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XV Congresso Brasileiro de Sociologia. 26 a 29 de julho de Curitiba, PR. Grupo de Trabalho Memória e Sociedade

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XV Congresso Brasileiro de Sociologia 26 a 29 de julho de 2011 - Curitiba, PR Grupo de Trabalho “Memória e Sociedade”

DITADURA, MEMÓRIA E SOCIEDADE: UM ESTUDO A PARTIR DE NARRATIVAS FEMININAS

Autora: Danielle Tega

Doutoranda em Sociologia – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas / Unicamp Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

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1.Traumas da história

A memória de um período traumático está sempre em disputa nos momentos a ele posteriores. Este artigo visa ser uma contribuição no debate em torno da memória referente aos anos da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), dando destaque às narrativas femininas em torno da resistência política ao regime repressivo. Tem-se em mente que a manifestação da memória é formada por situações inquietantes quando vista a partir dos estudos de gênero: por um lado, sabe-se que, de um modo geral, há grande dificuldade na narração de fatos ocorridos em situações marcadas pelo abuso da violência; por outro, deve-se levar em consideração o silêncio cultural ao qual as mulheres foram submetidas durante séculos.

Trabalhar com a memória não significa apenas considerá-la como um objeto de estudo, mas se trata de uma tarefa ética quando a preocupação está relacionada às percepções de utopias não realizadas no passado, que ainda estão pendentes de emancipação. Desse modo, não se trata apenas da memória construída sobre os acontecimentos de uma sociedade, mas da disputa em torno desta construção.

Ao refletirmos sobre a ditadura militar no Brasil (1964-1985), caracterizada pela censura e repressão, pela violência desmedida imposta pelo Estado, pelas mortes e pelos “desaparecimentos”, não há dúvidas de que se trata de um evento traumático, no sentido em que o termo é utilizado por Luiz Felipe de Alencastro (2006) e Márcio Seligmann-Silva (2003). Este, tendo como foco a literatura do trauma e baseando-se nos escritos de Walter Benjamin e Sigmund Freud, afirma que a história do trauma é a história de um choque violento e de um desencontro com o real: a experiência traumática é “aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre”, marcada pela “incapacidade de simbolizar o choque” (idem, pp. 52-53). Luiz Felipe de Alencastro completa que há, na sociedade brasileira, “traumas históricos fundamentais que passam pelo processo alternado de esquecimento e rememoração para constituir a nossa contemporaneidade”. Em longo prazo, cita o drama do tráfico negreiro e do escravismo; em médio e curto prazos, o drama da ditadura militar.

Essas considerações levam a crer que os períodos posteriores ao trauma são momentos que apresentam dificuldades em exercitar a memória, principalmente

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em sociedades que assumem convicções opostas aos preceitos do estado de exceção, como a brasileira – e que as memórias se constroem, portanto, em cenários de confronto e lutas entre os sujeitos e suas diversas narrativas contrastantes.1

Diante desse quadro, os estudos sobre o trabalho da(s) memória(s) e seus conflitos são importantes ferramentas para o entendimento do modo pelo qual o passado é interpretado, ou melhor, articulado. A incorporação do pensamento feminista2 enriquece esse tipo de estudo, já que este, também preocupado com as partes silenciadas da memória social, denuncia o caráter sexista da historiografia burguesa. Ao mesmo tempo em que expõe a invisibilidade da mulher na história oficial, a crítica feminista questiona de que modo a desigualdade entre homens e mulheres se estabeleceu e quais as formas de se eliminar essa assimetria. Sob esse aspecto, pode-se dizer que o feminismo atua como uma contramemória: nas margens dos discursos hegemônicos, existem termos para uma construção diferente das relações de gênero. Para Margareth Rago (1995, p. 15),

Suprimidas da História, [as mulheres] foram alocadas na figura da passividade, do silêncio, da sombra na esfera desvalorizada do privado. O feminismo aponta para a crítica da grande narrativa da História, mostrando as malhas de poder que sustentam [tais] redes discursivas. (...) É claro que se as mulheres foram um dos grandes setores excluídos da História, sabemos que não se trata apenas de recuperá-las em todos os grandes feitos, inscrevendo-as disciplinadamente nos espaços deixados em branco na Grande Narrativa Histórica, masculina e branca. (P) Contudo, também sabemos que não é suficiente refazer todo o percurso já jeito, desta vez no feminino.

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Sobre essas questões, são esclarecedoras as palavras de Alejandra Oberti e Roberto Pittaluga (2006, p. 30): “En el campo conflictual de las memorias, éstas son expresión de enfrentamientos sociales, políticos y/o culturales, pero en el mismo movimiento establecen ciertas determinaciones, ejercen presiones y fijan límites; tanto por medio de la selección de lo que se recuerda y lo que no se recuerda como por los modos con los que el pasado es presentado. Podríamos decir que los trabajos de memoria están determinados por sus propios contextos de producción y a la vez influyen modificando, al menos parcialmente, esos mismos contextos.”

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Neste artigo, optou-se por usar tanto “pensamento/crítica feminista” como “estudos de gênero” com o objetivo de chamar a atenção para a conexão política entre ambos. Esses apontamentos já foram trabalhados ao longo dos anos com competência por outras estudiosas do tema, como Lia Zanotta Machado (1997), Mariza Corrêa (2001) e Lucila Scavone (2008). Cabe ressaltar, contudo, que “isso não implica em negar a existência de pesquisadores não envolvidos com a militância hoje, mas implica sim em enfatizar a impossibilidade da existência de estudos de gênero que não tenham uma dimensão política, parte de sua história” (CORRÊA, 2001, p. 25).

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Como pode ser observado nas palavras acima, o feminismo protesta por outro tipo de história e, entendido numa perspectiva benjaminiana3, enfatiza a importância de saber sobre qual passado se fala, qual passado deve ser lembrado e articulado, demonstrando a necessidade de se pensar o presente com perspectiva futura.

O pensamento feminista busca recuperar a presença das mulheres na história ao observar suas condições de luta. Portanto, uma maneira de pensar a dimensão de gênero na memória parte do enfoque tradicional no feminismo de fazer visível o invisível, dando voz àquelas que foram, por muito tempo, caladas. Mas o trabalho de memória feito pelas feministas, mais do que dar visibilidade às mulheres, procurou entender a situação destas como produto da história e da sociedade, denunciando as marcas autoritárias e hierárquicas do processo histórico das relações de gênero. Nesse sentido, compreende o presente como histórico e apto a práxis transformadora: como movimento emancipatório, o feminismo procura superar as formas de organização tradicionais em busca da libertação das mulheres.4

Nesse sentido, cabe questionar por uma perspectiva de gênero o modo pelo qual a memória da resistência à ditadura militar no Brasil é reconstruída. Está certo que tal reconstrução pode ocorrer em diferentes meios, como nas matérias jornalísticas, nos tratados sociológicos, nas diferentes formas de arte. Ao escolhermos como objeto de estudo livros escritos por ex-militantes de grupos clandestinos, sabemos que a problemática se amplia: não são poucos os obstáculos presentes ao se pensar na narração do acontecido, pois, tratando-se de uma história do trauma, está em pauta a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de revestir o vivido com o verbal. O inimaginável de uma situação de extrema violência desconstrói o mecanismo da linguagem, que, paradoxalmente, só pode enfrentar o vivido com a própria imaginação: “por assim dizer, só com a arte a intraduzibilidade

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Nos textos de Walter Benjamin (1985; 2004), encontramos um apelo para a recuperação das idéias daqueles que foram dominados, um agravo pelas versões alternativas à história dominante e oficial. Esse embate entre possíveis versões a serem resgatadas encontra-se conjuntamente com suas reflexões sobre as tramas da memória e do esquecimento. O autor contrapõe-se, assim, a uma historiografia tradicional que acredita na capacidade de se restituir o passado “por inteiro”, e reitera a necessidade de se escrever a história dos vencidos – o que exige a busca de uma memória não oficial, uma interpretação capaz de “escovar a história a contrapelo”.

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Até esse ponto, utilizei o termo mulheres para enfatizá-las enquanto sujeitos políticos. Porém, outros determinantes sociais definem suas vidas enquanto indivíduos: as classes sociais e as etnias inscrevem-se em cada mulher particular, gerando outras formas de opressão e conflitos de interesses.

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pode ser desafiada – mas nunca totalmente submetida” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 47). Por esse motivo paradoxal, e apesar das dificuldades que ele impõe, é na arte e na sua potência para a realização do trabalho de memória que pautaremos nossas análises.

2. Narrativas da militância, narrativas de gênero

A manifestação da memória da resistência à ditadura civil-militar brasileira é formada por situações inquietantes quando vista a partir dos estudos de gênero. Após a segunda metade da década de 70, a chamada abertura lenta, segura e gradual, mesmo que de forma conturbada e com a permanência da repressão e, em muitos casos, da censura, permitiu uma esfera pública na qual narrativas e relatos, até então contidos, pudessem ser incorporados. Assim, no final dos anos 1970 e no início dos anos 1980, ocorre o chamado boom de livros autobiográficos, como são os casos de Em Câmera Lenta, de Renato Tapajós; O que é isso, Companheiro?, de Fernando Gabeira; e Os Carbonários, de Alfredo Sirkis.5 Além destes títulos, diversos outros são publicados nestes anos e nos seguintes. Em levantamento bibliográfico realizado por Marcelo Ridenti (2001, pp. 257-294), constata-se a presença de mais de 230 livros ou teses que, publicados até meados de 2001, abordam direta ou indiretamente a luta das esquerdas armadas contra a ditadura no Brasil nas décadas de 60 e 70. Mesmo que não se pretenda completo, esse quadro traz informações importantes: cerca de 15% dos títulos citados são autobiográficos ou baseados em memórias do período de resistência; dentre estes, nenhum escrito por mulher. Essa situação leva a crer que há uma especificidade de gênero nos relatos sobre a ditadura no Brasil, pois, mesmo nas contramemórias, há ainda um domínio da fala e da escrita masculinas.

Essa escassez de narrativas femininas sobre os acontecimentos traumáticos contrasta com a importância da participação política das mulheres na resistência à ditadura civil-militar.

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Para uma importante discussão a respeito dos alcances, limites, significados político, social e cultural da obra desses três autores e também de Reynaldo Guarani, destaco o livro Os escritores da guerrilha urbana: literatura de testemunho, ambivalência e transição política (São Paulo: Annablume/FAPESP, 2008), fruto da dissertação de mestrado de Mário Augusto Medeiros da Silva.

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A partir de dados coletados no projeto Brasil: Nunca Mais, Marcelo Ridenti faz uma apresentação do perfil das organizações de esquerda dos anos 60 e 70, observando que eram compostas por ampla maioria masculina. Do total de processados, apenas 16% eram mulheres. Desse número, 73% eram mulheres das camadas médias intelectualizadas, o que inclui estudantes, professoras e profissionais com formação superior. Considerando apenas as organizações armadas, verifica-se que 18% dos participantes processados eram mulheres e, dentre estas, 75% eram das camadas médias intelectualizadas – número divergente ao do pouco envolvimento de mulheres em partidos políticos tradicionais, como o PCB, onde menos de 5% do total de processados eram mulheres (RIDENTI, 1993). Para Lucila Scavone, esse dado sugere que as mulheres “se identificavam com uma proposta de ação política radical, tanto do ponto de vista da militância como de suas vidas pessoais” (SCAVONE, 2010, pp. 732-752).

Embora o percentual de mulheres pareça pequeno mesmo nos grupos armados, alguns elementos devem ser levados em conta para que não seja feita uma análise anacrônica: deve-se lembrar que a norma, até os fins dos anos 60, era a não-participação das mulheres na política, exceto quando estas se manifestavam para reafirmar seus lugares de ‘mães-esposas-donas-de-casa’, como ocorreu com as mobilizações conservadoras femininas de apoio ao golpe na ocasião das Marchas da Família com Deus pela Liberdade. A participação das mulheres nas organizações de esquerda implicava, portanto, um rompimento aberto e radical com os valores e expectativas familiares em nome de uma causa social.

A mobilização feminina contra a ditadura civil-militar brasileira ocorreu também em situações paralelas à militância guerrilheira, como no Movimento Feminino pela Anistia (MFA) e nos grupos formados no exílio. As significativas presenças das mulheres na luta armada e nas situações de clandestinidade, tortura, morte e desaparecimentos de corpos, bem como nas diferentes atividades nas quais se envolviam, destoam com a carência de narrativas femininas sobre o período.

Não quero dizer, como isso, que não tenham sido realizados livros ou pesquisas sobre a participação política feminina. Certamente eles existem. Destaco o pioneiro Memória das Mulheres do Exílio, organizado por Albertina de Oliveira Costa (1980), realizado a partir do recolhimento de diversos depoimentos de exiladas na Europa. Há também dois livros resultados de trabalho de mestrado:

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Mulheres, Militância e Memória, de Elizabeth Ferreira Xavier (1996), e A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil, de Ana Maria Colling (1997). Outro livro com depoimentos diversos é Mulheres que foram à luta armada, do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, (1999). Sem contar Iara – reportagem biográfica, livro de Judith Patarra sobre a vida de Iara Iavelberg, militante da Polop e, depois, da VPR. Além desses títulos, diversos artigos foram publicados em revistas acadêmicas e coletâneas diversas. Mas o que quero registrar é a dificuldade em encontrar narrativas autobiográficas ou narrativas ficcionais baseadas nas memórias das mulheres que participaram da resistência à ditadura e escritas por elas – algo semelhante ao que Márcio Seligmann-Silva (2003) chama de literatura do testemunho, considerando a escrita como uma das possibilidades de elaboração do luto; ou a arte como um processo de rememoração.

Esse quadro começou a passar por pequenas alterações na última década, quando livros autobiográficos escritos por duas ex-militantes foram publicados: são as obras No corpo e na alma, de Derlei Catarina de Luca (2002), e 1968 – O tempo das escolhas, de Catarina Meloni (2009). Minha sugestão inicial era tecer breves considerações sobre esses dois livros. Contudo, dadas as particularidades de ambas as narrativas dentro do contexto aqui delineado, proponho enfocar, neste momento, o livro da catarinense Derlei para, a partir dele, levantar algumas questões que pretendo trabalhar posteriormente.

3. Pensar em terceira pessoa, escrever em primeira

Derlei Catarina de Luca nasceu em Içara, no estado de Santa Catarina, onde iniciou sua militância no grupo Ação Popular (AP). Seu livro é publicado em 2002, mas as anotações que levaram a ele foram redigidas nos períodos de clandestinidade e exílio.

A narradora do livro divide-se em duas, às vezes três. Uma conta as histórias da militância, da clandestinidade, da prisão, da tortura, do exílio. Como a heroína de um romance, mas um romance danificado, traumatizado, dolorido. São, contudo, histórias do passado contadas no tempo presente, como se colocasse o leitor/ouvinte no momento dos acontecimentos, no calor da hora, para testemunhar

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em sentido amplo.6 No primeiro capítulo, Clandestinidade, os parágrafos iniciais já indicam a escolha do tempo verbal dessa narradora. Apesar de iniciar no pretérito perfeito, as conjugações verbais no presente são as usadas para a narração da experiência militante:

13 de dezembro de 1968 foi minha primeira noite na clandestinidade. Estávamos no DCE – Diretório Central de Estudantes, na Rua Álvaro de Carvalho. No rádio ligado, começa a leitura do Ato Institucional nº 5. A voz grave do locutor está lendo, na íntegra, cada item. Começamos a recolher algumas coisas, queimamos material, panfletos, jornais, stêncil picado e rodado. (De LUCA, op. cit., p. 27)

Essa mesma narradora nos informa: “Sabemos que dessa vez é pra valer (P). Não sabemos exatamente como será. Somos idealistas como todos os jovens de 20 anos” (De LUCA, op. cit., p. 28). Assim se desenrola a história contada, vivenciada pela personagem/autora. Mas essa narradora não está sozinha: há uma segunda voz, uma voz que, no trabalho de rememoração da autora, prenuncia acontecimentos que ainda estariam por vir. As lembranças do passado são, assim, atravessadas por um futuro anterior – futuro em relação ao período dos fatos narrados, mas anterior ao momento de escrita do texto:

Pego meus diários: cadernos e cadernos. Começo a queimá-los. Valmir Martins se impacienta: “Mas, essa criatura ainda escreve diário?”. Limito-me a rir. Parece mentira, naquela agitação toda de 68, ter tempo para escrever diário e poesia. Não perdi a mania até hoje. Apesar dos desencontros da vida. Queimo-os e decididamente queimo parte de mim mesma. Ato que se tornará uma prática habitual no decorrer dos anos. Mas eu ainda não sabia. (De LUCA, op. cit., p. 28)

Essa outra possibilidade temporal, com pretéritos perfeitos e imperfeitos, ilustra a presença dessa segunda narradora que, tal qual o catador benjaminiano,7 recolhe os vestígios do texto, fazendo dessa coleta uma brecha para nos dar informações que ainda estavam para acontecer.

Há ainda uma terceira voz narrativa. Em diversos momentos, podemos observar que outro tipo de letra surge no texto, trazendo-nos informações

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Como explica Jeanne Marie Gagnebin (2006, p. 93), “testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e aceita que suas palavras revezem a história do outro”.

7

Inspiro-me no livro de Jeanne Marie Gagnebin (1982) intitulado Walter Benjamin: os cacos da história.

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documentadas, ou descrições mais detalhadas de certo lugar ou acontecimento. Ora documentos da organização à qual pertencia, ora documentos da repressão, ou ainda detalhes de alguma situação: não são apenas notas de rodapé, não estão nem estruturadas enquanto tais. A relação de forma e conteúdo do texto parece, assim, simbolizar desejo de memória: entrelaçando fragmentos e diferentes tempos, trabalhando com uma tríade narrativa, o texto pisa em seu próprio chão para não se contentar em fazer apenas uma descrição dos fatos acontecidos, mas, ao contrário, buscar uma articulação do passado ao presente.

A narração que aqui ocorre não é do tipo que procura preencher todas as lacunas, mas sim aquela que ressalta momentos importantes para a elaboração da própria experiência. A narradora tem consciência dos limites; em determinado trecho, diz: “Meio sem graça, não lembro a explicação dada” (De LUCA, op. cit., p. 152); em outro: “Não sei exatamente como as coisas se passaram” (De LUCA, op. cit., p. 230). Esses elementos inacabados, abertos, dialogam com a proposta benjaminiana da rememoração. Em seu ensaio sobre Proust, Walter Benjamin já afirmara que o autor francês “não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu”. É nesse mesmo sentido que o filósofo alemão acrescenta que:

um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. (BENJAMIN, 1996, p. 37)

É nesse sentido que, em determinado trecho, o tempo presente é o tempo da escrita: “Ainda tenho marcas da Operação Bandeirante. No corpo e na alma. Minhas pernas trazem a recordação do horror nas suas cicatrizes. A alma, o espanto por ter sobrevivido” (De LUCA, op. cit., p. 113).

Um dos momentos ressaltados no livro (e, aqui, duplamente ressaltado, agora pela escolha da autora deste artigo) diz respeito às relações de gênero na militância. A narradora diz:

Os homens vão para o campo. As mulheres para as fábricas nas cidades. (P) Como pela teoria revolucionária leninista, o operariado é a classe dirigente da revolução, brincamos com eles nos intervalos: ‘Neste caso, nós, mulheres, vamos estar junto da força dirigente’P Mas a estratégia é o cerco da cidade a partir do campo, segundo a teoria de Mao Tse Tung. Para lá

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são mandados os melhores quadros e militantes, separando noivos, namorados, casais. (De LUCA, op. cit., p. 113).

A seguinte frase, conhecida pelos combatentes do grupo, pode indicar o modo pelo qual o partido trabalhava as relações afetivas de seus membros: “A AP não tem casais de militantes. Tem militante individual.” Mas o que importa para minhas considerações é menos considerar tais informações como “dados”, e mais observar como a própria autora faz, a partir delas, suas interpretações e articulações. Para permanecermos no campo dos sentimentos, a narradora acredita que “se chorasse no aparelho, as companheiras prontamente fariam uma reunião para analisar minha debilidade ideológica” (De LUCA, op. cit., p. 69).

Ainda no presente, explica a posição dos militantes diante das ordens do partido: “Fazemos um esforço para pensar em terceira pessoa. Não é fácil, mas é necessário. E colocamos o amor à AP acima de nossos interesses pessoais” (De LUCA, op. cit., p. 36). Nesse sentido, mostra que, apesar das discordâncias com a direção, os diferentes quadros da militância também compartilhavam uma visão de que doar-se a esses ideais era algo imperativo. Contudo, nos parágrafos seguintes, agora usando o pretérito, a autora faz uma auto-crítica desse comportamento:

A AP separou dezenas de casais e namorados. (P) Essas separações afetivas, discutidas ‘politicamente’, foram uma das provas mais duras impostas pela direção aos militantes. Para contornar a tristeza, eu lia e fazia poesias, outros liam o livrinho vermelho de Mao Tse Tung. (De LUCA, op. cit., p. 36)

Trata-se de algo que, se concordarmos com o labirinto da memória construído pelo livro, só poderia ser escrito no pretérito. Algo que poderia até estar latente no período de militância, mas que só poderia ser manifesto após o desenrolar de muitos fatos – e, principalmente, após uma elaboração da própria experiência. Mesmo que fossem questões discutidas entre os militantes, uma sentença de que esta fora “uma das provas mais duras” não poderia ser dada no momento em que todos e todas faziam “um esforço para pensar em terceira pessoa”.

Além de pensar em terceira pessoa, militantes clandestinos vivenciavam vidas de terceiros: como sabemos, por questão de segurança, nomes alheios lhes eram atribuídos. Essa é uma situação que recupero do livro numa

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tentativa de melhor compreender as escolhas de escrita. Em determinado momento, diz a narradora:

Minhas amigas, fora as da AP, passam a me chamar de Isinha. Para Paulo Stuart sou Leila. Por causa da filha, só me chama assim. Os companheiros, em Feira de Santana, me batizam de Guida. Em São Paulo era Maria. É um sem fim de nomes que não acabam mais. (De LUCA, op. cit., p. 170)

Perto do final do livro, acrescenta: “Hoje, assinei meu nome verdadeiro, pela primeira vez, depois de cinco anos: Derlei Catarina De Luca. Agora volto a ser outra vez. Foi tão engraçado. Parecia que não era eu e sim uma pessoa distante”. (De LUCA, op. cit., p. 36). O trabalho de memória realizado pela autora é também um trabalho de luto e de elaboração. Tomando emprestado o pensamento de Theodor Adorno (2006), observamos que, para este autor, a elaboração do passado é essencialmente uma inflexão ao sujeito, um reforço de sua autoconsciência e, nesse caminho, um reforço do seu eu. Penso que, dadas as situações acima expostas, a escolha da autora ao escrever em primeira pessoa expressa seu desejo de sentir-se em primeira pessoa. O livro pode apresentar diferentes vozes narrativas, mas são todas as mesmas: e todas em primeira pessoa.

4. Considerações finais

Inspirado no livro É isto um homem? (LEVI, 1998), Márcio Seligmann-Silva afirma que a necessidade de narrar, a necessidade do testemunho, se caracteriza como “condição de sobrevivência”, como “uma atividade elementar” para a sobrevida daqueles/as que voltaram de uma situação radical de violência:

A narrativa teria, portanto, dentre os motivos que a tornavam elementar e absolutamente necessária, este desafio de estabelecer uma ponte com “os outros”, de conseguir resgatar o sobrevivente do sítio da outridade. (...) Narrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar este sentido primário de desejo e de renascer. (SELIGMANN-SILVA, 2008, pp. 65-82).

Essas considerações se comprovam logo na primeira frase do livro No corpo e na alma: “Este livro foi uma catarse. Também foi uma necessidade”, diz Derlei (De LUCA, op. cit., p. 21). E completa: “Dentro de 10 ou 20 anos nós morreremos. Quem se lembrará destes fatos se nós não colocarmos no papel? Se não assumirmos nossa história pátria, nossos erros, nossos acertos, quem o fará?”

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(De LUCA, op. cit., p. 21). Há, aqui, uma vontade de narrar, uma busca pela função ética da narrativa, da transmissão da experiência, que ocorre paradoxalmente à crise da narratividade e da transmissibilidade de nossa época. Refiro-me a questões trabalhadas por Walter Benjamin8: há uma espécie de impulso narrativo que nos impele, seres humanos, a contar, a narrar. Mas como narrar na modernidade, numa época em que já não mais há experiência, apenas troca? Em Benjamin podemos também observar a questão: se não há mais transmissão possível, por que contamos? Porque somos mortais, e queremos deixar algo. Podemos dizer que são novas formas de narração. Nos silêncios, nos fragmentos, nos vestígios: mesmo quando não contamos mais, há algo que tentamos dizer.

Dado o paradoxo do testemunho – que “só existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade” (SELIGMANN-SILVA, 2008, pp. 65-82) –, a dificuldade em dar sentido a um acontecimento passado e incorporá-lo narrativamente é também uma indicação da presença do trauma. Nessa situação, o incompreensível e o inenarrável, antes de serem percebidos como “ausência” ou “vazio”, podem ser vistos enquanto presença dessa ausência. Por esse caminho, é tarefa política questionar a escassez de narrativas femininas no Brasil. Porém, tentemos alargar essa discussão a outros países do Cone Sul, nos quais também ocorreram ditaduras repressivas. A historiadora uruguaia Graciela Sapriza afirma que essa situação se repete em seu país, onde a literatura sobre o período da ditadura é praticamente monopolizada por homens (SAPRIZA, 2009). E, ao nos voltarmos a um recente debate na Argentina, algo semelhante se destaca: no livro organizado por Pablo René Belzagui, há uma compilação de cartas escritas por diversos ex-militantes contrários à ditadura argentina, todos em torno de uma rica discussão relacionada à memória daquele período (BELZAGUI, 2008). Não é aqui o espaço para detalhar as questões abordadas no livro, mas, no que se refere ao tema que proponho, algo se destaca: das mais de vinte cartas que fazem parte do livro, nenhuma foi escrita por mulheres.

Penso que estas observações sugerem algo importante: a memória é um tema permeado pelas relações de gênero. Desse modo, para além da própria complexidade da narração do trauma, há que se levar em consideração a tradição

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Refiro-me principalmente aos textos Experiência e Pobreza (BENJAMIN, 1985) e O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (BENJAMIN, 1985).

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cultural do silêncio, ao qual as mulheres foram submetidas por séculos. Acrescentar o pensamento feminista aos estudos da memória parece ser uma empreitada necessária para trabalhar tais problemas.

O estudo dessas questões pode trazer apontamentos importantes não apenas da participação política feminina na ditadura militar, mas também permite compreender o próprio legado destrutivo da ditadura na sociedade brasileira. O silêncio em relação aos acontecimentos ocorridos se dá em um contexto no qual predomina o recalcamento do passado violento que, não elaborado, espalha suas teias de dor e sofrimento no presente – presente este que encobre tanto a violência do passado quanto a violência atual, existente nas diferentes relações sociais. O trauma da ditadura é, portanto, individual e coletivo. O ato de relembrar o passado tem, nesse sentido, a função de resgatar uma utopia não realizada, uma proposta política que poderia ter desencadeado outro tipo de organização social, menos desigual e alienada, mas que foi impetuosamente suspensa com o caráter exacerbado da repressão imposta pela ditadura civil-militar.

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Referências

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