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Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul

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Academic year: 2021

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MARCAS LINGÜÍSTICAS DE ITERATIVIDADE EM PB

Teresa Cristina WACHOWICZ (UFPR)

ABSTRACT: Besides the well known phenomenon of argument quantification and adverbial modification as

linguistic evidences for iterativity, we showed here that specific lexical in formations of the verb and another flexional and thematic informations also explain it. The Verkuyl 1993’s compositional calculus of aspect fundaments some interpretations, but needs more lexical informations to explain another ones.

KEYWORDS: Aspect, iterativity, lexicon

0. Introdução

A idéia básica que se faz de iteratividade na literatura lingüística é da interpretação sentencial de alguma situação que se repete mais de uma vez. Esse ponto de partida, ao mesmo tempo em que diz muita coisa, também necessita de maiores detalhamentos, tanto empíricos quanto teóricos.

Primeiramente, se alguma situação se repete, é porque ela está escalonada no tempo; logo, a repetição é uma das formas como se constitui o tempo. Ora, “constituição interna do tempo” (Comrie 1967) é de longa data um conceito associado à categoria do aspecto, bem mais intuitivo do que o conceito de “ponto de vista” do falante sobre a sentença (Smith 1997). Além disso, se há uma situação que se repete, é porque ela tem uma configuração semântica que também se repete, isto é, a localização no tempo (passado, presente ou futuro), os papéis temáticos e os respectivos argumentos são os mesmos de situação para situação (2b). Isso remete imediatamente à noção de sub-eventos de algumas teorias semânticas de eventos (Krifka 1992:?). Logo, a iteratividade pode estar associada a uma tipologia de eventos que os conceba como unidades divisíveis modeladas a uma estrutura algebricamente regida, tal como os reticulados (Lasersonh 1995). Por fim, se alguma situação se repete pelo menos mais de uma vez, isso remete a um amplo leque de possibilidades que não a interpretação episódica (1): pode haver repetição determinada de situações (2a), ou repetição indeterminada (2b), ou repetição freqüencial (2c), ou até a in terpretação habitual (2d):

(1) João comeu uma maçã. (2) a. João comeu duas maçãs.

b. João comeu maçãs.

c. João comeu uma maçã por semana. d. João come maçã.

As variantes das leituras iterativas podem, também, sobrepor-se recursivamente a uma sentença através de modificadores adverbiais:

(3) João comeu duas maçãs por semana mês sim mês não durante dez anos da sua infância.

A partir disso, nossos pressupostos de análise para este trabalho podem ser assim resumidos: a) Iteratividade é aspecto; mais especificamente, é valor da perspectiva quantitativa do aspecto (Castilho 2003). b) Iteratividade está associada à repetição de eventos de mesma natureza semântica. c) Iteratividade é um termo geral que engloba leituras de repetição determinada, de habitualidade e de freqüencialidade.

O presente artigo tem como objetivo provar que a iteratividade é uma categoria aspectual com marcas lingüísticas específicas e que, por isso mesmo, projeta componentes teóricos também específicos. Em outras palavras, a iteratividade existe sob o ponto de vista lingüístico e, como tal, precisa de teoria. A primeira seção deste trabalho tem o objetivo de listar situações de interpretação de iteratividade; e a segunda seção tem o objetivo de apresentar teorias que a tangenciam.

1. Onde está a iteratividade?

No conjunto de trabalhos investigados, observaram-se duas tendências díspares para a análise da iteratividade. Num primeiro momento, algumas teorias (Bonomi 1997, Verkuyl 1999) tendem a considerar a

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iteratividade como um componente contextual, como se a sentença denotasse um valor episódico e o contexto fosse responsável por quantificá-lo conforme situações discursivo-pragmáticas específicas.

Num segundo momento, alguns trabalhos, de propósitos essencialmente descritivos do PB (Castilho 2003, Ilari 1997), propõem-se a analisar estruturas sentenciais internas e defendem que a iteratividade é um conjunto de fatores lingüísticos distintos e composicionais que vão desde a quantificação dos sintagmas nominais em posições argumentais, passando pela flexão verbal, até modificações adverbiais específicas.

Este trabalho não pretende desmentir essas análises. Por certo que o contexto pode quantificar, mas julgamos que a sentença não é internamente apenas episódica. Por certo também que a iteratividade é composicional (e isso deve valer também para outras línguas), mas julgamos que há mais fenômenos sintáticos e semânticos por trás dessa composicionalidade. Morfologia lexical específica do verbo, papel temático e telicidade são alguns dos fenômenos, além dos apontados pela literatura, que relacionamos à iteratividade.

A listagem de fenômenos lingüísticos que condicionam a iteratividade baseia -se num critério de análise que parte gradualmente do léxico do verbo para a modificação adverbial. Em termos mais conhecidos, numa análise da aspectualidade interna (da estrutura argumental da sentença e seus constituintes) seguida da análise da aspectualidade externa (das modificações adverbiais) (Verkuyl 1993). A estrutura básica descrita pode ser desenhada da seguinte forma:

S’ / \ aspectualidadeexterna INFL S / \ aspectualidade interna ASPα’ VP’ / \ NPext [±SQA] VP / \ ASPα VP / \

V[±ADDTO] NPint[±SQA] Figura 1: estrutura básica do cálculo composicional de aspecto de Verkuyl 1993.

1.1. A iteratividade depende do léxico do verbo. A primeira evidência é a existência da classe dos verbos semelfactivos, de Rothstein 2004, ((4a) e (4b)):

(4) a. João quicou a bola. b. João bateu na porta.

Verbos semelfactivos, segundo a autora, são “instâncias singulares de eventos considerados atividade” ou “eventos dinâmicos, instantâneos e atélicos” (2004: 184,185). Recuperando a nomenclatura vendleriana, têm algo em comum com atividade, porque são dinâmicos e at élicos, mas ao mesmo tempo têm algo em comum com achievements, porque são instantâneos, ou melhor, são intervalos mínimos de mudança de estado. Mas o interessante nessa abordagem é que a leitura da iteratividade, ou das situações repetidas de eventos, depende exclusivamente de uma propriedade lexical específica do verbo. Se as sentenças em (4) tiverem seus verbos semelfactivos substituídos por outros verbos - accomplishments, por exemplo – as sentenças têm leituras aspectuais diferentes:

(5) a. João dominou a bola. b. João assistiu o espetáculo.

Outra evidência para o componente lexical na leitura da iteratividade é o comportamento de alguns verbos com sufixos em –itar ou –ejar ((5a) e (5b)) (Lemle 2002):

(6) a. João saltitou na cama elástica. b. A torneira está gotejando.

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Certos verbos com essa derivação não exprimem iteratividade (evitar, possibilitar, etc. e arpejar,

desejar, etc.). Mas outros são essencialmente iterativos: crepitar, tiritar, etc. e pestanejar, apedrejar, praguejar, etc.. Qual motivo levou a leituras diferentes desses sufixos? Mais do que irregularidades

derivacionais, esses casos podem ser explicados por investigação histórica.

Mais um dado: verbos derivados de substantivos coletivos, ou de “grupos” (Landmann 1989 – the committee, The Talking Heads, o partido democrata), têm também leitura iterativa ((7a) e (7b)), parecendo ter restrições, por isso mesmo, com NPs complemento com leitura singular ((8a) e (8b)), exceto os NPs com igual leitura coletiva ((9a) e (9b)):

(7) a. A secretária listou os itens da pauta da reunião. b. O sociólogo hierarquizou os conceitos de sociedade. (8) a. ?A secretária listou a folha da pauta da reunião. b. ?O professor hierarquizou o aluno.

(9) a. A secretária listou o conteúdo da reunião.

b. O sociólogo hierarquizou a comunidade das favelas.

1.2. A iteratividade ganha restrições flexionais. Os sufixos flexionais do verbo em PB contribuem para a leitura iterativa, mas não exibem comportamento homogêneo, quer dizer, algumas flexões são mais fracas e outras são mais fortes. O presente simples parece ser a forma verbal menos marcada para aspecto, haja vista que é empregada no contexto de manchetes de jornal, onde o contexto discursivo é que determina a leitura (10). O pretérito perfeito é também “fraco”, pois a quantificação do NP complemento com cardinalidade igual a 1 resulta na leitura episódica ((11a) e (11b)), e com cardinalidade maior que 1 resulta na leitura iterativa ((12a) e (12b)):

(10) RONALDINHO MARCA SEU 600O. GOL (11) a. Ronaldo marcou um gol.

b. Ronaldo marcou aquele gol de gaveta. (12) a. Ronaldo marcou três gols na partida.

b. Ronaldo marcou muitos gols no campeonato.

Há, por outro lado, situações em que a iteratividade parece depender exclusivamente da flexão verbal. É o caso, por exemplo, de perífrases verbais específicas, como as do verbo TER + PARTICÍPIO (passado composto (Ilari 2000)) ((13a) e (14a)) e do verbo VIR + GERÚNDIO ((13b) e (14b))1:

(13) a. Carlos tem escrito livros. b. Carlos vem escrevendo livros.

(14) a. Eu tenho tido problemas com o anti-spam. b. Eu venho tendo problemas com o anti-spam.

Há uma diferença entre as duas perífrases: o gerúndio parece marcar mais uma habitualidade, em que as situações começam mas não têm necessariamente um fim, podendo inclusive se sobrepor, enquanto o particípio parece marcar mais acentuadamente a iteratividade, em que as situações têm necessariamente um fim. Essa distinção é marcada pela terminação –ndo, do gerúndio, para a atelicidade e pela terminação –do, do particípio, para a telicidade, o que parece relacionar iteratividade e telicidade, conforme será visto no pró ximo item do trabalho.

1.3. A iteratividade depende da classe aspectual. Se formos investigar nossa questão sob o critério das variações das classes aspectuais lexicais de Vendler 1967, observamos que, num mesmo contexto, especialmente com NPs complemento pluralizados, a iteratividade aparece em sentenças com verbos

1 Este é o tema de pesquisa de Sirlei do Rocio Cavalli, bolsista voluntária de iniciação científica do CNPq, filiada ao projeto de pesquisa “O léxico, os fenômenos sentenciais e leituras aspectuais em PB”, vinculado à UFPR.

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accomplishments (15c) e achievements (15d), ao passo que com verbos estado (15a) e atividade (15b) a

iteratividade é neutralizada:

(15) a. Carlos teve dois carros. b. Carlos corre u dois quilômetros. c. Carlos construiu três casas.

d. Carlos registrou três ângulos da modelo.

O traço lexical comum a essas duas classes é o da telicidade (Rothstein 2004: 16), que se traduz à denotação de pontualidade na ação que é propriedade do item lexical do verbo. Além disso, há ainda uma diferença entre accomplishments e achievements, no sentido em que esses últimos parecem estar mais próximos ainda da iteratividade, como se o processo gradual (Krifka 1992) ou incremental (Rothstein 2004) inerente à leitura dos accomplishments pudesse sobrepor intervalos das respectivas situações.

É fato que, se, na sentença (15c), Carlos construiu as três casas num mesmo intervalo de tempo, como se as obras fossem concomitantes , ou se ele construiu uma depois da outra, isso é um fator semântico dependente de contexto. Mas é evidente que a marca lexical, associada à quantificação nominal do complemento, traz uma ambigüidade que o falante decide no momento de fala, sobre as difere ntes perspectivas da sentença (Fillmore 1977); e é evidente também que a telicidade inerente a alguns verbos é fator determinante na iteratividade. O que nos resta é investigar pormenorizadamente a constância ou a variância dessa constatação.

1.4. A iteratividade é lida dentro do VP. Argumentos pluralizados com verbos de ação resultam em leituras pluralizadas distintas da sentença. Em (16), por exemplo, o NP complemento pluralizado possibilita a interpretação da repetição de eventos de mesma natureza, na situação em que João comeu uma maçã e depois comeu a outra, pela associação entre a quantificação plural do NP e a temporalização do verbo (Verkuyl 1993). Em (17), a situação ambígua é diferente, pois cada um dos meninos pode ter comido uma maçã diferente, mas não necessariamente em tempos diferentes, ou os dois meninos juntos dividiram uma só maçã2:

(16) João comeu duas maçãs.

(17) Dois meninos comeram uma maçã.

A ambigüidade de (17) é relacionada às leituras distributiva e coletiva, respectivamente, e não tem implicações aspectuais, pois deriva da maneira como o NP plural do sujeito se organiza em relação à ação do VP. Já a ambigüidade de (16) é relacionada ao aspecto, pois o conjunto denotado pelo NP complemento, e seus subconjuntos, tem direta relação com a temporalização do verbo (Verkuyl 1993), o que será visualizado em representação semântica na seção 2.

1.5. A iteratividade ganha restrições com papéis temáticos. Se, com papel temático de agente (ou desencadeador com controle (Cançado 2004)), o sujeito pluralizado não tem relação com a leitura aspectual, há, em contrapartida, situações em que construções metonímicas do sujeito neutralizam a iteratividade do VP:

(18) a. O autor narra trajetória de Antônio Conselheiro e de Carlos Prestes . b. Livro narra trajetória de Antônio Conselheiro e de Carlos Prestes. (19) a. O fotógrafo registrou os rostos sofridos do ataque tchetcheno. b. A foto registrou os rostos sofridos do ataque tchetcheno.

Em (18a), por exemplo, o sujeito agente o autor realiza duas ações divididas no tempo: a narração da trajetória de Antônio Conselheiro e depois a narração da trajetória de Carlos Prestes. Mas quando esse sujeito se ‘metonimiza’, ou, nos termos de Pustejovsky 1995, o argumento default de narrar é selecionado como sujeito, o papel temático muda e a leitura aspectual também muda3. O sujeito agora é desencadeador sem controle (Cançado 2004). O mesmo raciocínio vale para as sentenças em (19) e outros pares de sentenças em que o sujeito agente é substituído pelo instrumento empregado na ação.

2 Este é o tema de pesquisa de Jahyr de Almeida Pinto Júnior, bolsista de iniciação científica do CNPq, filiado ao projeto de pesquisa “O léxico, os fenômenos sentenciais e leituras aspectuais em PB”, vinculado à UFPR. 3

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1.6. Advérbios aspectualizadores podem ser iterativos. Esse fenômeno é o mais intuitivo de todos, pois os trabalhos que tratam de advérbios aspectualizadores (Ilari et al 1991, Castilho 2003) costumam via de regra apresentar advérbios de repetição4. Essa repetição, porém, pode ser de vários tipos: de iteratividade determinada (20a), de habitualidade (20b) e freqüencialidade (20c) (Verkuyl 1999).

(20) a. Carlos teve dois carros três vezes nos últimos dez anos. b. Carlos sempre alimentou os leões do zoológico. c. Carlos sentiu dores semana sim semana não.

Embora esses fenômenos não sejam sistematicamente distintos na literatura, é consenso que os advérbios funcionam como modificadores ou quantificadores de eventos ou da sentença toda, o que levou Verkuyl 1993 a postular uma posição ASPα’, da aspectualidade externa, sobre o VP só para advérbios que multiplicam a denotação da sentença. No entanto, alguns advérbios em posições diferentes marcam focos diferentes:

(21) a. Carlos sempre alimentou os leões do zoológico. b. Carlos alimentou sempre os leões do zoológico. 2. Qual o tratamento para a iteratividade?

Se iteratividade é o fenômeno aspectual da repetição de eventos de mesma natureza semântica, que abrange noções variadas como habitualidade e freqüencialidade, na seção anterior procuramos evidências para mostrar que essa leitura é dependente de fatores lingüísticos variados: o léxico do verbo e suas especificidades semânticas e derivacionais, a flexão verbal, a classe aspectual do verbo e a relação com a telicidade, a interação entre os constituintes do VP, ou entre o tempo do verbo e a quantificação do NP complemento, o papel temático e os advérbios.

Embora pareça uma tarefa quixotesca, pois a listagem acima envolve fenômenos sintáticos e semânticos bastante variados, além do fato de não existir uma teoria aspectual que seja tão abrangente, o objetivo desta seção é apontar para algumas respostas, nem que essas sejam apenas programáticas. Nesse sentido, a teoria de Verkuyl 1993, 1999, num primeiro momento, parece bastante atraente, pois aponta para a solução central para o aspecto: a composicionalidade.

Por opção metodológica, apresentaremos uma aplicação da teoria de Verkuyl para a iteratividade, que foi sugerida em nosso trabalho de doutorado5, para uma sentença prototípica como (2a), repetida abaixo como (22). A tradução em (22’), é bom lembrar, é fruto de uma derivação sentencial composicional baseada no raciocínio categorial, que não mostraremos aqui por conveniência de espaço e simplicidade:

(22) João comeu duas maçãs.

(22’) ∃I ∃IR ∃J ∃! V [V=¦ João¦ ∩ {ji} ∧∃W[ W⊆¦ maç㦠∧W = 2 ∧∃QpsW [Q = ∪i∈J { U ∩ ¦ maç㦠: ¦ comer¦ (J)(i)(U)(V)}]] ∧ I ⊆ J ∧ I=Ent+ (IR) ∧ Tense<(IR)(i*)]

A tradução quer dizer, em termos reais, que existe um intervalo I, existe um intervalo IR de momentos reais, existe um intervalo J e um indivíduo previamente conhecido pelo contexto V, tais que V denota o indivíduo unitário João e existe um conjunto W contido na denotação de maçã cuja cardinalidade é igual a 2, e existe uma função de particionamento, ou divisão, Qps, que atua sobre W e cujo resultado U são os possíveis subconjuntos de duas maçãs, tais que V comeu U num tempo i em J, e que I está contido impropriamente em J e I é resultado de uma função de realização de intervalos de tempo IR que são anteriores ao momento de fala i*.

4

Isso parece ser uma contradição, pois trabalhos sobre aspecto atêm-se majoritariamente à distinção perfectivo/imperfectivo, enquanto trabalhos sobre advérbios aspectualizadores atêm-se à distinção episódico/iterativo. Mais uma evidência para o fato de que a iteratividade é um fenômeno lingüístico.

5 Em Wachowicz 2003, usei a teoria de Verkuyl para explicar a ambigüidade episódico/iterativo de sentenças com a forma do progressivo (ESTAR + GERÚNDIO) do PB, embora a atenção do autor tenha se centrado nas leituras terminativo/durativo (ou perfectivo/imperfectivo) de sentenças das línguas germânicas.

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Desconsiderando o peso contra-intuitivo que tem essa representação, para os nossos dados o importante é destacar o fato de que os subconjuntos de duas maçãs (a soma das duas maçãs juntas ou as duas maçãs atômicas separadas, numa representação de reticulados para os plura is (Link 1983)) estão em interação com os tempos i do verbo comer. Ou seja, a ambigüidade iterativo/episódico está representada em (22’) na associação entre um tempo i e as duas maçãs juntas (leitura episódica) ou na associação entre tempos i e as duas maçãs atômicas separadas (leitura iterativa). Isso é possível essencialmente por três elementos teóricos representados em (22’): a temporalização do verbo em índices i, a cardinalidade do NP complemento e a função de particionamento que atua sobre ele.

O s dados da seção 1, no entanto, requerem incrementos à teoria de Verkuyl. Listamos alguns, em forma de comentários:

1) Se o verbo comer é um verbo de ação e pode denotar intervalos de tempos i desencadeados no tempo (o que na sintaxe se traduz para o traço le xical +ADDTO), os nossos exemplos do item 1.1, de verbos semelfactivos, de derivações específicas em –itar e –ejar e de derivações verbais de substantivos coletivos, parecem por si só conter um traço de iteratividade, o que é comprovado por restrições com NPs complemento unitários. Há necessidade, então, de mais informações lexicais.

2) Igualmente, se o verbo comer é um verbo de ação +ADDTO, alguma especificação lexical pode informar sobre a sua telicidade para explicar a iteratividade em sentenças com verbos accomplishments e

achievements. Rothstein 2004 apresenta uma proposta interessante ao enquadrar essa classificação numa

combinatória de traços subespecificados, um dos quais é a telicidade.

3) Se o verbo comer está no pretérito perfeito e essa flexão é fraca para a marcação da iteratividade, como tratar então as flexões do passado composto dos exemplos ((13a) e (14a))? Verkuyl apresenta uma proposta interessante com as posições ASPα e ASPα’, numa estrutura de operadores do tipo ASPα’ (ASPα(VP)), em que ASPα é a posição de flexões fortes para o aspecto perfectivo/imperfectivo e ASPα’ é a posição para advérbios aspectualizadores. Numa estrutura de adjunção, as flexões fortes para a iteratividade poderiam funcionar como operadores em ASPα’.

4) Se o verbo comer é um verbo de ação, e esses verbos na teoria têm o traço +ADDTO, alguma representação lexical a mais deve acontecer para licenciar sujeitos metonímicos dos exemplos ((18b) e (19b)). Nos termos de Pustejovsky 1995, o argumento default representado no item lexical de narrar ou registrar, inclusive na estrutura qualia, pode ocorrer em posição do argumento verdadeiro accional e neutralizar assim a iteratividade.

3. Conclusão

A partir da análise aqui desenvolvida, percebe-se a necessidade de uma teoria aspectual para a iteratividade que leve em conta diferentes possibilidades estruturais: desde posições para operadores aspectuais específicos até, e sobretudo, informações lexicais do verbo. Verkuyl 1993 é uma teoria que sugere alternativas para isso. Sua teoria do cálculo aspectual parece atraente justamente pelo fato de esboçar uma visão geral da estrutura sentencial numa perspectiva composicional, evitando soluções localizadas para fenômenos lingüísticos isolados. Para a interpretação iterativa, a associação entre índices temporais dos verbos de ação e os subconjuntos possíveis da denotação do NP complemento dá conta de explicar ambigüidades do VP nas quais se inclui a iteratividade. Mas muitos outros fenômenos ficam de fora, principalmente os que envolvem especificidades lexicais do verbo. A investigação de teorias lexicais é de fato a questão central futura para o nosso problema.

RESUMO: Além dos já conhecidos fenômenos da quantificação de argumentos verbais e modificação de advérbios aspectualizadores como evidências lingüísticas para a iteratividade, apresentamos fatos lexicais do verbo bem como especificidades flexionais e temáticas como outros fenômenos que a justificam. O cálculo composicional de aspecto de Verkuyl 1993 dá conta de fundamentar algumas leituras, mas necessita de maiores detalhamentos lexicais do verbo para explicar outras delas.

PALAVRAS-CHAVE: aspecto, iteratividade, léxico.

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