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Dorian Gray Caldas: a trajetória biográfica de um artista precursor de uma identidade potiguar (1950-1989)

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Academic year: 2021

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(1)DORIAN GRAY CALDAS: A TRAJETÓRIA BIOGRÁFICA DE UM ARTISTA PRECURSOR DE UMA IDENTIDADE POTIGUAR (1950-1989). ARILENE LUCENA DE MEDEIROS.

(2) UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS. DORIAN GRAY CALDAS: A TRAJETÓRIA BIOGRÁFICA DE UM ARTISTA PRECURSOR DE UMA IDENTIDADE POTIGUAR (1950-1989). ARILENE LUCENA DE MEDEIROS. NATAL/RN, 2017..

(3) ARILENE LUCENA DE MEDEIROS. DORIAN GRAY CALDAS: A TRAJETÓRIA BIOGRÁFICA DE UM ARTISTA PRECURSOR DE UMA IDENTIDADE POTIGUAR (1950-1989). Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa Cultura, Poder e Representações Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha.. NATAL/RN, 2017..

(4) Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Medeiros, Arilene Lucena de. Dorian Gray Caldas: a trajetória biográfica de um artista precursor de uma identidade potiguar (1950-1989) / Arilene Lucena de Medeiros. - 2017. 174f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em História, 2017. Orientador: Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha. 1. Gray, Dorian, 1930. 2. Biografia. 3. Arte moderna. 4. Espaço. 5. Arte potiguar. I. Rocha, Raimundo Nonato Araújo da. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA. CDU 929.

(5) ARILENE LUCENA DE MEDEIROS. DORIAN GRAY CALDAS: A TRAJETÓRIA BIOGRÁFICA DE UM ARTISTA PRECURSOR DE UMA IDENTIDADE POTIGUAR (1950-1989). Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores:. Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha (UFRN) _______________________________________________ Orientador. Prof.ª Dr.ª. Márcia de Almeida Gonçalves (UERJ) _______________________________________________ Avaliador Externo. Prof. Dr. Helder Viana do Nascimento (UFRN) ________________________________________ Avaliador Interno. Natal/RN, 25 de setembro de 2017..

(6) Agradecimentos. Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, a Deus, e reiterar a frase que me sustentou ao longo dessa jornada: “Às vezes, a gente acha que não consegue. Sozinhos, não podemos mesmo, mas com Deus tudo é possível!". Por isso, agradeço, também, a uma pessoa cuja vocação é ser instrumento nas mãos de Deus, que compreende as dores e os desafios dos homens do seu tempo, e que derrama palavras de conforto aos fiéis de sua Igreja: o pároco da Paróquia de Cristo Rei, em Pirangi, padre Alfredo de Oliveira. Ao meu orientador, professor Raimundo Nonato, pelas constantes palavras de apoio e incentivo, pela paciência, confiança, generosidade, pelo companheirismo, e, sobretudo, por ter acreditado em mim e em minha capacidade de concluir este trabalho. Ao artista e amigo Dorian Gray Caldas, com quem tive a honra de conviver, ainda que por pouco tempo, como também à sua família – Wanda, Dione e Adriano, aos quais tenho grande apreço, por compartilharem comigo de suas vidas, seus sonhos, tristezas e alegrias. À minha família – meus pais, Ari e Helena, irmãos, cunhados, sobrinhos, por me apoiarem e compreenderem minhas ausências. Aos meus colegas de trabalho do IFRN/Campus Natal-Central, aos quais sou imensamente agradecida, por tudo: Tânia, Cláudia, Romana, Cláudio, professor Arnóbio, e aos nossos eternos estagiários, que, de perto ou de longe, torceram por mim. Sou grata, ainda, a todos os professores da graduação e da pós-graduação em História da UFRN, por haver despertado em mim a paixão por esse campo do saber, pela qualidade do ensino ministrado, pelo carinho com que atuam na área, e por me inspirarem, cada um deles, de um jeito ou de outro. Aos funcionários do Arquivo Estadual do Rio Grande do Norte, da Biblioteca Central Zila Mamede e da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, cujo trabalho me permitiu a obtenção de boa parte das fontes para execução desta pesquisa. Aos professores que, atendendo ao convite de Nonato, trouxeram valiosas contribuições para esta dissertação e trabalhos futuros - Paula Rejane Fernandes, Raimundo Pereira Alencar Arrais e Helder Viana do Nascimento – na banca de qualificação; Márcia de Almeida Gonçalves e Helder Viana, da banca de defesa. Por fim, aos colegas do Programa e aos membros da Base de Pesquisa Espaços da Modernidade, pelo companheirismo e por todas as palavras de apoio..

(7) RESUMO. O presente trabalho analisa a trajetória biográfica do artista plástico e escritor natalense Dorian Gray Caldas (1930-2017), tido como um dos precursores da modernidade artística no Rio Grande do Norte. Sua produção pictórica incluiu desenho, pintura de cavalete, pintura mural, mosaico, escultura, cerâmica, gravura e tapeçaria. O objetivo principal da dissertação é investigar como Dorian Gray construiu uma identidade pessoal alicerçada na arte moderna e de que forma seu protagonismo interferiu na constituição de uma arte potiguar. Prioriza um recorte temporal que vai de 1950, ano que marca o início de sua atividade profissional, com o I Salão de Arte Moderna de Natal, em parceria com os artistas Newton Navarro e Ivon Rodrigues, até 1989, com a publicação do livro “Artes Plásticas do Rio Grande do Norte (1920-1989)”, obra de sua autoria que consolida a ideia de uma identidade artística potiguar. O primeiro capítulo analisa de que forma a arte se tornou uma opção de vida para Dorian Gray e como ele construiu a ideia de uma tradição artística para sua família. O segundo capítulo investiga sua produção cultural no período demarcado, as redes de sociabilidade construídas por ele e sua participação na construção de uma modernidade artística natalense. O terceiro capítulo examina, de um lado, as imagens que Dorian construiu sobre si e sobre o que considerava ter feito para o mundo cultural e intelectual do Rio Grande do Norte, e, de outro, como os seus contemporâneos representavam o artista e sua obra. Recuperam-se alguns discursos produzidos após sua morte e os mecanismos mobilizados pela família e instituições culturais para promover a manutenção da memória do artista. Como aportes teóricos, utiliza as noções de biografia (DOSSE, 2009; LORIGA, 2011), configuração social (ELIAS, 1994), modernidade (BERMAN, 1986) e enquadramento da memória (Pollack, 1989, 1992) e o referencial teórico-metodológico da história oral de vida (PORTELLI, 1997). A relação entre história e espaço é discutida na perspectiva do geógrafo Yi-Fu Tuan (2013), para quem o espaço é o lugar que constrói identidade. As principais fontes utilizadas são entrevistas fundamentadas na história oral de vida, notícias publicadas nos jornais A República, O Poti e Diário de Natal, discursos e textos de memorialistas. Palavras-chave: Dorian Gray Caldas; Biografia; Arte moderna; Espaço; Arte potiguar..

(8) ABSTRACT. This current essay analyzes biographical trajectory of the plastic artist and natalense writer Dorian Gray, well known as one of the artistic modernity precursors in Rio Grande do Norte. His pictorial production included drawing, easel painting, mural painting, mosaic, sculpture, ceramics, picture and tapestry. The main goal of this dissertation is to explore how Dorian Gray made a personal identity based on modern art and in what way his protagonism interfered in the formation of Potiguar art. It prioritizes a temporal cut, from 1950, the year which he started his professional career, in the I Salão de Arte Moderna de Natal in partnership with the artists Newton Navarro and Ivon Rodrigues, to 1989, when was published the book “Artes Plásticas do Rio Grande do Norte (1920-1989)”, work of his own which consolidates an idea of the potiguar artistic identity. Its first chapter analyzes how art became an option of life to Dorian Gray and how he created the idea of an artistic tradition to his family. Its second chapter investigates his cultural production in the delimited period, sociability networks made by him and his participation in the formation of the Natalense artistic modernity. The third chapter examines, from a point, the pictures that Dorian created about him and about what considered to have done to the cultural and intellectual areas of Rio Grande do Norte, and to another point, how his contemporaries represented the artist and his work. Some speeches made after his death and strategies used by his family and cultural institutions to preserve the artist‟s memory were recovered. As theoretical contribution, uses the perception of biography (DOSSE, 2009; LORIGA, 2011), social setting (ELIAS, 1994), modernity (BERMAN, 1986) and memory framing (POLLACK, 1989, 1992) and the theoretical-methodological referential of Oral History of life (PORTELLI, 1997). The relation between History and space is discussed in the perspective of the geographer Yi-Fu Tuan (2013), to whom the space is a place which creates identity. The main sources used are interviews based on Oral History, news published in the newspapers A República, O Poti e Diário de Natal, speeches and memorialist texts. Keywords: Dorian Gray Caldas, Biography, Modern Art, Space, Potiguar Art..

(9) LISTA DE IMAGENS. INTRODUÇÃO Imagem 1: Fotografia de Dorian Gray Caldas em sua casa-atelier, Glácio Menezes, 2014 ...................... 11 CAPÍTULO 1 Imagem 2: Fotografia de Elói Caldas, o governador Juvenal Lamartine de Faria, Djalma Petit e Plínio Saraiva, Aeroclube de Natal, [1930?] ........................................................................................................ 34 Imagem 3: Quadro “Padre João Maria entre os humildes”, Moura Rabello, 1928 .................................... 42 Imagem 4: Moura Rabello e os quadros “General Varella” e “Maestro Carlos Gomes”, 1971 ................ 46 Imagem 5: Fotografia dos irmãos Dorian Gray e Zaíra Caldas, 1936 ....................................................... 48 Imagem 6: Fotografia de Dorian Gray Caldas na adolescência [1940?] ................................................... 48 CAPÍTULO 2 Imagem 7: Quadro “Lunares” (têmpera sobre cartão, 38cmx56cm), Dorian Gray, 1950 ......................... 62 Imagem 8: Quadro “Marinha” (óleo, 121cmx84cm), Dorian Gray, 1994 ................................................. 68 Imagem 9: Fotografia de Dorian Gray e Câmara Cascudo ao lado da pintura O Cangaceiro, 1955 ......... 70 Imagem 10: Fotografia de Câmara Cascudo, Dorian Gray e Djalma Maranhão em Exposição de 1956 ... 73 Imagem 11: Painel-mosaico na fachada do prédio do IPASE, Newton Navarro e Dorian Gray, 1956 ...... 74 Imagem 12: Ilustração de Dorian Gray na capa de edição comemorativa do jornal A República, 1957 .... 80 Imagem 13: Dorian Gray, Nympha Rabelo, Elói Caldas e a escultura Mater Potens, 1960. .................... 82 Imagem 14: Quadro “Sobradões” (óleo, 96cmx66cm), Dorian Gray, 1964 ............................................... 87 Imagem 15: Detalhe do Mural “Motivos Folclóricos”, Dorian Gray, 1967............................................... 93 Imagem 16: Gravura do álbum “Congos”, Dorian Gray, 1972 .................................................................. 94 Imagem 17: Tapeçaria “Barcos” (135cmx165cm), Dorian Gray, 1978 .................................................. 104 Imagem 18: Tapeçaria “Apanhadoras de algodão”, Dorian Gray, 1977 .................................................. 110 Imagem 19: Tapeçaria “Bumba meu boi” (2,73mx3,96m), Dorian Gray, 1972 ....................................... 112 CAPÍTULO 3 Imagem 20: Quadro “Casario entre verdes” (óleo, 47cmx32cm), Dorian Gray, 1977 ............................. 117 Imagem 21 – Quadro em homenagem a Câmara Cascudo (óleo, 3mx2m), Dorian Gray, 2008 ............... 143.

(10) SUMÁRIO. INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 10 1. A FAMÍLIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO ARTISTA ...............30 1.1 Dorian Gray Caldas e seus “instrumentos do sonho” ...............................................30 1.2 O alicerce da “casa-atelier”: Caldas, Moura, Rabello ..............................................31 1.3 As paredes da “casa-atelier”: a cidade vivida na infância ........................................46 1.4 Criação, experimentação e trabalho: o corpo e a alma da casa-atelier .....................52 2. A ARTE DE DORIAN GRAY: ENTRE A TRADIÇÃO E O MODERNO ........56 2.1 A inserção na modernidade e o “grupo dos novos” ................................................57 2.2 Da arte despretensiosa ao compromisso com a formação da identidade regional ....65 2.3 Entre a figuração regional e a incorporação de referenciais locais ..........................84. 3. IMAGENS PARA UM “RETRATO” DE DORIAN GRAY ..............................114. 3.1 Um possível “autorretrato” de Dorian Gray ...........................................................115 3.2 “Eu e Navarro”: os outros, discípulos ....................................................................123 3.3 “Retratos” do artista: traços de um quadro eternizado ...........................................131. CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................148. FONTES E BIBLIOGRAFIA ...................................................................................155. ANEXOS.......................................................................................................................165.

(11) 10. INTRODUÇÃO. Apresentação da problemática. Em março de 2005, tendo como cenário os painéis-murais instalados no hall da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, que apresentam cenas sobre personagens da narrativa historiográfica norte-rio-grandense, como Clara Camarão, André de Albuquerque e Frei Miguelinho, o entrevistado do programa Gente que acontece, que, naquele ano, completava 55 anos de arte, justificava sua escolha pelos temas de suas pinturas afirmando tratar-se de obras que “resgatam a história heroica do nosso Estado”1. Naquele mesmo ano, ao receber uma equipe do programa Mundo da Arte, produzido pela Rede de TV Sesc/Senac, de São Paulo, o mesmo convidado declarava ter uma dívida para com a cidade do Natal e o seu povo, razão pela qual havia se doado a ela como seu pintor, ao registrar seu cotidiano, seus autos folclóricos e figurantes2. Em 2007, interpelado por uma plateia de graduandos em Jornalismo, que atuavam na condição de entrevistadores do programa televisivo Xeque-Mate, o ilustre personagem dizia ter feito muito por seu Estado, por sua cidade e por seu povo, supondo ser este o motivo que lhe rendera o reconhecimento público3. Todas as cenas descritas, protagonizadas por Dorian Gray Caldas, revelam algumas das preocupações frisadas pelo artista nos últimos anos de sua vida: a necessidade de afirmar a imagem de si como o representante máximo da arte produzida no Rio Grande do Norte, cuja obra expressaria uma relação de identidade com a cidade de Natal e seu Estado, lugares assumidos por ele como lócus e inspiração de sua produção artística. Uma relação que ele já construía na década de 1980 num depoimento ao programa Memória Viva: Estamos aí com esses trinta e tantos anos de pintura devotada à terra. Eu sou um telúrico, eu jamais traí as minhas origens, faço sempre aquilo que eu sinto, que me emociona, que me toca e sensibiliza. Jamais consegui ser um abstrato, embora tenha começado a pintar, em 1950, com uma arte abstrata, com um trabalho abstrato. Mas. 1. GENTE que acontece. Direção: Diógenes Dantas. Apresentação: Georgia Nery. Produção: Rosa Medeiros. Realização: TV Assembleia de Natal. Natal, 18 mar. 2005. 1DVD (31min). 2 DORIAN Gray: modernidade e tradição potiguar. Programa Mundo da Arte. Direção do programa: Zezo Cintra. Direção geral: Sandra Regina Cacetari. Produção: STV Rede Sesc/Senac de Televisão. Natal, 2005. 1DVD (22min). 3 XEQUE-Mate. Apresentação: Ruy Costa. Produção: TV Universitária de Natal. Natal, 23 nov. 2007. 1DVD (59min)..

(12) 11. fui tomando conhecimento de todas as coisas que eu amava, de todas as coisas que eu sentia e que precisavam ser transmitidas através da arte4.. Mas, afinal de contas, quem era esse indivíduo? O que se sabe, previamente, sobre ele? Dorian Gray Caldas (Imagem 1) nasceu em 16 de fevereiro de 1930, em Natal, cidade onde sempre morou, vindo a falecer em 23 de janeiro de 2017. Casado durante 56 anos com Wanda Dione Barros Caldas, pai da artista plástica Dione Caldas e do poeta Adriano Caldas, nascidos, respectivamente, em 1964 e 1971, avô de duas netas, Dorian Gray morou por quase 60 anos numa espécie de casa-atelier, situada na rua Ana Nery, no bairro Petrópolis, adquirida como herança dos pais – Elói Caldas e Nympha Rabelo.. Imagem 1: Dorian Gray Caldas em sua casa-atelier, 2014.. Foto: Glácio Menezes. Dorian emergiu como artista em 1950, no I Salão de Arte Moderna de Natal, ao lado de Newton Navarro5 e Ivon Rodrigues de Albuquerque6. Naquele momento, Newton acabava de. 4. LYRA, Carlos (Coord.). MEMÓRIA Viva de Dorian Gray Caldas, Newton Navarro, Leopoldo Nelson. Natal: EDUFRN, 1998. 5 (Natal, 1928-1992), Desenhista, pintor, dramaturgo, poeta, contista e cronista. In: CARDOSO, Rejane (Coord.). 400 nomes de Natal. Natal: Prefeitura Municipal, 2000. p.577-578. 6 Não se sabe muito sobre ele, a não ser que não era natalense e trabalhava no IPASE (Instituto de Pensão e Aposentadoria dos Servidores do Estado), tendo sido transferido de Natal pouco tempo depois dessa exposição..

(13) 12. retornar do Recife, onde frequentou cursos de pintura no atelier do artista Lula Cardoso Ayres e participou de exposições de arte moderna com diversos outros artistas “novos” de Pernambuco, como Aloízio Magalhães, Reinaldo Fonseca, Abelardo Rodrigues, Hélio Feijó e Cícero Dias, ligados ao movimento regionalista-tradicionalista, que surgiu nos anos vinte, liderado pelo sociólogo Gilberto Freyre. A partir daquele Salão de Arte Moderna de 1950, Navarro e Dorian se tornaram parceiros, seguindo uma trajetória, ora em paralelo, ora em conjunto, tornando-se as principais referências no campo das artes plásticas potiguares. Dorian Gray expressou sua arte em diversas formas e linguagens: do desenho passou para a pintura de cavalete e a pintura mural, praticou a gravura, experimentou a cerâmica e a escultura, e ganhou notoriedade com a tapeçaria, que resultou na sua principal fonte de renda. Além de artista plástico, foi poeta e ensaísta. Na década de 1960, realizou suas primeiras exposições fora de Natal, ao passo em que ocupou cargos de gestão cultural no Governo do Rio Grande do Norte, como diretor do Teatro Alberto Maranhão e do Museu de Arte e História, além de ter atuado como membro do Conselho Estadual de Cultura e assessor da Fundação José Augusto. Dorian Gray realizou exposições em várias cidades brasileiras, o que explica a difusão de suas obras em todo o território nacional. Todavia, é em Natal que se concentra a maior parte de sua produção. Nessa cidade, existe um vasto acervo de obras nas coleções de arte de diversas repartições públicas federais e estaduais, em entidades privadas, em unidades bancárias, em praças públicas e edifícios residenciais. No estrangeiro, inseriu obras suas na sede do Banco do Brasil, em Zurique, na Suíça; no Departamento de Segurança da Casa Branca e no Banco Interamericano de Desenvolvimento, nos Estados Unidos; em Revin, na França, e no Museu de Artes Decorativas de Buenos Aires, Argentina, entre outros lugares. Como escritor, publicou mais de 40 livros, entre poesia, álbuns de desenho e gravura, dicionários biográficos e ensaios. Integrou a Academia Norte-rio-grandense de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e a União Brasileira de Escritores/Seção RN, tendo sido agraciado, em 2008, com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Como se pode perceber a partir desses breves traços biográficos, Dorian Gray Caldas foi um personagem que manteve uma intensa relação com a arte, a qual se dedicou por mais de 60 anos, conquistando um espaço para inserção de sua obra que poucos artistas conseguiram obter. Além disso, sua presença em órgãos do governo e nas instituições culturais citadas indica que se tratava de um sujeito bem relacionado na cidade..

(14) 13. Pelos relatos com os quais iniciei este texto, nota-se que Dorian se via como um artista que já havia obtido a consagração pública em sua terra, fato que ele próprio atribuía à sua sensibilidade estética voltada para a história desse lugar, sua gente, suas festas populares e seu cotidiano. Mas o que levou o artista a se interessar por essas temáticas? Como ele construiu sua relação com a cidade? De que forma a arte ganhou centralidade na vida dele? Seu envolvimento com a atividade artística na capital potiguar, mal terminada a Segunda Guerra Mundial, conflito que produziu profundas transformações em Natal, decorrentes da presença de uma base militar norte-americana e da chegada de inúmeros migrantes, que fez duplicar sua população7, me permitiu associar o fazer cultural desse artista à confluência de “novos” valores em circulação e “novas” ações de modernização na cidade. Morador do bairro Cidade Alta, vizinho ao bairro da Ribeira, que, na época, ainda constituíam o centro da vida política, comercial e cultural da cidade, entre a fase da adolescência e da juventude Dorian Gray vivenciou muitas mudanças na moda, nos hábitos, no linguajar e nas formas de sociabilidade da população. Foi impactado pelo aumento do fluxo de sons e imagens que chegavam à cidade, seja pelo rádio, que ampliava sua presença na capital, pelos discos de vinil, revistas, jornais, e, sobretudo, pelo cinema, principal lazer dos jovens de sua geração, em cujas salas predominavam filmes estadunidenses. Muitos de seus contemporâneos, que mantinham espaços fixos na imprensa, se manifestavam a respeito dessas “novidades” e seus paradoxos. Enquanto uns comemoravam a chegada da “cenotécnica moderna”, que permitia a “renovação da arte do tablado” pelos grupos teatrais locais8, outros criticavam “as influências alienígenas e niveladoras” da mídia, que contaminavam os cartões de boas festas do Natal com “paisagens de pinheiros e flocos de neve” 9; enquanto alguns festejavam o soerguimento da Escola Técnica de Aviação Civil 10 e a “intensa fase de construções em grande estilo” no bairro da Ribeira, de “linhas arquitetônicas e feições novas” 11, outros faziam campanha pela “revivescência dos folguedos tradicionais do folclore regional” 12. É a partir desse momento de transformações, que iriam repercutir tanto na materialidade do espaço urbano, quanto na vida social, política, cultural e econômica citadina, que Dorian. 7. TORQUATO, Arthur Luís de Oliveira. O plantador de cidades e a criação do espaço moderno: a construção de uma Natal moderna na administração Sylvio Pedroza (1946-1950). Dissertação (Mestrado em História – UFRN). Natal, 2011. 8 CHAGAS, Francisco das. À guisa de comentário. A República, 22 abr. 1950. 9 MELO, Veríssimo de. Cartões de boas festas. A República, 05 jan. 1950. 10 FESTIVIDADE Escola Técnica de Aviação. A República, 03 maio 1950. 11 “REVISTA da Cidade”. A República, 28 mar. 1950. 12 PROTEÇÃO aos Folguedos. A República, 07 maio 1950..

(15) 14. Gray se inscreve como artista em Natal. Para inserir-se na ordem estética da modernidade foi buscar seus modelos no abstracionismo, expondo, primeiramente, quadros abstratos. Mas o que o faria mudar essa concepção inicial e passar a conceber sua arte como forma de expressão telúrica? Essa é uma das questões que este trabalho se propõe a responder a partir do estudo da sua trajetória de vida, que tem como objetivo central investigar como Dorian Gray Caldas construiu uma identidade pessoal alicerçada na arte moderna e de que forma seu protagonismo interferiu na constituição de uma arte potiguar. Nas décadas que se seguiram à sua estreia pública, Dorian exerceu múltiplas atividades na capital potiguar: participou de exposições, ornamentou festas e clubes, produziu vitrines, cenários e figurinos para peças de teatro, ilustrou capas, livros, revistas e jornais, desenhou medalhas e troféus, pintou retratos e murais, fundou galerias de arte, instalou monumentos e painéis em espaços públicos urbanos. No entanto, como se produziu a imagem de Dorian Gray como artista? De que forma ele construiu uma modernidade artística para Natal? A trajetória de vida de Dorian Gray Caldas também mostrou sua implicação com as atividades de gestão cultural, ao assumir cargos públicos entre o final dos anos 60 e meados dos anos 70, num momento em que o Estado e o município de Natal modernizavam sua máquina administrativa, criando órgãos, como a Fundação José Augusto, ou funções específicas13, que passaram a ser ocupadas por intelectuais e artistas da cidade, atraídos para exercerem atividades relacionadas às suas “especialidades” profissionais. Afastado do funcionalismo público, no princípio da década de 1970, Dorian se tornaria empresário de sua própria arte, montando, em casa, uma oficina de produção de tapeçaria, com a qual se tornou conhecido fora das fronteiras do Estado e do país. Nessa perspectiva, quais as estratégias usadas por ele para ser reconhecido pela elite intelectual e política de Natal como um artista de qualidade? Do ponto de vista temporal é possível afirmar que foi no período de 1950 a 2008 que o artista consolidou uma variada produção artística no seio da sociedade natalense. Entretanto, optei por priorizar minha análise sobre a sua trajetória de vida ao período compreendido entre os anos de 1950, quando ele foi apresentado como um artista moderno para a cidade do Natal, e 1989, momento em que Dorian consolidou a ideia de uma arte potiguar com a publicação do livro Artes Plásticas do Rio Grande do Norte.. 13. APROVADO o projeto que cria o cargo de diretor da Diretoria de Documentação e Cultura. A República, 05 maio 1950..

(16) 15. A despeito do fato de Dorian Gray reivindicar seu papel de precursor de uma modernidade artística natalense, no final da década de vinte a cidade já havia vivenciado algumas experiências artísticas modernas, protagonizadas pelos desenhistas e caricaturistas Adriel Lopes14 e Erasmo Xavier15, que, entre outros trabalhos, produziam capas e ilustrações para a revista Cigarra (1928-1929), editada pelo cronista social Aderbal de França, que assinava com o pseudônimo de Danilo16. Por ocasião dos 70 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, a UFRN produziu um seminário, que resultou em livro, e que visava, entre seus objetivos, “resgatar as manifestações locais e regionais”17 daquele movimento no Rio Grande do Norte. Num dos artigos, o professor de Arte, Antônio Marques de Carvalho, que utilizou como uma de suas fontes o citado livro de autoria de Dorian Gray, garantia que Erasmo Xavier teria sido, “entre nós, o precursor inquestionável, no campo das artes visuais, da estética modernista” e que, “só não criou um movimento artístico local porque morreu prematuramente” 18. Para Antônio Marques, a morte prematura de Erasmo o impossibilitara de constituir “discípulos”, o que justificava, na sua visão, a descontinuidade da arte moderna em Natal, verificada até 1948, quando emergiria o artista Newton Navarro, tendo predominado, dos anos trinta até o final dos anos quarenta, uma estética acadêmica, praticada pelos pintores Moura Rabello19, Murilo La Greca20, Hostílio Dantas21 e Cícero Vieira22. Quando Dorian Gray fez sua estreia em Natal, apenas Cícero Vieira exercia atividade artística na cidade, e, mesmo assim, com exposições esporádicas23; Murilo La Greca morava em Recife; Hostílio Dantas e Moura Rabello haviam se mudado para a então capital da República - Rio de Janeiro, este último, em 1935. Moura Rabello era tio materno de Dorian Gray, e foi à atuação desse parente que ele associou seu interesse e ligação com a arte, justificando sua decisão de fazer a exposição dos anos cinquenta pela “necessidade de retomar o processo artístico do Rio Grande do Norte” 24. 14. Natal-RN (1900-1930), poeta, desenhista e caricaturista. Natal-RN (1904-1930), desenhista, caricaturista, cenógrafo e fotógrafo. 16 CARVALHO, Isabel Cristine Machado de. Revista Cigarra: cenário social de Natal nos anos de 1920. Quipus, Natal, ano 1, n.2, jun./nov. 2012, p.81-98. 17 ______. Op. cit. Apresentação, p.5. 18 CARVALHO JUNIOR, Antonio Marques de. O modernismo nas artes plásticas (p.71-73). In: DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). 70 anos de Modernismo: coletânea de ensaios. (Coleção Humanas Letras). Natal: UFRN-CCHLA, 1994. 19 Natal/RN (1895-1979), poeta, pintor e retratista. 20 Palmares/PE (1899-1985), pintor. 21 São José de Mipibu/RN (1894-1975), desenhista, pintor e escultor. 22 Natal/RN (1898-1957), pintor, professor, tabelião. 23 INAUGURADA a exposição do pintor Cícero Vieira. A República, 17 jan. 1950. 24 Entrevista concedida à autora em 12 nov. 2015. 15.

(17) 16. Desde o momento em que começou a se envolver na vida cultural de Natal, no final dos anos quarenta, Dorian Gray se inseriu em meio a uma intelectualidade, formada, sobretudo, por poetas, jornalistas e escritores, e, mais tarde, por outros artistas, que tinham por referência maior, na cidade, a figura do folclorista Luís da Câmara Cascudo. Esse intelectual teve um papel ativo na construção intelectual do Rio Grande do Norte como identidade espacial. O próprio vocábulo “potiguar” se afirmou como gentílico atribuído aos norte-rio-grandenses a partir da argumentação construída por Cascudo, ainda na década de trinta, como a autoridade escolhida pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte para produzir parecer a esse respeito25. Cascudo foi o autor da primeira “História da Cidade do Natal” (1947) e de “História do Rio Grande do Norte” (1955), para citar apenas dois exemplos do seu papel na produção historiográfica dessa espacialidade potiguar. Como parte desse trabalho de construção identitária, Cascudo teve participação ativa na condição de fundador ou sócio fundador de diversas entidades culturais no Rio Grande do Norte, entre elas, a Sociedade de Cultura Musical (1932)26, a Academia Norte-rio-grandense de Letras (1936)27, o Teatro Cultura de Natal (1955), a Sociedade Araruna de Danças Semidesaparecidas (1956)28 e o Clube dos Trovadores Potiguares (1965)29. Da mesma forma que Cascudo se envolveu na promoção das mais diversas manifestações culturais locais, a produção da arte moderna também interessaria a esse folclorista e pesquisador. Por essa razão, Dorian Gray passou a integrar seu círculo de sociabilidade, pelo menos, desde 1955, quando pintou uma obra, em sua biblioteca particular, supostamente, atendendo a uma encomenda do próprio Cascudo. As ligações afetivas e intelectuais entre o pesquisador e a família do artista plástico remontavam aos tios maternos de Dorian - o pintor Moura Rabello e seu irmão, Luiz Rabelo. Nesse sentido, ao longo desta dissertação procuro demonstrar como Dorian Gray participou da constituição de uma arte potiguar a partir da associação de sua obra pictórica com um universo cultural inspirado no repertório de pesquisa de Câmara Cascudo. Essa linha de investigação adotada não implicará, no entanto, em análise formal das obras do artista, mas na análise das suas escolhas pessoais, das estratégias de promover uma 25. CASCUDO, Luís da Câmara. O nome “Potiguar”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. vol. XXXII-XXXIV, 1935-1937. Natal: Tipografia Santo Antônio, 1940. p.37-46. 26 GALVÃO, Cláudio Augusto Pinto. Alguns compassos: Câmara Cascudo e a música (1920-1960). Tese (Doutorado em História Social da USP). São Paulo, 2010. 27 GUERRA, Cecil. Academia Norte-rio-grandense de Letras: um esboço prosopográfico dos patronos e primeiros ocupantes. In: COLÓQUIO NACIONAL HISTÓRIA CULTURAL E SENSIBILIDADES – Sertões: Histórias e Memórias, 06, nov. 2016, Caicó/RN, p.854-860. Anais... Caicó: UFRN/CERES, 2016. 28 ARARUNA. Sociedade de Danças Antigas e Populares. A República, 25 jul. 1956. 29 CASCUDO falou sobre trovas e recebe placa. Diário de Natal, Natal, 28 mar. 1966, p.6..

(18) 17. melhor aceitação do seu trabalho, dos condicionantes sociais do seu percurso artístico, das relações estabelecidas com Cascudo e outros intelectuais potiguares e da incorporação de demandas e expectativas do público e da crítica, que foram conduzindo Dorian em direção a uma arte identificada à representação de uma dada espacialidade regional e local. Nessa perspectiva, para pensar a relação entre história e espaço tomei como critério de escolha conceitual o fato de meu objeto estar centrado numa trajetória de vida, portanto, na experiência de um indivíduo. Dessa forma, me proponho a pensar o espaço como o lugar significado por Dorian Gray Caldas por meio de sua arte. Elaborada pelo geógrafo sino-americano, Yi-Fu Tuan, essa concepção se baseia numa geografia humanista centrada no sujeito, no seu comportamento, nas percepções e valores que ele desenvolve em relação ao espaço percebido, sentido ou racionalizado a partir da perspectiva experiencial, que, por sua vez, “implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência”, de “atuar sobre o dado e criar a partir dele” 30. Segundo Yi-Fu Tuan, o lugar pode nascer da intimidade das relações pessoais ou da intensidade com que vivenciamos certos acontecimentos. De acordo com o autor, o lugar pode ser qualquer espaço tomado como centro de significado para um indivíduo: a casa, a cidade, a região, a nação, uma rede de lugares, uma meta ou até mesmo uma pessoa. No entanto, para esse geógrafo, o sentido do lugar depende da vivência humana, exige permanência e envolve relações de afeto, intimidade e pertencimento. Ao contrário do espaço, que remete à amplitude, à ausência de um sentido de pertença, é o lugar que constrói identidade ou que representa a face identitária construída a partir da experiência dos sujeitos. Nessa perspectiva, tentarei mostrar, nesta dissertação, que Dorian Gray procurou construir uma imagem pictórica para Natal e o Estado a partir de suas experiências na cidade, representando, em sua obra, os lugares de seus afetos, de seus desejos, de seus sonhos. Aspectos teórico-metodológicos. Esta dissertação está fundamentada em uma escrita biográfica. Assim, a fim de permitir a fluidez da narrativa, optei por apresentar a base conceitual que fundamenta a maior parte do texto nesta seção introdutória, embora ciente de que o referencial teórico-metodológico adotado deve perpassar o conjunto do texto da dissertação, ainda que de forma implícita.. 30. TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2013. p.18..

(19) 18. Para empreender o estudo, o caminho escolhido foi o da elaboração de uma biografia histórica, expressão usada pela historiadora italiana Sabina Loriga31 para definir um gênero historiográfico que enfatiza a dimensão individual nos processos históricos, marcando uma atitude distinta da impessoalidade que caracterizou boa parte da historiografia moderna e contemporânea. Preocupada com o fenômeno que chamou de desertificação da história, a autora propõe povoá-la de rostos e nomes, restituindo a legitimidade da biografia ao discurso histórico, que, durante muito tempo, ao se embasar no modelo da busca das regularidades e da construção de leis gerais, ocultou os sujeitos em categorias impessoais, desprezou a diversidade e a pluralidade das vozes do passado. Portanto, produzir uma biografia histórica, na perspectiva da autora, significa partir do pressuposto de que todo ser humano contribui para o curso geral da história com sua parcela pessoal, sua singularidade, seu “pequeno X”. Implica compreender que os fenômenos históricos resultam da ação recíproca dos indivíduos, com todos os componentes racionais e subjetivos que esta envolve – estratégias, escolhas, paixões e intenções, bem como os dilemas da angústia, da incerteza, do acaso e até mesmo a fatalidade32. Dessa forma, para analisar a trajetória de vida de Dorian Gray e sua participação na construção de uma modernidade artística será necessário reconstituir, em múltiplos espaços e temporalidades, a rede de relações na qual esse indivíduo inscreveu suas práticas sociais. A propósito da noção de modernidade, neste trabalho ela é compreendida nos termos das reflexões propostas por Marshall Bermann, para quem o fenômeno comporta duas dimensões indissociáveis: espiritual e material. Na sua concepção, a modernidade pode ser pensada em inúmeros e fragmentários caminhos, comporta paradoxos e contradições. Para este autor, no entanto, os modernismos são inseparáveis dos processos de modernização33. A polêmica em torno da desconfiança na possibilidade de se escrever uma vida foi levantada, em meados dos anos 80, pelo sociólogo Pierre Bourdieu, em artigo intitulado “A ilusão biográfica”, no qual alertou sobre os riscos de pressupor a existência humana como um caminho de sequências ordenadas, orientado a um determinado fim, quando, na prática, a. 31. LORIGA, Sabina. O pequeno X: da biografia à História. Tradução de Fernando Scheibe. (Coleção História e Historiografia). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. 32 SCHMIDT, Benito Bisso. Entrevista com Sabina Lorina: a biografia histórica. MÉTIS: história & cultura, Caxias do Sul, v. 2, n. 3, p. 11-22, jan./jun. 2003. Disponível em: <http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/viewArticle/1038>. Acesso em: 29 abr. 2016. 33 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria I. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986..

(20) 19. suposta linearidade subjacente aos relatos da trajetória de um sujeito é fruto da construção do historiador34. Em vista disso, esclareço que a noção de trajetória, adotada neste trabalho, está em consonância com a adoção do método onomástico, presente na microhistória italiana, que consiste na utilização do nome próprio como fio condutor da investigação de fenômenos circunscritos. Segundo Ginzburg (1989), que propôs a nominação como bússola das suas microanálises historiográficas, seguindo “as linhas que convergem para o nome e que dele partem” o observador verá que “pouco a pouco emerge uma biografia, embora seja inevitavelmente fragmentária, e a rede das relações que a circunscrevem” 35. A opção pelo gênero da biografia histórica exige uma concepção clara da relação entre o sujeito singular e o coletivo. Nesse sentido, para os propósitos deste estudo utilizo a noção de configuração social, elaborada por Norbert Elias (1994). De acordo com o sociólogo, indivíduo e sociedade não existem de forma antagônica, tampouco constituem entidades distintas. Para ele, assim como a sociedade não pode ser compreendida como o resultado da soma de indivíduos isolados, cada indivíduo só se constitui enquanto tal dentro de um processo relacional, no interior de uma sociedade específica. Esse processo de individualização, conforme o autor, ocorre na medida em que, ao longo da nossa existência, estamos constantemente inseridos numa trama social, que ele chama de estrutura ou configuração, que se modifica de acordo com a mudança de função ou posição ocupada pelos indivíduos na rede de relações sociais de interdependência, na qual se está implicado. Essa trama social, segundo Elias, está sujeita a leis próprias, muitas das quais invisíveis, mas que permitem, a cada pessoa singular, dentro de um limite de possibilidades – aquelas permitidas pela configuração na qual se inscreve -, ser capaz de modificar os processos históricos, ainda que de forma não planejada. A tarefa de acompanhar a trajetória de uma vida implica também tomar a experiência como noção central para entender o caráter distinto e único das práticas e comportamentos sociais do sujeito, tendo em vista que “a experiência é do campo do individual, do particular e do inimitável”36. Como reforça a historiadora Adriana Barreto, a concretude da experiência se situa no interior de uma estrutura de rede, na qual cada sujeito ocupa uma posição. Assim, 34. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2006. p.183-191. 35 GINZBURG, Carlo; CASTELNUEVO, Enrico; PONI, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: ______. A micro-história e outros ensaios. Tradução de Antonio Narino. (Coleção Memória e Sociedade). Rio de Janeiro: Difel, 1989. p.169-178. 36 SOUZA, Adriana Barreto de. Biografia e escrita da história: reflexões preliminares sobre relações sociais e de poder. Revista Universidade Rural, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 27-36, jan./jul. 2007. p.33.

(21) 20. “estudar relações sociais” – marcadas sempre, segundo ela, por relações de poder – “é analisar a interação entre pessoas, o modo como agem, as decisões tomadas (ou forçadas a tomar) e como elaboram essas experiências”37. Cabe esclarecer que a proposta desta dissertação não é produzir uma biografia do tipo modal, qualificação atribuída pelo historiador italiano Giovanni Levi aos estudos nos quais os indivíduos biografados apenas ilustram um contexto histórico, uma ação coletiva, um comportamento ou normas comuns a um grupo ou categoria social. Os produtores dessa abordagem do tipo representativa, que, segundo François Dosse, teria marcado o retorno da biografia à escrita historiográfica no final da década de 1980, optaram por um modelo que lhes permitisse tomar certos indivíduos por uma categoria inteira, insistindo na busca das regularidades, dos traços comuns, em detrimento do sujeito singular. Nesse sentido, Dosse lamenta, tal como Giovanni Levi, que, nesses trabalhos, “o contexto seja frequentemente descrito como rígido, coerente, e sirva de pano de fundo imóvel para explicar a biografia”, ou seja, “os destinos individuais inserem-se num contexto, mas não atuam sobre ele nem o modificam”. 38. . Para não incorrer nesse equívoco, nesta dissertação,. Dorian Gray Caldas não será pensado apenas como representante do grupo de artistas que mobilizaram a vida cultural natalense no recorte temporal demarcado, mas também naquilo que o particularizou, como sugerem, por exemplo, sua duradoura e quase exclusiva dedicação à arte, a multiplicidade de linguagens artísticas que experimentou, a amplitude da inserção da sua obra no Estado e o papel que assumiu no meio cultural norte-rio-grandense como produtor da memória da arte em seu Estado de origem39. A noção de lugares de sociabilidade40, tal como pensada por Sirinelli em seu estudo sobre os intelectuais, também será muito importante para este trabalho, pois me permitirá perceber como os indivíduos reunidos em torno da produção cultural natalense se organizavam e se relacionavam social e profissionalmente, construindo uma ambiência sociocultural e política favorável ao seu engajamento e produção. Nessa perspectiva, além dos salões de exposição e galerias de arte, a imprensa constituiu um desses lugares de sociabilidade e de inserção dos trabalhos de Dorian Gray na 37. Id. Ibid., p.33. DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EDUSP, 2009. p.222. 39 A obra Artes Plásticas no Rio grande do Norte (1920-1989) denominada por Dorian Gray “Dicionário Biográfico” dos artistas que atuaram nesse período no estado, tornou-se referência entre os estudos sobre uma memória da arte no Estado. 40 SIRINELLI, Jean-François. Os Intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p.231-269. 38.

(22) 21. capital potiguar. Muitos dos seus colaboradores transitavam por várias revistas e jornais simultaneamente. Dorian Gray era um deles, por meio dos quais daria visibilidade aos seus poemas e ilustrações. Além da Revista de Letras, colaborou como ilustrador das revistas Cactus, editada pela Secretaria Estadual de Educação e Cultura, e Rumos, pertencente ao Diretório Acadêmico Amaro Cavalcanti, da Faculdade de Direito de Natal, além dos jornais de maior circulação da cidade, como A República, O Poti e o Diário de Natal. No tocante às fontes e metodologia adotadas nesta dissertação, cabe mencionar que a intenção inicial era priorizar as fontes orais. No entanto, no decorrer das entrevistas de história oral de vida, e a partir do contato com parte do acervo particular do biografado, percebi a penetração que ele alcançou na mídia local, como colaborador ou personagem da notícia. Assim, como argumenta o oralista Alessandro Portelli (2007), principal referência teórica adotada neste trabalho no tocante à história oral, as fontes orais e escritas não são mutuamente excludentes. Ambas possuem características autônomas e funções específicas, que apenas uma ou outra pode preencher ou um conjunto delas preenche melhor que a outra. Por essa razão, decidi trabalhar com ambas. Entre a documentação escrita, predominam fontes jornalísticas, produzidas a partir de pesquisa nas edições impressas do jornal A República (1950-51/1955-1960), pertencentes ao Arquivo Estadual do Rio Grande do Norte, e nas versões digitais dos jornais O Poti e Diário de Natal (1957-1989), disponibilizadas pela Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A opção pelas fontes periódicas visa perscrutar as redes de sociabilidade, formas de organização e ação de Dorian Gray e dos sujeitos ligados ao meio artístico e intelectual de Natal. Entendendo que a imprensa possui historicidade e peculiaridades próprias, Heloísa Cruz e Maria do Rosário Peixoto41 alertam para o reducionismo de tomar o jornal como mera fonte de informação, sem considerar que sua produção representa uma prática instituidora da realidade social, além de estar sujeita a regras e interesses mercadológicos. É com base nessas premissas que analiso as fontes jornalísticas, atentando para os diversos elementos envolvidos nessa prática social. A propósito da história oral de vida, o historiador José Carlos Sebe Bom Meihy42 a distingue da história oral temática por tomar como objeto a vivência pessoal, as “verdades individuais” do sujeito, enquanto esta última se dedicaria à análise de algum assunto 41. CRUZ, Heloísa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, n.35, p.253-270, dez. 2007. Disponível em: <http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/2221/1322>. Acesso em 29 maio 2016. 42 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Definindo história oral e memória. Cadernos CERU, São Paulo, n.5, série 2, p.52-60, 1994. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/cerusp/article/view/83299>. Acesso em 07 abr. 2016..

(23) 22. específico a partir das experiências compartilhadas por um grupo. Dentre as tendências contemporâneas dessa abordagem teórico-metodológica, decidi adotar a inspirada na prática de Alessandro Portelli, cuja lição principal é mostrar que o que torna a história oral diferente é que ela “nos conta menos sobre eventos que sobre significados”. 43. . Mesmo admitindo a. memória como fenômeno social, constitutiva da identidade dos sujeitos, sua proposta é tomála não apenas por seu conteúdo, como depositária de informações do passado, mas visando sondar os processos subjetivos que envolvem sua produção e interpretação, sua capacidade de operar múltiplos significados. Segundo este autor, no esforço de conferir um sentido ao seu passado, o depoente lança mão de recursos que cumprem distintas funções narrativas, desde o ritmo que imprime à história contada, conforme a relevância pessoal do tema; os eixos narrativos predominantes ou secundários; o uso da periodização, ao demarcar e diferenciar os eventos-chave, que foram determinantes na sua história de vida, dos eventos simultâneos ou deles decorrentes; além do destaque conferido aos acontecimentos da esfera da vida pública ou da vida privada. Para ele, a importância dos relatos orais “repousa não tanto em suas habilidades de preservar o passado quanto nas muitas mudanças forjadas pela memória”, que “revelam o esforço dos narradores em buscar sentido no passado” e situar “a narração em seu contexto histórico”44. A ênfase de Portelli ao analisar as narrativas orais de vida está centrada, portanto, na organização formal dos relatos45, sobretudo, no modo como os sujeitos organizam o tempo da sua história contada, o que, para ele, pode nos dizer muito acerca do sentido de uma vida: onde o depoente principia seu relato? Onde ele situa o antes e o depois? Que significados atribui aos marcos temporais evocados pela memória? E, por fim, como o depoente hierarquiza suas experiências pessoais associando-as a referentes espaciais mais ou menos dominantes, como família, trabalho e instituição. Além de Dorian Gray, que constitui a principal das fontes orais utilizadas nesta pesquisa, produzi ainda entrevista com dois artistas plásticos que integraram o seu círculo social mais próximo: Túlio Fernandes de Oliveira Filho e Iaperi Soares de Araújo. Nessas entrevistas, busquei captar as imagens que eles produziram acerca de Dorian Gray.. 43. PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História: Cultura e Representação, São Paulo, n.14, p.25-39, fev. 1997. p.31. Disponível em: <revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/11233 /8240>. Acesso em 17 maio 2016. 44 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Op. cit., 1997, p.33. 45 GATTAZ, André Castanheira. Metahistória. In: ______. Braços da Resistência: uma história oral da imigração espanhola. São Paulo: Xamã, 1996. p.233-270..

(24) 23. A produção das entrevistas em história oral. Em razão do uso de fontes orais, reservei esta seção para discorrer sobre o processo de condução das entrevistas produzidas com Dorian Gray Caldas, etapa que constitui uma exigência metodológica essencial para o historiador que trabalha com esse tipo de fonte46. O objetivo é expor algumas das condições de produção e as formas pelas quais o depoente elaborou as lembranças do seu passado, ainda que essas questões sejam melhor exploradas nos capítulos 1 e 3, que privilegiam mais o uso dessas narrativas. Para o oralista italiano, Alessandro Portelli, a importância desses esclarecimentos reside no fato de que a memória e o relato oral são fruto de relações que estão em constante movimento e que interferem na produção do sentido de uma vida: a relação entre o presente em que se narra e o passado do qual se fala, entre o entrevistado e o entrevistador, entre o “eu” enunciador (o da história vivida) e o “eu” enunciado (o da história contada). Sendo assim, é de vital importância que o historiador, através de seu texto, aproxime, ao máximo, o leitor da experiência do encontro que o trabalho de campo lhe proporcionou. Outro aspecto a ser ressaltado diz respeito à montagem da narrativa historiográfica fundada na história oral. Segundo Portelli, é legítimo ao historiador recortar, montar e interpretar, no seu texto, fragmentos do relato do depoente, desde que mantenha a ética de não lhe atribuir palavras que não foram ditas. Para ele, embora os relatos de história oral se originem de uma entrevista na qual há sempre dois autores envolvidos, a produção historiográfica que deles resulta é fruto da construção narrativa do historiador47. Meu primeiro contato com Dorian Gray ocorreu em julho de 2014, depois que a editora do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), instituição com a qual tenho vínculo profissional, deu parecer favorável à publicação da sua coletânea de poesias - “Do outro lado da sombra”-, para a qual o autor havia pedido patrocínio. A fim de executar o projeto, a editora da instituição me incumbiu da tarefa de mediar a relação entre o autor e o IFRN, bem como de produzir um documentário audiovisual sobre ele. Na época, realizei cinco entrevistas, seguindo um roteiro semiaberto, explorando temas como: família, vivência em Natal, percurso artístico e literário. Um ano depois, com a anuência de Dorian, de sua esposa e de seus filhos, retomei o contato, desta feita, já no âmbito do Programa de Pós-graduação em História, com a proposta de investigar sua trajetória artística, utilizando, entre outros 46. Esse mesmo procedimento será feito em relação aos outros dois entrevistados, Túlio e Iaperi, no último capítulo da dissertação, quando eles aparecem na narrativa do trabalho. 47 PORTELLI, Alessandro. História oral como gênero. Traduções. Projeto História, São Paulo (22), jun. 2001. Disponível em: < http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/10728>. Acesso em: 11 dez. 2016..

(25) 24. recursos metodológicos, a história oral de vida, oportunidade na qual as entrevistas produzidas anteriormente foram textualizadas e legitimadas por Dorian Gray, sendo incorporadas à presente pesquisa. Entre setembro e dezembro de 2015 foram produzidas mais cinco entrevistas, além de três encontros nos quais Dorian me apresentou documentos e objetos do seu acervo pessoal, atendendo ao meu pedido de consulta ao seu arquivo particular. Embora lúcido, Dorian Gray já apresentava um quadro de saúde instável, devido a complicações do diabetes. Assim, restringi a produção das fontes orais a mais três encontros, ocorridos entre abril e agosto de 2016. Exceto por uma entrevista, todas as outras foram feitas em sua residência, a fim de evitar maiores deslocamentos do artista. No tocante às entrevistas de 2014, observei que a proposta do vídeo foi recebida por ele com naturalidade, afinal de contas o artista já havia consolidado uma versão de sua história de vida tantas vezes narrada para documentários, trabalhos escolares ou programas de televisão, como verifiquei no ano seguinte, ao ter acesso a uma parte dos seus arquivos audiovisuais48. Sua preocupação, naquele momento, era garantir a publicação da obra que reuniria sua produção poética desde os anos sessenta. Além do desejo de reafirmar, entre seus pares, seu lugar de escritor, com o projeto inadiável da coletânea de poesia, outra inquietação absorvia os pensamentos daquele senhor de 84 anos, cuja saúde oscilava a olhos vistos: a ansiedade em torno do que chamou de „viagem definitiva‟: “Eu tenho ainda muita coisa pra escrever e o tempo está indo embora. Essa é que é a verdade”, desabafou, após reconhecer o suporte recebido de Wanda, Dione e Adriano, sem os quais afirmou que “nada faria” 49. Dorian tinha pressa de viver. Queria criar o Instituto Dorian Gray Caldas para preservar seu acervo: “Antes de viajar, se não houver nenhuma precipitação na minha saúde, eu já deixo o Instituto pronto, pra funcionar como o Ludovicus, de Câmara Cascudo, porque como Fundação a gente perde. Eu tenho que conservar o meu patrimônio, não posso ter prejuízo”50. Essa atenção conferida à memória, aliada à constituição de arquivos pessoais, constituem práticas que a historiadora Ângela de Castro Gomes identifica como atos biográficos. Tais atitudes podem se traduzir, por exemplo, na escrita de cartas, diários, biografias e autobiografias, mas também na reunião e guarda de objetos que testemunham a passagem do indivíduo no mundo. Segundo a autora, essas ações representam modalidades de. 48. Programa Memória Viva, TV Universitária (1982; 2007); Programa Gente que Acontece, TV Assembleia do RN (2005); Programa O Mundo da Arte, TV SESC/SP, (2005), Programa Xeque Mate, TV Universitária de Natal (2007), Os tapetes de Dorian Gray, da professora Elizete Arantes (2009), Programa Cores e Nomes, Inter TV Cabugi (2010) e Natal por Dorian Gray, dos alunos do Curso de Rádio e TV da UFRN (2011). 49 Entrevista concedida à autora em 05 ago. 2014. 50 Idem..

(26) 25. “escrita de si” que se consolidaram com a emergência do sujeito ocidental moderno, aquele que “postula uma identidade singular para si no interior do todo social, afirmando-se como valor distinto e constitutivo desse mesmo todo” 51. A propósito dessa prática cultural, as narrativas de Dorian Gray fornecem pistas que apontam para uma atitude, por vezes, deliberada de “produção de si”, manifestada pelo apego e preocupação com o registro e guarda de sua obra plástica: Eu tenho mais de trezentas obras de Navarro, quer dizer, fotografias 52. Newton, como sempre foi uma pessoa desprendida de qualquer bem material, não guardou, como eu guardei, muita coisa que eu fiz e que eu achei que devia guardar. Ele fazia, improvisava, às vezes, até num bar, e doava o trabalho; quem pedia, ele dava. Ele sempre foi assim53.. As visitas à sua residência me permitiram o acesso a uma pequena parcela do seu acervo particular, selecionada por ele, na medida em que assim o decidia. Seu conjunto documental estava. organizado. segundo. uma. lógica. própria. do. seu. produtor,. constituído,. predominantemente, por recortes de jornais, cartas, ofícios, diplomas, croquis e arquivos audiovisuais. Em termos de objetos, Dorian guardou medalhas, troféus, livros, slides fotográficos com registros da tapeçaria e um acervo de pintura estimado em mais de mil quadros, datados desde os anos cinquenta. Embora a preservação dessas telas em seu poder evidenciasse um desejo de memória, Dorian esperava também que sua obra adquirisse maior valor de mercado, o que poderia lhe conferir maior consagração pública, o que explica o fato de ele ter dedicado algumas horas diárias, nos últimos anos de vida, a fazer pequenos restauros nos quadros: Eu digo sempre aqui em casa: vocês, que me sobreviverem, vão ficar ricos (risos). Adriano acha graça. Ficar rico coisa nenhuma! Essa foi uma opção! Eu estou fazendo uma opção pela arte! Então, a gente vê na história da arte universal, como eles são bem sucedidos como artistas. Tem artista que ficou rico em vida, tem outros que não ficaram ricos em vida, mas depois da morte, um quadro vale um edifício, não é? Então, é isso. É preciso você acreditar que vai sobreviver com o que você está fazendo!54. Em seus depoimentos, ao longo da pesquisa, a preocupação de Dorian Gray com sua imagem pessoal também era evidente. Ao ler a textualização das suas narrativas orais, o artista me pediu para suprimir expressões ou comentários relativos a eventos ou personagens que pudessem sugerir ofensas, julgamentos ou estados de humor negativos. Manifestava 51. GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: ______. Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004, p.11-12. 52 Entrevista concedida à autora em 15 out. 2015. 53 Entrevista concedida à autora em 03 dez. 2015. 54 Idem..

(27) 26. grande apreensão em garantir a grafia correta dos nomes de escritores ou artistas citados, provavelmente, pensando no lugar de circulação deste trabalho de pesquisa. Essa atenção com a imagem de si também se refletiu na preparação prévia em algumas ocasiões, especialmente, para com a seleção do acervo que me foi apresentado e comentado por ele: “Hoje eu tirei a manhã pra fazer esse levantamento jornalístico pra você”; “Olhe, eu separei muita coisa, aí você escolhe aquilo que for conveniente pra você!” 55. Outro aspecto percebido em suas entrevistas era a necessidade de Dorian de se autorrepresentar como a figura de um intelectual. Seus relatos estão repletos de referências de leitura e diálogos com outros escritores e interlocutores. A propósito dessa percepção, Portelli adverte que os “narradores orais têm dentro de sua cultura certas ajudas para a memória. Muitas histórias são contadas repetidas vezes ou discutidas com membros da comunidade” 56, o que explica a estreita relação entre a oralidade e a escrita na produção de relatos orais: “[...] muitos informantes leem livros e jornais, ouvem rádio e TV, escutam sermões e discursos políticos e guardam diários, cartas, recortes e álbuns de fotografias. A fala e a escrita, por muitos séculos, não existiram separadamente: se muitas fontes escritas são baseadas na oralidade, a oralidade moderna, por si só, está saturada de 57 escrita” .. Em todas as ocasiões das entrevistas, Dorian se apresentou como um homem discreto, sensível, gentil, amável, entusiasmado pela arte e a poesia, cauteloso e sutil nas críticas ou colocações. Demonstrou, porém, uma vaidade contida e, ao mesmo tempo, um esforço por manter-se como a figura central da narrativa, centralidade concedida apenas a personagens que, ao longo da sua trajetória de vida, lhe despertaram profundo afeto, interesse e admiração, a exemplo do tio materno, Luiz Rabelo, do amigo e artista, Newton Navarro, do pintor Cândido Portinari e do pesquisador Câmara Cascudo. Além das entrevistas com Dorian Gray, tentei investir na produção de um depoimento com sua esposa Wanda, que teve papel ativo na construção da memória e da identidade social do marido, com quem se casou em 09 de julho de 1961, na antiga Catedral de Natal, Nossa Senhora da Apresentação58, e com quem teve dois filhos, Dione e Adriano59. Um dos primeiros indícios do protagonismo de Wanda na produção da imagem do artista Dorian é representado por um álbum de recortes de jornais, com notícias a respeito dele 55. Entrevista concedida à autora em 01 jul. 2016. PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Op. cit., 1997, p.33. 57 Id. Ibid., p.33. 58 MARUSKA. Diário de Natal, Reportagem social, Natal, p.4, 06 jul. 1961. 59 MACEDO, Paulo. Dione Maria Barros Caldas comemora seus 12 anos ao lado do seu pai Dorian Gray (fotolegenda). Diário de Natal, Natal, p.16, 21 maio 1976. MACEDO, Paulo. Dorian Gray está muito feliz com a chegada de seu filho Adriano Gray. Diário de Natal, Natal, p.2, 09 dez. 1971. 56.

(28) 27. e ilustrações produzidas por esse artista, publicadas na imprensa de Natal nas décadas de 1950 e 1960, que ela mesma montou e encadernou quando ainda namoravam, a partir do material que ambos haviam colecionado. Em reportagem publicada no jornal Tribuna do Norte, em 1967, constante do acervo pessoal citado, o repórter Manoel Onofre Junior, em visita ao atelier do artista, relatava: Dorian dá os retoques finais a uma tela de pescadores, quase monocrômica. Assina e chama Wanda. É sempre assim. Dona Wanda, a esposa, também faz as vezes de secretária e conselheira. [...] Dorian quase sempre aceita suas ponderações. É ela quem arruma o atelier do pintor, pondo em ordem a enorme quantidade de quadros, seus e de outros artistas natalenses60.. Wanda acompanhou todas as fases da produção das narrativas orais com Dorian Gray. Ela representava a pessoa da casa-atelier que recebia e acolhia os visitantes, que controlava a agenda de compromissos do marido e que oferecia apoio em todas as suas solicitações. Durante a etapa das entrevistas gravadas em vídeo, sua permanência na sala se limitou a alguns momentos de observação. Sua presença se tornou mais efetiva na etapa produzida em 2015 e 2016, quando fazia uma ou outra intervenção na narrativa de Dorian Gray, ora auxiliando-o na lembrança de nomes ou datas, ora ligando fatos da vida privada do casal aos eventos da vida pública narrados pelo esposo. Depois de algumas tentativas, nas quais se esquivava, consegui produzir 10 minutos de depoimento com Wanda, que, no entanto, decidi interromper, ao sentir seu desconforto com a presença, inevitável, do marido no ambiente da casa-atelier. Dias depois, Wanda me pediu para não utilizar sua entrevista neste trabalho de pesquisa. A propósito da predominância temática das narrativas orais de Dorian Gray, o binômio arte e poesia perpassou toda a sua história de vida contada, como fica expresso na frase: “Minha vida como artista se dividiu entre a arte de fazer pintura e a arte de escrever” 61. Também perpassou sua narrativa a relação com outras instituições culturais e com o espaço citadino, lugar de intensas experiências na vida cultural da cidade, representado pela frequência a cinemas, livrarias, galerias, bibliotecas, associações e entidades que abrigavam exposições de artes plásticas na Natal de meados do século XX. Outras faces da vida de Dorian foram menos evidenciadas em seus depoimentos. O espaço escolar, por exemplo, não esteve de todo ausente, embora com bem menos destaque. Seus relatos também disseram pouco sobre sua vida privada e afetiva, fazendo sobressair a imagem do homem público. Foram raras as referências ao ambiente do lar e a 60 61. ONOFRE JUNIOR, Manoel. Em véspera de exposição. Tribuna do Norte, Natal, 05 abr. 1967. Entrevista concedida à autora em 01 jul. 2016..

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