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A relação da tradução com a escrita em Psicanálise

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(1)Tradução & Comunicação. Revista Brasileira de Tradutores Nº. 22, Ano 2011. A RELAÇÃO DA TRADUÇÃO COM A ESCRITA EM PSICANÁLISE The relation between translation and writing in Psychoanalysis. Maria Rita Salzano Moraes Universidade Estadual de Campinas IEL/Unicamp mrsalzanom@gmail.com. RESUMO Se tomamos como ponto de partida o que existe de mais radical em tudo o que é escrito (que é o fato de a escrita ser efeito de discurso), o que pode ser a tradução em psicanálise? Embora se reconheça que teorias de tradução que consideram a fluência em primeiro lugar e que buscam ancorar-se no sentido não estejam na ordem do dia; que hoje se levam em conta questões ideológicas e mesmo psíquicas, prepondera nas traduções de Freud certo desejo de fidelidade ao cientista que seus tradutores buscam nele.A despeito dos desejos de fidelidade presentes até mesmo em traduções mais recentes de Freud, a necessidade da ancoragem do texto em outro lugar que não o sentido, tal como preconiza o autor, é um fato não ressaltado por nenhuma proposta atual de tradução em Psicanálise. Partindo dessa constatação, propomos que a relação da tradução com a psicanálise se faça com base na proposta de Jacques Lacan (1998) de que devemos dar à escrita o lugar que lhe convém, ancorando o texto em outro lugar, além do sentido. E esse além do sentido, que deve orientar nossa leitura do texto freudiano, requer a participação do literal, deixando prevalecer o texto e, nele, a língua de Freud. Palavras-Chave: tradução; psicanálise; sentido; escrita; literal.. ABSTRACT. Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@aesapar.com Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE. What is translation in psychoanalysis, considering as a starting point the fact that writing is an effect of discourse – the most radical property of all the written things? Although the fluence-based and meaningoriented translation theories are no longer in vogue, and these days ideology and even psychic issues are taken into account, there is, among the Freudian translators, a certain desire for fidelity to the scientist that they seek in Freud’s figure. Despite the fact that the desire for fidelity is present even in recent translations of Freud’s works, no current translation project in psychoanalysis highlights the importance of anchoring the text elsewhere except meaning, in opposition to the author’s ideas. Based on such assumption, we propose to consider the relation between translation and psychoanalysis as proposed by Jacques Lacan (1998), according to whom we should assign writing an appropriate location, anchoring the text elsewhere beyond its meaning. And such “beyond its meaning”, which must guide our reading of the Freudian text, requires that the literal takes part in the process, privileging the text and, in such text, Freud’s language. Keywords: translation; psychoanalysis; meaning; writing; literalness.. Artigo Original Recebido em: 02/08/2011 Avaliado em: 05/09/2011 Publicação: 30 de setembro de 2011. 121.

(2) 122. A relação da tradução com a escrita em Psicanálise. 1.. FREUD E A CONCEPÇÃO DE TRADUÇÃO Inicio este trabalho lembrando que Freud primeiro chamou a interpretação do sonho de tradução (Übersetzung), em 1900, para depois explicitar que não se tratava de uma transferência de sentido de uma língua para outra. Foi em O interesse científico da psicanálise, datado de 1913, que propôs a coabitação de dois termos, que são, precisamente, deciframento e tradução: Parece-nos mais justo comparar o sonho a um sistema de escrita [Schriftsystem] que a uma língua. De fato, a interpretação de um sonho é análoga, do começo ao fim, ao deciframento de uma escrita figurativa da Antigüidade, como os hieróglifos egípcios. Em ambos os casos, há certos elementos que não se destinam a ser interpretados (ou lidos, segundo for o caso), mas têm por intenção servir de ‘determinativos’, ou seja, estabelecer o significado de algum elemento. ([1913] 1996, p.179-180). Ao aproximar escrita e tradução, Freud traz uma diferença fundamental que considero importante para fazer uma reflexão sobre a tradução. Freud nos mostra que, quando se trata de linguagem, temos necessidade de ordená-la por meio de uma referência a si mesma, à sua própria estrutura. O sonho, tal como Freud o tratou no trecho acima citado, distingue-se de qualquer forma de pura expressividade, por se sustentar em uma estrutura que é idêntica à estrutura da linguagem. O que Freud faz com o sonho é, em primeiro lugar, não tomar a imagem como representante do objeto, mas como a escrita do nome desse objeto. O que deve prevalecer é aquilo que, na imagem, se fizer ouvir de textual. Seríamos levados ao erro, diz Freud, falando ainda dos sonhos, se tentássemos ler [lesen] esses signos em seu valor de imagem [Bilderwert] ao invés de lê-los em sua relação com os próprios signos [Zeichenbeziehung]. Nesse capítulo da obra, “O trabalho do sonho”, Freud compara o sonho a um quebra-cabeça pictográfico, um rébus, cujas partes (no caso citado: uma casa com um barco em cima, um homem maior que a casa, sem cabeça e correndo, uma letra do alfabeto etc.) precisam ser lidas tomando cada uma como uma sílaba ou uma letra. Quase dez anos antes da publicação de A interpretação dos sonhos, em 1891, no texto sobre as Afasias, Freud afirma que a capacidade de escrever não se reduz apenas a um componente visual, e que o passo da fala à escrita não resulta de uma tradução da sonoridade das palavras à visibilidade das letras. Isto porque, para Freud, o visual (escrito) e o auditivo (falado) não constituem formalizações correspondentes. Enquanto os autores contemporâneos acreditavam na escrita como reprodução da fala, Freud propõe quatro componentes para a representação-palavra: a imagem acústica, a imagem visual, a imagem motora articulatória e a imagem motora da escrita. Nessa proposta, dois dos componentes da escrita têm parte na fala e, ao mesmo tempo, se opõem a ela, porque os componentes visuais da escrita na fala não correspondem a nada que se possa dizer. O. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 121-131.

(3) Maria Rita Salzano Moraes. 123. vínculo com o visual de uma letra é dado por uma imagem acústica que a letra não tem. A imagem será vista, portanto, pelo que nela falta, e o que falta nela é o que a articula com o significante. O som, para Freud, não compreende a imagem, e a imagem não compreende o som. A consistência sonora e a visual se associam e se leem pelo lado do que lhes falta. No mesmo texto, Freud (p. 69-70) dá um exemplo banal, mas muito claro, sobre essa não coincidência: o exemplo daquele de quem lê um texto em voz alta. Para essa pessoa, quando a imagem motora da leitura – o que vê – e a imagem acústica – o que se escuta ler – acontecem ao mesmo tempo, a contradição entre o visual e o auditivo produz rapidamente dificuldades de compreensão. A atenção prestada às imagens visuais apagará por completo o sentido, que deveria vir com as imagens auditivas, verbais. Essa observação se antecipa à Interpretação dos Sonhos, na qual o modo de figurabilidade onírica, o visual, é acompanhado de uma ruptura de sentido. E essa ruptura de sentido traz consequências: um sonho não pode ser compreendido por confiar no que se vê, mas deve ser lido, e o sentido lhe vem somente graças ao que se ouve do relato desse sonho. Se o passo da fala à escrita não resulta de uma tradução da sonoridade das palavras à visibilidade das letras – pois uma palavra escrita não corresponde jamais à sua fonética, nem à sua imagem – é preciso, então, tomar essa condição da escrita na tradução e dar à escrita o lugar que lhe convém, aquele que não a refreia antecipadamente ao assumir a ideologia da correspondência entre fala e escrita, mas o de tomar a escrita como efeito de um discurso.. 2.. OS ESTUDOS DA TRADUÇÃO E A PSICANÁLISE Agrupar teorias de acordo com o que apresentam de pontos comuns é correr o risco de ignorar justamente o que há de diferente entre elas. Contudo, o que proponho é destacar esse “em comum” partilhado por diversas definições de tradução, mesmo quando parecem se colocar em campos opostos. Começo por apontar que a questão se coloca antes que se proponha uma teoria: parte-se da hipótese de que o caráter específico da tradução pode ser compreendido (entendido e abarcado) por uma teoria que pode, ao mesmo tempo, ser operante na prática da tradução. De modo geral, a língua (de partida ou de chegada) deve ser considerada linguisticamente, ou seja, do ponto de vista gramatical, semântico, e também como instrumento de comunicação. Sendo assim, tratam da tradução e de sua prática enquanto processo específico capaz de ser teorizado. No desafio da tarefa reconhecidamente impossível de traduzir, alguns autores pretendem dar a explicação desse processo. Em trabalho anterior, apresentado no. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 121-131.

(4) 124. A relação da tradução com a escrita em Psicanálise. Segundo Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, em 2003, já apontei algumas das tentativas que reapresento para articular algumas reflexões sobre as traduções dos textos de Sigmund Freud. Georges Mounin (1963), o linguista que chega a levantar a alternativa de “condenar a possibilidade teórica da atividade de tradução em nome da linguística” (p. 20), acredita que, a despeito de comportar “aspectos francamente não-linguísticos”, os problemas teóricos da tradução “só podem ser esclarecidos em primeiro lugar no quadro da ciência linguística” (p. 27, grifos do autor), e que esse processo só se refere a “regras de correspondência cada vez mais acuradas entre os campos semânticos de duas línguas [...] e a análises linguísticas cada vez mais precisas” (p. 95). Para John Catford (1980, p. 123), a impossibilidade torna-se uma questão de “probabilidade” e de “generalização”, e a traduzibilidade, embora o autor tenha em vista a equivalência, depende daquilo que se pode associar a cada item ou texto em cada língua. Estratégia de “recriações deslumbrantes”, nas palavras de Paulo Rónai (1976, p. 103), o mundo da tradução “é o mundo das minúcias” e o tradutor sugere uma “prática de decifração progressiva dessas minúcias” (1981, p. 72). Os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari (1975, p. 196) referem-se à “metalinguagem” como estando na dependência de um “processo estocástico”, e propõem “uma aproximação gradativa a uma mensagem desconhecida, a partir dos dados de um código conhecido”. Embora cada uma dessas afirmações seja verdadeira – considerando a perspectiva adotada –, o que elas apontam, de certa forma, são as dificuldades na elaboração de uma teoria da tradução, justamente porque têm a língua centrada particularmente em sua dimensão linguística como ponto de partida e, como alvo, o sentido. Pode-se contestar que os autores referenciados concebem a tradução de forma hoje considerada ultrapassada, e que parte das teorias difundidas nos últimos vinte anos refletem, como é o caso de Lawrence Venuti (1995), sobre questões culturais e ideológicas, requisitando a visibilidade do tradutor; como Rosemary Arrojo (1993), que destaca a interferência do tradutor no ato de traduzir e até mesmo a relação da tradução com a psicanálise. Contudo, mesmo considerando que o texto a ser traduzido não é um texto fixo – mas efeito de discurso e, portanto, marcado pela história –, esses teóricos não consideram o que há de radical em tudo o que é escrito, e que já comporta em si uma rachadura de base. Faz-se necessário, então, falar de tradução dando à escrita o lugar que lhe convém. Falo em escrita na trilha aberta por Jacques Lacan (1998, p. 496), quando afirma que: “a escrita se distingue, com efeito, por uma prevalência do texto, no sentido que veremos ser assumido aqui por este fator do discurso – o que permite este estreitamento que, a meu ver, não deve deixar ao leitor outra saída senão a entrada nele, que prefiro Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 121-131.

(5) Maria Rita Salzano Moraes. 125. difícil”. Quando lê o texto freudiano que trata do caso do pequeno Hans, Lacan ([1956-57] 1995) retoma a ingenuidade da criança e remete ao livro dos chistes. Nesse momento, dirige-se ao leitor: “peço-lhes que se reportem ao texto” (p. 302), e insiste, com Freud, que para compreender a função do cavalo na fobia do garoto “o caminho não é buscar o equivalente de cavalo” (p. 313). E Lacan sublinha que Freud não se engana quando associa wegen (por –causa de; porque) a Wägen (carros)”, e é nesse ponto que o significante cavalo (Pferd) assume seu valor, e em que uma palavra responde a outra nesse “banho de linguagem” em que o pequeno Hans está imerso (pp. 324-325). Nesse caminho de Lacan na sua tradução de Freud, a função dessa prevalência do texto é impedir “o que pode aí haver de mais frouxo neste jogo entre o imaginário e o simbólico, tão importante para nossa compreensão da experiência” (p. 425). Essa ancoragem do texto em outro lugar, além do sentido, é indispensável e requer a participação do literal, de algo que está além daquilo que orienta a leitura. No entanto, a necessidade dessa ancoragem do texto em outro lugar é um fato não ressaltado por nenhuma proposta atual de tradução dos textos freudianos, por causa da manutenção da visão de que a escrita é pura e simplesmente a transcrição da fala.. 3.. A TRADUÇÃO E AQUILO QUE A ULTRAPASSA Não há nada que impeça que chamemos de tradução a tradução propriamente dita – tal como proposto por Roman Jakobson (1971) – e também aquilo que a ultrapassa, desde que se distingam as operações aí implicadas. O que ultrapassa a tradução é menos da ordem da língua do que da linguagem, é da ordem da escrita. Quanto à língua, ela só pode existir no espaço de sua estrangeiridade em relação a si mesma, e basta querer tomá-la como objeto, extraindo dela elementos que possibilitem uma escrita científica, para que se esbarre, por exemplo, com um real do chiste, da homofonia, que nos mostra que não existem na língua dois ditos semelhantes. Se inserirmos o desejo no campo da língua, veremos que língua é lugar das equivocações. Neste sentido, nenhuma língua dá conta de outra língua, e eis a razão pela qual Lacan reafirma sempre que não há metalinguagem. Levando em conta o que propõe Jean Allouch (1995) em Letra a letra, o tradutor pode optar por colocar-se na dependência da escrita. Nesse caso, o objeto dessa leitura resulta dessa consideração da operação da escrita na leitura. A leitura deve então se fazer literal? Ler é transliterar? Nas palavras de Allouch (1995, p. 14): A transliteração não basta para definir um modo de leitura. Ela é uma operação simbólica articulada a outras duas operações: tradução (imaginário) e transcrição (real). Assim, a questão dos diferentes tipos de leitura encontrou sua formulação, construindose como aquela dos diversos modos possíveis de articulação dessas três operações.. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 121-131.

(6) 126. A relação da tradução com a escrita em Psicanálise. Tomando esses modos de leitura um a um, o autor acrescenta ainda que Traduzir é escrever regulando o escrito pelo sentido. A operação tem a ver com o imaginário, quando o tradutor toma o sentido como referência e desconhece sua dimensão imaginária. É por isso que, em geral, a tradução se quer ‘literal’, o que designa simplesmente a procura de seus pontos de ancoragem em outras partes, além do simples transporte do sentido a que ela se consagra.. Além do transporte do sentido. É esse ponto que constitui a prática do tradutor. Nesse sentido, essa prática dirige-se, de fato, ao que a ultrapassa, ao que está além do que ele deseja produzir. Considerando a escrita chinesa, François Cheng (1982, p. 42) discute o fato de essa escrita não ser suporte da língua e a necessidade da tradução: “toda língua constrói seus nós e procura suas possibilidades de ultrapassamento. Nesse sentido, a tradução é indispensável. É através de outra língua que experimentamos nossas próprias riquezas e limites, e que, de repente, tocamos no alhures do sentido...”. Cabe então à tradução liberar dentro de cada texto as forças subversivas de sua própria estrangeiridade. Aquilo que resta latente em cada obra, só o estrangeiro pode descobrir, e somente essa passagem para uma língua estrangeira toca esse resto e leva a obra a sua perfeição. Essa postura evidencia, na língua, sua posição de rede (sempre precária) de representação de um real que não cessa de não se escrever.. 4.. AS TRADUÇÕES DA OBRA DE FREUD E A QUESTÃO DA LITERALIDADE Os depoimentos de Mahony, Junker, Holder, e Villarreal, reunidos na obra Translating Freud, organizada por Darius Ornston (1992), autor também de quatro capítulos, confirmam o projeto da tradução inglesa de James Strachey, apresentado no primeiro volume Standard Edition. O tradutor declara ter optado pela fidelidade máxima ao pensamento de Freud, o que determina uma tradução uniforme e a busca da maior precisão possível com relação ao significado. Se os méritos literários são inalcançáveis, também o são as passagens em que o estilo, por vezes obscuro, exige uma tradução literal, mesmo que a custa do elegante estilo do autor. Concentrado nesse objetivo de produzir uma tradução uniforme, Strachey desvencilhava-se das alterações por que passavam alguns conceitos e traduzia como se Freud já os tivesse definido. Em sua visão de cientista da época, segundo a qual o uso científico determina que a mesma palavra refere-se sempre à mesma coisa. O tradutor inglês opta, então, por uma nomenclatura médica clássica: para Besetzung, investimento, usa cathesis; para Anlehnung, apoio, escolhe anaclisis, sempre com o franco objetivo de assegurar, entre cientistas de diferentes países, a consistência e a validade dos conceitos de Freud.. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 121-131.

(7) Maria Rita Salzano Moraes. 127. Nos casos em que Freud se vale de uma constelação de diferentes expressões em torno de uma ideia necessariamente vaga, por exemplo, Strachey escolhe combinar palavras diferentes e descritivas em um termo singular de sua escolha. É assim que Aufbau, Bau, Überbau, Gliederung, Gebäude, Gebilde, Gefüge, Ordnung, Struktur e Träger terminam, todos, traduzidos por “estrutura”. Sempre que Freud utiliza palavras filosoficamente orientadas, Strachey opta por termos científicos, como é o caso, por exemplo, de Wohlbefinden, bem estar, que se torna “saúde” (Gesundheit); e Heilungsgeschichte, história do tratamento, que se traduz por “recovery”, em vez de “history of healing”. A tradução de Nachträglichkeit (posterioridade) por “deferred action”, por sua vez, não inclui a noção de retroação. É assim que, no trabalho sobre O Homem dos Ratos, o verbo aufheben, que pode ser lido tanto como “anular” quanto por “suspender”, está traduzido como sinônimo de ungeschehenmachen, não deixar acontecer, “undoing” e “neutralized”. Übersetzungskünste, artes da tradução (para o psicanalista), transforma-se em “explanatory arts”. Enquanto o tradutor tem em vista uma rede conceitual adequada ao que considerava ciência, Freud, por sua vez, utilizava metáforas do século XIX, tais como “energia psíquica”, para tratar de conceitos teóricos, porque implicavam diversas espécies de atividade simultânea (pulsões, necessidades conflitantes, consciência, compromisso, etc.). É importante destacar que, quando se tratava de um conceito ainda em construção, Freud não levava a questão da nomeação tão a sério. Na correspondência de Freud a James Putnam (1971, pp. 353-54), o psicanalista recomendava ao neurologista que não se preocupasse demais com nomes para os conceitos e termos adequados: “os nomes não precisam ser adequados, e não nos resta mais nada no progresso da ciência, do que colocar o vinho novo em velhas mangueiras”. Muito mais do que definir seus termos, sabemos que Freud antes descrevia certa ideia das maneiras mais variadas que podia. Talvez se encontre nessas observações o motivo de, em 1908, Freud (1974, p. 120) escrever a Jung dizendo que “infelizmente a Traumdeutung é intraduzível, e precisaria ser novamente refeita em cada língua...”. O estudo de Inga Villarreal (1992, p.114-134) sobre as traduções de Freud para o espanhol traz comentários sobre o primeiro tradutor, de 17 dos 22 volumes da obra completa para a Nueva Madrid, e sobre o tradutor para o espanhol da editora Amorrortu, de Buenos Aires. Luis López-Ballesteros (período da tradução, 1922-1934) não fez uma tradução literal, e sim uma tradução muito livre. Fácil de ler. As ideias de Freud não chegam ao leitor como conceitos coerentes, porque a mesma palavra alemã é traduzida de. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 121-131.

(8) 128. A relação da tradução com a escrita em Psicanálise. muitas maneiras diferentes. Por outro lado, o mesmo termo espanhol é usado para uma variedade de palavras alemãs com sentidos diferentes. Palavras consideradas difíceis de traduzir, ou que poderiam causar problemas, são deixadas de lado. As datas dos artigos e a numeração dos capítulos não são respeitadas rigorosamente, e algumas frases chegam mesmo a expressar o oposto do que Freud disse. Para Villarreal, a tradução de José Luis Etcheverry (período da tradução, 19781982) surge em um contexto que já conta com mais de três décadas de elaborações sobre a obra freudiana e com a influência do movimento francês de retorno a Freud promovido por Lacan. À necessidade de uma tradução mais rigorosa, literal e internamente consistente, somava-se a ênfase na atenção às raízes das palavras. Segundo Etcheverry, o texto de Freud vinha em primeiro lugar; assim, em caso de dúvida, o tradutor devia orientar-se mais pelo significante (o que Freud afirma explicitamente), do que pelo significado (o que ele pode ter querido dizer). A maneira literal de Etcheverry traduzir as palavras-chave, e seu respeito pela tradição filosófica freudiana fazem, ainda segundo Inga Villarreal, mais justiça à complexa imagem do ser humano apresentada por Freud do que aquela projetada pela tradução da Standard Edition. Contudo, a versão espanhola também mostra desvantagens e problemas. A aderência estrita de Etcheverry à tradução literal de certas palavras é responsável por parte do que se reconhece como artificialidade de sua linguagem, sempre na busca de levar adiante a proposta de traduzir igualmente muitas expressões comuns que contêm o mesmo radical. Entre os exemplos trazidos por Villarreal citamos, por exemplo, Drang, pressão, “esfuerzo”; Verdrängung, recalcamento, “represión”, “esfuerzo de desalojo”. Zweck, cujo significado em português é propósito, vem sempre traduzido por “fin” e, mantendo o radical, tem-se zweckmässig, prático, conveniente, que se torna “acorde a fines” e zweckdienlich, útil, “para conseguir fines”. Graças a fliessen, que significa fluir, temse para Einfluss não influência, mas “influjo”. O mesmo ocorre no caso de Rücksicht – deixa de ser consideração e torna-se “miramiento”, mantendo o mesmo radical de sehen/Sicht,. ver,. e. überbestimmt,. que. quer. dizer. sobredeterminado,. passa. a. “hipercomandado”, com base em Stimme, voz. Outros exemplos ainda: Überblick, visão geral, “se abarca com la mirada”; Wechsel des Objektes, troca do objeto, “cambio de via del objeto”;Verkehrung ins Gegenteil, retorno ao contrário, “trastorno hacia lo contrario”; Verwerfung, foraclusão, “desestimación”; Ablehnung, recusa, “desautorización”; Einsicht, ponto de vista, visão interna, “intelección”; Bedeutung, significação, “significatividad”, “intencionalidad”, entre outros.. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 121-131.

(9) Maria Rita Salzano Moraes. 129. Seguindo esse horizonte de leitura, torna-se difícil realizar essa tarefa de produzir uma versão que seja, ao mesmo tempo, literal e legível, porque o que de Freud se transmite não passa através de palavras e sentenças, mas também em conformidade com os efeitos de sua língua. Considerando a proposta de Jean Allouch (1995), pode-se afirmar que na tradução os efeitos da literalidade da língua de Freud não serão os mesmos. E não serão os mesmos porque a letra não se traduz. A letra se transmite. O voto de não modificar essa literalidade freudiana vai determinar o projeto de tradução dessa obra para o francês. A tradução de Jean Laplanche, Pierre Cotet e Andre Bourguignon (1992, p. 15) vai inventar para Freud um ‘francês freudiano. E é porque se quer tão fiel, rigorosa e consistente quanto for possível: “o texto, todo o texto, nada mais do que o texto” que vai se valer de todos os recursos do francês “da mesma maneira” que Freud utiliza os recursos da língua alemã. Esse projeto propõe-se a representar na tradução a intenção do texto original como uma tarefa de fidelidade. Embutida no plano de coerência de conjunto que ampara essa intenção encontrase nada menos que uma concepção fundamentalista e absolutista da tradução, que se acredita certa de poder recuperar com exatidão e fidelidade o pensamento de Freud. Se acompanharmos o percurso da ação das palavras no conjunto da obra freudiana, ou mesmo dentro de um só texto, é muito duvidoso que essas palavras se submetam a uma regra de coerência de conjunto. É preciso que se leve em conta também que grande parte da obra freudiana faz referência aos efeitos da língua alemã. Freud toma a língua diretamente como objeto, material indispensável à psicanálise em seus aspectos clínicos, na análise dos sonhos, dos casos (que escuta e que relata), dos chistes, passando pelas vias das associações, cadeias, pontos nodais e pontes verbais, o que revela a maneira de operação do inconsciente. Mesmo assim, segundo os críticos, a leitura de uma tradução literal se torna difícil, porque torna inevitável a substituição da beleza e do ritmo das palavras de Freud por uma consistência sistemática. O problema da literalidade é nitidamente marcado por Freud a propósito do chiste: no “chiste de pensamento”, a formulação verbal é acessória, e o chiste pode ser traduzido sem perda do efeito cômico. Mas o “chiste de palavras”, que joga com as palavras, é inseparável da expressão alemã: mesmo que se encontre um equivalente na língua da tradução, as vias de conexão serão necessariamente diferentes. É o caso também dos inúmeros jogos de palavras em Freud, cuja tradução pelo sentido colocaria a perder o sentido freudiano que só é passado pela literalidade, como é o caso de Seine Klagen sind Anklagen, “suas queixas [Klagen] são acusações [Anklagen]”, ou o Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 121-131.

(10) 130. A relação da tradução com a escrita em Psicanálise. jogo que existe em A Interpretação dos Sonhos ([1900] 1996, p. 135): “Se tomamos como ponto de partida os trabalhos do sonho e de sua interpretação, nos quais, em seu desvendamento, coincidem, como o disse Breuer, sua Auflösung ((re)solução de um enigma) com a sua Lösung (solução)”. Essa seria uma regra de Freud para não se tentar traduzir o que é da ordem do literal. A tradução literal é muito mais do que traduzir palavra por palavra. Escolher traduzir palavra por palavra pode levar, de maneira geral, a uma literalidade premeditada, compreendida em sua acepção mais estreita, que pretende respeitar até mesmo a ordem das palavras nas frases em alemão. Na relação entre tradução e escrita em psicanálise, aquilo que ultrapassa a tradução é o fato de que não é com o sentido que se detém a fuga do sentido. No trabalho de tradução a transliteração (tal como definida por Allouch, 1995) está a serviço da ancoragem da tradução na literalidade. Não se deve, portanto, colocar entre parênteses a operação de passagem e isolar o trabalho de tradução.. REFERÊNCIAS ALLOUCH, J. Letra a Letra: transcrever, traduzir, transliterar. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1995. ARROJO, R. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1993. CAMPOS, A.; CAMPOS, H.; PIGNATARI, D. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, EDUSP, 1975. CATFORD, J.C. Uma teoria lingüística da tradução. Tradução do Centro de especialização de tradutores de inglês do instituto de letras da PUC de Campinas. São Paulo: Cultrix/PUC Campinas, 1980. CHENG, F. Faute de mieux. Confessions de traducteurs, L’Âne, Paris, n. 4, 1982. FREUD, S.; JUNG, C.G. Briefwechsel, ed. William McGuire and Wolfgang Sauerländer, Frankfurt am Main: S. Fischer, 1974. FREUD, S. [1891]. A Interpretação das Afasias. Tradução de António Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1977. ______. [1913]. O interesse científico da psicanálise. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol. XIII. 1996. ______. [1900]. A Interpretação dos Sonhos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol.V, 1996. HALE, N.G. Jr. James Jackson Putnam and psychoanalysis. Carta de Freud a James Putnam, de 10.03.1910. Cambridge: Harvard University Press, 1971. JAKOBSON, R. Aspectos linguísticos da tradução. Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1971, p. 63-72. LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______. [1956-57]. O Seminário. Livro 4, A relação de objeto. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. LAPLANCHE, J.; COTET, P.; BOURGUIGNON, A. Traduzir Freud. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 1992.. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 121-131.

(11) Maria Rita Salzano Moraes. 131. MORAES, M.R.S. O que (se) passa na tradução? O que (ultra) passa a tradução? Trabalho apresentado no Segundo Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, Rio de Janeiro, 2003. MOUNIN, G. Os problemas teóricos da tradução. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1975. ORSTON, D.G.JR. Translating Freud. New York: Yale University Press, 1992. RÓNAI, P. Escola de Tradutores. 4.ed. Rio de Janeiro: EDUCOM, 1976. STRACHEY, J. Prefácio geral do editor inglês. In: Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol. I, 1996. ______. A tradução vivida. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. VENUTI, L. The Translator’s Invisibility: A History of Translation. London: Routledge, 1995. VILLARREAL, I. Spanish Translations of Freud. In: ORNSTON JR., Darius (Org.). Translating Freud. New York: Yale University Press, 1992. Maria Rita Salzano Moraes Doutora em Linguística, professora do Departamento de Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem – IEL / Unicamp. Trabalha principalmente com a relação entre Língua Materna e Língua Estrangeira em articulação com a Psicanálise Freudiana. Tradutora de obras de Freud (direto do alemão), membro da equipe coordenada por Luiz Alberto Hanns (Editora Imago).. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 22, Ano 2011 • p. 121-131.

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