e se pede àquele que seja esta. Ou vice-versa.O
ss
nãoé
o
dever serto
juízo defacto
nãoé (ou
não deve ser) o juízo devalor,
Esteé,
hoje
ainda,
um dos
maiores desafiosda
história
científica da humanidade, Carlos Serra Maputo 2L de Abril de 2015Linchamentos
em
Moçambique
f
IV VÍndice
Prefácio à 2.a edição . ilt
v
1
Linchamentos em Moçambique
I
1. Introdução... Carlos Serra
Enquadramento
e
Resultados da
Pesquisa.
...11
2. Breve nota sobre fontes de
informação...
....13
Suzana Maleiane e Carlos Serra
3. Breve cronologia dos linchamentos urbanos
(1991-Março/2008)
,,17
Calisto Pacheleque
4.
Pequenamofologia
dos bairros periféricos25
Patrícia Cuamba
5. Pneu: protector, brinquedo
e
linchador
...33
Hélder Samo Gudo
6.
Percepções nos chapasda cidade de Nampula Patrícia Cuambe e Valerito Pachinuapa7. Percepções nos chapas da cidade da Beira... Marlène Germano e Cremildo Bahule
39
...43
8. Sobre linchamentos de mulheres Natacha Morais
47
9. Questionário e redacções: tendências percepcionais ... "..
55
Teles Huo
10. Exclusão, violência
e
busca de justiça social: o caso do Bairro deInhagóia...
...77
Cremildo Bahule
Aprofundamento
Analítico.
...91
11. O lincharnento como reivindicação e afirmação de
poder...93
12. Gramática da violência 117 Valerito PachinuaPa 13. Cidadãos
e
lealdade Marlène Germano125
14, Perspectivajurídico-legal
..141
Paulo Munguambe15, A justiça
à
margem do Direito e do Estado... 163 António da Costa Leão16. Linchamentos: uma leitura do seu
simbolismo
....189
Cremildo Bahule
17, Os linchamentos em Moçambique: uma leitura
religiosa...199
'
Miguel Moto18. Linchamentos, eclipse do social e bodes
expiatórios...213
Carlos Serra
19,
Conclusões...
...229
Carlos Serra
Estudo de
CasoComparativo:
Brasi|...,...
..251
20. Linchamento
é
uma revolta popular. Mas contra o quê?...,253
Jacqueline Sinhoretto
Anexo...
....2g3
4. Testemunhos de
pesquisadores....,...
..,...401
4.1.
No feitiçoo
meu espíritooscila...
...403
Por Cremildo G. Bahule
4,2.
Linchamentos por acusação de feitiçaria Por Marlene Germano413
4.3. Sobre a feiUçaria 417
Por Hélder Samo Gudo
5.
Potenciais de violência nos alunos de escolas primárias deInhambane eZambézia
423
Por Teles Huo
6.
Formas deimputação...,...
...433
Por Carlos Serra
7. Leis do mercad o
e
cura-tudo Por Carlos Serra8. Conclusão: as mentes armadas pelo
okhwiri
...455
Por Carlos Serra
9. Anexo
documenta1...
..,...467
Linchamentos
em Moçambique
II
1.
Introdução...
Por Carlos Serra
2, Situação na Zambézia
...
Por Angélica João
3. Situação em
Inhambane...¡¡!¡.¡¡¡¡¡r¡¡¡¡¡
..;... Por Angélica João319
321
329
347
-Ft
11,
O
linchamento como reivindicação
e
afirmação
de Poder
Paulo Granjo
Instituto
de Ciências SociaisUniversidade de Lisboa
Na noite de 18 de Outubro de 2006, enquanto Maputo se preparava para as cerimónias do 20o aniversário da mofte de Samora Machel,
o
serviço
noticioso
de um
dos
canais privados
de
televisãotransmitiu, quase
em
directo,
o.
linchamento
pelo
fogo
de
3pessoas,
Encaradas
como um
"furo"
jornalístico,
as
imagens
quase
não foram editadas, estendendo-sepor
cercade
15 minutos.Ao
longodesse período,
os
telespectadores
como
eu
foram vendo
umhomem ferido
de
pancadas quetentava
rastejarpara
longede
um montede
pneusem
chamas,onde
doisoutros
homens ardiam,já
mortos. Aiada
nova tentativa desesperada, ele não conseguia mais do que chocar como
círculode
pessoas queo
rodeavae
de onde, vez apósvez, se
destacavamalguns
homensque lhe voltavam
abater e o arrastavam até à
fogueira'-
onde de novo se retorcia, até quejá
não conseguiu sair de lá.A
intervençãodos
homensque
saíamdo
círculopara
o
Arrastar, sempre diferentes, era saudadapor
gritos das mulheres, enquantocrianças dançavam
e
chutavam
terra
para cima
do
homem arrastado.Em nenhum
rosto se
descoftinavauma
expressão de compaixãoe
nenhum
gesto
ou
palavra, sequer
por
parte
dosjornalistas,
pareceu algumavez
sugerir
que se
poupassea
vidaOlhando com atenção, aquela não era uma multidão descontrolada
e em fúria.
Erauma multidão em festa
(ou
que, pelo
menos, se apresentava comotal),
onde
cadaum ia
assumindoe
inventandoum
papel numa
coreografiaque
todos
reconheciam, mesmo quenunca
a
tivessem
visto
e
mesmo
que ela
fosse diferente
dequalquer
outra antes
realizada,Todo
o
espectáculose
tornavaainda
mais perturbadorpor ser
evidente que aquelas pessoas nãotinham
nadade
especial; não eram diferentesdo vulgar
e
pacato cidadão com que falavae
me cruzava todos os dias, ao ponto de euter: julgado reconhecer dois rostos no meio da multidão,
À
derradeira imagem
de
morte
seguiram-se,na
peça televisiva, entrevistas.Primeiro,
com
um
homem
bem
vestido
a
quem os três
jovenslinchados
(e
mais
dois outros,
que
conseguiramfugir)
teriamroubado
o
telefone celular
e a
carteira,
alegadamente recheada com um milhão de meticais antigos.' Para muitos dos pafticipantes, essa quantia podia corresponder quasea
um salário mensal; para o entrevistado, contudo, esse não parecia seçde todo,
o
caso. Tãopouco
pareciaque
a
proporçãoentre
a
dimensãodo
crime
(um roubode
1.000 meticais) e o custo da punição(3
mortes dolorosas, públicase
humilhantes) fosse ou devesse ser um aspecto relevante a sopesar.Numa segunda entrevista, uma rapariga do bairro, que
já
tinha sido assaltada várias vezes, explicava que precisavam de assustar assimos
ladrões devidoà
inacçãoda
polícia.É
provávelque esta
visãoprofilática
do
linchamento
fosse
partilhada
pela
maioria
dos presentes, caso lhes fosse perguntado. No entanto,a
entrevistadajuntou-lhe um
desabafoem
tom
de
desânimo, demonstrando que essa crença lhe começavaa
suscitar dúvidas:já
há duas semanas,1 Ou seja, 1.000 meticais da nova família, cerca de 40 dólares norte-americanos.
disse, tinham
tido
que
fazer
<<aquilo>>e
<<eles>>nunca
mais aprendiam.Ao
carácter chocantedas
imagense do
seutratamento
noticioso, juntavam-se assim várias perplexidades.A primeira era que, tendo sido cometidos diversos crimes (incluindo
por
parte dos
jornalistas)
de
que
aquela reportagem
constituía prova, as pessoas não evitassem ser identificadase,
pelo contrário, dessema
cara para justificaro
acto e demonstrassem, até, orgulho emtê-lo
cometido.Em segundo lugar, espantava que um acontecimento
tão
demoradoe
conspícuo pudesse ser registadopor
uma equipade
repoftagem/mas
não
tivesse atraído
a
atenção
e
intervenção
das
forças policiais.Uma
terceira
perplexidadeé
que
nada
daquilo
que tinha
visto indicavauma
reacção irracionalou
impulsiva' Por
um
lado,
se
o <agarrao
ladrão>e o
<<queima> poderiamter
sido
momentos de descontrolo impulsivo, nas imagensque
tinha
presenciado(e
que eram apenasa
pafte final deum
processomuito
mais longo) havia uma auto-organização, uma duração repetitivae
uma necessidadede
cada pessoa se afirmar comoparte do acto que
ultrapassavam em muitoa
mera irreflexão momentânea, Poroutro
lado, embora aideia
de
que
a
ameaça
de
morte
dissuade
o
crime
sejarepetidamente
desmentida
pelos factos,
ela
continua
a
ter
defensores eloquentes
que
recorrem
a
racionalizações
e argumentos elaborados. Nesseaspecto,
as
pessoasque vira
em nada se diferenciavam de um qualquer defensor da pena de mofte.Uma última
perplexidade
era
o
facto
de
estas
pessoas/
queparticipavam
de
forma
tão
assumida
num
linchamento deliberadamentecruel,
serem normalíssimos cidadãosde um
país que vivera uma longae
traumatizante guerra civil, cuja violência ehorrores
as
pessoas procuravam,de
forma
evidentee
marcante, remeter parao
passado e por lá deixar (Alden 2002; Granjo 2007).Mas,
independentementede
choques
e
perplexidades,a
vida
lácontinuou
-
excepto, claro, para aqueles que foram moftos. No dia seguinte, aqueles homens, mulherese
crianças terão aproveitado atolerância
de
ponto devidaà
evocaçãodo
presidente desaparecido,antes
de
voltarem pacatamente aos seus empregosou
actividades rotineiras,onde
seterão
compoftadode
forma
tão
cordata comosempre.
Pelaminha
pafte,
fui
ironicamente acordadoa
meio
danoite
pelo assaltoà
loja de
uma empresade
celulares, mesmo dooutro
lado
da
rua, com
profusatroca de
tiros entre
os
ladrões e uma empresade
segurança privada. Nos dias seguintes, constatei com alguma surpresa que quase todas as pessoas com quem falavaacerca daquele
linchamento,
oriundas
de
diferentes
camadas sociais, encaravamo
que se
tinha
passadocom
benevolência ou mesmo simpatia,Ao
longo
de
2007,
continuaram
a
ocorrer
pontualmente linchamentosem
bairros
popularesde
Maputo. pelas
descrições que me chegaram, a sua dinâmica era bastante semelhante ao quetinha
podido
observar,mas
aparentavam
ser
casos dispersos e pontuais,Em 2008,
contudo, parecia
ter-se
declarado
uma
epidemia
nas áreas urbanas.Até
ao
momentoem que
comeceia
escrever esteaftigo,
o
blog"Diário
de um Sociólogot tinha contabilizado cerca de40
linchamentos consumados, para além de dois outros que foram evitadosin
extremts-
um por intervenção da polícia e outro por umgrupo
de
idososque
aproveitoua
indecisão sobrequem
pegariafogo
ao
pneu para
dissuadiros
"punidores", Com flutuações,
afrequência
foi
maior nos primeiros
mesesdo
ano,
sobretudo emtorno dos motins
popularesque
abalaram Maputo
no
início
de2 http://oficinadesociologia,blogspot.com/
Fevereiro,
e
diminuiu bastante
após os
ataques
e
linchamentosxenófobos
de
imigrantes
(incluindo
muitos
moçambicanos) navizinha África
do
Sul,em
Maio, Noentanto,
quaisquer esperançasde que
o
fenómeno
se
estivessea
extinguir
desapareceram em Outubro, quandoum
novo recrudescimento elevoua
contabilidade macabra até aos 50 mortos.Pela sua frequência
e
visibilidade pública,a
questão depressa foi erigidaem "problema
Social"(pelo
menosem termos
discursivos) pelos politicos, mediae
intelectuais. Como quase sempre acontece,começou
por
se
discutir
e
procurar
a
causa,
na
compreensívelesperança
de,
descobrindo-ae
agindo sobre ela,
se
debelar
o problema,Infelizmente
para
essa
esperança
de
rápido
diagnóstico
eterapêutica,
os
fenómenosde
violência colectiva
raramente têmapenas
uma
causa
e
um
único sentido.
Tendem
antes
a
ser processos polissémicosem que se
expressam diversos problemas, interpretados de forma diferente-
e
muitas vezes complementar -pelos indivíduos e grupos envolvidos'Também
por
isso, os linchamentos podem ser encarados por várias perspectivas diferentes, Semque
nenhuma delastenha que
estar errada, independentementeda
maiorou
menor relevânciade
cada uma,em
cada caso concreto.É no entanto
plausívelque seja
na interacçãoenti'e
elas
que
venhamosa
encontrar
a
leitura
mais adequada e apiofundáda desse fenómeno-
e, em última instância, das formas mais eficazes de lhe dar resposta.Em
Moçambiquee
em
2008, falou-se
da
asfixia
da
pobreza, da inexistênciaou
ineficáciado
policiamentoe da
iluminação pública, da criaçãode
bodes expiatórios para um desconforto social difuso,de
catarsee
reforçodo
grupo
atravésda
criaçãoe
destruição do ..outro,,,ou
até
de
mera
irracionalidadecolectiva,
Tirando
esta últ¡ma visão, todas me parecem pertinentes, seja no âmbito de umaAs
conversasque
fui
mantendocom
ex-soldados pottugueses da <guerra colonial>* pintam, no entanto, um quadro bemdiferente,
Éverdade
que
eles
referem
dificuldades
de
adaptação
à
"vidanormal"
e
dominam
a
retórica
de
vitimação
do
Stress
Pós-traumáticode
Guerramas,
ultrapassado esse discurso"pronto-a-seryir" para
o
exterior, não é dos pesadelos, do medo de morrer ouda
repugnância moralde
matar que falam
quando mencionam o choquedo
regresso (embora tenham sentidotudo
isso, pelo menos nalgummomento),
masdo violento
contrasteentre
a
liberdade epoder
sentidos
na
guerra
e a
subalternidade
e
insignificância sentidas na paz,É
uma história
recorrente, nessas conversas, o Jovemque
sai
deum
lugar
repressor
e
reprimido,
dá
consigo
num sítio
onde experimentacoisas novas
e
tem
poder
de
vida
e
morte
sobreoutros
seres humanos, regressando depoisa
um
localonde
tudo pareceigual
e
onde
esperamdele que se
continuea
submeter aqualquer pequeno patrão, polícia
ou
notável local. Essas figuras de autoridadeque,
antes, setinha
habituadoa
respeitar parecem-lheagora
insignificantes,pois não viveram
as
suas
experiências em horizontes bem mais vastos, nemo
seu poderde infringir os
mais gravesinterditos
sociais(como matar), sendo
louvadopor
isso e podendodecidir quando
o
fazer.As
ielaçõesde
submissão queantes
pareciam*naturais" parecem
agora
absurdas,
por se
ter
esvaziado
a
sua
anterior
legitimidade
e
por
contrastarem violentamentecom
o
poder experienciadóem
situaçãode
guerra; são sentidas como agressõese
suscitamdele
reacções agressivas,<anti-sociais>.
Esta sensação agressiva
de,
abruptamente,se
deixarde
ser
uma pessoa poderosae
determinante,
para
se
passara
ser
alguém 3 Designação popular, em Portugal, para o conj unto das Guerras de LibertaçãoNacional ocorridas em Angola, Moçambique
e
Guiné-Bissau, sentidas como sefossem uma só.
99
sempre abstracta
realidade"objectiva'i seja
da
leitura
que
delafazem
os
sujeitos, seja ainda das tentativas
de
interpretação do fenómeno a partir do exterior,A
hipótese interpretativa
que
pretendo propor
não se
destina
asubstituir
as
restantes, masa
complementá-lase
a
dialogar comelas,
na
imodesta esperançade que
tal
diálogo
possa constituir uma mais-valiaútil
para a global compreensão do fenómeno,Sinteticamente,
irei
propor-vosque
a "onda" de
linchamentos de2008 constitui, também,
uma
linguagem ritualizada
de
poderatravés
da
qual
populaçõesperi-urbanas procuram
reivindicar eafirmar um
poder de controlo sobre as suas vidas, num quadro de insegurança global que extravasa a criminalidade e que interpretam como um abandono por pafte do Estado.Poder
e prazer de
matar
Temo
que,
para podermos compreenderum acto
e
fenómeno tão extremo como um linchamento, sejamos obrigados a suspender por momentos algumasdas
nossas. crençasbem
intencionadas acerca da "natureza humana". Uma delas éa
ideia de que matar outro serhumano constitui, "naturalmente"
e
em
todas
as
condições, umacto que
causa repugnânciaa
quem
o
pratica(e
apenasisso),
amenos que quem mata seja um psicopata.
Esta crença é tão
fote
que, após a guerra do Vietname, a noção deStress
Pós-traumáticode
Guerra
passoua
adoptar,
em
grande medida,uma
lógicade
vitimaçãodo
agressor.o
veteranosofre
e está socialmente inadaptado devido aotrauma
resultantedo
factode
seter visto
na
necessidadede
matar,ou
mesmode
participar em chacinas reprováveis.assistimos
num
linchamentonão são uma
celebraçãoda
morte, mas uma celebração daquilo quea
comunidade quer acreditar que sejao
retomar do domínio sobre a sua v¡da'Em cefta medida, então, podemos dizer que
o
linchamento constitui uma extensão dasvedentes
agradáveisda
experiência traumáticade
guerra, mas com duas impoftantes
diferenças,para além
dofacto
de
não
ocorrer
num
contexto bélico.
Por
um
lado,
a consciência daquilo que está em causa nesta situaçãode
excepçãoemtempodepazpareceserbemmaisimediataparaosquenela
participam do que habitualmente
é
para os membrôsde
uma força beligerante.Por
outro
lado,
o
poder
manipuladono
linchamento nãoé
apenaso
de
matar, mastambém
-
pelo
menos enquanto desejo e representação-
o
poder de instaurar a ordem e o domínio sobre a PróPria existência.Os paralelos
entre os
dois fenómenose
a
recente experiência degr.rru
em
Moçambique poderiam levar-nosa
perguntar:será
quenas áreas onde
os
linchamentos
ocorrem existe uma
elevadaconcentração
de
veteranos
de
guerra?
Será
que
o
seuconhecimento do prazer do poder de
matar
contribui para a génese e crescimento deste fenómeno?Essa
eventual
correlação poderiaser
estuda'damas' na
verdade, nema
sua existência chegaria para confirmaro
argumento de queos
linchamentossão,
também'
expressõesde
poder,nem
a
sua inexistênciao
infirmaria. De facto,
se tanto
a
guerra como
o linchamentocriam
o
excepcionalpoder
de
matar
sob
aprovaçãosocial,
não temos que
pressupor
que
a
experiênciade
guerrapredisponha
ao
linchamentoou lhe
seja
necessária-
a
dinâmicadeste
último
é
suficiente
para criar
efeitos
semelhantesaos
damofte guerreira.
Por
outro
lado, matar
em
situação
de
guerra
não
é
o
únicoreferente para
a
sensaçãode
poderque
é
transmitida
pela mofte socialmente subalternoe
irrelevante radica,afinal, num dado
quecostumamos procurar esquecert que matar sob aplauso público, por muito emocionalmente violento que possa ser para
o
indivíduo que mata,é
uma situaçãode
poder praticamente sem paralelo na vidade
quase todasa gente.
E pude mesmo verificarque,
para muitasdas
pessoasque
o
experienciaram (atrever-me-iaaté a
dizer que para quase todas),a
percepção desse poder suscita prazert mesmo queo
próprio acto de mataro
não faça.Claro
que um
linchamentonão
é
uma
situaçãode
guerra,
nemdeveremos
encarar
essas realidades diferentes
de
uma
forma meramente analógica. Mas ambos os casos são situações liminares e de excepção, nas quais o acto de matar, em vez de ser reprovado como habitualmente,é
incitado, valorizadoe
aplaudido pelo grupoque,
naquela alturae
contexto, mais importa: ou os camaradas dearmas
e
os
superiores,
ou
a
comunidade envolvente,
que
se representa a si própria como estandoa
proteger-se.No entanto,
as
semelhançasnão terminam aqui.
O
orgulho
pelo linchamento realizado(evidente
nas descriçõesfeitas
por
pessoasÇu€,
depois,
até
podem
apressadamente
alegar
que
nãoparticiparam
nele
de
forma directa), justifica que, pelo
menosenquanto
hipótese,se
concluao
círculode
similitudesque
tenhovindo
a
sugerir:
maisdo que
como
um
<<mal necessário>>que
acontragosto
se
é
compelidoa
realizar,o
linchamento parece servivido como
uma afirmação
pela
positiva, como
um
assumir depoder
-
não tanto
sobre
a
vida
do
suposto
criminoso,
mas sobretudo sobre a vida das pessoas queo
matam e da comunidade que estas consideram sua.Assim,
ao
prazer do poder em
abstracto
junta-se
o
prazer
de superara
sensação humilhantede
sermos umjoguete do
acaso ede
forças
que
nos transcendem-
sejam elas
a
deambulação de marginais, as dificuldades de subsistênciaou a
ineficácia policial do Estado, Sobesta
luz, as expressões chocantemente festivasa
queAssim sendo, penso que não será ceftamente irrelevante para este fenómeno
o
facto de
existir,em
Moçambique,umà
familiaridadehistórica com os castigos corporais (e
a morte)
públicos,ou
mesmo uma reafirmada estética performativa desses castigos e moftes.Há
várias
referências
que nos
permitem
fazer
recuar
essa familiaridadee
imaginárioa
tempos anterioresà
ocupação colonial efectivado território,
quer setrate
de formasde
execução pública de criminosos, quer de julgamentos por ordália, em quea
ingestãopelo
acusadode um
produto
tóxico
constitui
simultaneamente aprova
da
sua
inocência
ou
culpabilidade
e a
punição
da
suaeventual
culpa
-
através
da
sua
morte
ou
loucura,
devido
aenvenenamento,'
Também
em
tempos colontaiso
castigo corporal (embora não
aexecução
pública)
era
uma
punição habitual, decretada
por autoridades administrativas coloniais,por
régulosou
mesmo
porpatrões sobre
os
seus
empregados.
Estão
bem
presentes
noimaginário popular, relativamente
a
esse
período,
tanto
o chicoteamentocom
chamboco
quanto
as
palmadoadascom
a"menina-de-cÌnco-olhos"
-
quetrazia
consigoa
dupla
humilhaçãode,
sendo também
um
castigo
escolar,constituir uma
forma
de punição que infantilizava os homense
mulheres quea
sofriam. Emambos
os
casos, entretanto,
estas
agressões
eram s Execuções públicase
este tipo de jutgamento, ainda hoje praticado, são járeferidos, entre várias outras fontes, por Junod (1996 [1912]). Note-se que, de
forma pefturbante, vamos encontrar num recente linchamento ocorrido no
Chimoio
a
forma de execução utilizada pelos invasores vaNguni para punir oadultério, no séc, XIX. Uma mulher de grande força física, que batia nos homens e
supostamente não sentia dor quando era agredida, foi acusada de dar guarida a
uma quadrilha de ladrões e de ser feiticeira (o que é comum em vários contextos,
com mulheres a quem são atribuídas características consideradas masculinas
-veja-se Maluf 1992), sendo empalada pela vagina. Seria interessante aprofundar
se se tratou da reapropriação de uma forma ultrajante de morrer, de que algum
dos linchadores tivesse um vago conhecimento/ ou se essa mulher ocupava um
papel especial na comunidade que permitisse considerar simbolicamente
a
suacumplicidade com ladrões como uma forma de adultério colectivo.
sob aplauso público,
A
par da
experiência directade
matar, existetambém,
à
disposiçãoda
populaçãourbana
moçambicana, uma reafirmadaestética
da
morte
e
do castigo
físico
públicos,
cuja relevância não deverá ser subestimada.Estética da punição
física
pública
Conforme implicitamente sugeri páginas atrás,
um
linchamento nãose
reduz
ao
acto
colectivo
de
matar,
ou
sequer
ao
aparente consenso(entie
os que matame/ou
assistem) acerca da justeza e necessidade dessamorte. Isso seria
um
mero
homicídio.e
não
é dessa forma que ele é vivido pelos participantes.O
linchamento implica tipologiasde
procedimentosque,
podendo variar bastante no espaço e em pouco tempo (com pneu a arder oupor
espancamento,com
incêndiopost
mortem
ou
não),têm
algoem
comum:
são
reconhecíveispelos
presentes,
a
partir
de referênciasculturais
que
dominem, como
indicadorasde que
se estáa
linchare
não apenasa
matar, e de que o acto que se está aexecutar é excepcional e não rotineiro.
Por
outras
palavras,o
linchamentoé
um acto
ritualizado,em
que, como em qualquer ritual, a forma da acção (e do discu rso) afirma ereitera
o
sentido daquiloque está
a
ser
feito.
Comoem
qualquerritual,
também,é
expressoo
carácter excepcionaldaquilo que estáa
acontecer
e a
suspensãoda
vida normal que aquele
acto representa.Como
em
qualquer
ritual, por
fim,
o
linchamento étambém
uma'performance
comunÌcatrva,que
permite
transmitir esses sentidos e não apenas provocara
mofte.a Note-se que, por exemplo,
as execuções sumárias por parte de forças poriciais, esquadrões da mofte ou associações criminosas correspondem às características
que enunciei na frase anterior, mas não são encaradas como linchamentos nem
por quem as pratica, nem pela sociedade envolvente.
humana
e
o
carácter excepcionalda
morte pública
(e
provocadapelo
colectivo
ou
supostamenteem
seu nome) que permite
ejustifica
o
linchamento.Não se lincha porque três vidas humanas valham menos
que
1'000 meticaise
um
telefone celular usado mas,
precisamente, porque valem muitíssimo mais. Não se pretende aplicar uma punição justa, proporcionale
ordinária;
o
carácter exemplar
e
eventualmente profiláctico que é buscado no linchamento exige, pelo contrário, um castigo excess¡Vo parao
acto cometido, uma reacção desmesuradae
de
uma
brutalidade inaceitável
na
vida
corrente
-
emboraIegitimada pela participação
de todos,
E mesmo sea
sucessão de linchamentos pode levarà
visãode
que eles constituema
puniçãoadequada,
particularmente
entre
as
crianças
(conforme demonstram aS redacções escolares acercado
que deve fazer-se aum
ladrão
e a
uma
feiticeira,
recolhidaspela equipa
de
carlos Serra), o efeito moral e educativo que essa visão pretende provocar baseia-se, ainda, na desmesura da pena'Repito,
então, aquilo que
a
familiaridade históricacom
o
castigo físicoe o
assassinato público trazà
população moçambicana não éuma
desvalorizaçãoda
vida
humana,
O
que
essa
familiaridade forneceé
o
conhecimento correntede
uma estrutura performativade
castigo
e
de
afirmação
do
poder,
que
assim
se
encontradisponível
para
ser
utilizada,
Não
é o
matar
pública
ecolect¡vamente
que
se
banaliza,
mesmo quando esse
acto
se repete, mas o conhecimento de que essa é uma forma reconhecívele
culturalmente pertinente
de
punir,
e
de
expressarao
mesmotempo
o
carácter extraordinárioe
os
sentidos assoc¡adosa
essa punição.105
predominantemente públicas,
para
que
constituíssemnão
apenaspunições,
mas
também
formas
de
intimidação
da
restante população.O castigo físico público não desapareceu com o fim do colonialismo'
O
efeito
de
naturalizaçãocriado pela sua prática
anterior,
oumesmo
algum mimetismo
na
afirmação
da
autoridade,
terãopesado
mais
do
que
o
equacionamento.abstracto
da
dignidade humanae,
na fase revolucionária pós-independência, a estética das moftese
castigos corporais públicos parece, pelo contrário, ter-setornado ainda
mais
espectaculare
ritualizada, São
inúmeras as referênciasao
chambocamento público nos Campos de Reeducaçãoou até
por pafte de
Grupos
Dinamizadores,tendo
mesmo
essapunição
vindo
a
ser
integrada
na
legislação
penal,
em
1983.Também
se
realizaram
fuzilamentos públicos,
com
o
grau
de encenaçãoe
de
compulsão para quea
populaçãoa
eles assistisse que estão habitualmente associados a essa prática.Por
fim, a
guerracivilfrcou
marcadapor
relatos quer detofturas
e fuzilamentos sumáriose
selectivos(de
autoridades administrativas,de
professores,de
enfermeiros)durante
raidesa
zonas adversas, querde
crianças ejovens
forçadosa
matar familiares ou vizinhos, quandonão
a
comer
pedaços deles,com
o
intuito de evitar
que, uma vez levados pelos guerrilheiros, tivessem para onde deseftar. uMesmo quem
teve
a
felicidadede
nunca assistira
acontecimentos como essestem
bem presentena
memória que eles ocorreram, apar de muitos dos seus pormenores,
Não pretendo,
ao
enunciarestes
sucessivos horrores,sugerir
de forma alguma que a familiaridade com a mofte e a punição corporalque
deles resulta
tenha
banalizadoo
acto de
matar
ou
torturar
publicamente,
ou
tenha tornado
irrelevantea vida
humana, Pelocontrário, proponho
que
é
exactamenteo
valor atribuído
à
vida 6 Ve¡a-se, por exemplo, Geffray 1991, Castanheira 1999 ou Granjo 2007Afirmar o
poder que
se não
tem
Esses sentidos serão, entretanto,
necessariamente diferentes daquelesque
presidiramaos
antecedentes históricosde
violênciaou
morte
públicas perpetrados
pelo
.Estado
ou
pelos
seusrepresentantes, que antes referi.
Quanto
a
eles, são
de toda
a
relevânciaas
propostasde
Michel Foucault (1977), quando encara as execuçõesna
Europa medieval comorituais
públicosde
dominação pelo terror,em
queo
objectoda
penaé o
corpo
do
condenado, maso
seu objectivoé
fazer o povo testemunhara
vitória
do
poder
instituído sobreo
criminoso queo
desafiou. No entanto, os actores dos linchamentos não são oEstado
ou
os
seus
representantes,
mas
cidadãos
que
alegam inacção por partedo
Estado e, tendo os actores de ambos os casos posições radicalmentediferentes
nas
estruturas
de
relações depodeç
é
de
esperar
que
sejam também diferentes
os
sentidos expressos nos actos de linchar e de executar uma pena capital. É também frequente a tendência para interpretar os fenómenos em que grupos sociais específicos se substituemao
Estadona
práticade
funções
que lhe
estão
atribuídas,
usurpando-asde
algumaforma,
como sendo
expressõesde
um
contra-poder.Temo
que também essa linha de leitura fosse desadequada e algo simplista nocaso
em
análise,
pois
nada
sugere/
na
presente
onda
de linchamentose
no discursode
quem neles participa, uma oposição ao poder estatal, uma acção contrária que pretenda contrabalançar os seus excessos,ou
uma intenção de substituiro
Estado de forma definitiva no exercício de uma das suas funções.Sugiro,
antes, que
recuemosum
poucoe
nos
lembremosque
os linchamentos constituemuma
suspensãoda
normalidadeem
queas
regras sociais correntes
são
consciente
e
colectivamente subveftidas. Ou seja, são uma situação excepcional de liminaridadeou,
seguindoa
sugestãode
Victor Turner(L967),
uma
subversãoda
ordem
corente
que
apresentaas
condições privilegiadas para106
produzir nova ordem, com base na construção
de
novos consensos sociais.Que ordem
e
consensossão
esses?Creio
que
será
útil,
aoprocurarmos compreendê-lo,
tomar
em
consideraçãoos
motins ocorridosem
Maputo a 5de
Fevereiro de 2008e
particularmente anotável
frase
popular
Çu€,
pouco
depois,
surgiu
para
os caracterizar: <<O povo saiu da garrafa>>.A frase
tem
origem na crença de que, quandoum
homemtem
umcomportamento pouco
consentâneocom aquilo que
é
esperadonum marido
e
considerado"naturalmente"
masculino(como
sejaentregar
todo
o
dinheiro
em
casa, deixar
a'mulher
tomar
as decisões, nãofrequentar
baresou ter
outras
mulheres, participar extensivamentenas
tarefas domésticas),
isso não
é
normal
ou resultantede
uma
escolhaindividual, mas uma
consequência defeitiçaria.
A
esposa
<<meteu-o
na
garrafa>>,fazendo
ou encomendando um feitiço-
que
podeser
misturado na comida ou enterrado numa garrafana latrina,
daío
nome-
cujo
resultado é torná-lo amorfamente submisso à esposa. Ou seja, quemfoi
metido na garrafa não só é "pouco homem", como é submisso a quem 'nãodeve,
de forma
indigna
e
ilegítima,
em
resultado
de
uma
acçãoilícita
de
quem
o
domina.
E só
ao
Sairda
garrafa,
por
decisãoprópria
e
através
de
um
contra-feitiço,
voltará
a
poder ser
um homem digno e completo (Granjo 2008).A
aplicaçãoda
frase <o povo saiu da
gatafa>
aos
motins
deFevereiro
(que
tiveram
por
móbil
imediato
um
aumento
dostranspoftes, popularmente interpretado
como uma
decisão
quepunha
em
causaa
subsistênciae
havia sido tomada com desprezo pelas necessidades básicasda
população)não
é,
então, difícil
de descodificar.Com
razãoou sem ela,
a
frase
afirma
que
o
povo estava, antes, amorfamente submissoa um
Estado queo
mantinhanessa situação
de
forma ilícita,
que
esse mesmo povo
tinhaconsidera não
ter,
É, ao mesmotempo,
uma tentativa de reivindicare de assumir
essepoder
-
Çu€, maisdo
que
sobreos
indivíduos socialmente ameaçadorese
disruptores,se
{uer
exercer Sobre o futuro colectivo.No
entanto,
os
factores
de
insegurança
e
incefteza
não
serestringem, obviamente,
à
pequena criminalidade
com
que
osindivíduos
podem
ser
confrontados
no
local
de
residência, que deveriaser
o
centro da
sua segurança. Eles passamtambém
por desemprego, rendimentos insuficientes, ausência .de
perspectivasde
melhoria
futura para
si
ou
para
os
filhos,
ou
mesmo
pelaausência de sinais indicadores de que "quem manda" leve em conta as dificuldades que oS ma¡s pobres'enfrentam
-
todos eles factores que igualmente setornam
mais visíveisna
casae
em
torno
dela' Neste quadro¡ o ladrão ou Violador, real ou pressuposto, nãoé
maisdo
que
o
signo
disponÍvel
e
fisicamente alcançável
de
uma insegurançamais vasta,
tal
como
uma
coroa
representa,
na Europa,o
poder real, mas destruÊla não destrói a monarquia.A serem correctas estas pistas de leitura, contudo'
o
5 de Fevereiroe
os
linchamentossão
fenómenos isomorfos. Justifica-se
entãocolocar, pelo menos como hipótese, que estejam relaciona dos entre s¡,
ou
Sejam mesmo duas expressõesde tjm
mesmo desconfofto social,Encarando
os
linchamentos na sua Veftente de discurso, afirmaçãoe
performancede
podeç
o
que está
em
causanão
é
apenas (e talveznem
sobretudo)a
pobreza,a
criminalidadee
uma
imagemde
inoperância
policial
e
judicial. Todos estes
aspectos
sãoimportantes,
tal
como é fulcral a Sensação de abandono social, ou apercepção
de
crescentes
assimetrias
soc¡o-económicase
de indiferença,por patte
dosque
possueme do
poder
político, para com a situação da esmagadora maioria de desfavorecidos'"contra-feitiço" instaurador
de
uma nova era, em queteria
que ser respeitado pelo "feiticeiro'.Tanto quanto sei, nunca a metáfora
de
<<o povo saiu dagarafa> foi
usada
para
designar linchamentos. Seriade facto
estranhaa
sua utilizaçãopopular, pois
um
linchamento
-
por muito que
possa parecerum
motivo de orgulhoa
quemo
executa-
tem
uma carga negativaque
desaconselhaque dele se
vanglorie parao
exterior. Paraalém
disso,utilizar
a
frase poluiria com
essa carga negativa umajornada
de
motins que
se
mantém,
entre
a
população peri-urbana, como um exemplo heróico.Não
obstante,
sugiro,
uma
utilização
dessa metáfora
seria peftinente.Isto
porque,
independentemente
da
nossa opinião
moral
esentimentos
acercado
assunto,
os
linchamentossão
encarados como uma tomada nas próprias mãos do poder de controlo sobre avida
e a
comunidadee,
simultaneamente,como
uma
afirmaçãodesse
poder
quer
perante
as
figuras
que
se
consideraameaçarem-no,
quer
perante
a
comunidade
e
perante
as autoridades externas a ela.Neste caso/
o
poder que
foi
ilicitamente alienado, numa situaçãoque cria uma
submissão indevida
e
amofa
(colocando
acomunidade <<na
garrafa>),
é
a
capacidadede
controlo sobre
atranquilidade/
a
ameaça,a
inceftezaro
futuro.
Essa ausência de controlo-
a
insegurançae
incefteza, afinal-
é
projectada sobre afigura do
criminoso, real
ou
suposto;
é
ele
o
,,feittceiro"que,
naa usência de,, con tra
feiticeiro{recon
hecidos como efi cazes (po I icia isou judiciais), "obriga"
o
grupo
a
assumir
o
,,contrafeitiço"
que quebra a sua submissão.Independentemente
da
metáfora
da
garrafa,
o
linchamento
é assim, na suaveftente de
performancede
podeç uma
afirmação, peranteo
grupo
e o
exterior,
de que
se
tem
essepoder que
seMas, seguindo
as
pistas complementaresde leitura
que sugiro, os linchamentossão também uma tentativa
de
assumir
o
domínio sobre asprópnas
vidas, uma reclamaçãode
cidadaniae
depoder
de decisão
-
ou, no mínimo, de sertido
em conta,Mais
fácil
compreender que
resolver
No
entanto,
mesmo assumindo que assim seja, muitas questões de difícil resposta continuam sobre a mesa.Antes
de
mais, por que razão foramos
linchamentos seleccionadose
tão
facilmente difundidos
como forma
de
expressar
essanecessidade
colectiva, quando
são,
afinal,
uma
inovação relativamente recente?De
facto,
conforme AlexandreMate salientou
no
seminário ondepela
primeira
vez
apresenteias
linhas mestras deste
aftigo,'
a"tradição" punitiva
era
bem diferente nos bairros
peri-urbanos, durante os anos posterioresà
independência. Na altura, quando sedetectava
um
ladrão
ele era
perseguido,
detido
e
espancado colectivamente,mas sem qualquer
intençãode
matar. Depois do espancamento,que
era
assumidocomo uma
puniçãodirecta
porpafte da
própria
comunidadeatingida,
a
pessoaera
entregue
àpolícia e
o
Estado passava a ocupar-se dela.O que mudou?
Creio
que
os
aspectos
que tenho vindo
a
expor, embora
nãorespondam cabalmente
à
questão, sugerem duas pistas
mais plausíveisdo que
a
habitual ideia
de
uma mera
importação das práticas linchatóriasdo
Soweto-
práticasque,
aliás,já
eram bem conhecidas nessa altura e não eram então adoptadas.7 Seminários de Antropologia do D.A.A, da U.E.M.,
Maputo, tgl4|2OOB
Uma dessas pistas
tem a ver
com os
modelosde
punição públicr disponíveis,A
dominação colonial, embora utilizasse extensivamente a punição corporal e a aliasse à prisão, baniu as execuções capitais -excepto,claro,
sob
a
forma
do
secreto
homicídiode
resistentes nacionalistas (Granjo, no prelo). Chegadaa
independência, era esseo
quadro
de
referênciaspunitivas. Depois
disso,
os
referentes militaristas ligadosà
históriae
lutado
movimentode
libertação queentão ocupou
o
poder
levaram
à
reintroduçãoda
pena
capital, incluindo sob a forma de fuzilamentos públicos, vindo a guerra civil areforçar
ainda
mais
essaalteração
nas
referênciaspunitivas.
Nasequência
destas
mudanças,
tornou-se possível
à
população concebero
linchamentocomo uma forma
significantede
punição colectiva,Que uma coisa seja pensável não
queç
noentanto,
dizer que sejafeita,
Quantoa
isso, penso qcre será relevante uma segunda pista:o
facto
de os
anos
posteriores
à
independênciaterem
sido marcados, sobretudoem
meio urbanoe
peri-urbano/por um
nível excepcional (e frequentemente abusivo) de controlo social, exercidoa
paftir
de
consignas estatais/partidárias
mas executado
por estruturas .políticas comunitárias,
A
isso
aliava-se
a
sensaçãopopular de que, concordasse-se ou não com cada uma das decisões
do
poder instituído, este
se
preocupava
com
o
bem-estar
da população e a ouvia,A ser verdade que os linchamentos correspondem, conforme sugeri,
a
uma afirmaçãoe
reivindicaçãode
poder
sobrea
protecçãoe
ofuturo
da
comunidade,
uma
tal
reivindicação
é
pertinente
no momento presente, mas não o era na altura.Isto
também quer dizer, no entanto, que limitare
revedero
actualfenómeno
de
linchamentos
não
passa apenas
por
resolver
ascausas
mais
directamente
relacionadas
com
a
sensação
de insegurança decorrenteda
criminalidade. Porum
lado, dificilmentecomo
os
detentores
do
poder
político interpretam
a
obediênciapopular.
Conforme
tive
oportunidadede
desenvolvernoutro
texto
(Granjo,no prelo),
nos bairros popularesde
Maputo predomina uma visãodo
poder
político
que
vamos
reencontrar,
sob uma
outra linguagem, nonofte do
país(west
2008) eque,
nos seus aspectos essenciais,está
longede
ser original em África,
podendo mesmo ser apontada como "tradicional". De acordo com essateoria
política popular,é
ilícitoe
socialmente ameaçadorfazer
perigarum
poderestabelecido
que
seja
reconhecido
como
legítimo,
mas
oreconhecimento social
da
legitimidadedo
poder não
significa quetodas
as
suas
decisões
e
práticas
sejam
legÍtimas;
esse reconhecimento impõe aos poderosos responsabilidades para com a protecçãoe
bem-estarda
população que govername,
se falham aconcretização
dessas
responsabilidadesou
as
desrespeitam nassuas
acçõesconcretas,
essassuas
acções tornam-Se ilegítimas, emborao
próprio poder
nãoo
seja. colocando
em
palavras maissimples
estecontrato social(Rousseau
t762),
não se deve
fazerperigar
o
poder reconhecido, mas eletem
que cuidar daqueles quegoverna. E, num
registo económicoe
directamente importado dalinguagem popular, diríamos
que
quem manda
tem
direito
a <<comer mais>>, mas não pode <<comer sozinho>>e à
custa da fomedaqueles em quem manda'
Esta visão do poder expressa, então, um equilíbrio subtil de direitos e deveres que, no entanto, se torna enganador para quem centre a atenção apenas numa da's suas veftentes. Tendo em conta que
é
omesmo
partido
e,
basicamente,a
mesma
elite quem
governouMoçambique nos seus mais
de
30 anosde
independência,e
que ofez
em
contextos
muito
diferentes
(sem
sequer
ter
enfrentado resistências explícitas ao mudarde üm
paradigma socializante parauma política
neo-liberal,
e
sem
que
as
crescentes assimetriassociais suscitassem mais
do
que queixas individualizadas),é
muitocriminalidade linchamentos
como
o
de
duas
mulheres
idosas acusadasde
roubar alguns alimentosde uma
machamba, ocorrido este ano na Matola. Em termos mais gerais, contudo, é óbvio que o policiamentoe
iluminação pública das áreas peri-urbanas,a
par de uma actuação das forçasde
segurançaque revefta
a
actual visãopopular
de
cumplicidadeentre
políciase
ladrões,
são
medidas imprescindíveis;mas, para utilizar uma
imagema
quejá
recorri,essas medidas
actuam
apenas
sobre
a
coroa
e
não sobre
amonarquia,
de
que ela
é
apenasuma pafte
e
uma
representação sintomática.Como
antes referi, pÔr
trás
da
manifestação específica
de insegurançacom
a
criminalidade perfila-seuma
insegurança mais generalizada,com
razõesde
maisdifícil
resolução:uma
incefteza quanto aofuturo
eà
própria subsistência que, devido à criatividadeeconómica
populaç não
corresponde
à
tão
propalada
pobrezaabsoluta
(que
se
limita, afinal,
a
decorrer
de
uma
escalaclassificatória
relativa),
mas
a
uma
situação
na
fronteira
da subsistênciasob
permanente ameaçade
descalabro, que se tornatão
mais evidentee
agressiva quanto mais evidentes se tornam as assimetrias sociais e de riqueza.Um terceiro vector seria
de
mais
fácil
resolução,mas
temo
que esteja inquinadopor
aquilo que João Pina Cabral (2002) designou, referindo-seaos
contactos inter-culturais, como "compatibilidades equivocas"u-
neste caso, relativas à forma como os estratos menos favorecidosda
população encaramo
exercíciodo
podere
à
forma8 Este conceito recobre, basicamente, processos provisórios mas que poderão ser
longos, em que um mal-entendido inicial acerca do sentido e pressupostos que
uma determinada prática ou conceito representa para a outra pafte não leva a
uma ruptura de contacto ou à hegemonia conceptual de uma das partes, mas a
uma coexistência negociada em que ambas encontram um grau suficiente de
satisfação das suas expectativas, embora as definam em termos diferentes e
compreensível
que, olhando para
o
contrato
socialque
referi,
aselites
políticas apenasfoquem
a
sua atenção
na
suaveftente
de resigrração e submissão popular ao poder.Daí, creio,
a
sua surpresa com os aÒontecimentosde
Fevereiroe
aemergência
de
um
discurso político
que
representavao
"povo moçambicano"como
naturalmente pacífico'(apesarde
uma
muito longae
chocante guerracivil)
e
pressupunhaa
existênciade
uma <<mão invisível>externa naquilo
que,
para
os
amotinados,era
aexigência
do
cumprimento da outra vertentedo
contrato social, na forma como o concebiam.O arrastar desta "compatibilidade equívoca"
-
em
quea
populaçãoolha
parao
podercomo
umatroca
de
deveres permanentemente avaliada na qualo
Estado tem as obrigações de um pai, enquanto o Estadoencara
a
populaçãocomo
intrinsecamente submissae
o exercíciodo seu
poder como legitimado para
todo um
mandato eleitoral, mesmo que governe de uma forma considerada própria de um padrasto-
constitui afinal um enorme obstáculo ao controle dos linchamentos enquanto problema público.Isto
porque, seos
linchamentos são também uma reivindicação de poderpor
parte
de
uma
populaçãoque
nãose quer
substituir aoEstado
mas
se
sente
irrelevante
e
abandonada
por ele,
aincapacidade
estatal
em
reconheceç nessesactos
censuráveis, aexpectativa
da
população peri-urbanade
que seja
tida em
conta por parte do Estado apenas poderá reforçar a ideia, por pafte dessa população, de que é de facto considerada irrelevante e de que está realmente abandonada.Nesse quadro, acções
que
reforcem
a
segurança
contra
acriminalidade nas zonas peri-urbanas acabanl por
ter
o
duplo valorde
agirem sobre
o
objecto imediato
dos
linchamentos
e
de desmentirem esse abandono estatal.Mas
temo que,
se tomadas isoladamentede
medidas sociais mais vastas e de uma atitude política mais "africana" (no sentido de mais adequadaao
contrato
socialque
enunciei), continuema
deixar
acontabilidade
das
moftes
por
linchamento
vogar
ao
sabor
de factores conjunturais, conforme aconteceu ao longo de 2008.Referências
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