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Ilha Desterro vol.70 número1

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Academic year: 2018

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PERGUNTE AO PÓ, DE JOHN FANTE, E O “SONHO AMERICANO” DOS IMIGRANTES

Douglas Ceccagno*

Universidade de Caxias do Sul Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, BR

Resumo

Muitas das personagens do romance Pergunte ao pó, de John Fante, são migrantes e imigrantes em busca do “sonho americano”. Este artigo analisa de que maneira o escritor Arturo Bandini, narrador-protagonista do romance, identiica-se inicialmente com os valores da cultura estadunidense, porém, ainal, constrói sua voz literária baseada em seu relacionamento com aqueles que vivem à margem da identidade nacional. O trabalho faz uso, principalmente, de fontes da historiograia estadunidense e das considerações de Antonio Candido sobre o lugar do escritor na sociedade.

Palavras-chave: Literatura Norte-Americana; Imigração; Sonho Americano; Identidade

ASK THE DUST, BY JOHN FANTE, AND THE AMERICAN DREAM OF IMMIGRANTS

Abstract

Many of the characters in the novel Ask the dust, by John Fante, are migrants and immigrants in search of the American dream. his article examines how the writer Arturo Bandini, irst-person narrator of the novel, at irst, identiies himself with the values of American culture, but, at last, builds his literary voice based on his relationship with those who live in the margins of the national identity. his article makes use mainly of sources from American history and from Antonio Candido’s statements on the place of writer in society.

Keywords: American Literature; Immigration; American Dream; Identity

* Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Professor do Centro de Ciências Sociais e da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Letras, Cultura e Regionalidade da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Seu endereço de e-mail é douglasceccagno@hotmail.com

Esta obra tem licença Creative Commons

Introdução

John Fante é um escritor que, em sua icção, aborda o ímpeto de ascendência social dos imigrantes e seus descendentes nos Estados Unidos, considerando a

re-lação entre a nação do American dream e aqueles que

pretendem participar dessa sociedade. Sua produção literária inclui a publicação de contos em revistas nor-te-americanas a partir de 1932 e de romances a partir de 1938 e, inalmente, a escrita de roteiros para Holly-wood. Assim como muitas de suas personagens, Fante, além de descendente de italianos, também passou sua infância no estado do Colorado, migrando mais tarde para a Califórnia em busca de mercado editorial.

A descendência italiana e a migração para a me-trópole são traços constitutivos do protagonista de

seu romance mais aclamado: Pergunte ao pó (Ask the

dust). Arturo Bandini, alter ego do autor, é um

escri-tor que, tendo publicado somente um conto em uma revista, pretende se manter com a comercialização de sua produção literária, em uma Los Angeles que se conigura no sonho de pessoas provenientes de várias partes do país e do exterior. São, portanto, as expecta-tivas do protagonista e as relações sociais cultivadas por Arturo Bandini que nos revelam o lugar de mi-grantes e imimi-grantes na sociedade do “sonho america-no”, com suas ilusões de ascensão social e de igualdade

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A seguir, será possível ver como o texto de John Fante representa os imigrantes e seus descendentes em sua busca de realização do “sonho americano”, tendo como base metodológica uma hermenêutica baseada no estudo comparativo entre o texto literário e o discur-so historiográico discur-sobre o período focalizado na obra, demonstrando como as vivências da personagem prin-cipal, Arturo Bandini, ao construir relações sociais com migrantes, imigrantes e seus descendentes de diferentes origens, constrói sua voz literária, ainda que isso não o coloque em posição de destaque no cânone das letras norte-americanas.

As armadilhas do “sonho”

Pergunte ao pó teve sua primeira edição em 1939,

um ano após a publicação do primeiro romance de

John Fante, Espere a primavera, Bandini (Wait until

spring, Bandini). O ano coincide com a declaração de

guerra na Europa, e os estadunidenses comuns, que a princípio pareciam distantes do conlito, na verdade já tomavam partido. Muitos deles eram a favor da causa de Hitler e de Mussolini, visto que a perseguição aos judeus era associada a um maior controle da imigração e do comunismo:

A muitos norte-americanos impressiona não só a fabulosa presteza com que esses homens [Hitler e Mussolini], de seus países aniqui-lados, izeram outra vez grandes potências. Na constância de ambos os sistemas fascistas, consideram um dique tranquilizador contra a terrível maré bolchevista. Por tal motivo, muitos esquecem o que Hitler faz aos judeus. Assim acontece que, sob alegação das leis imi-gratórias, as autoridades dos Estados Unidos se opõem aos transportes de refugiados judeus que demandam um asilo nos Estados Unidos. (ZIERER, 1964, p. 244-245)

Esse, aliás, é o contexto histórico que Bandini evo-cará num dos derradeiros capítulos do livro: “Guerra na Europa, um discurso de Hitler, confusão na Polônia, estes eram os assuntos do dia” (FANTE, 2010, p. 156). Logo, a referência à Segunda Guerra nas conversas co-tidianas indica que o assunto, ainda que apenas como

pano de fundo, faz parte do livro, assim como uma aversão a imigrantes por uma parte da população dos Estados Unidos, o que ica evidente no romance, por exemplo, no momento em que Bandini se registra num hotel que não aceita mexicanos (FANTE, 2010, p. 49).

As diiculdades dos estrangeiros e seus descen-dentes em terreno estadunidense saltam aos olhos em

Pergunte ao pó e são complementadas pela submissão

dos indivíduos provenientes de outros estados do país aos valores da metrópole cultural Los Angeles. De fato, se observa, sem diiculdade, que quase todas as perso-nagens do romance são oriundas do exterior ou des-cendentes de imigrantes, ou, então, provêm de outros estados em busca da prosperidade econômica ou da in-serção em uma sociedade urbana e moderna. Eis o ce-nário de párias que Bandini vê a caminho de seu quarto de hotel em Bunker Hill:

Os velhinhos de Indiana, Iowa e Ilinois, de Bos-ton, Kansas City e Des Moines, eles vendiam suas casas e suas lojas e vinham para cá de trem e de automóvel, para a terra do sol, para mor-rer ao sol, com o dinheiro contado para viver até que o sol os matasse, arrancavam-se de suas raízes em seus últimos dias, desertavam a cô-moda prosperidade de Kansas City, Chicago e Peoria para encontrar um lugar ao sol. (FAN-TE, 2010, p. 46)

E ainda:

Vão comer hambúrgueres ano após ano, e viver em apartamentos e hotéis empoeirados, infes-tados de vermes, mas toda manhã vão ver o poderoso sol, o eterno azul do céu, e as ruas es-tarão cheias de belas mulheres que vocês nunca possuirão e as noites quentes e semitropicais recenderão a romances que vocês nunca vão viver, mas ainda assim estarão no paraíso, ra-pazes, na terra do sol. (FANTE, 2010, p. 46-47)

Se nos reportarmos à década de 1920, veremos que, nos Estados Unidos, os estrangeiros sofriam muito com a pobreza e a discriminação:

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bran-ca há várias débran-cadas, em grande parte como uma resposta aos problemas sociais – pobreza, doenças, conlito de classe – associados à vin-da de imigrantes vin-da Europa Oriental, Europa Meridional e Ásia. O chauvinismo da Primeira Guerra Mundial e a reação anti-radical do Red Scare contribuíram para intensiicar o clima anti-imigrante. O anti-semitismo e a pseudo-ciência da eugenia inundaram a cultura popu-lar e oicial. (PURDY, 2007, p. 201)

Nesse contexto, o caso dos mexicanos é o mais expres-sivo:

Se os trabalhadores em geral sofreram na déca-da, mulheres, negros e imigrantes tiveram que lidar também com discriminações e violências especíicas, além da falta de interesse dos sin-dicatos e do Estado por seus problemas. Esse foi o caso, por exemplo, do meio milhão de mexicanos que imigraram nos anos 1920 para trabalhar nos campos e nas cidades da Califór-nia e do Sudoeste dos Estados Unidos. Fonte de mão-de-obra barata para agronegócios, construção civil e fábricas, os mexicanos de-senvolveram bairros próprios em Los Angeles, El Paso, San Antonio e Denver e, com o tempo, passaram a ter uma forte inluência na cultura da região. (PURDY, 2007, p. 201)

Além disso, a partir de 1924, os mexicanos passam a ser alvo de intenso policiamento contra a imigração

ilegal: “Hasta 1924 había muy poco control de la

fron-tera México-EE. UU. y la minería, los ferrocarriles y la industria agricultora de EE. UU. dependían fuertemen-te de trabajadores mexicanos que podían ir y venir por

la frontera” (STEPHEN, 2011, p. 17). Porém, a partir

de então, a lei Johnson-Reed faz crescer a vigilância fronteiriça: “A lei Johnson-Reed de Imigração, de 1924, estabeleceu, pela primeira vez, restrições numéricas, tornando a imigração ilegal um problema central na aplicação da legislação sobre imigração nos Estados Unidos” (NGAI, 2008, p. 5).

Ainda assim, a população de mexicanos vivendo nos Estados Unidos na década de 1930 era de mais de 1,4 milhões (Cf. STEPHEN, 2011, p. 20). Isso ocorreu porque, mesmo sob o risco de deportação, a imigração também apresentou crescimento nessa época: “Embora a entrada ilegal tivesse sempre resultado em expulsão,

na década de 1920, a imigração ilegal atingiu propor-ções maciças e a deportação ocupou um lugar central na política de imigração” (NGAI, 2008, p. 8).

A imigração, no período logo após a Primeira Guerra Mundial, era praticada por cidadãos de diferen-tes nacionalidades; no entanto, logo os mexicanos fo-ram vistos distintamente de outros imigrantes por uma suposta questão racial: “A tendência era de dissociar os europeus e os canadenses da categoria real ou imaginá-ria de estrangeiro ilegal, o que facilitava sua assimilação nacional e racial como cidadãos brancos americanos. Em contraste, os mexicanos surgiram como estrangei-ros ilegais icônicos” (NGAI, 2008, p. 9).

Consequentemente, tiveram que lidar com o estig-ma da ilegalidade:

La narrativa racial estadunidense vinculando la nacionalidad mexicana con la ilegalidad y la percepción de la apariencia física del ‘mexicano’ como ‘café’/‘marrón’ se inició en la frontera del sur en la década de 1920 a través de prácticas policiales y categorias lingüísticas (STEPHEN, 2011, p. 19).

É devido a esse lugar de desprestígio social ocupado por Camilla Lopez na sociedade dos Estados Unidos que Bandini, que se julga estadunidense, e não ítalo-a-mericano, cultiva seu desprezo em relação a ela. Porém, o narrador denuncia-se: quando descreve os párias de Los Angeles, provindos de outros estados americanos, está, ao mesmo tempo, falando de si mesmo. Ele vive em um quarto de hotel que só pode pagar quando um de seus textos é aceito para publicação, passa dias co-mendo apenas laranjas que um vendedor chinês lhe oferece e tem uma enorme diiculdade (que não é ape-nas social, mas também envolve culpa religiosa) de se relacionar com mulheres.

Bandini saiu do Colorado para viver o sonho de ser escritor na Califórnia. Orgulha-se de ser estaduniden-se, mas sua ascendência italiana não deixa de lhe valer o

epíteto de “carcamano”: assim, pensa estar em um lugar

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existe uma tendência central no ethos nacional que estrutura as pessoas em grupos de diferen-tes status e características, um padrão étnico conigurado por forte diferenciação (real ou imaginada) entre norte-americanos irlandeses, judeus, italianos e assim por diante, apontando a falência da noção de melting-pot (SEYFERTH, 2011, p. 55).

Devido a seu sentimento de exclusão é que as rela-ções sociais de Bandini se dão quase que exclusivamen-te entre migranexclusivamen-tes e estrangeiros, seja a Sra. Hargraves, proprietária do hotel vinda de Connecticut, as prostitu-tas Jean, do Texas, e as irmãs Evelyn e Vivian Mortensen, originárias do Minnesota e descendentes de suecos, o barman judeu Solomon, Vera Rivken, a judia da Pensil-vânia, Hellfrick, do meio-oeste, os japoneses do futebol americano, seja, é claro, Camilla Lopez, a mexicana por quem Bandini nutre uma paixão violenta e hesitante.

Essa multiplicidade de origens e ascendências das personagens não é somente resultado de uma inten-ção literária; na verdade, os Estados Unidos, após a Primeira Guerra Mundial, receberam imigrantes dos mais diversos países, e muitos deles se mantinham mesmo na ilegalidade:

Os imigrantes ilegais se compunham agora de todas as nacionalidades e grupos étnicos. Eles eram numerosos, talvez até incontáveis, e es-tavam espalhados por toda a nação, particu-larmente pelas grandes cidades; eles podiam ser o(a) esposo(a) de qualquer um, vizinho ou companheiro de trabalho. (NGAI, 2008, p. 17)

Ao mesmo tempo, essa diversidade de origens fa-zia aumentar socialmente a aversão a novas imigrações, visto que “a Primeira Guerra Mundial tinha feito sur-gir um nacionalismo e um sentimento anti-estrangeiro agudos” (NGAI, 2008, p. 13). Esse fator é relevante para compreender o fato de Bandini não se identiicar com esse grupo.

A única das personagens mais relevantes do ro-mance que é tida como totalmente norte-americana é Sammy, o amigo de Camilla, por quem ela se apaixona e que a recusa. Logo se vê que o triângulo amoroso fun-da-se sobre uma questão importante no que diz respeito à identidade nacional: Bandini, o ítalo-americano,

sen-te-se atraído por Camilla como por uma princesa mexi-cana, algo exótico que ele quer possuir, mas, ao mesmo tempo, despreza com base em sua origem. Camilla, por sua vez, busca o amor de Sammy, pois conquistá-lo sig-niica conquistar o “sonho americano”, tendo em vista que não é apenas a origem comum que cria uma relação de pertencimento, mas também a união em torno de vivências e objetivos comuns:

A identidade (étnica) permite associar o indivíduo, ou o grupo, a um passado, uma raça, uma cultura compartilhada, suscita sentimentos de pertença, mas o interesse co-mum também une, permitindo laços concretos de comunidade (SEYFERTH, 2011, p. 55).

Enquanto isso, Sammy, que, apesar de amigo de Ca-milla, se mostra sempre indiferente à sua dramática rela-ção com Bandini, ao inal, se utiliza da moça para cuidar de seus afazeres domésticos e, depois, permite que ela parta sem se preocupar com seu perigoso destino. Logo, veem-se delineadas a admiração e a vontade de perten-cimento por parte de migrantes e imigrantes em relação à terra promissora que é a metrópole norte-americana e a relação de atração, mas, ao mesmo tempo, de desprezo a Los Angeles por aqueles que para lá aluem. De fato, as metrópoles exercem um fascínio sobre os imigrantes de todo o Ocidente nas décadas de 1920 e 1930, e seu des-locamento é acompanhado pela expansão da indústria e da tecnologia nos centros urbanos:

Migrations were inseparable from unpreceden-ted urbanization and population growth, the expansion of industrial production and global markets, the spread of wage labor, the growth and extraction of food and resources to feed those workers, the revolution of transportation technologies, and the accompanying creation of an international system of nation states, bor-ders, and population management techniques. (MOYA; McKEOWN, 2010, p. 11)

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American Dream designa não tanto um proje-to nacional quanproje-to uma massa de aspirações individuais à autorrealização, como é comum a todos os seres humanos, porém uma realiza-ção com a marca do evangelismo [...]. O sonho americano esteve presente desde o estabeleci-mento dos primeiros colonos: cada um viveria numa liberdade bíblica e se entregaria ainal, sem entraves – o que subentendia os entraves da sociedade decadente, papista e corrompida do Velho Continente –, aos seus afazeres terre-nos. Assim, contribuiriam para a ediicação de uma grande nação, cujo exemplo conquistaria todas as demais. Pode-se comparar esse even-to à instalação dos judeus na Terra Prometida [...]. (1989, p. 119-120)

Está claro que a utopia representada pelo “sonho americano” se delineia aos olhos de Bandini como a glória literária. Por outro lado, num primeiro momen-to, não ica evidente no romance o objetivo de vida de Camilla, e mesmo se possui algum. Só mais tarde é que se saberá que está apaixonada por Sammy. Isso se deve à perspectiva do narrador da obra. Se o narrador é o escritor Bandini, é compreensível que, em seu desprezo pelos mexicanos, a personagem também não se interes-se pela vida e pelos planos de Camilla, antes a afaste de si (ao mesmo tempo em que a deseja) com ofensas rela-cionadas à sua miséria e à sua origem latino-americana, simbolizadas pelos calçados que ela usa no trabalho:

“Esses huaraches você tem de usá-los, Camilla? Tem de

enfatizar o fato de que sempre foi e sempre será uma latina suja e sebenta?” (FANTE, 2010, p. 45). A lem-brança das ofensas, no entanto, traz o arrependimento, e Bandini oscila entre a atração erótica pela garota e a repulsa por sua origem, algo com o qual ele mesmo se identiica, já que também foi hostilizado na infância pe-los norte-americanos de sobrenomes ingleses:

Vomitei em seus jornais, li sua literatura, ob-servei seus costumes, comi sua comida, desejei suas mulheres, maravilhei-me diante de sua arte. Mas sou pobre e meu nome termina com uma vogal branda, e eles me odeiam e odeiam meu pai e o pai de meu pai, e arrancariam meu sangue e me derrubariam, mas estão velhos agora, morrendo ao sol, e na poeira quente da estrada, e eu sou jovem e cheio de esperança e de amor ao meu país e à minha época, e

quan-do a chamo de sebenta não é o meu coração que fala, mas o tremor de uma velha ferida, e estou envergonhado da coisa terrível que iz. (FANTE, 2010, p. 48)

Assim, mais importante para a narrativa do que os objetivos de Camilla é o fato de que essa person-agem problematiza as ambições do próprio narrador: na perspectiva do protagonista, o orgulho de ser estadunidense pressupõe o preconceito com relação aos mexicanos; por outro lado, a presença de Camilla remete-o a seus traumas de infância, quando ele,

tam-bém tratado com desprezo, era chamado de “

carca-mano”. Essa oposição, que é, sem dúvida, o traço mais

signiicativo da personalidade do narrador, aparece com frequência durante toda a história: no plano da imaginação, Bandini constrói para si uma imagem de sucesso, de escritor participante da tradição literária dos Estados Unidos, assumindo a herança dos autores que admira; no plano da realidade, pouquíssimas pes-soas leem seus escritos, o que revela, não somente um desinteresse da sociedade de Los Angeles pelo seu trab-alho, mas também a difícil luta do escritor por um lugar ao sol na metrópole cultural, ao mesmo tempo em que tenta fugir dos preconceitos sobre sua terra de origem.

De modo signiicativo, Bandini acaba se tornando um escritor realizado, ao menos para a imagem que faz de si mesmo, com base na experiência erótica com uma mulher desprezada socialmente devido a uma deformi-dade física: a judia Vera Rivken. É sua história que ele conta no romance que escreve, e é esse romance que lhe garante dinheiro suiciente para ajudar Camilla quando ela foge de uma instituição psiquiátrica e, inalmente, realizar seu plano de viver com ela numa casa de praia. Ainda assim, o romance não lhe garante popularidade, e o narrador termina a história, não como um escritor importante na tradição literária norte-americana, mas como o escritor dos párias, dos desprezados.

Da mesma forma, seus objetivos se transformam

durante os últimos capítulos de Pergunte ao pó, de tal

maneira que, depois de ver seu livro à venda e do desa-parecimento de Camilla, o narrador declara:

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mi-lhares de outros, meu livro, meu nome, minha razão de viver. Mas não era o tipo de diversão que eu tinha ao ver O cachorrinho riu [conto que havia publicado anteriormente] na revista de Hackmuth. Aquilo também passara. E ne-nhuma notícia de Camilla, nenhum telegra-ma.” (FANTE, 2010, p. 173)

Ao inal do romance, Camilla torna-se mais im-portante na vida de Bandini do que a antes tão alme-jada publicação. No entanto, a mexicana, desprezada por Sammy, desiste do “sonho americano”: nega-se a permanecer com Bandini numa casa de praia com seu Ford e seu cachorrinho e foge através do deserto de Mojave, o deserto que parece atraí-la com o chamado

de sua terra de origem. No desfecho de Pergunte ao pó,

a narrativa dura de um escritor que tenta se estabelecer em um ambiente cultural hostil torna-se lírica, saudosa, e Bandini, sentindo a falta da moça mais do que de lei-tores nos Estados Unidos, encontra seu lugar como voz dos imigrantes ao atirar ao deserto um exemplar de seu romance, dedicado a Camilla:

Lá longe, através do Mojave, erguiam-se os va-pores do calor. Subi lentamente a trilha até o Ford. No assento, havia um exemplar do meu livro, meu primeiro livro. Achei um lápis, abri o livro na folha de guarda e escrevi:

A Camilla, com amor Arturo

Levei o livro uns cem metros para dentro da desolação, no rumo sudeste. Com toda a minha força, joguei-o para longe, na direção em que ela sumira. Entrei no carro, dei a partida e rodei de volta a Los Angeles. (FANTE, 2010, p. 176)

Nesse momento, quando, para Bandini, a literatura passa, de vontade de estabelecer uma carreira e de ad-quirir reconhecimento, à expressão de sua humanidade íntima e dos problemas que envolvem os migrantes e imigrantes nos Estados Unidos, é signiicativa sua volta a Los Angeles, pois leva o leitor a antever sua persistên-cia em tentar conquistar um lugar sopersistên-cial como escritor. Lembremos, nesse sentido, os dois elementos adotados por Antonio Candido para considerar a literatura como um direito humano:

Primeiro, veriiquei que a literatura correspon-de a uma necessidacorrespon-de universal que correspon-deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liber-ta do caos e porliber-tanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa huma-nidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmas-caramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos. (1995, p. 256)

Arturo Bandini se encaixa nos dois ângulos adota-dos por Candido: a literatura o humaniza porque o co-loca em contato com seus sentimentos mais profundos em relação a Camilla, mas também obriga-o a cumprir um papel de desmascaramento das relações sociais que o atingem como vítima e também como praticante da discriminação.

O lugar do escritor Arturo Bandini

Por seu percurso na narrativa, Bandini assume o lugar de voz literária dos imigrantes e, sendo necessário que a sociedade veja nele um porta-voz de seus valores para que ele seja legitimado na função de escritor, seu possível sucesso pode ser o início de uma transforma-ção no imaginário coletivo. Seguindo com Candido: “Finalmente, a posição do escritor depende do conceito social que os grupos elaboram em relação a ele, e não corresponde necessariamente ao seu próprio. Este fator exprime o reconhecimento coletivo da sua atividade, que deste modo se justiica socialmente.” (2000, p. 75)

Quanto a isso, é importante lembrar que a literatu-ra norte-americana dos anos 1930 é pródiga em roman-cistas de temática social, como homas Wolfe, John Dos Passos, John Steinbeck, Erskine Caldwell e James T. Farrell. Assim aponta Leon Howard:

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gradual decréscimo do entusiasmo pela nova liberdade, por uma tendência minguante a vi-ver apenas no presente, por uma perceptível in-clinação a reletir melhor, em literatura. (1964, p. 207)

Além disso, os Estados Unidos do pós-guerra evi-denciavam a disparidade entre aqueles que haviam lu-tado nas trincheiras e aqueles que haviam lucrado com o combate:

Quando cessou a guerra, tão repentinamen-te como começara, esrepentinamen-tes jovens [escritores do pós-guerra] contemplaram demoradamente sua pátria, constatando logo que ela sofrera o choque da guerra, mas conhecera pouco da sua realidade, veriicaram que seus compatriotas tinham lucrado com a indústria de guerra e com a consciência de sua força e de ter ‘agido bem’, que sempre acompanha as vitórias. Uma segunda desilusão levou-os então a combater essa sua pátria insensível e assim encetaram, com o mesmo entusiasmo com que tinham partido em sua cruzada bélica, a batalha em prol da integridade literária e moral da Amé-rica e de si mesmos. (SPILLER, 1961, p. 318)

Outra característica importante do período a par-tir do inal da Primeira Guerra foi o retorno dos escri-tores expatriados, o que contribuiu para uma “redesco-berta” dos Estados Unidos, inclusive por escritores que receberam o Prêmio Nobel, como Sinclair Lewis, Euge-ne O’Neill e Pearl Buck. (Cf. CUNLIFFE, 19__, p. 207) Ou seja, não era só um olhar novo, mas um entusiasmo produtivo dos escritores mais jovens, que almejavam o lugar de destaque na cena literária internacional con-quistado recentemente pelos escritores norte-ameri-canos: “No estrangeiro e nos Estados Unidos, a nova literatura norte-americana era reconhecida como uma força surpreendente e inegável no complexo da cultura ocidental” (SPILLER, 1961, p. 316).

Todo esse contexto certamente contribuiu para o olhar literário e o intuito de viver de literatura desen-volvido por novos escritores, como é o caso do narrador Arturo Bandini. Por conseguinte, é incorporando carac-terísticas gerais da literatura norte-americana da década de 1930 que Bandini intenta se realizar como escritor, cumprindo o papel que a sociedade lhe destina, pois:

[...] o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especiica entre todos), mas alguém desempenhando um

papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo proissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A matéria e a forma da sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre criador e pú-blico. (CANDIDO, 2000, p. 74, grifos originais)

Porém, há um confronto entre o objetivo de Ban-dini e a ausência de reconhecimento social. Em

conse-quência disso, no entanto, é que o protagonista de

Per-gunte ao pó não será a voz da América estabelecida, mas

das entranhas da América, das vozes que ainda estão silenciadas pela sua condição de párias ou que servem, no máximo, para a diversão dos estadunidenses “legíti-mos”, não para enunciar um discurso airmativo. Não é à toa que a Avenida Central da metrópole é descrita como “a rua da desesperança e da pobreza para os negros e do divertimento para os brancos” (FANTE, 2010, p. 150): observa-se, em trechos como esse, que o olhar do nar-rador Bandini está sempre direcionado às diferenças so-ciais e ao lugar dos menos favorecidos e especialmente focado nos lugares de origem das pessoas, como no caso de Evelyn e Vivian: “Oh, não, não são suecas, de onde tirou esta ideia? Seu sobrenome era Mortensen, mas não era sueco, porque sua família era americana havia mui-tas gerações” (FANTE, 2010, p. 80).

É com base nesse olhar particular que a literatura de Bandini e, por extensão, de Fante, será uma crítica ao “sonho americano”, à ilusão de que os Estados Uni-dos são a terra da liberdade e da oportunidade, e que se possa realizar nesse ambiente social a crença que consta da Declaração da Independência do país: “Considera-mos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade.” (JEF-FERSON, 2006) Como vemos no romance, há muito mais nuances na realidade do que na ideia fundacional da nação estadunidense.

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socie-dade, especialmente dos imigrantes, sabemos que não é por vontade própria, mas por consequência de suas vivências, especialmente do seu relacionamento com Camilla Lopez. Desse modo, é importante ressaltar que sua condição de ítalo-americano se expõe em sua vida e em seus escritos independente de sua vontade, e mes-mo contrariamente a ela. Sendo assim, é em detalhes que o protagonista revela sua condição. O fato de saber atirar com uma arma, por exemplo, é representativo da cultura belicista dos Estados Unidos, construída sob o pressuposto do direito de autodefesa. Ao passear com Camilla, a mexicana pergunta ao narrador se ele sabe atirar. E aqui o narrador constrói uma ambiguidade: não sabemos se o “eu não sabia” (FANTE, 2010, p. 134) que se segue à narração do fato anterior é um

comentá-rio conidencial feito pelo narrador ao leitor de

Pergun-te ao pó ou se essa realmente foi sua resposta a Camilla.

A ambiguidade é signiicativa porque revela uma hesi-tação diante da possibilidade de não corresponder às expectativas da moça.

O que sucede o comentário é o fracasso de Bandini

na galeria de tiro, que tem como contraponto o status

social de Tim por saber atirar e a vergonha de Camilla, que anseia estar perto de um tradicional atirador esta-dunidense: “Tim e Camilla riram do maricas. A esta altura, uma multidão se juntara na calçada. Todos par-tilhavam do nojo de Camilla, era uma coisa contagiante e eu também senti aquilo. Ela virou-se, viu a multidão e corou. Tinha vergonha de mim, estava aborrecida, mortiicada” (FANTE, 2010, p. 134-135).

Sendo assim, a expectativa de Camilla com relação ao comportamento de Arturo e seu desapontamento são tão constitutivos do olhar do narrador quanto sua ambição literária.

Conclusão

Como se viu, a narrativa de Arturo Bandini, alter

ego do escritor John Fante, revela traços de seu momento

histórico de enunciação, representado pela intenção do narrador de ser aceito pela sociedade dos Estados Uni-dos, mas também de fazer parte de sua tradição literária, que, em sua época, vinha sendo reconhecida mundial-mente. Seu fracasso na realização desse projeto, porém,

revela a falência do “sonho americano”, ao mesmo tempo que lhe propicia um olhar humanizado em relação aos migrantes e imigrantes presentes na metrópole onde vive e lhe confere uma voz literária singular.

Não obstante, para que isso ocorra, é necessária também uma transformação pessoal de Bandini, no sentido de se identiicar com a multidão de migrantes e imigrantes que povoam sua vida e sua narrativa e que

também esperam viver o “sonho americano”. Em

Per-gunte ao pó, eles são especialmente representados por

Camilla, a mexicana que, após sofrer o desprezo do narrador, provoca-lhe a solidão ao desaparecer no de-serto de Mojave.

O que se revela, ainal, é que, a partir do que pode-ria ser apenas mais uma histópode-ria de amor e desprezo e de triângulo amoroso, John Fante tece complexas rela-ções de identidade e de inluência cultural, além de ex-plorar os lugares de migrantes e imigrantes e da própria igura do escritor na sociedade e no sistema literário dos Estados Unidos.

Nota

1. Utilizamos as deinições de migrante e imigrante

presentes no Dicionário Houaiss da língua portuguesa

(Rio de Janeiro: Objetiva, 2009), sendo migrante

quem muda periodicamente de lugar, região ou país e

imigrante quem se estabelece em país estrangeiro.

Referências

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários escritos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 235-263.

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