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Opressão, subordinação e transgressão em A sombra do patriarca, de Alina Paim

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CAMPUS PROFESSOR ALBERTO CARVALHO DEPARTAMENTO DE GRADUAÇÃO EM LETRAS

ROSILENE SANTOS DE JESUS

OPRESSÃO, SUBORDINAÇÃO E TRANSGRESSÃO EM A SOMBRA DO PATRIARCA, DE ALINA PAIM

Itabaiana - SE Maio de 2016

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ROSILENE SANTOS DE JESUS

OPRESSÃO, SUBORDINAÇÃO E TRANSGRESSÃO EM A SOMBRA DO PATRIARCA, DE ALINA PAIM

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Letras (DLI) da Universidade Federal de Sergipe, Campus Prof. Alberto Carvalho, como requisito parcial à obtenção do título de Licenciado em Letras.

ORIENTADORA: Profª. Drª. Vilma Mota Quintela

Itabaiana – SE Maio de 2016

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Dedico este trabalho a Deus, meus pais e meus amigos por todo apoio que me deram direta ou indiretamente durante esse percurso na universidade.

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AGRADECIMENTOS

Depois de uma longa jornada, enfim, consegui! Foi grande o meu esforço, as dificuldades foram intensas, mas todas foram superadas, hoje posso dizer que tudo valeu a pena, com a permissão de Deus, que com sua infinita bondade me conduziu a realização desse sonho, a quem devo toda minha gratidão.

Agradeço a meus pais, Ana Maria e Reginaldo, pelo carinho e dedicação que me criaram, e mesmo com a simplicidade de uma vida humilde me conduziram ao caminho da honestidade e perseverança, juntamente com meus irmãos Regivaldo, Regiane e Luana que acompanharam comigo essa caminhada. A meu sobrinho e afilhado Luiz Gustavo que com seu sorriso de criança me faz acreditar num mundo melhor.

Aos meus amigos de classe que compartilharam comigo alegrias e angustias, jamais esquecerei o apoio que me deram: Edson, Dayseane, Mayara, Marquise, Moniery, Michelle Aparecida, cada um com suas particularidades, mas todos com um só objetivo, vencer juntos, amigos estes, que quero tê- los sempre por perto, muito além de uma sala de aula, muito obrigada. Não poderia esquecer meus colegas de trabalho que muitas vezes facilitaram meu acesso até a universidade: Denison, Elísio, Everton, Lindival, vocês fazem parte da minha história, levo comigo a certeza de uma amizade sincera.

Aos meus mestres, que transmitiram suas experiências e conhecimentos, em especial Christina Ramalho que fez da literatura a arte que preciso carregar em meu caminho, Rafaela Farias a responsável por trazer para minha vida essa obra riquíssima que é tema do meu trabalho e a minha orientadora Vilma Quintela, por toda paciência que teve comigo, com sua sabedoria me mostrou os passos que devia seguir para realizar esse trabalho. Desse modo, a vida acadêmica além de me proporcionar uma profissão, trouxe amizades verdadeiras, que carrego comigo dentro do meu coração. Assim, obrigada a todos que fizeram parte desta trajetória.

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Eu sou uma eterna apaixonada por palavras, música e pessoas inteiras. Não me importa seu sobrenome, onde você nasceu, quanto carrega no bolso. Pessoas vazias são chatas e me dão sono.

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Resumo

Este trabalho tem como objeto questões sócio culturais envolvendo a posição da mulher na sociedade patriarcal nordestina da primeira metade do século XX, tal como esta é representada em A Sombra do patriarca, de Alina Paim (1950). Com enfoque na narradora-protagonista Raquel, que encarna uma posição ambígua no que se refere ao lugar da mulher na sociedade patriarcal do Nordeste rural da década de 1930, objetiva-se analisar o discurso dominante da opressão e a sua negação pelo discurso feminino transgressor como elementos estruturadores do romance. Para tanto, servirão como referenciais teóricos, além de estudos que permitem situar a romancista e sua obra no contexto da tradição literária brasileira, estudos contemporâneos sobre relações de gênero, especificamente, sobre a posição histórica da mulher brasileira no século XX, dentre esses os estudos de Elódia Xavier (2007) e Mary Del Priore (1998).

Palavras-chave: Romance Social. Relações de Gênero. Sociedade Patriarcal. Discurso Transgressor Feminino.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...5

A REPRESENTAÇÃO DO CONTEXTO SÓCIO HISTÓRICO E A

SOMBRA DO PATRIARCA, DE ALINA PAIM

...7

1.1. A sombra do patriarca e o contexto histórico nordestino da década de 1930...9

1.1.1 A força econômica do açúcar e a hegemonia do senhor de engenho...11 1.1.2 Família e disciplina: o papel do casamento na manutenção do patriarcado...14 1.1.3 Tensões entre tradicionalismo e modernização na representação do

espaço ficcional: a luta de classes e a evolução das máquinas em A sombra do patriarca...17

SUBMISSÃO E TRANSGRESSÃO: AS PERSONAGENS FEMININAS

NO ROMANCE A SOMBRA DO

PATRIARCA...22

2.1 As marcas da opressão e a subordinação das mulheres no romance de Alina Paim...22

2.2 A revolta e a transgressão feminina como temas de A sombra do patriarca ...26

CONSIDERAÇÕES FINAIS...30

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INTRODUÇÃO

Este Trabalho de Conclusão de Curso - “Opressão, subordinação e transgressão em A sombra do patriarca, de Alina Paim” - tem como objetivo analisar a posição da mulher na sociedade agrária nordestina das primeiras décadas do século XX, marcada pela ideologia da superioridade do homem, em razão da qual se determina, nesse contexto patriarcal, a submissão da mulher aos valores dominantes na época. Nesse romance, publicado em 1950, Paim traz à tona questões culturais características desse período, problematizando a imagem machista do feminino, no contexto social representado. Para tanto, utilizou-se como embasamento teórico, além de textos críticos sobre o romance em enfoque, estudos que dizem respeito à mulher e a sua posição histórica no período em questão, dentre esses os trabalhos de Elódia Xavier (1998 e 2007), Nelson Wernech Sodré (1995) e Mary Del Priore (1997). Dessa forma, pretende-se identificar, a partir do estudo do romance de Alina Paim, os aspectos que levaram a modelagem do corpo feminino e as questões de opressão e subordinação que silenciavam e aprisionavam a mulher, observando as transformações ocorridas no que diz respeito a seu papel social, do período em enfoque até os dias atuais.

Destacando a submissão feminina nos anos 30, momento em que o país estava em fase de modernização consolidando-se a política da industrialização, e a política agrária entrava em decadência, pretende-se, nesse trabalho, refletir sobre a dependência da mulher no seio social, utilizando-se, como instrumento analítico, as categorias de corpos femininos elencadas por Xavier (2007). Em seus estudo, a autora analisa essas categorias, ressaltando os rótulos atribuídos à mulher nas sociedades onde o pensamento mantem-se preso aos moldes tradicionais, colocando a mulher em segundo plano ao lhe reservar, exclusivamente, o papel de mãe, esposa e dona de casa dedicada, condenada a viver sob a dominação patriarcal.

Neste trabalho, um dos aspectos a serem abordados é a maneira como o feminino se configura na obra A sombra do patriarca, de Alina Paim. Serão aqui destacadas as formas de opressão e subordinação vividas pelas personagens femininas, como também o espírito de revolta e transgressão que define a protagonista e outras personagens femininas. Tendo isso em vista, se procederá à análise do contexto histórico, social e cultural da década de 30, de modo a refletir sobre a influência do patriarcalismo na construção da sociedade tradicionalista da época e principalmente na modelagem do corpo feminino. Ao sublinhar esses aspectos, busca-se aqui também destacar a contribuição literária da autora sergipana ao questionamento sobre o processo de dominação feminina nesse contexto. No que se refere a esses aspectos, Cardoso (2009) aponta Paim como uma escritora engajada aos problemas e à questão feminina, quando, no Brasil, em meados do século XX,

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transformações nas áreas política e econômica, tornaram possível a algumas mulheres escritoras buscarem espaço no campo cultural. A autora procura mostrar, em seu estudo, como, nesse ambiente, Paim trabalha a condição da mulher em diferentes aspectos, através de personagens rurais e urbanas e da crítica feminista elaborada em suas obras. Já Almeida (ALMEIDA, 2010) aponta a obra de Paim como referência de análise e crítica social, que leva a sociedade a repensar os valores dominantes da época, buscando conscientizar a sociedade, em especial, as mulheres submissas ao domínio patriarcal.

Contribuindo com a reflexão sobre a dominação masculina no âmbito cultural, Elódia Xavier (XAVIER, 2007) discorre sobre o romance de engajamento social, transcorrendo sobre a relação entre esse sistema de dominação e a modelagem dos corpos femininos, aprisionados, nesse contexto, ao espaço doméstico e às relações familiares. À luz de tais questões, os artigos sobre a história da mulher no Brasil, reunidos por Mary Del Priore (PRIORE, 1997), a partir de uma perspectiva histórica, também fornecem dados significativos sobre a condição da mulher brasileira, desde à época colonial até à atualidade, informando sobre suas forma de vida na sociedade patriarcal. Sob essa perspectiva, esses estudos abrangem diversos espaços, ressaltando as diferenças entre os extratos sociais, de modo a mostrar como se dá, nesses espaços, a dominação masculina sobre as mulheres, destacando como viviam e como lidavam com o mundo material e com o simbólico que as cercavam, relacionando a história das mulheres ao processo de formação da família e a suas representações.

Já no campo da história literária, no que se refere ao papel da mulher e à dominação masculina na sociedade brasileira, Nelson Werneck Sodré (SODRÉ, 1995) contribui com a reflexão aqui apresentada, especialmente, o capítulo de sua História da Literatura Brasileira, em que o autor fala sobre o comportamento da mulher e sobre a importância do casamento à sua ascensão no âmbito familiar. No campo da sociologia, por sua vez, Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 1999) fornece dados importantes no que se refere a essa reflexão, ao apontar como, no mundo ocidental, a mulher se torna objeto de dominação, sempre vigiada pela figura masculina dominante, seja o pai ou o marido, que a reduz à condição de submissão.

Diante do exposto, com base nos estudos acima citados, no primeiro capítulo deste trabalho, busca-se destacar as marcas do contexto social, cultural e político brasileiro, de meados da década de 30, nas personagens de A sombra do patriarca (1950). Quanto a isso, nessa parte, procura-se refletir sobre a influência do poder centralizador do patriarca no

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processo de socialização e disciplina familiar, tomando-se como referência as relações familiares e de trabalho que têm lugar no antigo engenho e na modernizada Usina Fortaleza, onde se dão as ações do romance. Já no segundo capítulo, destaca-se a trajetória histórica das mulheres na luta pela igualdade e as marcas da dominação deixadas por esse modelo de relações sociais na cultura, bem como o espírito de revolta e transgressão, personificado, principalmente, na personagem Raquel, protagonista do romance. Ainda nesse capítulo, busca-se analisar a condição do corpo feminino como espaço de aprisionamento, tomando-se como referência a representação das personagens femininas na obra. Para isso, recorre-se aqui às categorias “corpo invisível”, “corpo disciplinado” e “corpo liberado”, propostas por Elódia Xavier. Adotando essa perspectiva, busca-se refletir sobre questões relacionadas ao condicionamento familiar, à submissão, e à transgressão como aspectos constitutivos do modo de ser e pensar das personagens femininas na obra de Alina Paim.

1. A REPRESENTAÇÃO DO CONTEXTO SÓCIO HISTÓRICO EM A SOMBRA DO PATRIARCA, DE ALINA PAIM

A sombra do patriarca traz a representação ficcional da realidade do Nordeste brasileiro na década de 30, denunciando o poder centralizador do patriarcalismo numa sociedade que nega à mulher o direito de ser dona da sua própria vontade. Nesse romance, coloca-se em primeiro plano o espaço doméstico e as relações familiares, onde a mulher se encontra na condição de subordinada, ressaltando-se a sua luta pela liberdade. Dessa forma, esse romance traz à tona as condições e conflitos sociais de um país em crise, onde, enquanto o campo era dominado por uma sociedade patriarcal em decadência, nas cidades o homem comum enfrentava as condições de desigualdade relacionadas ao processo de industrialização( CANDIDO 1989).

No Brasil, o chamado “Regionalismo de 30” ou Romance Social, em que se destacou o Romance do Nordeste, colocou em foco, no contexto literário nacional, o ambiente sócio geográfico nordestino, num momento conflituoso da história política brasileira. Os escritores dessa época usam a ficção, sobretudo, o romance, para denunciar as desigualdades e injustiças sociais da região, ressaltando em suas personagens as marcas

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de um povo oprimido. Grandes obras remetem a tal cenário de denúncias, escritos por autores como Jose Lins do Rego, Raquel de Queirós, Graciliano Ramos, dentre outros. A sociedade patriarcal brasileira, que se busca configurar em A sombra do patriarca, tem início com o cultivo da cana-de-açúcar no Nordeste, o qual deu origem à cultura açucareira no Brasil, elevando ao alto da escala social, nessa região, o poderoso senhor de engenho, proprietário de latifúndios, ainda no período colônia.Fornecendo todos os requisitos para a grandeza da sociedade patriarcal, a cultura açucareira terá forte influência na visão de mundo a partir da qual se deu a modelagem do corpo feminino nesse contexto. No decorrer da história do Brasil, especificamente, do Nordeste brasileiro, notamos que a mulher foi, por muitas vezes, privada do espaço público, vítima de um discurso opressor e cercada pelo domínio masculino, decorrente das formas de relação instituídas com a sociedade patriarcal. Nesse contexto, o gênero feminino é relegado às margens e a mulher resta sem o direito básico de assegurar sua própria sobrevivência, sendo submetida à dependência financeira de seus pais, maridos ou seus senhores. Para CARDOSO (2009), no contexto patriarcal, à mulher cabia apenas o confinamento doméstico, legitimado em nome da conservação da dignidade e da manutenção dos valores tradicionais: “os maridos patriarcais tinham um verdadeiro pavor de que suas mulheres saíssem à rua, pois era o espaço das novidades, das quitandeiras, dos moleques e das mulheres de vida fácil” (CARDOSO, 2009, p. 02).

Essa limitação feminina também pode ser observada no campo literário. Já nos anos 50, Alina Paim, como, possivelmente, muitas outras mulheres de sua época, também protagonizou o drama da repressão imposta ao feminino pelo poder vigente da época. Vítima da invisibilidade imposta pelo governo militar brasileiro, a autora, que teve uma agitada vida política como militante do PCB, no Rio de Janeiro, foi, no entanto, esquecida pela história da literatura brasileira canônica, vivendo, ao longo de sua vida, à margem dos meios literários nacionais. Segundo Ana Leal Cardoso (CARDOSO, 2009), no Brasil, quando iniciam as transformações nas áreas política e econômica em meados do século XIX, algumas escritoras buscam espaço no ambiente cultural, mas, somente na metade do século XX surge a crítica feminista. Nesse contexto, Paim traz, em suas obras, reflexões acerca da condição da mulher em diferentes aspectos, por meio de personagens que atuam tanto nas áreas urbanas quanto nas rurais, mostrando a problemática feminina em diversas situações. Considerando esses aspectos, no estudo intitulado Escritoras Marginalizadas (2009), Carlos Gomes destaca a importância da luta pelos direitos da mulher e pela defesa

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dos oprimidos empreendida pela escritora: “marcada por uma literatura de cunho socialista, Alina Paim foi uma escritora preocupada com denúncias, questionamentos e luta de classes” (GOMES: 2014, p. 31). Como ressalta o autor, é possível afirmar que a mulher está no centro da sua literatura, visto que, “o discurso feminista sempre entrecorta as falas de suas personagens, sedentas por justiça e igualdade de direito, tanto no cotidiano da família patriarcal como no espaço de trabalho” (GOMES: 2014).

Seguindo essa linha, Farias (2012) reconhece a importância da obra de Paim, que traz à tona a conscientização da mulher em relação à sua identidade enquanto sujeito, revelando a autoconsciência da mulher que reivindica o próprio valor diante do poder patriarcal: “as obras de Alina Paim servem para entendermos a construção da formação da identidade e da sexualidade feminina brasileira, principalmente nordestina” (FARIAS, 2012, p, 01). Farias destaca as influências do romantismo na modelagem da família e da mulher no âmbito sociocultural e as mudanças ocorridas a partir da segunda metade do século XX, enfatizando a contribuição da sociedade para a formação de mecanismos culturais e sociais referentes à sexualidade humana e o poder do indivíduo de recriar seus papeis sociais.

Com base nesses autores, pode-se dizer que a obra de Alina Paim se destaca pela representação dos excluídos e, sobretudo, pela luta pelos direitos da mulher. Veremos a seguir como isso se apresenta em A sombra do patriarca, em que o espírito de denúncia e inconformismo feminino encarna-se na protagonista Raquel, em sua luta diante dos desafios que se configuram à sombra do patriarcado nordestino.

1.1. A Sombra do patriarca e o contexto histórico nordestino da década de 1930

Quanto à organização do enredo, o romance A Sombra do Patriarca se divide em duas partes. Na primeira, configura-se a chegada de Raquel à Usina Fortaleza, quando se dá o seu primeiro contato com seu tio, o patriarca daquela propriedade, e a protagonista vivencia momentos de angústia, marcados pelo sentimento de opressão. Já na segunda parte, dá-se a ida de Raquel para o Curral Novo, onde é bem recebida por seus moradores simples e acolhedores, e onde a sombra do tio Ramiro ainda exerce influência sobre ela. No geral, como sombras da figura masculina dominante, as mulheres, nesse contexto, vivem sobre as rédeas do patriarca Ramiro. Subordinada a essas condições, Raquel luta contra a forma de ser abusiva e opressora do seu tio. “Ele é um patriarca, domina a família

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inteira, os irmãos, esposa, os filhos, genros, sobrinhos” (p. 58), diz Raquel durante um diálogo com Leonor, neta de Ramiro, que o descreve como um Senhor feudal.

Em A sombra do patriarca, Alina faz um relato ficcional do modo de sobrevivência de um povo marcado pelo domínio patriarcal e principalmente sobre o processo de modelagem sofrido pela mulher nesse âmbito. Evidenciando a ambiguidade em suas personagens, ao mesmo tempo em que mostra as marcas da opressão, a autora também enfoca o processo de aprendizagem da mulher transgressora.

Narradas em primeira pessoa, as ações trazem personagens diversificadas, centrando-se na estada da protagonista Raquel na casa do seu tio, o patriarca Ramiro, onde conhece a história de seus familiares, viventes sob o domínio patriarcal, a partir de seus relatos. A protagonista conhece a Usina Fortaleza, símbolo do poder patriarcal, onde, durante um período, vive aprisionada como todos que nela convivem. A sombra da dominação patriarcal se faz presente também na fazenda Curral Novo, um antigo engenho marcado por um passado não esquecido, cuja narrativa reforça o poder do patriarca; lugar

onde, porém, a protagonista pode sentir-se em liberdade, longe da presença física do tio. Desse modo, a obra, apresenta um diálogo com a realidade histórica, inserindo, em sua

representação literária, personagens pobres em oposição ao poderoso Senhor de engenho. Porta voz do discurso transgressor, a personagem Raquel clama pela democracia e pela igualdade de direito entres os sexos, sonhando com um futuro promissor para todos. A autora põe em destaque, nesse romance, algumas personagens que passam por um processo de aprendizagem que as leva à transgressão da ordem masculina. Nesse contexto, a primeira a romper com as normas do modelo patriarcal encontrado na Usina do tio Ramiro é a protagonista Raquel:

Consciente de que aquele ar que invadia meu ser [...] um dia varreria do mundo os patriarcas, colocando tudo em seus limites, reduzindo a sombra dos poderosos apenas a alguns palmos além de seus pés (PAIM: 1950, p. 115)

Através de Raquel, Alina dialoga com suas leitoras para mostrar um possível caminho em busca da liberdade. Ao retratar a protagonista, a autora a destaca como mulher politizada, que sonha em mudar o mundo, buscando a igualdade de direitos entre homens e mulheres.

Como se denuncia no romance, o descentramento da identidade feminina se encontra também associado à formação educacional. Como ressalta a ficção de Alina Paim,

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os livros, nesse contexto, eram selecionados, restringidos, cabendo à mulher aqueles de fatos irreais, uma literatura artificial e acrítica. Nesse ambiente conservador, a personagem transgressora D. Gertrudes, professora de Leonor, incentiva leituras críticas e de formação socialista como é o caso de Tolstoi, quando a educação ainda não era uma necessidade prática para toda a população brasileira - apenas a partir da segunda metade do século XX, nas classes médias urbanas, “as famílias começaram a encarar a educação feminina, pelo menos até a escola secundária, como essencial para o preparo das filhas ao enfrentar as novas contingências econômicas da vida” (CARDOSO, 2009).

Não obstante, na época em que se passam as ações do romance, as obras de cunho socialista eram condenadas pela igreja e por aqueles que pretendiam dominar os menos providos de conhecimento, tornando-os presas fáceis de manipular. Colocando em foco essa situação, a narrativa coloca em relevo, dentre outras, a personagem Teresa, que entra em confronto com sua filha Leonor quando a vê lendo um livro dito “proibido”. Tal fato desperta a curiosidade da protagonista Raquel:

Aquele livro cresceu a meus olhos como um penhor de libertação, graças a ele vira nessa noite o lampejo da luz vermelha de D. Gertrudes [...] abriu uma clareira no horizonte, anunciando que a aurora não estava longe e que havia uma promessa de renascimento pairando no espaço” (PAIM: 1950, p. 111).

Com base nos estudos acima citados, pode-se dizer que tanto Alina quanto a personagem Raquel veem na leitura uma saída a liberdade, reconhecendo, ambas, a importância do conhecimento intelectual para formação da identidade feminina e para a libertação das amarras imposta por uma sociedade que marginalizava a mulher. Assim, ao mesmo tempo em que a autora nos remete a uma educação acometida pelo modelo patriarcal, também faz sobressair, por meio das personagens transgressoras, o desejo da mulher de igualar-se aos homens, seguindo profissões de prestígio, valendo-se, quanto a isso, da noção moderna dos direitos humanos.

1.1.1. A Força econômica do açúcar e a hegemonia do senhor de engenho

A sombra do patriarca alongar-se mais ainda, estendendo-se além da família, abrangendo milhares de vidas. Descia como um

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outros cavavam a terra, lançavam a semente, plantavam dinheiro para o senhor (PAIM, 1950, p. 32).

Em A Sombra do patriarca, a autora volta no tempo para retratar o modo de sobrevivência do povo nordestino e das mulheres em especial, em meados da década de 1930, quando à mulher era reservado o lugar do oprimido. É perceptível, nesse contexto, a superioridade do senhor de engenho e a força econômica do açúcar: “Qualquer pessoa que se debruce sobre a história das mulheres, por menos observadora que seja, notará, sem grandes dificuldades, as diferenças de padrão entre o homem e a mulher em nossa cultura” (CARDOSO: 2009). A propósito, Nascimento (2012), ao estudar a obra de Ibarê Dantas, Coronelismo e dominação, apresenta uma discussão sobre o coronelismo em Sergipe e as possíveis mutações ideológicas ocorridas até a contemporaneidade. Como se mostra na obra de Paim, temos, nesse contexto histórico, a “figura do grande proprietário de terra que estabelece com seus trabalhadores rurais uma relação não capitalista e de dominação pessoal” (NASCIMENTO, 2012, p. 1), que, relacionada com fatores socioeconômicos, estabelece uma relação de fidelidade e submissão. Assim, o romance de Alina Paim denuncia o coronelismo encarnado na figura do patriarca Ramiro, que representa, na ficção, a imagem do coronel nordestino em meados da década de 30, como se vê a seguir:

Recebera do pai como herança uma propriedade pequena e hipotecada e, à custa de lutas, resgatara tudo, fazendo progredir a fortuna. Soubera aumentar as terras e impor respeito aos vizinhos pela honestidade de seus atos e intransigência na palavra empenhada (PAIM: 1950, p. 13).

Como se pode perceber, a presença do coronelismo, por volta de 1930, era marca de poder e dominação, que consolidou a hegemonia do senhor de terras através do sofrimento do povo oprimido. O sistema vigente aumentava as desigualdades sociais e os latifundiários ganhavam prestigio e poder: “o dinheiro nesse caso é causador de todas as desgraças dessa família e de todos que convivem nesse meio” (FARIAS: 2012). O patriarca não mediu esforços para alcançar essa hegemonia, projetando sua sombra em muitas vidas, como denuncia o pensamento inconformista de Raquel: “o grupo silencioso marchava à sombra desse homem, meu tio, o coronel Ramiro da Usina Fortaleza _ o

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patriarca” (PAIM: 1950, p. 175). O trecho a seguir denuncia o coronelismo e a falta de escrúpulos do senhor de terras, com que este garantia o respeito daqueles que o cercavam:

Tio Ramiro surgiu diante de meus olhos como um patriarca sua sombra alongando-se pelas terras, extinguindo a felicidade em volta dele, porque seu dinheiro onde passava ia semeando maldição (PAIM: 1950, p. 16)

O patriarca, certo de que todos ao seu redor irão acatar suas ideias sem contestá-lo, caracteriza-se pelo sentimento de superioridade. Esse sentimento é apontado por Bourdieu como característica social concernente ao homem de posses, que se difere de seus semelhantes por capacidade de produção e condição de gênero:

A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte (BOURDIEU: 1999, p. 45)

Esse trecho nos revela a herança de uma sociedade que oprime a mulher e exalta o homem. Mas, ao contrário do que pensa o personagem Ramiro em relação à submissão, a protagonista Raquel é diferente de todos os outros que acatam as ordens do tio e lança o desafio de contrapô-lo, sempre com a ideia fixa da transgressão, certa de que “a mulher tem possibilidades iguais às dos homens, a educação é que a atrofia, dando um valor exagerado a seus sentimentos e neutralizando suas energias intelectuais” (p. 40). Os ideais da protagonista a respeito do papel feminino, contudo, são vistos pelos dominadores como um desrespeito, uma afronta à autoridade. Como na sociedade patriarcal da época, na ficção, Ramiro é responsável pelo processo de socialização de todos: esposa, filhos, o genro, netos, irmãos, sobrinhos, e até seus empregados, submetidos ao poder de seu chefe sem direito de contestar: “o dia inteiro estava tomado pelo programa que tio Ramiro traçava na véspera, depois do jantar” (p. 18). Já as personagens femininas são aprisionadas pelo condicionamento familiar que, ao mesmo tempo em que as protege e lhes dá segurança, as priva do mundo exterior. Nesse processo de socialização, os subordinados são envolvidos pela soberania do senhor de engenho, o dono do poder econômico e social.

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1.1.2. Família e disciplina: o papel do casamento na manutenção do patriarcado

Qual o laço que existe entre mim e meu avô, entre mim e mamãe? Laços de sangue, a mesma carne, as tradições, a usina? A carne e o sangue foram por acaso, não escolhi. Se tivesse escolhido onde nascer, o último lugar preferido seria a Usina (PAIM 1950, p, 52).

Priore (1997) demostra uma preocupação em relação a posição social da mulher no início do século XX, época que lhe conferia a dominação masculina como seu dono, remetendo-a a um objeto particular, e que tinha sua conduta controlada pelo pensamento machista que lhes “convergiam as preocupações para organização da família e de uma classe dirigente sólida” (PRIORE: 1997, p. 62). Sobre as mulheres recaíam o peso das regras impostas pela sociedade, que, como o tempo se moderniza, estruturalmente, pois em relação a liberdade feminina, nota-se uma maior vigilância, visto que as casas mais ricas serviam como atração publica a classe alta, e dessa forma as mulheres passam a ser mais vigiada, sendo a figura do pai o responsável primário, como aponta PRIORE.

A questão da vigilância, valorizava, mais uma vez, o pai de família [...] Não somente, por sua autoridade, o pai colocava um freio aos impulsos sentimentais de suas filhas, mas também por sua valentia, mantinha homens predadores a distância, pois sempre pairava sobre virgens a ameaça de “rapto”( PRIORE,1997, p. 530)

Nesse trecho, ressalta-se a condição da mulher como objeto da dominação patriarcal, numa sociedade machista que lhe cobra uma conduta moral imposta, privando-a de manifestar seus desejos e vontades perante a sociedade. Quanto a isso, também Elódia Xavier (XAVIER, 1998) aponta a construção familiar como produto de um sistema social onde a mulher é a maior vítima do domínio patriarcal, sendo privada durante muito tempo de manifestar seus desejos e vontades. Nesse âmbito, até seus casamentos eram arranjados pelo homem que a dominava, sendo seu pai ou irmão, o que demonstra a submissão feminina diante do patriarcado.

Cansadas dessa dominação, a mulher, aos poucos vai se desprendendo da dominação masculina, como coloca Xavier, em Declínio do Patriarcado (1998), onde a autora traz questões referentes à dominação coronelista sobre as famílias humildes. Inconformadas com a situação, algumas mulheres manifestam sua revolta, exigindo mudanças, contrariando assim o pensamento hegemônico, como se observa na citação a seguir::

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No princípio me debati numa luta intima terrível, me acusava de má, de filha sem coração e outas coisas que a gente ouve desde pequena sobre pessoas que não se unem com os parentes (PAIM, 1950, p. 52).

Na citação acima, a personagem Leonor, prima de Raquel, expressa sua insatisfação com o modelo patriarcal e a imposição de regras. Leonor apresenta traços de transgressão e questiona a maneira como os próprios parentes convivem dentro da mesma casa, ao contrário da sua irmã, Anita, moça prendada guiada pelas rédeas da mãe, Teresa, que, como conta a narradora protagonista, sempre a manipulou e a preparou desde pequena para o casamento.

Uma época em que a mulher sentia-se inferiorizada quando não casava, impunha-se a ela o casamento arranjado, o que significava aceitar, sem contestação, o domínio masculino e a família composta por pai, mãe e filhos. Nesse contexto, como afirma Roberto da Matta (XAVIER, 1998), nos diz que “tudo o que diz respeito ao mundo da casa é feminino e deve ser englobado pela mulher” ( p. 27).Tendo em vista essa situação, Xavier (1998) ressalta que não se pode pensar na mulher como sujeito sem se considerar a “historicidade da família”.

Nesse estudo, a autora se fundamenta em textos de autoria feminina que focam questões familiares, buscando, com isso, ressaltar a crise da família tradicional no século XX. Quanto a isso, Xavier trata de demonstrar a diversidade de famílias representadas na ficção e vivenciadas na realidade durante esse processo de mudanças: “como produto do sistema social, ela (a família) reflete o estado de cultura desse sistema” (XAVIER, 1998, p. 24).

No que se refere a esse aspecto, em A Sombra do patriarca, vale ressaltar a postura da protagonista diante da condição de aprisionamento vivida por famílias tradicionais subordinadas ao domínio patriarcal. Essa postura reflete a decadência da família tradicional e as transformações sociais no que diz respeito ao papel da mulher. Esta, que anteriormente era tida como sexo frágil e subordinada aos caprichos do sexo oposto, inicia uma luta diária pela conquista do seu espaço na sociedade. No romance em estudo, observa-se que essa luta se manifesta no espírito de revolta de algumas das personagens femininas, que colocam acima de si mesmas o desejo de mudanças, apesar da educação familiar que prega a submissão sem questionamentos por parte da mulher.

No geral, contudo, ainda predomina, nesse contexto, a ideologia do patriarcado herdado da época colonial, em que, como informa Sodré (1995), os sentimentos das moças

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não eram levados em consideração, sendo o casamento arranjado em qualquer lugar ou circunstância, com aprovação do patriarca:

As meninas casavam por uma olhada na novena, pelo bilhete lançado da varanda, atos regidos por alcoviteirice profissional ou determinados pela decisão incôngrua e irremissível dos pais [...]. Os primos eram quase sempre as vítimas consignadas na lareira aos arranjos nupciais (SODRÉ, 1995, p. 172).

Essa vigilância se reflete no comportamento do patriarca Ramiro, ao consentir que sua filha Teresa casasse com Oliveira, desprovido de dotes, pois, dessa forma, os manteria em seu próprio domínio família, podendo manipular a todos. Como uma herança do pai, Teresa impõe a seus filhos a educação patriarcal provida de um poder manipulador, uma afronta para a personagem Raquel que discorda de tal posicionamento: “a mulher pode ter personalidade e não precisa apagar-se diante do marido” (p. 39). A expressão da protagonista incita a matriarca Teresa, que possui características do seu pai Ramiro. Autoritária e ambiciosa, ela tentava “dobrar todas as pessoas em torno de si” (p. 39). Notamos o preconceito contra a mulher no meio rural do Nordeste, onde, como denuncia a narradora Raquel, a supremacia do senhor de engenho reinava: “a sombra do patriarca é sutil e venenosa como os vapores de um tóxico poderoso” (p. 32). O patriarca da família ditava as ordens, e Ramiro, com seu poder econômico, dominava e moldava famílias inteiras: “as coisas devem estar nos lugares que tio Ramiro determinar e as pessoas têm de ter o que for mais conveniente para seus planos” (p. 28), e fazia o possível para que sua determinação fosse cumprida.

Percebemos, no conjunto de exemplos dados, como atua o condicionamento familiar no processo de socialização feminino, a tradição de manipular a mulher passada de pai para o marido, os desacertos de um casamento arranjado e a visão das personagens transgressoras aqui representadas pelas primas Raquel e Leonor. No próximo subcapítulo, cumpre verificar a configuração social e econômica nos dois espaços em que se dão as ações do romance: o antigo engenho Curral Novo e a Usina Fortaleza, cujo ambiente remete às transformações no espaço tradicional, impostas pela modernidade.

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1.1.3. Tensões entre tradicionalismo e modernização na representação do espaço ficcional: a luta de classes e a evolução das máquinas em A Sombra do patriarca

Na década de 30, no Nordeste, o proprietário de terra, tornado o poderoso senhor de engenho, ainda gozava de grande prestigio e poder sobre a classe mais baixa, detentora da mão de obra açucareira. Mantinha-se nas proximidades dos engenhos uma comunidade de agregados cujos valores e regras eram ditados pelos seus senhores. Nesse contexto, as diferenças de classe eram notórias, como testemunha a narradora protagonista Raquel: “eu ficava chocada com o contraste assombroso que existia entre a Usina e a engenhoca. Custou-me acreditar que esses extremos se encontrassem nas terras de tio Ramiro” (PAIM, 1950, p. 122).

Essas mesmas condições de produção se configuram no consagrado romance Menino de engenho, de José Lins do Rego (1932), que retira, de sua experiência vivida no mundo rural nordestino, a identidade das personagens, cujas histórias são retratadas em suas obras. Em Menino de engenho, o escritor problematiza a infância num engenho de cana-de-açúcar, destacando as tensões sociais envolvendo o tradicionalismo dos engenhos de cana-de-açúcar e as mudanças impostas pela modernização, numa época em que o método tradicional de produção dava lugar ao poder capitalista das Usinas açucareiras. Nesse ambiente, apesar do fim da escravidão, o respeito e o cuidado para com o senhor de engenho por parte de seus agregados resistia ao tempo.

Em A sombra do patriarca, essas diferenças sociais e econômicas são testemunhadas por Raquel, que não consegue disfarçar seu espanto: “entre a Usina, onde o bagaço saía seco e esfarinhado, sem uma gota de caldo, e a moenda da engenhoca havia distância de séculos. Seria preciso uma longa caminhada para o Curral Novo alcançar a Fortaleza” (p.122). Trata-se aí da oposição entre o moderno e o antiquado. Na Usina Fortaleza, “a casa grande, com sua fachada de dois andares cercada pelas janelas de guilhotina” (p. 80), marcava a supremacia do senhor de engenho, a representação da fortaleza, enquanto no Curral Novo se encontravam os traços de um passado esquecido. Na narrativa em foco, a chegada de Raquel à Usina Fortaleza reflete a sua submissão ao pai, de quem, no romance, não se menciona o nome. Este, por sua vez, segue as normas preestabelecidas pelo patriarca ao levá-la para conhecer o tio Ramiro, o que revela a sua subordinação ao velho senhor. Como testemunha Raquel, seu pai

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Mudava de atitude sempre que falava do tio, adotando uma maneira de se expressar toda especial, escolhendo as palavras como se os termos usuais de seu vocabulário fossem insuficientes [...] sabia que o poder do tio Ramiro se estendia até muito longe, e sua sombra, como a sombra de um patriarca, abrangia muitas vidas (p.11- 15).

Durante essa viagem de férias, a protagonista tivera a oportunidade de conhecer a Usina Fortaleza e a fazenda Curral Novo, duas propriedades de Ramiro, e pôde constatar as diferenças existentes nesses dois locais. Na Usina Fortaleza, Raquel é acometida pelo impaludismo e acaba estendendo sua visita para recuperação da saúde, com o que ela pôde verificar com atenção e caráter contestador o modo de vida daquela gente: “depois das três semanas retida na cama, prisioneira entre aquelas pessoas estranhas e de atitudes duvidosas” ( p. 14).

Também situada no Regionalismo de 30, a escritora Rachel de Queiroz (apud XAVIER, 2007) configura, em algumas de suas obras, a oposição entre o espaço da casa e o espaço da rua no contexto patriarcal, onde a casa exerce uma função “reguladora e moralizante”, sendo o espaço da rua tomado como lugar da desordem, onde a mulher “busca a construção de uma identidade independente, através da ruptura com o ambiente de origem_ a casa” (XAVIER, 1998, p, 38). Nesse contexto, a personagem Raquel, cunhada por Alina Paim, representa a imagem real da mulher do século XX, desgastada pelo sistema que a condiciona, sendo surpreendida com um mundo obscuro e opressor, diferente do já conhecido na cidade grande, num período em que, como aponta Ana Leal Cardoso:

A família urbana já se ajustou aos novos papéis que as transformações sócio- econômicas impuseram às mulheres. Dentre essas, destaca-se a extensão da instrução a crescentes contingentes femininos, alargando, assim, os horizontes culturais da mulher (CARDOSO, 2007).

Na segunda parte do romance de Alina Paim, Raquel busca a liberdade na fazenda Curral Novo, local pobre e primitivo, onde a sombra do patriarca deixou marcas profundas. Em apenas três dias de estadia na fazenda, Raquel conhece a história de seus pais e consequentemente a sua. Encontra o aconchego e proteção como aquisição de patrimônio sólido: “existia na casa a simplicidade que papai não se cansava de gabar. Eu ficava horas esquecidas gozando em silencio a paz que envolvia as pessoas e as coisas” (p. 120). Nesse caso, Raquel diferencia a prisão e confinamento da casa de Ramiro, na Usina Fortaleza, da

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liberdade e proteção encontradas no Curral Novo, ressaltando a simplicidade de seus moradores e o lado pobre e humilde da família:

Somente na fazenda Curral Novo, em contato com a gente simples de tia Celina, pude penetrar sua significação. Vi muito claro naquela tarde em que a velha Lucrécia revelou a história da família, com uma narrativa cheia de recordações ligadas à sua mocidade de escrava presa àquela terra e acorrentada a seus senhores (p.15)

No relato de Raquel, podemos observar as diferenças econômicas e sociais representadas na obra, traduzidas na luta de classes envolvendo os trabalhadores rurais e o poder manipulador da classe dominante, sendo esta a maior interessada nessa divisão, desmerecedora dos que se encontram entre os oprimidos, principais testemunhas do vigor e da força do patriarca, acentuada pela evolução das máquinas no contexto de produção da Usina Fortaleza:

Na Fortaleza _ máquinas colossais num zumbido de ensurdecer, com as molas de aço agindo com a precisão de uma inteligência fria. Todos os recursos e aperfeiçoamentos da indústria moderna. E diante de meus olhos estava naquela hora a moenda primitiva, movida pela força de dois bois (p. 122)

Conforme Farias (2012), “enquanto a usina Fortaleza representa o moderno e sofisticado em termos de produção agrícola, o engenho Curral Novo é o contrário, sua produção fabril é antiquada” (FARIAS, 2012, p.02). Porém, toda essa modernidade não chegou ao núcleo familiar. Notoriamente, às mulheres cabia apenas o “olhar” silenciado por normas trazidas pela estrutura familiar de um sistema patriarcal.

Em sua História da Literatura Brasileira, Sodré (1995) levanta aspectos relacionados à vida cotidiana da mulher no contexto colonial, a qual, desde a infância, era prendada para o lar, para a igreja e para a família, sendo o casamento, muitas vezes, arranjado pelos pais. O autor aponta também algumas mudanças sociais ocorridas com mulheres, principalmente, àquelas dos centros urbanos, que ousaram quebrar o quadro da reclusão imposta pela antiga família tradicional. Referindo-se a esse momento da história, Xavier (1998) fala da família como lugar de “adestramento social” e, muitas vezes, responsável pelos conflitos narrados nos textos de autoria feminina. Aponta a importância dos estudos de Engels, que afirma, famulus, no mundo antigo queria dizer escravo doméstico, e família é o conjunto dos escravos pertencentes a um mesmo homem. Com o tempo, passou a significar um grupo social cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os

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filhos e certo número de escravos, com direito de vida e morte sobre todos eles ( XAVIER, p.25)

Segundo Antônio Cândido apud Xavier (1998) “a família, como sólida estrutura patriarcal, foi, do século XVI ao século XIX, o fundamento de toda a organização econômica, política e social, sob o domínio familiar, latifundiário, guerreiro e chefe político”(p. 113). Assim, a família nada mais seria que um lugar para adestramento e adequação social e modelagem do corpo feminino. A mulher, sendo submetida ao condicionamento familiar, era privada de seus direitos, cabendo-lhe apenas a função doméstica e de cuidadora do marido e dos filhos, dando ao sexo masculino a superioridade a tudo e a todos, sobretudo, o poderoso dono de engenho, que movimentava a economia em torno da cana-de-açúcar na década de 30. Nesse contexto, Elódia Xavier aponta a sociedade vigente como responsável pela formação de regras destinadas ao domínio masculino sobre a mulher.

Para Bourdieu (1999), a dominação masculina se dá quando as mulheres mantêm seus pensamentos e suas percepções em conformidade com as estruturas de dominação que lhe são impostas. Nesse âmbito, seus atos de conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão, cabendo-lhes “o lugar de assembleia ou de mercado” (p. 18), ou seja, de objetos reservados aos homens e à casa.

É na fazenda Curral Novo que Raquel descobre que “nas sombras do patriarcado, a diversidade de mulheres oprimidas não para na disciplina, elas escondem muitos corpos subalternos” (CARDOSO, 2007). Aí, ela pôde reconhecer-se na trajetória da sua família e de outras famílias aprisionadas àquele lugar, como a velha Lucrécia que havia trabalhado na casa de Ramiro como escrava.

Estava velha, não aguentava mais nada, só prestava mesmo pra dar um “ajutório na boa hora”. Era aparadeira, assistia às mulheres quando tinham criança [...] Os olhos miúdos e amarelados da velha Lucrécia tinham visto muito coisa, sabiam de muita desgraça. Muitos ventos tinham soprado sobre as matas desde que ela pisava no mundo (PAIM, 1950, p.145-146).

Outra personagem que sentira o poder da opressão imposta por Ramiro foi Joana Louceira, que vendia louça e tivera a ilusão de que fora livre em seu inconformismo: “ouvi toda espécie de humilhações sem o direito de dizer nada, arrebentar de trabalhar e não chegar nunca a possuir um pedaço dessa terra” (p. 171). Como na época medieval, os moradores do engenho prestavam vassalagem ao velho senhor de terras Ramiro, em troca

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de um pedaço de terra para morar. Nesse contexto, às mulheres, principalmente às pobres, consideradas seres insignificantes, tudo o que lhes cabia era olhar e calar-se diante do poderio dos homens (FARIAS, 2012).

Dentre as mulheres marcadas pela sombra do patriarca, Raquel se depara com a doce tia Celina, dona de uma “bondade despreocupada que me deixava a impressão de que ela fazia assim com todo mundo, sem distinguir uma pessoa de outra, abrangendo todos nessa dádiva constante de si mesma” (PAIM, 1950, p. 120). Moldada aos modelos patriarcais, acostumara-se a uma vida rotineira e fria, dizendo, com solicitude, que a “mulher foi feita para sofrer calada, olhando os seus, se tem um bocado na boca dos filhos, o coração está contente” (p. 213). É notório, na narrativa de Raquel, o conformismo de Celina que passara a vida a cuidar dos entes queridos e da casa.

Com tia Celina, morava outra filha de Ramiro, Alzira, que também sofrera a prepotência do pai que a proibiu de casar com um rapaz pobre, pelo qual Alzira fora apaixonada no passado, apenas para não diminuir a dignidade da família. Alzira é mais uma personagem vítima do poder do patriarca, amargurada por um capricho do opressor.

Somente nas ocasiões em que estava cuidando de catita, Alzira se tornava mais humana e diminuía um pouco a distância que a separava das outras pessoas[...] Talvez, se tivesse sua própria casa, marido e filhos, Alzira fosse serena e a vida não se extinguisse aos bocadinhos, estupidamente (PAIM,1950, p. 139).

As férias de Raquel e a visita ao tio Ramiro serviram de base para reafirmação de suas convicções: “era uma onda imprecisa abrangendo coisas passadas, de que eu não tinha consciência ainda, e outras que talvez acontecessem muito breve” (p. 137). Nesse ambiente, uma série de acontecimentos decisivos modificaria o rumo da vida da protagonista Raquel.

Levando em consideração a supremacia do patriarcado e a modelagem dos corpos femininos, manipulados por regras preestabelecidas pela sociedade, no próximo seguimento, apresenta-se uma abordagem das marcas que o sistema patriarcal deixou nesses diferentes corpos ao longo do tempo. Nessa abordagem, cumpre relacionar a trajetória da mulher no âmbito histórico com a trajetória das personagens femininas em A Sombra do patriarca, destacando-se, sobretudo, o espírito de revolta e o desejo de transgressão da protagonista Raquel.

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2. SUBMISSÃO E TRANSGRESSÃO: AS PERSONAGENS FEMININAS NO ROMANCE A SOMBRA DO PATRIARCA

2.1- As marcas da opressão e a subordinação das mulheres no romance de Alina Paim Aos homens, como símbolo da força e do poder, cabiam às tarefas mais árduas, enquanto às mulheres, consideradas o sexo frágil, cabiam a maternidade, os cuidados domésticos e uma submissão que perdura até os dias de hoje, apesar das mudanças sócio culturais vivenciadas pelas mulheres.

A esse respeito, Pierre Bourdieu (1930), em A dominação masculina, afirma que, nesse contexto, ao homem cabia, naturalmente, o mundo exterior e à mulher, “a casa”, onde ela vivia sob a constante vigilância dos maridos:

A ordem social funciona uma imensa maquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservados ao homem, e a casa reservada às mulheres. (BORDIEU, 1999, p, 18).

No que concerne o espaço doméstico e familiar, Ana Maria Leal Cardoso (2007), em seu artigo “O descentramento da Mulher”, traça um panorama da obra de Paim, em uma análise crítica da família que “como lugar de adestramento para adequação social é, muitas vezes, a responsável pelos conflitos narrados”. Nesse contexto, o resgate da infância e da família de origem pela personagem Raquel, torna visível a ação repressora do condicionamento familiar sobre a mulher, que se mantém sob as rédeas do patriarcalismo. As figuras femininas apresentam-se aí multifacetadas, manifestando-se nelas, tanto as marcas da opressiva sombra do senhor Ramiro, quanto o incontrolável desejo de libertação do poder patriarcal.

Para melhor entendermos a modelagem dos corpos em sua concepção, Elódia Xavier (2007) aponta as características marcantes dos corpos femininos presentes no romance de Alina Paim, destacando, a partir de um olhar feminista, uma diversidade de posturas femininas, da postura característica do corpo liberado às posturas em que o corpo feminino se revela como espaço de aprisionamento e de inscrições socioculturais excludentes.

Não compreendia como conseguira defender a vivacidade do olhar no decorrer de tantos anos subjugada ao lado do marido, sempre

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asfixiada por sua vontade de ferro que não perdoava ter-lhe dado uma filha em vez do menino tão desejado (PAIM, 1950, p. 17) Dentre os diferentes perfis de mulheres apresentados no romance, a tia de Raquel, dona Amélia, é o mais forte exemplo de corpo invisível, o ideal do imaginário patriarcal: “Ela é vista como a mãe extremosa, pura a alma da família, agente educador da infância. Sua conduta é exemplar para a família” (CARDOSO, 2007). Amélia é o oposto da protagonista Raquel, que, com seu olhar transgressor, não se deixar aprisionar pelos modelos patriarcais que aprisionam a tia. Perplexa, Raquel não consegue compreender como a tia Amélia se habituou à submissão incondicional ao marido Ramiro, justificável se entendermos, com Bourdieu, que “os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais” (BOURDIEU, 1999, p. 46). Como símbolo de dedicação e obediência, cabia, pois, a Amélia, a função de manter a ordem dentro de casa, passando esse código de conduta para as novas gerações:

Devia ter sofrido muito para chegar àquele extremo, apagada e silenciosa como sombra [...] durante todo esse período ela suportara o peso do descontentamento do marido e fora cedendo, palmo a palmo, seus direitos naquela casa em troca da tranquilidade de uma vida despercebida. (PAIM, 1950, p.93)

O matrimônio de Amélia e Ramiro segue o modelo patriarcal, no qual “o casamento era um contrato socioeconômico que não pressupunha afinidades afetivas e nem sexuais” (XAVIER, 2007). A personagem Amélia é invisível e subalterna à figura do seu homem, tendo sido massacrada pelo marido, que não lhe perdoava o fato de não ter lhe dado um herdeiro homem para continuar a sua obra e perpetuar a sua sombra. Diante da pressão e do desprezo do marido, Amélia se apaga quase que completamente, conservando apenas a “vivacidade do olhar” (ALMEIDA, 2008):

Os cabelos brancos esticados, os lábios trêmulos, formavam uma contradição com o brilho inquieto de seus olhos, que envolviam uma pessoa [...] reservava para si o direito de olhar as coisas, de observar as pessoas, uma a uma, e guardar seu julgamento. Tia Amélia era mansa e sorrateira (PAIM, 1950, p. 17).

Na análise de corpo disciplinado, no qual faz parte a maioria das mulheres de narrativas femininas, vimos que Teresa, a filha de Ramiro, fora tão disciplinada que segue o discurso do pai, transmite aos filhos a educação patriarcal que fora concebida, “era autoritária, tentava dobrar todas as pessoas em torno de si, até o próprio marido, e queria

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passar por uma criatura mansa e cordata, pregando justamente o contrário do que fazia na realidade” (PAIM, 1950, p. 39).

Nesse contexto, sobressai-se também, na representação da personagem Teresa, que é submetida a um casamento arranjado pelo pai Ramiro, as marcas do corpo disciplinado da mulher incapaz de construir algum tipo de laço amoroso com o marido, Oliveira, o qual não tinha o direito sequer de interferir na educação dos filhos. Teresa vê em seu filho Aberlardo, o neto homem de Ramiro, aquele que será capaz de dar continuidade aos negócios do avô e, com base nessa crença, ensina-lhe suas ideias patriarcalistas, convencendo-o da carreira de engenheiro, dada a sua utilidade à formação do herdeiro do patriarca.

A força da disciplina que caracteriza a personagem Teresa, se fazia sentir sobre seus filhos, a exemplo de Aberlardo, que sonhava em ser oficial da marinha, sendo, por isso, repreendido pela mãe: “Nunca você desejou uma coisa dessas. Escute, Abelardo, desde pequenino que você vem mostrando sua inclinação [...] Ninguém duvida mais que você seja no futuro um grande engenheiro” (p. 30). O sonho é esmagado pela sombra do patriarca, que permeia toda narrativa:

Quando a disciplina interna não pode mais neutralizar o tema de sua própria contingência, o corpo disciplinado migra para dominação, subjugando o corpo dos outros a um controle que ele não pode exercer sobre si mesmo” (XAVIER, 2007, p. 67)

Outro exemplo de corpo disciplinado é o da sua filha, Anita, que, tida como a preferida da mãe, trata de seguir seus caprichos: “uma vez que não compete ao corpo disciplinado questionar os procedimentos” (XAVIER, 2007, p.62), para a mãe, Anita é a “filhinha do coração”, pois parece perfeita em sua total submissão aos desejos maternos: “não sei fazer nada longe da mamãe. Não leio um livro sem primeiro consultá-la, nem sinto prazer quando escolho um vestido sem a sua presença”(p, 38), diz Anita toda satisfeita em realizar as vontades de Teresa.

Teresa, orgulhosa, demonstra seu grau de satisfação: “Anita é mais dócil, é para mim um livro aberto. Habituou-se desde pequenina a contar-me tudo. Com esta, meu coração está tranquilo” (p. 39). Anita parece ser um desdobramento da mãe e da avó Amélia: nascida “encantadora menina”, crescia “casta donzela” e filha obediente, para tornar-se fiel esposa e mãe dedicada, merecedora do título “rainha do lar”, “por que outro cetro a sociedade não lhe admitiria. Apresenta os requisitos fundamentais para submeter-se, sem

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contestação ao poder do patriarca, alindo à ignorância uma imensa imaturidade” (CARDOSO, 2007)

Opondo-se a essas categorias de corpo, destaca-se o corpo liberado, atribuído, em primeiro plano, à protagonista Raquel, que observa inconformada o comportamento de todos que se encontram ao redor de Ramiro: “era preciso a todo custo observar as pessoas e medir gestos para não desgostar ninguém. Era necessário causar boa impressão para resguardá-lo de uma situação desagradável” (p. 11). Para Cardoso (2007), a protagonista assume a missão heroica de servir à coletividade. Lutando para mudar mentalidades, Raquel percorre o labiríntico caminho de mutações psicológicas representadas no romance:

Fervia em minha consciência uma espécie de revolta contra a dominação de tio Ramiro. Seu dinheiro, como um rôlo compressor, nivelava e aplaina o caminho, passando sobre as vontades, reduzindo os homens que o cercam a massa informe e maleável, sempre colocada a um nível tão baixo que de sua estatura de homem pequeno e mirrado pode domina-la, olhando-a do alto (PAIM, 1950, p. 43-44).

No decorrer da narrativa, percebemos que a protagonista passa a ser sujeito de sua própria história, conduzindo sua vida conforme os valores redescobertos através de um processo de autoconhecimento (XAVIER 2007). Representante dessa postura, a personagem Raquel não se deixa aprisionar pelas amarras do patriarca, defendendo a ideia de que “a mulher pode competir com um homem e vencer em qualquer coisa para que tenha vocação. Pode ser médica, advogada e até engenheira” (PAIM, 1950, p. 46). Assim, ela contraria o modelo patriarcal do tio Ramiro, que impõe à mulher o papel de tomar conta da casa do marido e criar os filhos.

Outro exemplo de corpo liberado, encontramos em Leonor, que identifica, em sua prima Raquel, o mesmo desejo de ser protagonista do seu próprio destino: “Leonor e eu éramos aliadas, tínhamos a unir-nos a vontade de escapar da sombra do patriarca, o desejo de quebrar essa sequência de orgulho e submissão” (PAIM, 1950, p. 70). Quanto a isso, ressaltam os laços afetivos de Leonor com sua professora: “D. Gertrudes me ensinou muitas coisas, e entre elas o direito que tenho a ser dona da minha vida” (p. 50). A afinidade com a professora a ajuda a encarar desafios e seguir o caminho da liberdade, estabelecendo com ela uma relação de comunhão que desagradava sua família. Através de Leonor, Alina Paim alerta suas leitoras para a ação repressora do condicionamento familiar, que cria mecanismos protetores e ao mesmo tempo constritivos (ALMEIDA, 2008).

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No romance, contrapõe-se ao sentimento de inferioridade da maior parte das mulheres ao espírito de liberdade manifestado em personagens como Raquel e Leonor, que representam a nova geração, como também em personagens representantes da velha guarda, a exemplo de Donana, a avó paterna de Raquel, que, viúva e com oito filhos homens pequenos ainda, recusa o auxílio de Ramiro, para não ser obrigada a dobrar-se ao seu poder. Assim, às custas de sofrimento e trabalho, Donana cria os meninos “sem recorrer a ninguém, de cabeça erguida” (PAIM, 1950, p. 133). Donana, D. Gertrudes, Leonor e Raquel compõem, pois, o quadro representativo da luta das mulheres contra o patriarcalismo.

2.2. A Revolta e a transgressão feminina como temas de A Sombra do patriarca

Num país em transição política e econômica, a obra de Alina traz à tona a opressão e a subordinação da mulher silenciada pela estrutura familiar patriarcal, no Nordeste rural da década de 30, contrapondo a visão de mundo aí predominante à visão libertária que se propagava na cidade grande, com base na qual a protagonista luta pela afirmação de suas convicções, as quais faz aflorar no ambiente patriarcal, ainda que lentamente.

Nessas condições, como afirma Sônia Coutinho, em O preço da transgressão, “o dilaceramento é inevitável”, dada a impossibilidade de conciliar o “destino de mulher” com a “vocação de ser humano” (XAVIER 1998, p. 58) na verdadeira busca pela identidade perdida. Assim, com suas narrativas questionadoras, as personagens transgressoras rompem com os princípios dominantes, buscando a realização de uma necessidade interior, sendo que, na maioria das vezes, essa postura implica pagar um alto preço pela ruptura com a ordem patriarcal.

No início do século XX, algumas capitais do Brasil estavam passando por um processo de urbanização intensa; não apenas as mulheres abandonadas pelos seus companheiros precisavam trabalhar, muitas precisavam ajudar o marido a suprir necessidades domésticas, trabalhando como operárias nas indústrias ou em tarefas tradicionalmente caseiras, como lavadeira, engomadeira, cozinheira, ama de leite, entre outras. Nesse contexto, “a mulher com trabalho assalariado tinha de defender sua reputação contra a poluição moral” (PRIORE, 1997, p. 516). Percebe-se que, nesse contexto, as tarefas realizadas em casa não eram vistas como profissão, sendo a sua importância minimizada, sendo chamadas de “serviços domésticos” e “trabalho honesto”. Esse

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exemplo, nos mostra a dominância do discurso opressor que aprisionava a mulher em muitos casos, sendo que esse discurso ainda permanece camuflado na contemporaneidade. Na obra de Alina Paim, as mulheres transgressoras buscam a realização pessoal e profissional, acreditando que a mulher é capaz de executar qualquer papel. Na citação “A mulher foi feita para tomar conta da casa, cuidar do marido e criar os filhos. Ser professora já é uma concessão de que às vezes muitos homens se arrependem” (PAIM: 1950, p, 46), Ramiro revela seu pensamento autoritário, que nega à mulher o direito de exercer certas profissões reservadas aos homens. Em luta contra essa situação, a protagonista Raquel

Reflete o drama da mulher que, mediante uma tomada de consciência dos problemas existenciais, sociais, das questões familiares, dos erros provocados pelos sistemas opressores, preconceituosos, e violentos, consegue, superar as adversidades pessoais, criando estratégias para superar o “dragão” da inconsciência, representado no contexto da história pela Usina (CARDOSO, 2007, p. 5).

Assim, a protagonista deixa transparecer seu inconformismo diante do patriarca ao se posicionar contra o discurso dominador:

- A mulher pode competir com o homem e vencer em qualquer coisa para que tenha vocação. Pode ser médica, advogada e até engenheira, apesar das dúvidas de muitos homens sobre suas aptidões com a matemática[...] - As coisas mudaram muito, tio Ramiro, e sua maneira de encarar a situação da mulher está atrasada, atrasada de muitos anos” (PAIM, 1950, p. 46- 47).

O trecho a seguir ressalta o posicionamento da protagonista que deseja ser advogada e se depara com o sistema repressor dentro da casa de Ramiro: “mostrei que existe alguém que pode ter opinião por conta própria e ao mesmo tempo estar sentada em sua mesa, à sua direita, dentro do raio de ação de sua autoridade” (PAIM, 1950, p. 43).

Já Teresa, filha do patriarca, reforça o discurso dominador de Ramiro, discordando de Raquel ao afirmar que “a mulher sempre é mais fraca. Quando lhe falta o amparo do pai ou do marido, a desorientação toma posse da sua vida, ela não acerta mais a dar um passo” (p. 39). Raquel percebe que a disciplina incorporada por Teresa é a mesma que ela tenta passar a seus filhos, consistindo, o seu discurso, numa prática que se perpetua em função da modelagem dos corpos oprimidos à imagem e semelhança da ideologia patriarcal. No trecho “Tenho a impressão de que dentro de mim alguma coisa nova se estava processando. Fervia em minha consciência uma espécie de revolta contra a dominação de Ramiro” (p. 43), Raquel assume uma postura contestadora, revelando uma visão ampla do

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papel social e cultural da mulher em um contexto em que predomina a ideia da superioridade masculina, presente no discurso de personagens influentes como Ramiro e Teresa.

Como foi dito, Leonor, em seu processo de recriação de si mesma, revela os mesmos desejos de libertação da prima Raquel, o que a impulsiona a decidir o rumo de sua própria vida. Porém, embora almejasse seguir carreira na medicina, vê-se obrigada pelas circunstâncias a escolher uma das duas únicas alternativas que lhe foram propostas - ser professora ou fazer o curso comercial para cuidar dos negócios da família - optando pelo segundo. Em relação a isso, Leonor não esconde seu desapontamento: “curvei- me como todos nesta casa, e ninguém mais tocou no assunto. Era um caso resolvido” ( p. 47).

Já a matriarca Teresa se mostra inconformada por não conseguir desvendar os anseios de Leonor, como faz com a filha mais nova, Anita. Leonor, por sua vez, tem uma relação forte com seu pai, Oliveira, o que causa descontentamento em sua mãe, moldada pela ideologia patriarcal:

- Não sei a quem Leonor saiu [...] é diferente de todos nós, retraída, silenciosa, quase nunca se refere ao que deseja [...] na sua idade é preciso certa ligação com alguém do mesmo sexo, que possua mais experiência da vida e possa ensina-lhe o caminho mais acertado nos momentos difíceis (p. 38)

Em contrapartida, Leonor encontra em Raquel a esperança de fugir das garras do opressor, numa sociedade na qual o “poder decisório é, geralmente, regulado pela tradição ou depende do arbítrio do senhor” (CARDOSO, 2009). O mesmo se dá com a protagonista, que encontra em Leonor um porto seguro para o amadurecimento de suas aspirações: “Leonor e eu éramos aliadas, tínhamos a unir-nos a vontade de escapar da sombra do patriarca, o desejo de quebrar essa sequência de orgulho e submissão” (p. 70). Raquel também se espelha em sua avó Donana por sua coragem e determinação, enquanto Leonor não cansa de admirar sua professora D. Gertrudes que, como confidencia à narradora, “ensinou-me muitas coisas entre elas o direito que tenho a ser dona de minha vida” (p. 50), estabelecendo-se entre elas uma forte amizade, alimentada pelo seu desejo de evolução:

As criaturas andam às cegas, levadas pelas outras no escuro, até o momento em que se rebelam. A revolta é como uma luz que de repente se acendesse nas trevas. Quem vê essa chama enxerga o caminho, não precisa mais de guias (PAIM, 1950, p. 50).

A fala de D. Gertrudes revela o pensamento transgressor da mulher cansada dos padrões estabelecidos pela sociedade. Esta vê nos jovens a esperança para recomeçar com

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a “certeza de que se pode esperar tudo de quem olha pra frente, de quem caminha com algum objetivo” (p. 90), a despeito das normas preestabelecidas que aprisionam os sujeitos sociais.

Outro fato relevante se configura quando as jovens Leonor e Raquel são surpreendidas pelo amor conjugal. Cúmplices, elas encorajam uma a outra no sentido da realização do desejo amoroso, que envolve, respectivamente, Carlos e Oliveira. O amor entra na narrativa como um meio de fuga das condições opressivas que as envolvem, abrindo caminho à almejada liberdade. A esse respeito, confessa a narradora protagonista: “Se Oliveira não tivesse sofrido, sido espezinhado e descido muito no conceito de todos, talvez meu interesse por ele nunca tivesse despertado. Aceitava-o como ele era e não levava em minha aproximação o desejo de julgar e condenar” (p. 198).

Como se observa, Raquel, assim como Leonor, vive uma luta diária em busca de liberdade e independência. “Seus sonhos vão além de se libertar do domínio do avô, já que incluem também liberar seu pai e ajudar tantas pessoas que vivem na sombra de Ramiro, denominado por ela um Senhor Feudal” (ALMEIDA, 2008), um desejo que se multiplica e ultrapassa as amarras do patriarca. Alina dá voz a essas personagens capazes de romper e desestruturar o modelo patriarcal incrustado no ambiente rural nordestino.

Referências

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