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Dom quixote: a caverna, o castelo e o ego

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Academic year: 2021

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Nadja Karoliny Lucas de Jesus Almeida1

Acredito que Cervantes realiza o milagre de unir a consciência infinita à ordem do lúdico. A escolha do capítulo da descida à caverna de Montesinos, da obra Dom Quixote de Miguel de Cervantes foi feita pelo encantamento que tive diante do maravilhoso apresentado nesse capítulo, pela relação realidade e sonho, real e imaginário, lucidez e loucura, id, ego e superego.

A apresentação desse ensaio decorrerá de minhas impressões sobre a caverna, e mais, sobre as reações de Dom Quixote ao falar dela. Passando, claro, por fundamentos teóricos que vão do estudo da estória romanesca, a um passeio sobre o maravilhoso até a psicanálise.

A estória romanesca é, segundo o crítico Northrop Frye em sua obra Anatomia da Crítica (1957, p.185), de todas as formas literárias, a mais próxima do sonho que realiza o desejo, e por essa razão, desempenha, socialmente, um papel curiosamente paradoxal. Em todas as idades, a classe social ou intelectual dominante tende a projetar seus ideais em alguma forma de estória romanesca na qual os virtuosos heróis e as belas heroínas representam os ideais, e os vilões as ameaças à supremacia daqueles. Esse é o caráter geral das estórias romanescas sobre aventuras de cavalaria na Idade Média.

      

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A forma perfeita da estória romanesca é claramente a procura bem sucedida, e, uma forma assim completa tem três estágios principais: o estágio da jornada perigosa e das aventuras menores preliminares; a luta crucial, comumente algum tipo de batalha na qual o herói ou seu adversário ou ambos devem morrer; e a exaltação do herói. Podemos chamar esses três estágios respectivamente, usando termos gregos, o agon ou confllito, o páthos ou luta de morte, e a anagnórisis ou recognição, reconhecimento do herói que provou claramente ser um herói, mesmo se não sobrevive ao conflito.

Assim, a estória romanesca exprime mais a passagem da luta, por intermédio de um ponto de morte ritual, do que cena do reconhecimento, como notamos na comédia, por exemplo. Uma estória trina repete-se em muitos traços na estória romanesca, mostra-se mais diretamente no ritmo de três dias da morte, desaparecimento e ressurreição que se encontra no mito de Átis e de alguns outros deuses que morrem, este ritmo de três dias (por exemplo) foi incorporado em nossa Páscoa.

No capítulo 23, da descida à caverna de Montesinos, na obra Dom Quixote (1998) do escritor espanhol Miguel de Cervantes, o herói Dom Quixote é reconhecido por Montesinos (reconhecimento do herói):

Aquele Dom Quixote de La Mancha, digo, que de novo e com vantagens maiores que nos séculos passados ressuscitou nos presentes a já olvidada cavalaria andante; e por seu mérito e favor bem se poderia dar fôssemos nós desencantados, pois as grandes

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façanhas para os grandes homens estão reservadas. (Dom Quixote, vol.2, p.204) Ainda relacionada à estória romanesca do ritual de morte e ressurreição, está o fato de Dom Quixote, mesmo não tendo ficado mais de uma hora na caverna, para ele, passaram-se três dias e três noites. Mesmo dizendo ele ter dormido e acordado e assim visto as maravilhas todas, a impressão real que se tem é a de que tudo foi sonho de uma hora, ainda assim, Dom Quixote quer convencer a si, a Sancho e ao primo (seu guia externo), do fato ‘real, visto e vivido’ na caverna:

-- Quanto tempo faz que desci? Pergunta Dom Quixote.

-- Pouco mais de uma hora. Explicou Sancho. -- Isso não pode ser. Replicou Dom Quixote, - porque lá me anoiteceu e amanheceu e tornou a anoitecer e a amanhecer três vezes, de modo que, por minhas contas, três dias estive naquelas partes remotas e escondidas à nossa vista.

-- Deve meu amo dizer a verdade – disse Sancho – porque, como todas as coisas que lhe sucederam foram de encantamento, talvez o que a nós nos parece uma hora, lá deve parecer três dias com suas noites. (Dom Quixote, vol.2, p. 206)

O crítico Harold Bloom em O Cânone Ocidental (1995, p.86) diz que, quando Dom Quixote agonizante se arrepende de

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sua loucura heróica, retorna à identidade original de Alonso Quijano o Bom, e, “agradece à mercê de Deus sua conversão à pia sanidade”, todos os leitores se juntam a Sancho no protesto: “_ Não morra!... Aceite meu conselho e viva muitos anos...talvez encontremos a senhora Dulcinéia atrás de alguma sebe, desencantada e tão bela quanto uma pintura.”. Mas, Dom Quixote morre metafisicamente antes que Alonso Quijano o Bom, morra literalmente.

Bloom (1995) reitera que, os modos de loucura de Dom Quixote dão à personagem e ao autor, uma espécie de licença de bobo. Ao que diz Unamuno (apud Bloom,1995): “Grandiosa era a loucura de Dom Quixote e grandiosa porque grandiosa era a raiz de onde brotava: o inextinguível anseio de sobreviver, fonte das mais extravagantes loucuras, e também dos mais heróicos atos.” Na obra Os cem autores mais criativos da história da literatura (2003) do crítico Harold Bloom, encontramos Unamuno (apud Bloom, 2003) que afirma que o nosso Dom Quixote era louco, mas apenas no ponto de vista cristão de Alonso Quixano, de quem Quixote ressuscitou em carne e osso, e a quem retorna na hora da morte:

Grande era a loucura de Dom Quixote, e era grande porque a raiz de onde germinou era grande: o desejo insaciável de sobreviver, fonte das fantasias mais extravagantes, bem como dos atos mais heróicos. Os mais notáveis benfeitores da pátria e da humanidade são os que sonham com a fama e a posteridade.

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A loucura do Dom é uma recusa a aceitar o que Freud chamava de “teste da realidade”, ou princípio da realidade. Quando Dom Quixote faz as pazes com a necessidade de morrer, morre logo, retomando assim, a um cristianismo concebido como o culto da morte. Há nele, uma exaltação contínua da supostamente impossível busca do sonho. Unamuno (apud BLOOM, 2003) diz:

Creio ser um equívoco, ao se falar do culto espanhol à morte , afirmar que não amamos a vida porque a consideramos por demais severa conosco, ao dizer que o espanhol jamais sentiu forte ligação com a vida. Ao contrário, creio que o espanhol tem com a vida uma grande ligação, precisamente porque a vida é tão severa com ele, e dessa intensa ligação com a vida, nasce o que chamamos de culto à morte.

É o que o psicanalista Sigmund Freud, e adapto aqui, chamava de “pulsão de morte que pulsiona a vida”.

Bloom (1995, p.132) diz que a relação de amor, freqüentemente irascível, entre o Quixote e Sancho é a grandeza do livro, mais ainda que o prazer da representação das realidades naturais e sociais. O que une o Dom e seu escudeiro é tanto sua participação mútua no que se chamou de a “ordem do jogo” quanto sua igualmente mútua, embora um tanto arrufada, afeição um pelo outro. Essa passagem pode ser exemplificada com falas de Sancho Pança e Dom Quixote no capítulo 23, aqui analisado:

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-- Em má conjuntura, em pior estação e em aziago dia, desceu vosmecê, meu caro patrão, ao outro mundo e em mau lugar se encontrou com o senhor Montesinos, que assim no-lo devolveu. Bem estava vosmecê cá em cima, com seu juízo perfeito, tal como Deus lho havia dado, falando sentenças e dando conselhos a cada passo, e não como agora, contando os maiores disparates que imaginar se podem. (1998, p.208)

-- Por me quereres bem, Sancho, falas dessa maneira - disse Dom Quixote. E como não estás experimentado nas coisas do mundo, todas as coisas que tem algo de dificuldade te parecem impossíveis. Correrá o tempo, entretanto, como já antes disse, e irei contar-te algumas das coisas que lá embaixo vi, as quais farão com que acredites nas que aqui contei, cuja verdade não admite réplica nem disputa. (1998. p.210)

Oculta nesse diálogo, está a ligação entre os dois, que por baixo da superfície gozam da intimidade da igualdade, adia-se a questão de qual é a figura mais original, observando que a figura combinada que eles constituem juntos é mais original que qualquer um dos dois sozinhos.

Bloom (1995, p.133) acrescenta que o Dom eleva-se a um lugar e tempos ideais, e é fiel à sua própria liberdade, ao desinteresse e isolamento dessa liberdade, e aos seus limites, até

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que finalmente acaba derrotado, abandona o jogo, retorna à “sanidade cristã”, e assim morre. Unamuno (apud Bloom, 1995) diz do Quixote que ele saiu em busca de sua verdadeira pátria e a encontrou no exílio, e nós acrescentamos: no seu próprio exílio interior. Cavalheiro pobre de La mancha, Alonso tem só um vício: é um leitor obsessivo da literatura de época, que expulsa a realidade de sua mente. Cervantes descreve Alonso como um simples caso de vida não vivida, ele nos diz apenas que seu herói enlouqueceu e não nos dá quaisquer detalhes clínicos.

Mas, como o Dom, Sancho busca um novo ego e mudam ouvindo um ao outro. O egoísmo cervantino, exaltado por Unamuno, é sempre limitado pelo livre relacionamento entre Sancho e o Dom Quixote, que concedem um ao outro, espaço para jogar. Mesmo num exílio interior, Dom Quixote não carrega uma atmosfera de solidão interior, ele é salvo por Sancho e Sancho por ele. Bloom diz que Sancho às vezes hesita à beira de abandonar o relacionamento, mas não pode, em parte está fascinado, mas no fim é mantido por amor, e também o é o Dom Quixote, o amor talvez não possa distinguir-se da ordem do jogo, mas é assim que deve ser. Entretanto, cavaleiro e escudeiro igualmente têm de manter uma nova autoconsciência, e às vezes parecem tomar isso como um fardo implícito.

Antes de passar para a análise de fato da descida à caverna de Montesinos e antes do “passeio” pelo maravilhoso, é interessante assinalar ainda o que Bloom (1995) diz, que o riso contínuo do livro é freqüentemente melancólico, até mesmo doloroso, e que Dom Quixote é tanto um baluarte de afeição humana quanto um homem da dor, e diz ainda que Cervantes parece levar muito a sério e também muito ironicamente, o jogo do mundo e o contrajogo de Dom Quixote e Sancho Pança. O

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crítico acrescenta que os dois heróis de Cervantes são simplesmente as maiores personagens literárias de todo o Cânone Ocidental.

A descida de Dom Quixote à caverna é voluntária, ele é guiado por um primo de um amigo e tem também a companhia de seu fiel escudeiro Sancho Pança. Entretanto, o Dom desce e/ou entra à caverna sozinho, algo bem representativo, pois, desde já incita uma descida/experiência íntima e pessoal, na qual só ele vê e sabe e sente.

Considero a descida à caverna, o momento em que o id, o superego e o ego de Dom Quixote – Alonso Quijano se encontram, se deparam com a probabilidade de um mundo ora real, ora imaginário. Mas, acreditava Dom Quixote no que via? E o tempo, era sonho? Por que narrar para seus companheiros algo tão fabulosamente íntimo? Para que também ele acreditasse em sua própria fala? Para dar força de realidade à sua fala?

Bloom (2003, p.58) também pergunta:

Será que o notável cavaleiro Dom Quixote acredita em seu relato fabuloso sobre a descida à caverna de Montesinos? (...) em meio às maravilhas surrealistas da Caverna, o Cavaleiro pode ser ele mesmo: sagaz, bondoso, gentil, galante e não muito insano. Não temos como saber se ele acredita, literalmente nas histórias que conta, porque, à semelhança de seu criador, Cervantes, Quixote é um gênio da narrativa, tão metafísico quanto romântico.

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Acredito ser essa descida uma ascensão para a verdade e o auto-conhecimento. Consideramos a caverna o subconsciente, o id de Dom Quixote, o castelo de cristal seu superego e ele mesmo, como pessoa que decide descer e desce, a representação de seu ego.

De acordo com o estudioso Bruno Bettelheim em sua obra A psicanálise dos Contos de Fadas (1980, p.65):

(...) por um longo tempo na história da humanidade, o indivíduo usou projeções emocionais – tais como os deuses - nascidas de suas esperanças e ansiedades imaturas para explicar o homem, sua sociedade e o universo; essas explicações davam-lhe um sentimento de segurança. Depois, através do próprio progresso social científico e tecnológico, o homem libertou-se do medo de sua própria existência.(...) a partir daí, as projeções “infantis” do homem se dissolveram e explicações mais racionais tomaram seu lugar. Este processo, contudo, não está de forma alguma isento de fantasias. Nos períodos de tensão e escassez, o homem busca conforto novamente na noção “infantil” de que ele e seu lugar de moradia são o centro do universo. Traduzindo em termos de comportamento humano,quanto mais seguro um homem está dentro de si mesmo, tanto mais pode-se permitir aceitar

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uma explicação que diz que seu mundo é de uma significação mínima no cosmos.

Mas acontece que, e isso também afirma Bettelheim (1980), na criança ou no adulto, o inconsciente é um determinante poderoso do comportamento, quando o inconsciente está reprimido e nega-se a entrada de seu conteúdo no consciente. A mente consciente será sobrepujada pelo inconsciente ou será forçada a manter um controle rígido e compulsivo sobre ele (o in) e sua personalidade poderá ficar mutilada. Mas, como acontece com Dom Quixote, quando o material inconsciente tem permissão de vir à tona e ser trabalhado na imaginação, seus danos potenciais ficam muito reduzidos, tanto para a própria pessoa, quanto para as outras, e algumas de suas formas podem, então, se colocar a serviço de propósitos positivos. Diz Dom Quixote a um padre: “Acertei contas relativas e ofensas e insultos, corrigi injustiças, puni arrogâncias, derrotei gigantes e pisoteei monstros.”

Bettelheim (1980, p.74-75) diz que o sonho é a expressão mais pessoal do inconsciente e das experiências de uma pessoa específica. Diz também que dificilmente um sonho que vai além das mais diretas fantasias de realização de desejos permite realmente a compreensão de seu significado numa primeira lembrança. Eles que são um resultado de processos internos complexos necessitam de um trituramento repetido antes de se chegar à compreensão do conteúdo que lhe é latente (...) com relativa freqüência, para que um sonho realize seu significado profundo é preciso apelar para outros materiais imaginativos que enriqueçam a compreensão.

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Como na caverna e no castelo de cristal dentro da caverna, ao que nos parece, está o superego dentro do id, se se é possível, Dom Quixote esteve também cara a cara com seu próprio eu (ego) ao encarar sua bela e nobre Dulcinéia como ela realmente é: moça simples e não uma nobre. E, ao narrar os fatos a Sancho e ao primo, ele disse ter dormido e acordado lá na caverna, acordado acreditamos, para enfatizar que tudo foi fato real para si e para os outros. Por isso também, ele diz a Sancho, que as verdades por ele contadas não admitem réplica nem disputa, mostram que, um sonho cautelosamente estudado, pode separar o que é real do que é apenas imaginação. E não era bem isso o que o Dom queria.

Segundo Bettelheim (1980, p.99) as naturezas díspares do id, ego e superego, mostram o homem com naturezas também díspares e que, muitas vezes, quando não temos sucesso em adquirir ou manter uma integração interna, esses aspectos da nossa psique lutam um contra o outro. Mas, até conseguirmos uma integração total da personalidade, nosso id (nossas pressões instintivas, nossa natureza animal) vive em paz incômoda com nosso ego (nossa racionalidade).

Bloom (1995) afirma que o Quixote vive pela fé, sabendo ao mesmo tempo como mostram seus surtos de lucidez, que acredita numa ficção, e também – pelo menos em lampejos – (como acontece na caverna, acrescento) ele próprio é apenas uma ficção. Dulcinéia é uma ficção suprema, e Dom Quixote, leitor obcecado, um poeta na ação que criou um mito grandioso.

Essa história conta como é diferente a vida quando encarada a partir de duas perspectivas diferentes: a do ego e a do id, e acrescento a do superego. Uma forma de interpretação é encarar essas existências opostas como as visões diurnas e as

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noturnas da vida – como despertar e sonhar, como realidade e fantasia, ou como os domínios conscientes e inconscientes do nosso ser. A menos que alguma medida tenha-se efetuado, em nossa mente, diz Bettelheim (1980), uma separação de nossas tendências interiores complexas, não chegamos a compreender as fontes de confusão a nosso próprio respeito, sobre como somos dilacerados por sentimentos opostos, e nossa necessidade de integrá-los. O fato é que o id é uma parte tão integral de nossa personalidade quanto o ego.

Ainda sobre os fatos ocorridos dentro da caverna e do castelo de cristal, que encaro como maravilhoso, emprego aqui, o estudioso Segismundo Spina em sua obra Introdução à poética clássica (1995) que diz que as personificações do abstrato através dos recursos da alegoria, do mito e da prosopopéia, as manifestações visionárias e os estados alucinatórios, enfim, tudo o que é inexplicável pelas leis da física, pertence ao reino do maravilhoso. O autor afirma ainda que, a problemática do maravilhoso como princípio, surge desde o momento em que partimos da conceituação do poético como imitação da natureza segundo as leis da verossimilhança ou da necessidade.

E diz mais: o alógico, o imprevisto, o impossível, facilmente podem tornar-se inverossímeis. Porém, como se trata de recursos indispensáveis para o deleite e para a manutenção do interesse, o poeta, (considero-o aqui o Dom Quixote) deve esforçar-se por tornar compatíveis o maravilhoso e a verossimilhança; do contrário, ele poderia, pelo absurdo, incidir no riso.

O que ocorre é que, a linha tênue entre maravilhoso e verossimilhança, realidade e riso em Dom Quixote é quase

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imperceptível, por ser tanto tênue quanto respeitada pelo Sancho Pança, por exemplo. Até porque, o próprio Quixote diz: “Sei quem sou, e quem posso me tornar, se assim o decidir”.

Bloom (2003, p.66) afirma que o capítulo da descida à caverna de Montesinos é talvez, o capítulo que cause maior perplexidade nesse extenso romance de Cervantes, e que o episódio narrado é bastante representativo do enigma que cerca a consciência e a busca do Cavaleiro, ao longo de toda a visão representada pelo autor.

Dotada de reputação lendária, afirma Bloom, a caverna de Montesinos atrai Dom Quixote com a perspectiva de alguma aventura que lhe seja digna. O episódio permite ao Cavaleiro parodiar as descidas épicas de Ulisses e Enéas aos infernos. Ainda que o Dom seja ferrenho contador de verdades, não fica muito claro se ele acredita em seu próprio relato da jornada ao mundo inferior, e aqui acrescento que isso ocorre porque ele lida com três partes de seu próprio ser: id, ego e superego. Vale lembrar que ele está ciente de que a incomparável Dulcinéia é invenção sua, um poema, por assim dizer, e, supostamente ele sabe que o relato da caverna de Montesinos é mais um fruto de sua sublime imaginação.

O próprio Cervantes (1998), no capítulo 24, após o capítulo da descida, diz por meio de seu narrador Hamete: “Na desta cova, porém, não acho entrada alguma para tê-la por verdadeira, por ir tão fora dos termos razoáveis. Pensar que Dom Quixote mentisse, sendo ele o mais verdadeiro fidalgo e o mais nobre cavaleiro de seu tempo não é possível, pois mentira não diria ele, ainda que o cravassem setas.”

A descida é, ao meu ver, um rito de iniciação do próprio auto-conhecimento do Dom e um rito de passagem para uma

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nova verdade sua, com significados profundos. Todo homem deseja experimentar certas situações perigosas, confrontar-se com provas excepcionais, entrar à sua maneira no Outro Mundo, e ele experimenta tudo isso, no nível de sua vida imaginativa, ouvindo ou lendo histórias.

Os psicanalistas freudianos se preocupam em mostrar que tipo de material reprimido ou de outro modo inconsciente está subjacente nos mitos, e como estes se relacionam aos sonhos e devaneios. Já os psicanalistas jungianos frisam, em acréscimo, que as figuras e acontecimentos dessas estórias estão de acordo com e também representam fenômenos psicológicos arquetípicos, e simbolicamente sugerem a necessidade de ganhar um estado mais elevado de autoconfiança, uma renovação interna que é conseguida à medida que as forças pessoais e racionais inconscientes tornam-se disponíveis para a pessoa.

De forma simples, o sentimento dominante que um mito transmite é: isso é absolutamente singular, não poderia acontecer com nenhuma outra pessoa, os acontecimentos são grandiosos, inspiram admiração e possivelmente não poderiam acontecer a um mortal comum. Os mitos tipicamente envolvem solicitações de superego em conflito com uma ação motivada pelo id, e com os desejos autopreservadores do ego. Por mais arduamente que tentemos, não podemos viver integralmente de acordo com o que o superego parece solicitar-nos. Quanto mais tentamos agradá-lo, mais implacáveis são suas solicitações. Mesmo quando o herói não sabe que cedeu aos aguilhões de seu id, ainda assim, ele sofre por isso.

O estudioso e crítico Ernst Cassirer em Linguagem e mito (2003, p.69) afirma que para a concepção mítica

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fundamental, a individualidade humana não é algo simplesmente fixo e imutável, mas algo que, a cada passo, em uma nova fase decisiva da vida, ganha um outro ser, um outro eu. Essa transformação também se exprime, antes de tudo, na troca de nome (e acrescento: Alonso Quijano o Bom/Dom Quixote de La Mancha, o incrível Cavaleiro).

De acordo com Cassirer (2003, p.78-79):

A partir dessa crença no poder físico-mágico encerrado na palavra, a evolução espiritual da humanidade teve que percorrer longo caminho, até chegar à consciência de seu poder espiritual. De fato, a palavra, a linguagem, é que realmente desvenda ao homem aquele mundo que está mais próximo dele que o próprio ser físico dos objetos e que afeta mais diretamente sua felicidade ou sua desgraça. Somente ela torna possível a permanência e a vida do homem na comunidade; e nela, na sociedade, na relação com um “tu”, também assume forma determinada o seu próprio eu, sua subjetividade. Mas ainda aqui, a função criativa, ao se realizar, não é apreendida como tal; toda a energia do atuar espiritual é transferida ao produto desta atividade, fica como que amarrada a este e só reverbera por ele como no reflexo. Também aqui, como no caso das ferramentas, toda espontaneidade é, pois, interpretada como receptividade, toda

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criação como ser e tudo o que é produto da subjetividade como substancialidade. Todavia, justamente essa hipóstase mítica da Palavra tem significação decisiva no desenvolvimento do espírito humano, pois importa na primeira forma pela qual se torna apreensível como tal o poder espiritual inerente à palavra; a palavra tem que ser concebida, no sentido mítico, como ser substancial e como força substancial, antes que se possa considerá-la no sentido ideacional, como órgão do espírito, como função fundamental da construção e da articulação da realidade espiritual.

Tudo isso cabe, acreditamos, ao poder narrativo do “contador de história” que é o Dom Quixote e, claro, o Cervantes: a memória, a imaginação e a vontade. A fusão de memória e imaginação triunfam até o momento da morte metafísica do Quixote, e vai além: para quem com ele conviveu, viu e ouviu, e para os leitores que com ele e como ele, compartilharam e “viajaram”. É como se o Dom Quixote fosse da mesma matéria que compõe os sonhos, alguém que consegue a expansão da sua personalidade no espaço e no tempo.

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REFERÊNCIAS

BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. Os Livros e a Escola do Tempo. Trad. Marcos Santarrita.Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. ______. Os Cem Autores mais Criativos da História da Literatura. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito. Trad. J.Guinsburg e Miriam Schnaiderman. São Paulo. Ed. Perspectiva, 2003. (Série Debates, Filosofia).

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote (vol 2). Trad. Almir de Andrade e Milton Amado. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998.

FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica (quatro ensaios). Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1957. SPINA, Segismundo. Introdução à Poética Clássica. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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