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IMAGENS DA ÁFRICA EM ESCOLAS BRASILEIRAS: REFLEXÕES SOBRE UMA EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA

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Revista de Humanidades e Letras

ISSN: 2359-2354 Vol. 6 | Nº. 1 | Ano 2020

Erika B. Arantes

IMAGENS DA ÁFRICA EM ESCOLAS

BRASILEIRAS: REFLEXÕES SOBRE UMA

EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA

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RESUMO

O artigo pretende, a partir de uma experiência pedagógica sobre história da África com alunos do 1º ano do ensino de uma escola pública, refletir sobre a implementação da lei 10.639/03, que torna obrigatória o ensino de história da África e dos afro-brasileiros nas escolas. O foco foi pensar o papel das imagens do continente africano que chegam nas escolas através dos livros didáticos, mas também por outros meios, especialmente a internet e outras mídias.

PALAVRAS-CHAVE: África; imagens; educação.

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ABSTRACT

The article intends, based on a pedagogical experience on the history of Africa with students from the 1st year of high school of teaching in a public school, to reflect on the implementation of Law 10.630/03, which make the teaching of the history of Africa and afro-brazilians mandatory in schools. The focus was to think about the role of images from the African continent that arrive at schools through textbooks, but also by other means, especially the internet and other media.

KEY-WORDS: Africa; images; education.

Dossiê:

ÁFRICA, AFRICANOS E SEUS DESCENDENTES EM PERSPECTIVA

DECOLONIAL: saberes e práticas na

educação

Organizadores: Sebastian Lefèvre (Université Gaston Berger-Saint-Louis-Senegal), Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB), Juliana Barreto Farias (UNILAB), Rosemberg Ferracini (UFT), Christian Coffi Hounnouvi (Université de Nantes-França)

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Imagens da África em escolas brasileiras: reflexões sobre uma experiência pedagógica

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IMAGENS DA ÁFRICA EM ESCOLAS BRASILEIRAS:

REFLEXÕES SOBRE UMA EXPERIÊNCIA

PEDAGÓGICA

Erika B. Arantes*

Um dia comum em uma escola

Em 2012 eu dava aulas de história em uma escola da rede estadual na cidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, estado do Rio de Janeiro (Brasil). As turmas eram do 1º ano do Ensino Médio1 e História da África fazia parte conteúdo do terceiro bimestre, de acordo com o Currículo Mínimo, na época o currículo oficial da rede estadual do Rio de Janeiro2.

Já no primeiro dia em que mencionei que falaríamos sobre África, percebi o tamanho do desafio que seria tratar desse assunto. Quando, ao final de uma aula, comentei que na próxima começaríamos a conversar mais especificamente sobre o continente africano, um aluno levantou o dedo e perguntou: "Professora, o que é continente africano?". Cheguei a pensar que ele estava brincando ou mesmo me testando, mas logo percebi que era uma pergunta sincera. E uma pergunta que era a de outros que estavam naquela sala. Muitos alunos começaram a gritar e a fazer chacota do colega, mas poucos ali sabiam exatamente o que era "continente africano".

Expliquei que falar de continente africano era o mesmo que falar de África. Parece uma informação pouco relevante, mas para eles foi uma grande descoberta. Afinal, para a maioria, África é um único país e não um continente formado por vários países e de enorme diversidade! Expliquei que os países africanos são compostos de povos com línguas, culturas, religiões e até cores muito diferentes. Esse entendimento aparentemente simples faz uma diferença vital na compreensão da África em toda sua complexidade. Então, perguntei o que eles imaginam quando escutam a palavra "África". Infelizmente, não me surpreendi com as respostas dadas pela maioria deles. Reproduzo aqui algumas das respostas, usando de forma literal as palavras usadas pelos alunos:

*Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Professora de ensino de História e

estágio supervisionado no Departamento de História da UFF – Campos dos Goytacazes/RJ. Contato: ebarantes35@gmail.com

1No Brasil, o 1º ano do Ensino Médio atende, em média, alunos entre 15 e 17 anos.

2Importante mencionar que os currículos de todas as redes estão passando, desde 2018, por reformulações para que

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• “um lugar onde as pessoas morrem de fome e as crianças são magras” • “muita guerra e doença”

• “lá tem muita pobreza, as crianças são abandonadas”

• “as pessoas lá vivem em tribos e moram em casa que não é casa... é tipo cabana” • “lá só tem macumba e gente preta”.

Ninguém, absolutamente ninguém, contestou essas visões negativas. Ao mesmo tempo, nenhum aluno trouxe imagens diversas ou positivas do continente. Ao contrário, o consentimento da turma em relação às palavras dos poucos que falaram mostrou a predominância de uma ideia que me parece ser geral, não apenas entre estudantes, mas da nossa sociedade como um todo. Uma visão de África extremamente estática, negativa, única, cristalizada em imagens de pobreza, destruição, fome, doença e guerra.

O sinal bateu e, antes que eu pudesse falar qualquer coisa a respeito, saíram todos apressados deixando uma professora com seus pensamentos sobre a próxima aula.

Brasil: A Lei 10.639 e a História da África nos Currículos

No século XIX, Hegel decretou em seu "Filosofia da História" que a África não era um continente histórico e que não demonstrava nem mudança, nem desenvolvimento. Segundo ele, os povos negros “são incapazes de se desenvolver e de receber uma educação. Eles sempre foram tal como os vemos hoje (Apud. FAGE, 2010). Muitos podem argumentar que é preciso contextualizar o pensamento de Hegel e entendê-lo a partir de sua época e o seu lugar. No entanto, já em meados do século XX, em 1954, o historiador Hugh Trevor-Hopper, professor da Universidade de Oxford, proferiu semelhante sentença durante uma palestra, onde afirmou categoricamente que a história “está a tal ponto dominado pelas ideias, técnicas e valores da Europa ocidental que, pelo menos nos cinco últimos séculos, na medida em que a história do mundo tem importância, é somente a história da Europa que conta” (Apud. FAGE, 2010, pg. 9). Ele termina concluindo que: “não podemos nos permitir divertirmo‑nos com o movimento sem interesse de tribos bárbaras nos confins pitorescos do mundo, mas que não exerceram nenhuma influência em outras regiões". (idem).

Trevor-Hopper não estava só. Durante muito tempo, a história da África foi negligenciada e isso, certamente, afetou as imagens do continente produzidas no imaginário das pessoas, afinal, o desconhecimento também gera o preconceito. Dessa forma, mesmo hoje são muitos aqueles que pensam na África como um país, uniformizando o continente e ignorando sua enorme diversidade, seja religiosa, política, cultural, geográfica, etc. Santos (2017), em trabalho

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recente sobre história da África e do Brasil afrodescendente, chamou atenção para o fato de que a primeira lição para se começar a estudar a história da África é justamente conhecermos melhor a geografia africana, entendendo-o como “um continente repleto de diversidades geoespaciais” onde “as diferenças físicas entre africanos podem ser tão grandes como as encontradas entre um português e um dinamarquês (ambos europeus), ou entre um canadense e um boliviano (ambos americanos)”(pg. 12)

Vale mencionar que no Brasil há até bem pouco tempo eram reduzidíssimos os estudos referentes à história africana. Nas escolas, a África aparecia apenas em estudos sobre a escravidão, o que acarretava em uma associação imediata entre africanos e escravos, ou negros e escravos3. Essas associações diretas (africano igual a escravo; negro igual a escravo)

contribuíram para a perpetuação e reprodução do racismo nas escolas, uma vez que os alunos tinham pouquíssimo acesso à referências positivas sobre o negro, quase sempre associado ao escravo e quase sempre a um escravo passivo, dependente e dominado por completo pelo senhor. O ensino de História no Brasil mantém a visão eurocêntrica dominante desde o XIX. Visão esta que orienta os currículos e reproduz uma concepção, mais do que colonialista, de colonialidade. Para tratar da colonialidade, lanço mão do aparato teórico desenvolvido por um grupo de intelectuais que vêm pensando e propondo alternativas epistemológicas, abordando a produção de conhecimento em uma perspectiva não eurocêntrica.

Intelectuais do grupo “Modernidade/Colonialidade”, como Anibal Quijano, colocam que a colonialismo e colonialidade são conceitos relacionados, mas distintos. A colonialidade ultrapassa o colonialismo. Este se encerra com o retrorno das soberanias dos povos colonizados a partir das independências políticas dos povos colonizados. No entanto, as relações de colonialidade se mantém, sobrevive ao colonialismo mesmo sendo resultado dele (QUIJANO, 2005).

Dessa forma, as relações de coloniadade podem ser percebidas em instâncias diversas, como na subalternização das formas de produção e transmissão do conhecimento dos povos não europeus. Como afirma Grosfoguel (2007), referindo-se ao que chamou de ‘racismo epistêmico” gerado pela colonialidade fundada na modernidade, a “epistemologia eurocêntrica ocidental dominante, não admite nenhuma outra epistemologia como espaço de produção de pensamento crítico nem científico” (GROSFOGUEL, 2007, p. 35). Pensando em alternativas epistêmicas à colonialidade, coloca-se a necessidade de um “pensamento outro”, decolonial, que vizibilize as

3 Prefiro e uso sempre “trabalhadores escravizados”, numa tentativa de problematizar e desnaturalizar a condição de

escravo. Aqui fiz uso do termo “escravos” justamente por me referir à essa necessidade de problematização e desnaturalização desse termo que contribui, no campo simbólico para reprodução do racismo. Em outros momentos deste artigo utilizo o termo “escravizado”.

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lutas contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas sociais, epistêmicas e políticas (CANDEAU e OLIVEIRA, 2010).

Stuart Hall (1997) atentou para as profundas mudanças socioculturais das últimas décadas, como o desmoronamento das certezas, o afloramento das diferenças culturais, a velocidade na circulação das informações, os cruzamentos entre o local e o global, etc. Essas percepções nos levam, com o autor, ao questionamento das verdades universais e ao entendimento da sociedade como fragmentada e plural. A crítica aos saberes totalizantes abriu caminho para novas formas de pensar e conceber o conhecimento, agora compreendidos em sua mobilidade e capacidade de transformação.

Nesse contexto de questionamentos das hierarquizações culturais e dos conhecimentos totalizantes, surge no Brasil Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. A lei inclui no currículo oficial dos estabelecimentos de ensino público e particular, a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Segundo ela, o ensino e aprendizagem incluirá o

estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.(BRASIL, 2003).

Importante frisar que a promulgação desta lei é fruto de uma demanda histórica da luta dos movimentos sociais, mais especificamente os movimentos negros. Nos meios acadêmicos, nos anos 80, Kabenguele Munanga já falava da importância de se estudar a História da África no Brasil, ressaltando que esse conhecimento informaria principalmente os afro-brasileiros sobre uma das fontes de sua cultura, libertando-os “da imagem alienante de uma África primitiva – a África das tribos selvagens, dos bichos e dos homens-macacos – uma África que, originalmente, explicaria a sua inferioridade na sociedade brasileira” (MUNAGA, 1983, p.81).

No entanto, como aponta Oliva (2008) a presença da África nos programas curriculares e nos livros didáticos eram insignificantes até pelo menos meados dos anos 90, quando os Parâmetros Curiculares Nacionais (PCN’s) da área de história, de 1998, sugeriram algumas temáticas relativas ao continente, ainda que de maneira bastante tímida. A lei 10.639/03 teria sido uma potencializadora desse processo de inclusão da história Africana nos currículos escolares. Oliva (2008) lembra que logo após sua promulgação, em 2004, foram formuladas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e aponta para o fato desses documentos sinalizarem para a importância do estudo da História da África nas escolas brasileiras, ao passo que indicaram que “um preocupante silêncio envolvia a temática em nossos bancos escolares e que o esforço para quebrá-lo seria enorme” (OLIVA, 2008, pg.196).

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Imagens da África em escolas brasileiras: reflexões sobre uma experiência pedagógica

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No entanto, a inclusão da História da África nos currículos escolares, por si só, não resolve o problema do desconhecimento dos estudantes sobre o continente. No caso das escolas, especificamente, enfrentamos um grande desafio: como ensinar história da África se muitos professores ainda desconhecem essa história? Vale ressaltar que os departamentos de História das Universidades até bem pouco tempo não tinham cadeiras em África, não sendo, assim, oferecidos cursos específicos em História da África (salvo raras exceções). Estudávamos a África sempre a partir de uma perspectiva outra, que não a África em si mesma. Seguindo à risca os “conselhos” de Trevor-Hopper, mencionávamos a África para falarmos sobre expansão marítima europeia, para entender os africanos no Brasil, para tratar da descolonização europeia nos continentes asiáticos e africanos no século XX, etc. Ou seja, sempre tangencialmente. A História da África a partir de uma perspectiva africana começa a se estabelecer nas universidades também a partir da lei 10.639/2003. E, ainda assim, de forma lenta e gradual. Ainda hoje, quase duas décadas depois, muitas universidades ainda não possuem em seus quadros professores concursados para a cadeira. Dessa forma, conclui-se que a maior parte dos professores das escolas de ensino fundamental e médio no Brasil não tiveram uma formação que incluísse a História da África e não é incomum que estes reproduzam em suas aulas estereótipos e preconceitos. Estereótipos e preconceitos estes que foram sendo adquiridos a partir do contato com imagens de África divulgadas nos diversos meios, sempre prontos a divulgar apenas um lado, uma versão da história.

Toda essa situação pode acarretar, também, uma maior ou menor resistência por parte dos professores. Para além da falta de conhecimento consistente, segundo Souza (2015), essa resistência vem também do fato da lei representar “uma ação contra-hegemônica em um espaço institucional que ainda é desigual, desde o currículo até as relações raciais estabelecidas” (pg. 113).

Para Pereira e Monteiro (2013), a lei 10.639/03 – bem como a 11.645/20084 - buscam superar a “perspectiva eurocêntrica”. Dessa forma, os autores concluem que incluir nos conteúdos relacionados às temáticas da história da África, dos africanos, dos afro-descendentes e indígenas, acarreta em um aumento de estudos e pesquisas, bem como nos obriga

a pensar alternativas que implicam necessariamente numa redefinição e na reorganização da História ensinada em sua seleção de conteúdos e processos de didatização, e que implicam uma verdadeira “reinvenção” da História escolar e, consequentemente, de memórias constituídas a partir de visão crítica e intercultural (PEREIRA e MONTEIRO, 2013: 11)

4 Expandindo ainda mais o debate e com intuito de ampliar a Lei 10.639, em 2008 é sancionada a lei 11.645/08 que

inclui o ensino sobre a cultura indígena em todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e histórias brasileiras, com ênfase em sua luta e sua contribuição na formação da sociedade nacional (contribuição social, econômica e política).

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É importante dizer que a promulgação desta lei, como afirmou Gomes (2012), abriu um espaço institucional para discutir a diferença e o outro na instituição escolar. No entanto, para a autora a lei não é de fácil aplicação, porque trata de questões curriculares conflitantes, que questionam e desconstroem conhecimentos históricos considerados verdades inabaláveis. Para a autora:

o trato da questão racial no currículo e as mudanças advindas da obrigatoriedade do ensino de História da África e das culturas afro-brasileiras nos currículos das escolas da educação básica só poderão ser considerados como um dos passos no processo de ruptura epistemológica e cultural na educação brasileira se esses não forem confundidos com "novos conteúdos escolares a serem inseridos" ou como mais uma disciplina. Trata-se, na realidade, de uma mudança estrutural, conceitual, epistemológica e política. (GOMES, 2012: 106)

Acreditamos que faz-se urgente que o currículo de história no Brasil dialogue com essas perspectivas, buscando deslocar o conhecimento dos referenciais eurocêntricos dominantes até então. Para tanto é preciso uma reflexão mais ampla sobre o currículo.

Tomaz Tadeu da Silva, ao apresentar o trabalho de Ivor Goodson (2012), pensa no currí-culo como um artefato social e histórico, sujeito a mudanças e que, portanto, não pode ser com-preendido como algo fixo. Importante ressaltar que essas mudanças não devem ser pensadas em termos lineares, evolutivos, mas em suas especificidades históricas que podem ser traduzidas em rupturas ou continuidades. Para ele, o currículo é constituído não de conhecimentos válidos, “mas de conhecimentos considerados socialmente válidos”, apontando para o fato da fabricação do currículo não ser um processo lógico, mas

um processo social, no qual convivem lado a lado com fatores lógicos, epistemológicos, intelectuais, determinantes sociais menos “nobres” e menos “formais”, tais como inte-resses, rituais, conflitos simbólicos e culturais, necessidade de legitimação e controle, propósitos de dominação dirigidos por fatores ligados à classe, à raça, ao gênero (SILVA, 2012, p. 8).

Pensando no currículo desta maneira, assumindo seu caráter social, impossibilitado de ser analisado sob o discurso da neutralidade, é essencial levantar a questão das relações de poder que se configuram por trás da elaboração do currículo. Para Silva, “o poder está inscrito no currículo através das divisões entre saberes e narrativas inerentes ao processo de seleção do conhecimento e das resultantes divisões entre os diferentes grupos sociais” (SILVA, 2013, p. 191).

Os processos de concepção dos currículos escolares revelam, como formulado por Goodson, o currículo como conflito social, “produzido, negociado e reproduzido” por uma “variedade de áreas e níveis” (GOODSON, 2012, p. 22).

Nessa perspectiva, e pensando sobre as relações educacionais, Catherine Walsh (2007) propõe a concepção teórica da “pedagogia decolonial”, que está intimamente ligada a uma perspectiva intercultural da educação. Assim, o que Walsh vai propor é a perspectiva da

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interculturalidade crítica como a forma da pedagogia decolonial, visando não somente a inclusão de conteúdos, mas a transformação do pensamento. Para ela, a interculturalidade crítica

é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma experiência histórica de submissão e subalternização. Uma proposta e um projeto político que também poderia expandir-se e abarcar uma aliança com pessoas que também buscam construir alternativas à globalização neoliberal e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social como pela criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes (WALSH, 2007, pg. 8).

Candeau e Oliveira (2010), dialogando com Walsh, apontam que a perspectiva intercultural não deve se ater somente a “incorporar as demandas e os discursos subalternizados pelo ocidente, dentro do aparato estatal em que o padrão epistemológico eurocêntrico e colonial continua hegemônico” (CANDEAU; OLIVEIRA, 2010, pg. 28). Assim, não se trata de abrir brechas em currículos eurocentrados para incluir a África como apêndices ou “boxes” nos livros didáticos, destacado dos demais processos históricos. Trata-se de trazer o continente africano para o centro do debate, entendendo-o como fundamental para a compreensão de nossa própria história e da história da humanidade como um todo.

As imagens que permeiam o imaginário dos estudantes (e também os professores!) não são produzidas apenas em sua experiência em sala de aula, nas palavras dos professores ou nos livros didáticos. As imagens de África que os alunos buscaram na memória quando eu os perguntei sobre o assunto, foram produzidas em espaçostempos diversos, em suas redes de conhecimento (a televisão, a internet, o cinema, a escola, etc.). E são essas as imagens presentes no imaginário da nossa sociedade como um todo. Dialogando com essas questões, penso na necessidade de sintonizarmo-nos com o processo de implantação da Lei 10.639/2003, porém sem deixar de estarmos atentos ao fato de que as leis não garantem os processos de transformação social e que a luta deve ser uma constante.

Imagens da África nas escolas: os manuais didáticos

Naquele mesmo dia em que iniciei com os alunos o assunto “África” em sala de aula, fui para casa pensando no que poderia ser feito em tão pouco tempo, já que a próxima aula seria no dia seguinte.

Peguei alguns dos meus livros didáticos de História meus e que já foram utilizados em sala de aula anteriormente, e fui analisando não somente os que continham capítulos específicos sobre África, mas também os que tinham imagens de africanos no Brasil. Confesso que não gostei muito do que vi. A maior parte deles apresentavam imagens negativas, que reforçavam mitos e estereótipos.

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É importante pensarmos na importância que os livros didáticos têm na cultura escolar. Segundo Circe Bittencourt (2013), o livro didático

[...] é um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demonstraram como textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando temas, como família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca (BITTENCOURT, 2013, pg.72).

Atualmente, existe uma preocupação específica em torno da utilização das ilustrações, fotografias e imagens em geral nos livros didáticos. Para Bittencourt (2017) essa preocupação se configurou, inclusive, na escolha de um profissional ou equipe para realização dessa tarefa:

A questão da ilustração dos livros está relacionada, assim, aos aspectos mercadológicos e técnicos que demonstram os limites do autor do texto quando observamos os livros também como objeto fabricado. A diagramação e a paginação do livro são estabelecidas por um profissional especializado e, dessa forma, os caracteres, a dimensão, as cores das ilustrações enfim são decisões de técnicos, de programadores visuais, na composição final do livro. A história do livro didático possibilita verificar como os autores foram perdendo o poder sobre as ilustrações de suas obras. Hoje existem especialistas em pesquisas iconográficas contratados pelas editoras para desenvolverem esta parte específica do livro.” (BITTENCOURT, 2013, pg. 77).

Ainda, é preciso refletir o quanto as imagens que chegam aos alunos de todos os lados exercem influência na maneira como eles enxergam o mundo, mais do que os textos. Araújo (2001), em trabalho sobre livros didáticos, colheu depoimentos de professores da rede estadual de São Paulo. Para ela, o livro didático é a base da seleção dos conteúdos e dos desenvolvimentos das atividades em sala de aula. Muitos desses depoimentos atentaram para o uso dos livros didáticos apenas para utilizar as ilustrações (ARAÚJO, 2001).

Oliva aponta o relevante papel desempenhado pelos livros didáticos

como instrumento auxiliar na atividade docente e como uma das fontes de leitura para os alunos – apesar de sua condição passível de criticas e geradora de muitas reflexões – parece-nos inquestionável. Sendo assim, as abordagens acerca dos estudos africanos e afro-brasileiros, presentes ou ausentes nas coleções de História utilizada para os últimos quatro anos do ensino fundamental, aparecem como ingredientes chaves na composição, transformação e manutenção das referencias e imagens que o público escolar constrói sobre o continente (OLIVA, 2009, p. 216).

Analisando livros anteriores à referida Lei 10.639/03, o que mais chama a atenção é a inexistência de conteúdos específicos para África. Os conteúdos para área de História apontam para uma perspectiva totalmente eurocêntrica, ficando isso claro, entre outros motivos, pelo fato do continente africano aparecer primeiro no tema “Escravidão”. É como se a África e os africanos se reduzissem à história da escravidão no Brasil. E as imagens de africanos que constam nos livros quase sempre são imagens de escravizados. Quando não estão reduzidos à escravidão no Brasil, os africanos aparecem nesses livros ainda como apêndice da história europeia, mais especificamente nos conteúdos sobre “Colonização” e “descolonização”, onde são reproduzidas imagens de guerras sangrentas e violência.

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Imagens da África em escolas brasileiras: reflexões sobre uma experiência pedagógica

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Podemos exemplificar na análise das imagens do Livro “História”, (MARTINS, 1999). No livro para o 6º ano, vemos imagens que retratam africanos escravizados, submetidos ao poder senhorial (ou seja, trabalhando ou sendo castigados). Na mesma coleção, para o 8º ano, em um capítulo cujo título é “O Crepúsculo do Colonialismo”, em um sub-item intitulado “A expulsão dos deuses brancos”, aparecem imagens da “guerra de descolonização”, com imagem de homens armados e legenda “soldados na luta pela separação do Congo, em 1960” (grifo meu)

Mas talvez o que mais tenha me chamado a atenção seja o capítulo seguinte, de título “Países pobres: problemas e dilemas”, onde a imagem de uma cena cotidiana em áreas rurais de um país africano – com duas mulheres negras socando um pilão – é legendada como “economia subdesenvolvida” e se contrapõe a uma outra legendada como “economia desenvolvida”, onde aparece uma mulher branca em uma indústria.

Essa contraposição de imagens, bem como as outras apresentadas aqui, contribui para reforçar estereótipos acerca do continente africano, via de regra representado como o lugar da violência, da escravidão, da pobreza extrema, tal qual uma que está no mesmo capítulo, onde uma criança negra muito magra, suja e vestida precariamente é alimentada por uma mulher em semelhantes condições. A foto, tirada na Somália, é legendada como “criança pobre nascida num país pobre”. A imagem nos remete imediatamente à algumas das falas dos meus alunos, que mencionaram que na África as “as pessoas morrem de fome e as crianças são magras” e que “lá tem muita pobreza, as crianças são abandonadas”.

A Lei 10.639/03 trouxe uma outra perspectiva para a história da África e dos africanos no Brasil. A partir da sua promulgação e da luta constante dos movimentos sociais e professores comprometidos com a sua implementação, os materiais didáticos passaram também a sofrer alterações. Importante mencionar que olivro didático deve ser entendido um produto. Segundo Munakata (2012) devemos analisá-lo no contexto da sociedade capitalista, sendo assim uma mercadoria. Como mercadoria, esse produto deve se adequar ao mercado, que no caso é a escola. Portanto, os materiais didáticos precisam estar de acordo com determinados critérios. A avaliação e distribuição desses livros são feitas pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), vinculado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e ao Ministério da Educação. Esses livros e outros materiais disponibilizados são distribuídos gratuitamente, sendo um importante recurso pedagógico principalmente nas escolas públicas. Para serem aprovados, eles precisam estar de acordo com o que o que é determinado pelo programa, que deve estar em consonância com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e aos

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programas currículares5. Assim, após a promulgação da lei 10.639/03, as editoras foram

obrigadas a adequar os conteúdos para atender esta lei.

Uma das principais mudanças perceptíveis é a própria inclusão da temática “África” em capítulos específicos e o descolamento da história africana da história da escravidão. Podemos perceber até mesmo uma tentativa de deslocamento da história da África da história europeia. Em uma coleção de livros didáticos também usados por mim em sala de aula, este de 2005, apenas 2 anos após a promulgação da lei, por exemplo, intitulado “História e Vida Integrada” (PILETTI; PILETTI, 2005), a África aparece em um capítulo específico no livro do 6º ano intitulado “África Antiga”. Não podemos negar a tentativa de desvincular a história africana da europeia, pois trata-se de um capítulo que fala sobre a África antes da dominação europeia. No entanto, as amarras eurocêntricas se fazem presentes a partir do momento em que uma temporalidade eurocêntrica define a temporalidade africana (“antiga”). Além disso, o estereotipo da pobreza continua presente na imagem que abre o capítulo. Eu me pergunto qual motivo de uma imagem de uma favela dos tempos atuais abrir um capítulo sobre a África Antiga. Pois a imagem que abre o capítulo 11 é uma fotografia de um musseque6 em Luanda, capital de Angola. Acompanha a imagem, um texto sobre índices de desenvolvimento humano (IDH) afirmando que é na África que estão os piores índices.

A mesma coleção reproduz, ainda, imagens de africanos escravizados apenas em momentos de submissão – e nunca de resistência – bem como de violência, pobreza e guerra, (o que é comum em outras coleções que não exemplificaremos aqui, pelos limites desse artigo).

Outra coleção de livros didáticos das muitas que analisei, que vale a pena ser mencionada é a “Saber e Fazer História” (RODRIGUES; COTRIN, 2009). Mesmo passados 6 anos da promulgação da Lei 10.639, ainda é possível encontrar imagens reprodutoras de estereótipos negativos. Para além das já muito comentadas imagens de africanos e afro-brasileiros escravizados retratados somente em momentos no trabalho ou em castigos físicos (perceptível em todos os livros analisados), é intrigante perceber que as imagens de submissão, nesse livro, está presente em capítulos e itens que trata da resistência africana! Um exemplo é o livro do 7º ano. No capítulo 11, por exemplo, intitulado “A Escravidão Africana”, há um item de nome “A luta dos escravos”. As imagens que constam de tal item não representam em nada esta luta, chegando mesmo a estar presente no item a já clássica Punições Públicas, pintura de Rugendas representando um trabalhador escravizado sendo açoitado publicamente por um homem negro:

5 Na época da análise dos livros, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’ s) e atualmente a Base Nacional

Comum Curricular (BNCC).

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Imagens da África em escolas brasileiras: reflexões sobre uma experiência pedagógica

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RUGENDAS, Johan Moritz. Punições públicas : praça Santa Ana

No mesmo livro, ainda do 7º ano, há um capítulo de nome “Povos da África”, que trata especificamente do continente. Em um item destinado à conquista europeia, um sub-item é intitulado “Resistência à Conquista”. Um tema interessante e fundamental que, no entanto, é representado pela imagem da Rainha N’zinga aos pés de um branco europeu sendo convertida ao cristianismo. Na imagem, ela está de joelhos aos pés de um religioso católico branco, que lhe banha a cabeça com um líquido remetendo ao batismo.

Sabemos que a história de tal rainha é muito maior e mais complexa do que a retratada em tal imagem. No entanto, como já foi colocado, o poder da imagem de criar estereótipos é muito grande, principalmente quando não tem imagens que se contrapõem, transformando a história contada através destas imagens em uma história única.

No entanto, apesar do muito que ainda precisa ser feito para que a história da África e dos africanos no Brasil e ao redor do mundo seja representada a partir de uma perspectiva decolonial, a lei 10.639/03 sem dúvida trouxe muitos avanços de modo geral e, em particular, em relação aos materiais didáticos. Em primeiro lugar, é notável a quantidade de livros paradidáticos, de literatura, infanto-juvenis, etc. sobre a temática lançados a partir de 2003. Isso sem falar nas experiências narradas por professores de diversas áreas em projetos com foco no continente (experiências essas narradas em ampla bibliografia).

Em relação aos livros didáticos, vale mencionar que estes foram obrigados a se adaptar a lei, não somente no que diz respeito à inclusão temática, mas também à uma perspectiva não-eurocêntrica. Apesar de, como já mencionado, ainda encontrarmos barreiras e reprodução de discursos e imagens estereotipadas, é possível perceber algumas coleções que avançaram muito no sentido de mostrar outras imagens e narrativas sobre o continente.

É o caso da coleção “História, Sociedade e Cidadania” (BOULOS JUNIOR, 2012) que, passados quase uma década da promulgação da lei 10.639/03, traz imagens bastante

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diversificadas do continente africano, não se detendo apenas nas imagens de violência, pobreza e escravidão. Me chamou bastante atenção como a coleção se preocupa em retratar a arte em diversos países africanos em diversas temporalidades. No livro do 6º ano, por exemplo, estão presentes objetos, joias e esculturas de várias procedências.

No livro do 7º ano também chama atenção o fato de, diferentemente da maioria dos livros analisados, os africanos estarem representados em imagens que não os limita à condição de escravizados. É o exemplo de uma ilustração representando o império do Mali, mostrando o rico palácio do imperador ao lado de seu griot e súditos. Esse tipo de referência é importante, não para exaltar os impérios – que sabemos que pressupõe dominação – mas para diversificar a cristalizada imagem das sociedades africanas compostas apenas pelo que chamam genericamente de “tribos”.7 E também fotografias de jovens e sorridentes africanos vestidos com roupas

coloridas típicas de algumas regiões da África.

Muito significativo nessa coleção, no livro do 8º ano, é o fato das imagens que ilustram o capítulo sobre resistência dos afro-brasileiros, mostrarem as lutas dos negros. É o exemplo d e uma fotografia da Marcha Zumbi, que reuniu cerca de 30 mil pessoas em Brasília, em 1995, denunciando o racismo e cobrando políticas públicas para a população negra. O mesmo livro traz imagens de negros jogando capoeira e também de uma comunidade remanescente de quilombo, localizada em Eldorado, São Paulo: o Quilombo Vaporunduva, trazendo para o debate essa importante luta dos negros na atualidade.

Não pretendo, no espaço desse artigo, me alongar mais nas análises de livros didáticos, por uma questão de espaço, mas também porque o objetivo aqui não é uma análise quantitativa desses livros. Os livros escolhidos para a análise são os que em algum momento foram por mim utilizados em sala de aula e os que eu tinha em mãos no momento em que preparava a aula seguinte àquela narrada no início desse artigo. Meu objetivo é, que a experiência em sala e o olhar, ainda que breve, sobre estes livros, sirva como ponto de partida para as reflexões propostas sobre as imagens da África nas escolas e a lei 10.639/03.

Na sociedade contemporânea, as imagens estão cada vez mais exercendo desdobramentos em nossas vidas. A todo momento estamos expostos às imagens, que permeiam nosso cotidiano, nos trazem lembranças e moldam nosso comportamento. Como propôs Kossoy (2002), ao falar sobre "As Realidades e Ficções na Trama Fotográfica", as imagens ajudam a "formar conceitos ou reafirmar pré-conceitos que temos sobre determinado assunto; outras despertam fantasias e desejos" (KOSSOY, 2002.p.40).

7 Acho válido dizer que é importante problematizarmos a questão e não fazer juízo de valor entre as sociedades com

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Kossoy, neste mesmo trabalho, estende a análise para outras imagens que habitam as nossas histórias pessoais e produzem em nossa memória

um arquivo visual de referência insubstituível para o conhecimento do mundo. Essas imagens, entretanto, uma vez assimiladas em nossas mentes, deixam de ser estáticas; tornam-se dinâmicas e fluidas e mesclam-se ao que somos, pensamos e fazemos. Nosso imaginário reage diante das imagens visuais de acordo com nossas concepções de vida, situação sócio-econômica, ideologia, conceitos e pré-conceitos (KOSSOY, 2002: 45).

Ciente da importância das imagens na formação das pessoas e pensando mais especificamente sobre os currículos escolares e de que maneira é possível articular imagens e currículo na perspectiva da questão africana em sala de aula, me questiono sobre como as imagens – que chegam através da TV, internet, mas principalmente através de livros didáticos – sobre África são apreendidas pelos estudantes das escolas brasileiras. E, ainda mais importante, qual o papel dos professores nessa relação entre imagem, currículo e escola.

Imagens e Redes Educativas

Para além dos manuais didáticos, vale a pena pensarmos sobre outros espaçostempos em que os alunos tecem suas redes. A internet é uma delas, pois vem sendo constantemente utilizada pelos alunos em momentos de lazer, mas também em atividades educacionais oficiais (como trabalho, pesquisas, tc.)8. Quando voltei para casa naquela tarde de 2012, após a aula que gerou toda essa reflexão e após as consultas aos livros didáticos já narrada, sentei em frente ao computador e digitei “África” no Google. Não me causou tanta surpresa o resultado. A maioria esmagadora das fotos que aparecem eram mapas, fotos que mostram a “vida selvagem na África”, (especialmente de animais correndo na savana) e pessoas muito magras, principalmente crianças, retratando a fome na África. Infelizmente, nada mais previsível, uma vez que é esta a imagem recorrente do continente nos diversos meios de comunicação, ainda que seja perceptível algumas mudanças, fruto de muita luta dos movimentos negros organizados e das cobranças nas redes sociais.

Como professora, meu papel era trazer outros elementos, servir de mediadora para que os alunos entrassem em contato com a diversidade. Assim, busquei imagens que se contrapusessem àquelas já tão óbvias e superexpostas sobre o continente africano. Não se trata de “romantizar” o continente e de ignorar as mazelas que de fato atingem os diversos países africanos, mas de complexificar e desnaturalizar imagens estáticas e homogêneas. Montei um “caderno de

8 Esse artigo foi escrito muito antes da pandemia que confinou em casa milhões de pessoas em todo o mundo. Mas é

importante mencionar que esse fato e as novas formas como as pessoas estão sendo obrigadas a se relacionarem com todas as atividades, pressupõe também um recrudescimento dos usos da internet e ferramentas digitais na educação.

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imagens” misturando diferentes paisagens africanas e de outros lugares do mundo, mas não coloquei legendas que as identificasse. E esperei o dia seguinte...

Chegado o dia da aula, pedi que os alunos se dividissem em grupos e distribuí o “caderno de imagens” entre eles. Pedi que olhassem as imagens e deduzissem de que lugar se tratava, sem estipular cidade, país ou continente. Deixei-os livres para pensar sobre as imagens e imaginarem onde ela teria sido feita.

Realizada a “tarefa”, os grupos me devolveram o caderno de imagens com seus “palpites” e eu fui elencando no quadro branco que lugar do mundo cada grupo imaginou ser cada imagem. Os resultados não poderiam ser mais previsíveis: as paisagens urbanas, onde apareciam prédios altos e bem estruturados foram associados aos Estados Unidos por alguns grupos e Europa por outros; A que apresentava uma composição de vários edifícios e monumentos históricos foi associada ao Brasil por 3 grupos (dois grupos disse se tratar especificamente de Minas Gerais), à Europa por 2 grupos e especificamente à Itália por outro; a imagem 3, onde aparece uma montanha com neve foi associada por TODOS os grupos à Europa (sendo que dois grupos explicitaram se tratar da Suécia); a quarta imagem, onde apareciam pessoas de pele clara segurando bandeiras e cartazes como em um protesto, foi a que teve a maior diversidade de respostas e os grupos se dividiram entre Brasil, Argentina e Europa genericamente. A quinta imagem, de um tanque com soldados passando em uma rua onde estão pessoas negras foi considerada por todos como sendo de algum lugar na África (também genericamente, sem especificar país); a sexta e última, uma fotografia em preto e branco de uma rua de terra com habitações muito precárias, foi considerada por quatro grupos como uma favela no Brasil e por dois como um país africanos (mais uma vez sem especificar qual)9.

Após elencar no quadro os lugares imaginados por cada grupo, passei a revelar quais lugares eram retratadas pelas fotografias. As quatro primeiras retratam o continente africano, respectivamente: 1) uma importante avenida em Luanda, Capital de Angola; 2) uma colagem de edifícios históricos em regiões urbanas de Adis-Abeba, capital da Etiópia; 3) o Monte Kilimanjaro, na Tanzânia e 4) um protesto em Rabat, no Marrocos. As outras duas fotografias representam respectivamente: 5) o exército americano nas ruas de Nova Orleans, nos Estados Unidos e 6) uma favela em Lyon, na França.

As reações foram de enorme surpresa e até mesmo incredulidade diante da revelação dos locais representados pelas fotografias. Minha ideia era propor uma atividade onde os alunos pudessem ter oportunidade de desconstruir/refletir sobre as imagens da África presentes em seus

9 Vale mencionar que o “caderno de imagens” continha doze fotos. Escolhi apenas algumas pelo limite do artigo em

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imaginários. Não era minha intenção substituir imagens por outras, mas, sim, que eles pudessem confrontar diferentes imagens e tirassem suas próprias conclusões.

Como já comentei, é preciso atentarmos para a importância das imagens na sociedade contemporânea. Entendo que as múltiplas imagens negativas de África que são todos os dias repassadas através de meios diversos e que chegam aos estudantes, acabam por formar conceitos e reafirmar estereótipos sobre aquele continente. Cabe, assim, ao professor, apresentar/criar oportunidades para que os estudantes tenham acesso à outras imagens e outras histórias e, assim, poderem formular suas ideias a partir de múltiplas informações. Se pensarmos com Certau, os professores se utilizam das oportunidades criadas pelas circunstâncias cotidianas ao passo que criam permanentemente táticas para tomarem partido da ocasião que nos foi dada (CERTEAU, 1994). Assim, temos que estar atentos aos fios que se mostram disponíveis e usarmos esses fios para tecermos as redes de conhecimentos e significações e criarmos oportunidade de aprendizagem.

É importante a reflexão sobre o papel dos professores neste entrelaçado de redes educativas. Mediador de conhecimentos e significações, cabe a estes problematizar situações e articular os diversos conhecimentos, possibilitando que cada um teça as suas redes de conhecimento e significação a partir das memórias e vivências de cada um. Ao contrário da ideia de um conhecimento construído linearmente, este é tecidos em várias direções, por diferentes mãos, dando resultados diversos (ALVES, 2008).

As imagens são muito importantes para a tessitura destes conhecimentos e significações, pois permitem o surgimento de narrativas variadas. Apesar de todos os desafios, que são inúmeros, a luta dos movimentos negros e a insistência de muitos professores em romper as barreiras que são impostas para a aplicação efetiva da lei 10.639/03 têm resultado em experiências fundamentais. Assim como iniciativas que ultrapassam os limites da sala de aula, ganhando a internet (através de sites, blogs, redes sociais) e outros meios.

Considerações finais

Em uma palestra ministrada em 2009, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie nos adverte para "os perigos de uma história única". Entre as histórias contadas por ela, está a de quando ela deixa a Nigéria para estudar nos Estados Unidos. Adichie conta que a sua colega de quarto na Universidade se admirou do seu inglês, das suas roupas e até mesmo da música que ela ouvia em seu Ipod (se surpreendendo também pelo fato dela ter e saber usar um Ipod!). A surpresa é produzida a partir da expectativa da colega americana em relação a uma africana, De acordo com o que a colega de quarto americana aprendeu em suas inúmeras redes, Chimamanda

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Adichie deveria falar a língua nativa, usar roupas étnicas e escutar música tribal e nunca escutar Mariah Carey em um Ipod, que, em sua visão, nem existe na África.

É exatamente isso que nós, professores devemos evitar. Essa história baseada em uma única visão, que estabelece estereótipos e restringe os seres humanos. Dessa forma, acredito que o papel do professor é justamente tentar diversificar as imagens do continente africano e desconstruir visões limitadoras. A meu ver, temos que assumir o compromisso de não nos conformarmos com essa "única história" contada e reproduzida por muitos de nós durante tanto tempo sobre a África. Não se trata de negar as histórias trágicas desse continente tão explorado. Todas aquelas imagens negativas reproduzidas exaustivamente pelos diversos meios realmente existem e devem ser conhecidas, discutidas e confrontadas, até para pensarmos sobre o que as originou e sobre às possibilidades de resistência. No entanto, é preciso questionarmos a história - e as imagens - que limita e impõe uma visão una. Penso que o papel do professor enquanto mediador de conhecimento consiste em darmos oportunidade aos alunos de conhecerem as outras histórias, as outras imagens e, assim, nesse caso específico, relativizarem a negatividade sempre associada ao continente. Conhecer outros espaçostempos, mediar culturas e significações são formas de aumentar as redes a que pertencemos, nas quais formamos e somos formados (ANDRADE, 2011). Penso que quanto maior o acesso à multiplicidade de imagens, maiores são as possibilidades de tecer conhecimentos e significações, daí a importância de lançarmos mão não apenas de fotografias, mas também filmes e outros artefatos diversos no nosso cotidiano em sala de aula. Além do mais, é extremamente necessário estarmos atentos aos livros didáticos que adotamos, pois, como já foi dito, muitas vezes, o aluno apenas folheia o livro e as imagens são as que ficarão no imaginário, muito mais do que o texto (ou muitas vezes nem é lido).

Importantíssimo dizer que, aqui, a imagem negativa perpetuada sobre a África associa-se diretamente ao negro, perpetuando uma visão discriminatória. Tecer outras imagens dos negros é também contribuir para que os estudantes teçam outras relações entre si. Um estudante negro pode tecer outras imagens sobre si mesmo a partir de filmes, imagens e narrativas, bem como outros estudantes podem questionar impressões que levam ao preconceito e que são naturalizadas por um grupo de pessoas. Assim, acredito que diversificar as visões de África, atentando para a diversidade do continente não é somente abrir espaço para "outras histórias" frente à "história única", mas também para "outras histórias" do negro e, assim, contribuirmos com a luta contra a discriminação racial em nosso país.

É preciso levar em consideração que o Brasil encontra-se em um momento político ímpar. Sabemos que temos contra nós, professores, uma política que nos desvaloriza e até criminaliza, que somos perseguidos e considerados perigosos, além de pouco atrativos diante de

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um mundo de informações difundidas pela televisão e, principalmente, a internet. É um momento de retirada de direitos, em que políticas públicas conquistadas pelos movimentos negros – como cotas raciais e demarcação de terras quilombolas – correm grande risco. Diante desses ataques e também dos negacionismos históricos que tentam minimizar a responsabilidade dos brancos europeus na escravidão e reproduzem ideias equivocadas sobre o continente africano, nós professores temos o dever histórico de nos posicionarmos e de nos contrapormos às falas racistas perpetradas não só por pessoas comuns, mas cada vez mais ditas por pessoas públicas, incluindo o Presidente da República e o ministro da educação.10 É nosso dever também

nos colocarmos constantemente em luta para que uma histórica única e estereotipada da África, dos africanos e de seus descendentes espalhados por todo mundo contribua para reprodução da discriminação racial. Esse é o tamanho do nosso desafio!

REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA:

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ANDRADE, Nívea Maria da Silva. Práticas escolares como táticas criadoras Os praticantes nas tessituras de currículos. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UERJ, 2011.

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Erika B. Arantes

Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Professora de ensino de

História e estágio supervisionado no

Departamento de História da UFF – Campos dos Goytacazes/RJ. Contato: ebarantes35@gmail.com

Referências

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