• Nenhum resultado encontrado

Cristianização espacial e estratégias matrimoniais de escravos na capitania do Rio Grande do Norte: território, escravidão e mestiçagens na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727- 1760)

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Cristianização espacial e estratégias matrimoniais de escravos na capitania do Rio Grande do Norte: território, escravidão e mestiçagens na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727- 1760)"

Copied!
245
0
0

Texto

(1)

CRISTIANIZAÇÃO ESPACIAL E ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS DE ESCRAVOS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE: TERRITÓRIO, ESCRAVIDÃO E

MESTIÇAGENS NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727-1760)

(2)

CRISTIANIZAÇÃO ESPACIAL E ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS DE ESCRAVOS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE: TERRITÓRIO, ESCRAVIDÃO E

MESTIÇAGENS NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727-1760)

(3)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA I: FORMAÇÃO, INSTITUCIALIZAÇÃO E APROPRIAÇÃODOS ESPAÇOS

CRISTIANIZAÇÃO ESPACIAL E ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS DE ESCRAVOS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE: TERRITÓRIO, ESCRAVIDÃO E

MESTIÇAGENS NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727-1760)

DANIELLE BRUNA ALVES NEVES

(4)

CRISTIANIZAÇÃO ESPACIAL E ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS DE ESCRAVOS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE: TERRITÓRIO, ESCRAVIDÃO E

MESTIÇAGENS NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO (1727-1760)

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa I: Formação, Institucionalização e Apropriação dos Espaços, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo

(5)
(6)

CRISTIANIZAÇÃO ESPACIAL E ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS DE ESCRAVOS NA CAPITANIA DO RIO GRANDE DO NORTE: TERRITÓRIO, ESCRAVIDÃO E

MESTIÇAGENS NA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO(1727-1760)

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada

pelos professores:

_________________________________________ Helder Alexandre Medeiros de Macedo

Orientador

__________________________________________ Eduardo França Paiva

Avaliador Externo

________________________________________ Carmen Margarida Oliveira Alveal

Avaliador Interno

________________________________________ Lígio José de Oliveira Maia

Avaliador Interno

____________________________________________ Thiago Alves Dias

Suplente

(7)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Neves, Danielle Bruna Alves.

Cristianização espacial e estratégias matrimoniais de escravos na capitania do Rio Grande do Norte: território, escravidão e mestiçagens na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-1760) / Danielle Bruna Alves Neves. - Natal, 2020.

243f.: il. color.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientador: Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo.

1. Território - Dissertação. 2. Escravidão - Dissertação. 3. Família Escrava - Dissertação. I. Macedo, Helder Alexandre Medeiros de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(813.2)

(8)

O trabalho do historiador é árduo, mas recompensador. Árduo por exigir um trabalho meticuloso com os documentos, o cuidado com a metodologia adotada e a bibliografia necessária, esperando por respostas que nem sempre é possível encontrar durante a pesquisa e encontrando ainda mais dúvidas inesperadas do poderíamos imaginar. E recompensador por, no final do processo, nos depararmos com um trabalho que reflete em cada linha, em cada parágrafo, todo o esforço em construir um conhecimento que tenha, acima de tudo, uma função social. Por vezes podemos pensar que é um ofício solitário, que isola o pesquisador e o prende em suas fontes, mas a realidade é que, para que esta dissertação fosse concebida, tive o apoio e a colaboração de pessoas que foram fundamentais para a sua elaboração e que merecem o devido reconhecimento. Ao citá-los no texto a seguir, gostaria de expressar meu carinho e minha gratidão por tudo que elas me proporcionam.

Primeiramente, gostaria de agradecer a Deus, que, em seu infinito amor, permitiu que eu conseguisse chegar até aqui. Aos meus pais, Francisca e Paulo, responsáveis pelo meu caráter, minha determinação e senso de responsabilidade. Apesar das dificuldades da vida, eles sempre souberam o valor da educação para a formação do indivíduo e se empenharam para que meu irmão e eu tivéssemos acesso à oportunidades que poucas pessoas tem em um país tão desigual quanto o Brasil. Ao meu irmão, Igor, por ter estado ao meu lado neste e em outros momentos tão importantes na minha vida. Aos meus familiares – vó Tereza, tia Andrea, tia Luiza, prima Elaine; pelo apoio que, para mim, foi tão necessário durante a pesquisa. Ao meu saudoso avô, Isaías, que, infelizmente, faleceu poucos meses antes da finalização desta dissertação. O incentivo dele foi fundamental na minha jornada. E a todos os professores que passaram na minha vida, desde o jardim de infância até a pós-graduação, por ter contribuído para a minha formação como cidadã, como pessoa e como historiadora.

Sou especialmente grata às minhas amigas e colegas de profissão Renata Nobre Bezerra, Lídia Marília e Ranielle Costa, pelo apoio incondicional desde a graduação. Sou uma pessoa de sorte por ter conhecido e ter conseguido manter pessoas tão especiais em minha vida.

À Dayse Assis, que durante muito tempo foi minha companheira de laboratório de pesquisa e de transcrição dos documentos paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. A contribuição dela para esta pesquisa é algo difícil de ser mensurado. Graças a

(9)

quem não está familiarizado com elas. Além disso, é uma grande amiga que me acompanhou em importantes momentos no LEHS. E a Arnaldo Vitorino, que também deu sua valiosa ajuda na transcrição destes documentos.

À Marcos Fonseca, que além das muitas colaborações, indicações de leitura e de fontes, indicou-me a principal fonte utilizada por este trabalho: o Livro de casamentos de pretos e pardos da freguesia, de 1727 a 1760. Sua generosa contribuição mudou os rumos da minha pesquisa e, por isso, serei grata pelo resto da minha vida. À José Rodrigues e a Kleyson Bruno, por estarem sempre disponíveis para responder as minhas dúvidas relacionadas, principalmente, à Igreja Católica e ao Senado da Câmara de Natal no período setecentista, e por todo auxílio durante este processo.

Agradeço ao meu orientador, Helder Macedo, o qual tive o privilégio de conhecer durante o mestrado, pelas sugestões, questionamentos, críticas, pelo incentivo e pelas ideias. Com sua orientação, este trabalho pode se desenvolver e encontrar seu rumo, e as inseguranças e dúvidas foram cedendo espaço para a determinação.

Agradeço a professora Carmen Alveal, coordenadora do Laboratório de Experimentação em História Social, no qual em faço parte desde a graduação. Sua contribuição para a minha formação desde a disciplina de História do Rio Grande do Norte I, quando a conheci, foram imprescindíveis para este trabalho. Aos professores Raimundo Arrais, Durval Muniz de Albuquerque Jr., Margarida Dias de Oliveira e André Martinelli, que durante o mestrado, tiveram um papel de destaque para que eu concebesse uma pesquisa em História e Espaços.

Aos membros do LEHS, Gabriel Amorim, Rodrigo Santos, Alan Abel Paiva, Silvia Rodrigues, Leandro Brandão, Carlos Augusto, João Victor Oliveira, Yasmim Azevedo, Gilson Gomes, Otávio Henrique, Pedro Artur Ferreira, Vinícius Montenegro, pelo apoio, pelo trabalho conjunto de transcrição de documentos, pela cooperação e pela amizade sincera.

À amizades que fiz durante a minha vida acadêmica: Monique, Ristephany, Victor, Sarah, Adriana, que demonstraram tanto carinho durante todo esse tempo.

Agradeço a todos os professores do departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por tanto contribuir para a minha formação desde 2013.

(10)

dedicar exclusivamente a esta pesquisa.

E, por fim, à todos que de certa forma integraram minha jornada e colaboraram para que esta dissertação nascesse, mas que não foram devidamente referenciados aqui. Meu mais sinceros agradecimentos.

(11)

litoral leste da Capitania do Rio Grande na evangelização e moralização de escravos por meio do sacramento matrimonial, entre 1727 a 1760, com base nos registros de casamento da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, da Cidade do Natal, tratados metodologicamente a partir dos aportes da História Serial, da História Quantitativa e do Método Onomástico. A Freguesia era um espaço jurisdicional do poder eclesiástico nesta localidade, cuja igreja matriz estava situada na Cidade do Natal e suas 9 capelas e 3 aldeamentos indígenas que se estendiam pelas ribeiras dos rios Jundiaí, Ceará-mirim, Mipibú, Potengi e Cajupiranga, nas localidades que, atualmente, são municípios da região metropolitana de Natal (Macaíba, Extremoz, São Gonçalo do Amarante, Parnamirim, São José de Mipibú e Nísia Floresta). O processo de apropriação espacial se deu por meio de construção de prédios sagrados, que mantinham um controle sobre o território e seus moradores por meio da articulação matriz-aldeamentos-capelas anexas. O marco inicial do recorte temporal, 1727, foi selecionado por não ter sido encontrado registros de matrimônio anteriores a esta data e o mais próximo ao período denominado “Guerra dos Bárbaros” (1683-1720), que ocasionou a captura e escravidão e indígenas dos sertões, além do seu extermínio parcial. Uma parcela dos nativos, provavelmente, foi enviada para o litoral da Capitania do Rio Grande para suprir a necessidade de mão de obra escrava. O recorte cronológico escolhido termina no ano de 1760, quando a paróquia sofreu alterações no seu espaço geográfico e a área de assistência da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação foi modificada, com a diminuição de sua abrangência territorial. Este período foi marcado pela estabilização das estruturas eclesiásticas da freguesia, após a dominação holandesa (1633-1654) e a Guerra dos Bárbaros. O trabalho analisou o perfil dos matrimônios de cativos neste território e observou as estratégias dos cativos, principalmente no tocante à escolha dos parceiros com os quais optavam por se unir. Percebeu que os registros apresentavam um número expressivo de casamentos de cativos de origens diferentes, a endogamia de escravos africanos do mesmo grupo de procedência e enlaces que resultaram em uma mudança de status social. Observou que este espaço foi caracterizado por uniões entre indivíduos de diferentes qualidades e condições jurídicas, o que possibilitou as mesclas biológicas e culturais encontradas nos documentos da Igreja.

(12)

Christianization of the east coast of Capitania do Rio Grande, and the evangelization and moralization of slaves through the marriage sacrament, between 1727 to 1760, based on the marriage records of the Paróquia de “Nossa Senhora da Apresentação”, from the City of Natal. The data were treated methodologically using Serial History, Quantitative History and the Onomastic Method. Perish was the ecclesiastic power’s legal jurisdiction of the area, being the Main Church located in the City of Natal and it’s 9 chapels and 3 Indigenous Settlements extended through the streams of the rivers Jundiaí, Ceará-mirim, Mipibú, Potengi and Cajupiranga. Nowadays, those areas are known as the cities which shape the metropolitan area of Natal (Macaíba, Extremoz, São Gonçalo do Amarante, Parnamirim, São José de Mipibú and Nísia Floresta). The process of spatial appropriation happens through the construction of sacred buildings. Those churches were responsible for the control over the territory and its populace through the articulation between main church, settlements and annex chapels. The starting point of the time cut,1727, was chosen for not being found any marriage records before this date, and it was the closest period to the nominated “Guerra dos Bárbaros” (1683-1720), which occasioned the capture and enslavement of the native people, and their partial extermination. Part of the natives, probably, was sent to the coast of the Capitania do Rio Grande, to fulfill the need for slave labor. The chronologic cut chosen finishes this analyses were 1760, when the perish suffered alterations on its geographic space and the area of it’s assistance was modified, what led to the reduction of its territorial area of influence. The chosen period was marked for the stabilization of the ecclesiastical structures of the Perish, after the Dutch occupation (1633-1654) and the Guerra dos Bárbaros. This research analyse the profile of slaves in this territory and their strategies, specially regarding to the choice around the partners they opted to unite with. The records presented an expressive number of weddings between slaves of different origins, the inbreeding of African slaves of the same ethical group and its links resulted in a change of social status. Was observed that this space was distinguished by the union of the individual's differents “qualidades” and legal conditions, which made possible the biological and cultural diversity found in the Church’s documents.

(13)

Imagem 1- Planta da cidade de Natal e as cruzes que demarcavam seus

limites (século XVIII) 107

(14)

Mapa 1 - Mapa dos bispados da América portuguesa (1745) 65

(15)

Gráfico 1- Número de casamentos de livres e de casamentos envolvendo escravos na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-1760) 86 Gráfico 2- Diferença de casamentos de livres e de casamentos envolvendo escravos na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, por ano (1727-1760) 87 Gráfico 3- Casamentos de escravos por escravaria na Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação (1727-1760) 92

Gráfico 4- Naturalidade dos nubentes em matrimônios de escravos na Freguesia de Nossa

Senhora da Apresentação (1727-1760) 95

Gráfico 5 – Diferença entre o batismo de livre e o de escravos na Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação (1749-1760) 98

Gráfico 6 - Batismo de escravos adultos e crianças na Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação (1749-1760) 100

Gráfico 7 – Batizados de filhos legítimos de escravos na Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação (1749-1760) 101

Gráfico 8 - Matrimônios realizados na Matriz de Nossa Senhora da

Apresentação (1727- 1760) 114

Gráfico 9- Mesclas nos registros de matrimônio envolvendo escravos realizados na Matriz de

Nossa Senhora da Apresentação (1727-1760) 116

Gráfico 10- Batismos realizados na matriz de Nossa Senhora da Apresentação (1749-1760) 118 Gráfico 11 - Batismos de escravos, conforme faixa etária, na Matriz de Nossa Senhora da

(16)

Gráfico 13 - Matrimônios de escravos e de pessoas livres nos aldeamentos da Freguesia de Nossa

Senhora da Apresentação (1727-1760) 133

Gráfico 14- Batismos realizados nos aldeamentos indígenas e nas missões populares da Freguesia

de Nossa Senhora da Apresentação (1749-1760) 135

Gráfico 15- Batismos de escravos e de livres nos aldeamentos da Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação (1749-1760) 136

Gráfico 16 – Matrimônios por templo na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação

(1727-1760) 137

Gráfico 17 – Casamento de escravos por escravaria nas capelas da Freguesia de Nossa Senhora

da Apresentação (1727-1760) 149

Gráfico 18 – Naturalidade dos nubentes escravos da Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação (1727-1760) 153

Gráfico 19– Casamentos entre escravos e uniões mistas na Freguesia de Nossa Senhora da

Apresentação (1727-1760) 154

Gráfico 20- Casamento, por condição jurídica, na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação

(1727-1760) 178

Gráfico 21 – Qualidades em Casamentos em que pelo menos um dos noivos era escravo na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-1760) 196 Gráfico 22 – Casamentos de pessoas de diferentes qualidades nos registros de matrimônio de escravos na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-1760) 207 Gráfico 23 – Qualidade dos nubentes de origem ou ascendência africana nos casamentos de escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-1760) 213

(17)
(18)

AIHGRN – Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte AHU – Arquivo Histórico Ultramarino

IHGRN – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte SILB – Sesmarias do Império Luso Brasileiro

ACMN – Arquivo da Cúria Metropolitana de Natal UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(19)

1. INTRODUÇÃO ... 20

2. TERRITORIALIZAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA NA CAPITANIA DO RIO GRANDE: CONQUISTA DE ESPAÇOS E DE ALMAS ... 52

2.1 A Territorialização da Igreja na América Portuguesa ... 57

2.2 O Bispado de Pernambuco ... 64

2.3 A Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação ... 70

2.4. Família escrava na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação: casamentos e batismos de escravos na Capitania do Rio Grande ... 79

3. O CASAMENTO DDE ESCRAVOS NOS ESPAÇOS DA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO ... 103

3.1 A Matriz de Nossa Senhora da Apresentação e o espaço religioso de Natal ... 106

3.2 A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos ... 120

3.3 Os Aldeamentos ... 126

3.4 Casamento de escravos nos espaços da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação ... 137

3.5 Senhores de escravos nos registros de matrimônio ... 156

4. ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS DE ESCRAVOS: ESPAÇO SOCIAL, MESTIÇAGENS E EXPERIÊNCIAS NO CATIVEIRO ... 167

4.1 Uma trajetória: o casamento do escravo Manuel Cardoso Ramos e Dona Quitéria de Jesus ... 172

4.2 Índios nos registros de casamento de escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação ... 192

4.3 Casamento de africanos na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação ... 212

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 224

FONTES ... 236

(20)

1 INTRODUÇÃO

Foi no ano de 2004, quando a segunda adaptação televisiva da obra de Bernardo Guimarães, A Escrava Isaura,1 foi ao ar, transmitida pela Rede Record, que as primeiras imagens sobre a escravidão no Brasil foram sendo construídas na minha mente. Era a primeira vez que aquela menina – filha, neta, sobrinha de negros – tomava conhecimento do passado violento dos seus antepassados. Durante minha infância e adolescência, filmes, séries de televisão, obras literárias e aulas de História na escola contribuíram para que a visão sobre esse período fosse moldado. Os escravos eram retratados como seres passivos, vítimas dos desmandos dos seus senhores e dos capatazes, que, sempre com o chicote na mão, controlavam a vida destas pessoas enquanto as tratavam como “coisa”.

Personagens como Leôncio, Seu Chico e Barão de Araruna, que penetraram no imaginário dos brasileiros no decorrer dos anos, eram representados como carrascos que infernizavam a vida dos seus cativos, como Isaura, Rosa, André e Pai José, que apenas reagiam contra essa situação quando fugiam para quilombos ou quando se revoltavam abertamente contra seus senhores. Estratégias dentro do cativeiro eram impensáveis. Os personagens que se movimentavam dentro destas estruturas visando meios de sobrevivência dentro do cativeiro eram retratados como vilões, como a Rosa2.

Na escola, aquilo que era apresentado nas aulas de História não destoava do que era retratado na mídia: escravos passivos vivendo sob o chicote dos feitores e capitães do mato. Sobre a escravidão no Rio Grande do Norte, os professores reproduziam as afirmações dos historiadores e memorialistas como Cascudo (1984)3, Lyra (1984)4 e Pombo (1992)5: o número

1

GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. 21 edição. São Paulo: Editora Ática, 1995.

2 Leôncio, Seu Chico e Barão de Araruna eram antagonistas dos romances A Escrava Isaura, de Bernardo

Guimarães, e Sinhá Moça, de Maria Dezonne Pacheco Fernandes, romances que retratavam o cotidiano dos escravos nas fazendas de café durante o Segundo Reinado. Leôncio, personagem de A Escrava Isaura, era um senhor de escravos que importunava sua escrava, Isaura, assim como toda a sua escravaria; Seu Chico era seu feitor e sua mão direita na sua fazenda. Personagem de Sinhá Moça, o Barão de Araruna era pai da personagem-título e um cruel escravocrata que infernizava a vida dos escravos da sua fazenda assim como a dos abolicionistas e republicanos da região. Escravos de Leôncio e vítimas deles e de Seu Chico, Isaura, Rosa e André eram personagens do romance A Escrava Isaura, enquanto Pai José, escravo de Barão de Araruna, era um personagem de Sinhá Moça. Rosa, por suas artimanhas e estratégias para alcançar um espaço diferenciado dentro do cativeiro, como seduzir o seu senhor e algoz, era considerada uma antagonista ardilosa, sem caráter e calculista. Cf. FERNANDES, Maria Dezonne Pacheco. Sinhá-Moça. São Paulo: Editora Nacional. 2006. ; GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. 21 edição. São Paulo: Editora Ática, 1995.

3 CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2 edição. Natal: Fundação José Augusto, 1984

(21)

de cativos neste espaço era insignificante se comparado a outras regiões do Brasil e que a economia do território neste período foi baseada na mão de obra livre.

Foi durante a graduação, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, entre 2013 a 2017, que pouco a pouco essas imagens foram sendo desconstruídas e uma nova visão sobre o passado escravocrata do país foi surgindo na minha cabeça. As disciplinas de História da África, Brasil Colônia, Brasil Império e História do Rio Grande do Norte I, dialogando com a historiografia atual, apresentaram o escravo mais humano e mais próximo da realidade. A violência estava presente, mas havia as estratégias, as negociações, a resistência, e os laços afetivos construídos não apenas entre eles, mas também com pessoas livres. As obras de Sidney Chalhoub6, que conheci durante a disciplina de Brasil Império, e a dissertação de Aldinízia Medeiros7, sobre as alforrias em Goianinha, no litoral sul do Rio Grande do Norte, no século XVIII, que conheci durante a disciplina de História do Rio Grande do Norte I, incentivaram-me a seguir em frente e descobrir outros trabalhos sobre o tema e, assim, continuar o processo de desconstrução.

No ano de 2016, ingressei no Laboratório de Experimentação em História Social - LEHS, coordenado pela professora Carmen Alveal, voltado para pesquisas no período colonial, onde fazia parte de um grupo responsável pelas transcrições e análises dos registros paroquiais da Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação, que englobava parte do litoral leste do atual Rio Grande do Norte do século XVIII. O contato com essas fontes e as informações que consegui coletar delas me estimulou a estudar os escravos nos registros paroquiais desta freguesia. Dessa experiência no LEHS, desenvolvi trabalhos utilizando como corpo documental principal assentos de matrimônio e de batismo. Em 2017, concebi um artigo intitulado “Escravidão, Negociação e Matrimônio: Aspectos do Casamento entre Escravos Africanos na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1761-1790)”, apresentado no VII Simpósio Nacional de História da População, ocorrido em Natal, no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Por meio dele, pude desenvolver um trabalho que serviu como base para a pesquisa com os registros de

4 TAVARES DE LYRA, Augusto. História do Rio Grande do Norte. 2 edição. Natal: Fundação José Augusto,

1984 [1921].

5

POMBO, José Francisco da Rocha. História do Estado do Rio Grande do Norte. 2 edição. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1992 [1922].

6 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990.

7

SOUZA, Aldinízia de Medeiros. Liberdades possíveis em espaços periféricos: escravidão e alforria no termo da vila de Arez (séculos XVIII e XIX). 2013. 138 f. Dissertação (Mestrado em História e Espaços) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.

(22)

casamento. Com esta documentação, é possível perceber como estes escravos, assim como seus senhores, traçavam estratégias matrimoniais que poderiam garantir melhorias de vida dentro do cativeiro.

Posteriormente optei por mudar o recorte teórico da pesquisa, por questões metodológicas. Nos documentos paroquiais da segunda metade do século XVIII, a qualidade8 dos nubentes não aparece nos registros, com exceção dos escravos “africanos”9 – identificados como “Gentio da Guiné” ou “Gentio de Angola”. Decidi migrar para a primeira metade do século XVIII, o que permitiu observar o perfil de escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Com os assentos deste período, deparei-me com escravos indígenas, africanos e mestiços. Por meio destes documentos manuscritos de origem eclesiástica, é possível entender como a influência da moral cristã atingia a população colonial, inclusive a escrava.

Segundo Fonseca (2011), durante o domínio português na América, a Igreja Católica construiu territórios visando a conversão das almas e dos espaços10. Neste processo, a administração dos sacramentos, como o matrimônio, possuíam um papel fundamental, pois enquadravam a população, livre e escrava, dentro dos padrões estabelecidos por esta instituição e garantia a manutenção de sua influência. Ao mesmo tempo, este sacramento era apropriado por estes indivíduos como estratégia de vida.

Partindo do que foi exposto, este trabalho objetiva estudar a influência deste processo de cristianização espacial sobre a população escrava na Capitania do Rio Grande, por meio da análise dos matrimônios de cativos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação no século XVIII. O conceito de cristianização espacial é entendido como o processo de territorialização empreendido pela Igreja Católica, juntamente com a Coroa Portuguesa, por meio da instituição

8 Qualidade é aqui empregado para aludir a atribuições coevas como pardo, preto, negro, e, entre outras. branco.. Não

deve ser confundido com condição jurídica (livre, escravo e forro). Para saber mais a respeito do conceito de qualidade, ver: PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América, entre os séculos XVI e XVIII (dinâmicas de mestiçagens e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica, 2015; IVO, Isnara Pereira; PAIVA, Eduardo França. Dinâmicas de mestiçagens no mundo moderno: sociedades, culturas e trabalho. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2016.

9 O termo “africano”, apesar de não ter sido encontrado na documentação da época e denotar uma unidade

homogênea dos povos nascidos da África, extremamente diversificados entre si, será utilizado neste estudo para fins metodológicos, destacando esta decisão para evitar anacronismos e procurando demonstrar, no decorrer dos capítulos, as diferenças de origens e etnias entre os indivíduos traficados do outro lado do Atlântico. Cf. FARIA, Sheila de C. A colônia em movimento: família e fortuna no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

10 FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas del rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte:

(23)

do Padroado11, em que os espaços na América eram apropriados por meio da construção de prédios sagrados e a atuação do clero, administrando os sacramentos e fiscalizando as ações dos indivíduos que viviam no entorno. Neste contexto, a cristianização da população escrava nestes espaços era de suma importância. A instituição religiosa foi um importante mecanismo utilizado no período colonial para a legitimação do sistema escravista. Defendia-se a ideia de que os cativos poderiam redimir-se de suas práticas pagãs por meio de sua escravização. Assim, o contraste entre a perspectiva libertadora da conversão, com a sua promessa de salvação eterna, e a dura realidade da condição de escravos era evidente.12

A Igreja pode ser vista como uma instituição que norteava a vida privada na colônia. O sacramento matrimonial, neste período, era um instrumento de controle social, mas também de inserção social. É possível afirmar que o casamento significou algo além da união de dois indivíduos. Casar-se significava buscar uma estabilidade familiar e um respeito social, fundamental, no caso dos homens livres, e estratégico, no caso dos escravos13.

A problemática levantada é de como a população cativa fazia uso dos espaços eclesiásticos no cotidiano colonial para traçar estratégias de vida e de sobrevivência e conseguir atingir seus intentos. Este trabalho parte do pressuposto de que, aos escravos, era interessante o casamento católico, pois a instituição era uma forma de estratégia social; a de que seus grupos familiares fossem reconhecidos e respeitados pelo senhor e pela sociedade14.

Os primeiros estudos sobre as relações entre escravos no Brasil defendiam a ideia de devassidão que predominava nas senzalas. A formação de famílias entre os escravos não tinha lugar e enfatizavam-se as relações sexuais em seu aspecto meramente instintivo, defendendo a existência de uma promiscuidade generalizada15. Essa interpretação foi baseada em ideias como a inferioridade racial do negro16 e a impossibilidade de organização familiar dos escravos, devido à

11 O direito do Padroado foi cedido pelo papa ao rei português com a incumbência de promover a organização e

administração da Igreja nas terras conquistadas. Em contrapartida, o rei, que arrecadava os dízimos eclesiásticos, deveria construir e prover as igrejas, nomear párocos e propor nomes de bispos, sendo estes depois confirmados pelo papa Cf. HOORNAERT, Eduardo. A História da Igreja no Brasil: 1550-1800. 3.ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994 (Coleção Tudo é História).

12

MARCOCCI, Gioseppe. A consciência de um império: Portugal e seu mundo (séculos XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012

13 FARIA, Sheila de C. A colônia em movimento: família e fortuna no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1998.

14

Ibid.

15 MALHEIRO, Agostinho M. Perdigão. A escravidão no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1976. 16 NINA RODRIGUES, Raimundo. Os africanos no Brasil. 6.ed. São Paulo: Nacional, 1982.

(24)

falta de incentivo dos senhores17 ou entre os próprios cativos18. O alto índice de masculinidade e o tráfico interno a partir de 1850 também foram argumentos para justificar a inviabilidade da estabilidade familiar entre os escravos19·. A maioria destes estudos atribuiu à escravidão a responsabilidade pela destruição da família escrava que impôs ao cativo a condição de "anomia social"20.

Dentre os trabalhos sobre a família na colônia, destaca-se a obra de Gilberto Freyre, lançada em 1933 e que inovou os estudos sociais no Brasil por ter utilizado conceitos e métodos até então inéditos, lançando mão de fontes como documentos oficiais, testamentos, relatos de viajantes, cantigas, relatos orais, para compor sua pesquisa21.

Analisando a vivência do negro atrelado ao sistema patriarcal, Gilberto Freyre destacou a utilização que os senhores faziam dos corpos de suas escravas, para satisfazer-se sexualmente, mostrando a relação de violência e abuso sexual vivido por estas mulheres neste contexto. Vale ressaltar que, na obra de Freyre (1998), a negra não possuía vontades ou sentimentos – o ponto de vista do cativo não era abordado no seu estudo. A sexualidade destas cativas era a serviço e deleite do branco. Consequentemente, elas eram motivos de conflitos na casa grande à medida que despertava a ira das senhoras enciumadas. Estas relações teriam favorecido a miscigenação no Brasil as quais teriam dado origem ao elemento mestiço, valorizado por Gilberto Freyre por reunir as melhores características dos três grupos, que ele denominou de “raça” – a branca, considerada por ele a raça superior, a negra e a indígena22.

Quando trata especificamente do casamento entre escravos, Freyre citou o jesuíta Andreoni, onde relatou que os senhores se opunham a casamentos. Além disso, estes proprietários consentiriam os amancebamentos e não os casavam “porque temem que enfadando-se do casamento enfadando-se matem logo com peçonha ou com feitiço; não faltando entre eles mestres

17 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 2 v. São Paulo: Dominus/EDUSP,

1965

18

MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 3ed. São Paulo: Brasiliense, 1990

19 CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Otávio. Cor e mobilidade social em Florianópolis. São Paulo:

Nacional, 1960.

20 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 2v. São Paulo: Dominus/EDUSP,

1965.

21 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & senzala. 34.ed. Editora Record: Rio de Janeiro, 1998 [1933] 22Ibid.

(25)

insignes”23

. O escravo, defendia Freyre (1998), não possuía freios em seus instintos, mas isto seria algo estimulado pelos homens brancos, que se serviam disso24.

A historiadora Emília Viotti da Costa afirma que o escravismo teria incitado a desagregação entre princípios morais e conduta ética na sociedade ao propiciar a vigência de códigos de ética incompatíveis. Segundo Costa (1998, p. 16):

Ao mesmo tempo em que degradou o trabalho e corrompeu as relações entre os brancos, a escravidão desorganizou a vida familiar. O intercâmbio sexual entre senhor e escrava deu margem a que se fixassem preferências por certos vícios e anomalias sexuais (masoquismo – sadismo), estimuladas pela situação que a escravidão criara. De um lado, havia a família branca, aparentemente monogâmica; de outro, a promiscuidade das senzalas a incitar e favorecer a poligamia do senhor.25 A promiscuidade das senzalas seria facilitada, argumenta a historiadora, por diversos motivos, como a desorganização das tradições africanas; o interesse econômico do senhor que optaria por relações efêmeras e não legitimadas pela Igreja para seus escravos; e a grande diferença entre o número de homens e mulheres produzido pela seleção sexual do tráfico atlântico. Tudo isso contribuía, na opinião de Costa (1998), para a devassidão nas senzalas, da qual poderiam beneficiar-se os senhores pelo aumento de sua escravaria e pela precariedade dos laços familiares entre os cativos que lhes impedia de estabelecer vínculos de solidariedade e de companheirismo.

No livro Ser Escravo no Brasil, de Mattoso (1990), a autora analisa formas de solidariedade formadas pelos escravos, por meio da vida relacional e comunitária, como fundamental para a adequação ou não do cativo no Brasil. Apesar de a pesquisadora não considerar a probabilidade da existência da família escrava, a família patriarcal, constituída sob a autoridade do pai e construída por parentes e agregados, incluindo os escravos, inseria-se como uma instituição na qual o cativo encontrava novas referências para sua vida. A vida familiar dos escravos ocorria sob a vigilância da família patriarcal. Quando não, as ligações entre os cativos tinham um caráter passageiro, sendo comuns relações consensuais e a prática do concubinato, tanto entre a população livre como a escrava, e filhos que não conheciam o pai. Segundo Mattoso, de modo geral, os cativos não se casavam devido à falta de incentivo dos senhores e o

23

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & senzala. p. 450.

24 Ibid. p. 319-321

(26)

número reduzido de mulheres, além de não verem nenhuma vantagem no matrimônio. Como se pode observar, a autora não considerou a possibilidade da estabilidade da família escrava ao longo do tempo, enfatizando apenas as relações passageiras e crianças com pai ausente26.

Essas interpretações colocavam o escravo como vítima das relações de dominação, pela extrema violência do sistema escravista, que não permitiria nenhum espaço de autonomia, nem mesmo a constituição de família. Por um lado, existia a imagem da família negra caracterizada pela instabilidade, por relações sexuais promíscuas, uniões passageiras que geravam filhos ilegítimos, laços interrompidos pela venda ou pela oposição senhorial ao casamento e, por outro, acrescenta-se a imagem de que o negro cativo não teria capacidade para tomar decisões, sendo assim, destituído de valores, crenças, costumes; enfim, de vontade própria.

Na década de 1970, algumas transformações, como a valorização das pesquisas empíricas, a adoção de diferentes fontes e as novas perspectivas de análise permitiram uma revisão na historiografia brasileira. Tal revisão possibilitou o reconhecimento dos escravos como sujeitos históricos, a reconsideração e o questionamento de inúmeros aspectos da escravidão como a suposta ausência de solidariedade entre os cativos e o predomínio da promiscuidade nas senzalas.

O brazilianista Robert Slenes, por exemplo, não apenas constatou a existência de famílias escravas em Campinas, São Paulo, como as considerou elemento crucial para a criação de uma comunidade cativa. Apesar de reconhecer a divisão gerada pela política de incentivos senhorial que provocava a competição entre os escravos pelos parcos recursos dentro do cativeiro, o autor acredita em certa unidade gerada pelo compartilhamento de experiências, valores e memórias pelos cativos. Segundo a perspectiva de Slenes (2000), a família escrava representaria um perigo constante à hegemonia dos senhores como criadora de condições para a subversão e a rebelião. Como “projeto de vida”, não restrito a estratégias centradas em laços de parentesco, a família expressaria um mundo mais amplo criado a partir das “esperanças e recordações” dos escravos e, por isso, constituiria elemento cultural importante para a formação de identidades no cativeiro, “conscientemente antagônica à dos senhores e compartilhada por uma grande parte dos cativos”27

.

Outro trabalho fundamental originado a partir da renovação historiográfica é o de Manolo Florentino e José Roberto Góes que questiona o caráter excepcional atribuído às relações

26

MATTOSO, Kátia. Ser escravo no Brasil. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.

27 SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações da família escrava – Brasil, Sudeste, século

(27)

familiares envolvendo cativos e inaugurou importante discussão sobre a importância da escravidão para a comunidade cativa e para o próprio escravismo. Conforme sugerido pelo título do livro, “Paz nas Senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico”, os autores investigaram a família escrava considerando a sua relação com o tráfico atlântico. Segundo Florentino e Góes (1997), a recorrente chegada de estrangeiros criava no ambiente das grandes propriedades um clima propenso à dissensão e ao conflito. Diante dessa situação, a produção de parentes configuraria como um instrumento para estabelecer a paz por meio da criação de regras e, consequentemente, o distanciamento do conflito. Assim, o parentesco, além de cimentar a comunidade cativa, beneficiaria os senhores com a renda política que dele poderiam auferir28.

Importa ressaltar que, ao reconhecer o valor da família para a manutenção do escravismo, Florentino e Góes (1997) não diminuem a sua importância para os próprios cativos e não excluem sua capacidade de ação. Segundo os autores, as relações familiares – consanguíneas, matrimoniais ou por afinidade – possuíam amplo reconhecimento nas comunidades cativa e livre, não se limitando espacialmente a determinadas escravarias nem à condição jurídica dos envolvidos. A família escrava, como meio de organização e pacificação dos cativos, ter-lhes-ia fornecido sólidos pilares para a construção e reconstrução de padrões mentais e de comportamento próprios de uma cultura brasileira29.

Para Mattos (1995), que analisa o sudeste brasileiro do século XIX, em uma sociedade escravista, os processos de desligamento - consequentes do tráfico - eram usuais e o acesso às relações familiares era a oportunidade de inserção na nova comunidade. Além de conformar uma identidade escrava comum, as relações comunitárias, criadas a partir da família e da memória geracional, produziram para seus integrantes a possibilidade de se distinguirem ante o estereótipo comumente associado ao escravo (falta de laços familiares, celibato, castigos físicos e trabalho coletivo), aproximando os escravos pertencentes à comunidade de uma visão de liberdade: por meio do parentesco, o escravo atingia maiores chances de acesso à roça própria, à moradia separada e à formação de um pecúlio. Podia até mesmo ambicionar, para si e seus familiares, a alforria. E, uma vez conquistada a liberdade, o ex-cativo podia sonhar com um pedaço de terra e

28

FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

(28)

escravos. A consequência disso na senzala era um elevado nível de competição entre escravos. O escravo recém-chegado à escravaria não era imediatamente incluído na comunidade escrava30.

Para isso, era necessário que o novato criasse relações duradouras com os escravos mais antigos. Havia, então, duas situações dentro de uma mesma escravaria: a comunidade escrava que, quanto mais aprofundava suas relações familiares mais acesso a espaços econômicos e familiares de autonomia e os cativos recém-chegados, vítimas dos aspectos mais rígidos e violentos do escravismo. O tempo era essencial na formação e consolidação da comunidade escrava, mas a contínua chegada de novos escravos, majoritariamente homens, fazia com que nem todos tivessem acesso à comunidade31.

Robert Slenes faz críticas às hipóteses de Hebe Mattos e de Manolo Florentino e José Roberto Góes a respeito do papel do parentesco escravo. O historiador, apesar de concordar com Mattos sobre o sistema de incentivos no escravismo brasileiro, argumenta que a construção de laços de parentesco e autonomia demandava muito tempo e as perspectivas de sucesso, num mundo extremamente instável, eram sempre incertas. Com vistas às incertezas dos planos, não foi, para o autor, convincente o argumento de Mattos (1995) de que as pessoas teriam descartado as solidariedades prováveis dentro da escravidão, enquanto as relações de aproximação com o mundo livre estivessem sendo construídas. Para corroborar a limitação da hipótese de Mattos (1995), Slenes (2000) destaca a predominância, pelo menos até 1850, de escravos africanos vindos principalmente da África Central, sendo os crioulos, descendentes destes africanos. A semelhança na origem equivale dizer que compartilhavam da mesma base linguística e cosmogônica, tornando a hipótese de uma grande distância sociocultural entre crioulos e africanos ou entre africanos novos e ladinos, algo discutível.

Quanto à afirmação de Florentino e Góes (1997), que colocava a família escrava como condição estrutural para manter o escravismo, Slenes (2000) aponta para outro caminho e afirma que os laços familiares entre escravos eram importantes na transmissão de cultura e experiência entre as gerações escravas. O grupo social que tinha instituições familiares arraigadas no tempo e redes de parentesco não estava desprovido de união e solidariedade, muito menos de uma memória histórica própria, fazendo com que sua interpretação da experiência imediata nunca fosse idêntica à de seus superiores sociais.

30

MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

(29)

Schwartz (2001), em Escravos, Roceiros e Rebeldes, ao evidenciar o papel dos cativos na construção de suas vidas e na própria formação da sociedade escravocrata, mas sem perder de vista as limitações impostas pelo sistema opressor, ratifica a afirmação de Florentino e Góes (1997) referente à complexidade das relações sociais no Brasil. Nas palavras do autor:

[...] procurei demonstrar não só como o regime de trabalho na lavoura definiu os contornos da vida escrava, mas também como era possível utilizar os objetivos e as aspirações dos escravos para fazer com que o regime funcionasse tranquilamente. Não pretendo negar a iniciativa dos escravos nem denegrir sua luta para a melhoria de vida, mas, pelo contrário, mostrar como os senhores usavam essa luta, pelo menos em curto prazo, para atingir suas metas (p. 295)32 .

O estudo de Faria (1998), A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano

Colonial, sobre a população cativa de Paraíba do Sul e Campos dos Goitacazes, comprovou a

importância da família escrava nessa região, concluindo que, durante o século XVII e o XVIII, no atual Sudeste, o casamento escravo era um procedimento bastante comum, especialmente nas regiões onde as atividades agrárias eram predominantes. Faria sugere ainda que o casamento na Igreja era mais provável quando os escravos pertenciam a um mesmo proprietário, onde os senhores escravistas criavam todo tipo de obstáculo para impossibilitar o casamento entre escravos de fazendas diferentes33.

Outro impedimento apontado ao casamento de escravos pela historiografia seria o desequilíbrio entre os sexos, apresentado principalmente em regiões onde a entrada de escravos africanos traficados era muito elevada. Segundo Schwartz (2001), as grandes regiões açucareiras, voltadas para a agroexportação, em que a desproporção de homens e mulheres cativos era expressiva, sofriam um efeito negativo na formação de famílias escravas. Apesar disso, escravos conseguiam constituir famílias com laços duradouros. O autor apontou a proliferação dos núcleos familiares nas unidades produtivas, concluindo que a família foi fundamental na vida dos escravos, pois lhes proporcionava apoio no cotidiano, por exemplo, no caso de doenças, e consolo para suportar o cativeiro.

Durante a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX, o Maranhão sofreu um boom demográfico das populações escravas de origem africana, provocado

32 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, São Paulo: EDUSP, 2001. p. 295. 33 FARIA, Sheila de C. A colônia em movimento.

(30)

pelo aumento do cultivo e das exportações de algodão e arroz na região e, assim, o aumento da demanda por mão de obra escrava. Antônia da Silva Mota estudou esse processo de “africanização” e argumentou que, apesar da grande entrada de escravos africanos neste espaço, a diferença entre homens e mulheres manteve-se em certo equilíbrio, o que permitiu a formação de famílias nucleares nas propriedades da região. Esses cativos puderam, segundo a historiadora, gozar de relativa autonomia, pois o padrão das propriedades deste espaço era caracterizado pela ausência da Casa Grande e da presença constante do senhor e de sua família, e as uniões endogâmicas permitiram a formação de uma comunidade africana que conseguiu preservar suas tradições culturais34.

O historiador Jonis Freire (2014), ao analisar as posses de cafeicultores de grande riqueza, prestígio e poder local de Juiz de Fora oitocentista, observou que o comércio transatlântico de escravos alimentava suas propriedades, provocando o crescimento demográfico, caracterizado por uma maioria de escravos homens e em idade produtiva (15-40 anos). Na segunda metade do século XIX, após a proibição do tráfico, esses grandes proprietários buscaram no tráfico local e interprovincial uma forma de abastecer suas escravarias. Houve um maior equilíbrio entre homens e mulheres e entre africanos e crioulos, e um crescimento no número de cativos com mais de 40 anos. Dada a nova conjuntura, os dados apresentados pelo historiador demonstraram um maior incentivo à reprodução natural dos escravos. O tamanho das escravarias também influenciava na possibilidade matrimonial dos escravos. Quanto maior a propriedade, maior o número de casamentos de escravos. Segundo Freire, a família escrava teria sido fundamental para a manutenção da cultura e das tradições destes indivíduos, além de lhes garantir um espaço de autonomia e resistência35.

Segundo o historiador Russell-Wood (2005), em Escravos e Libertos no Brasil Colonial, os escravos negociavam, tomavam decisões e faziam escolhas com base em suas prioridades, sistemas de valores e aspirações e se tornavam exemplos de adaptação às novas circunstâncias e, a escolha do nubente pode ser um exemplo disso. O Brasil colonial forneceu exemplos de como os termos e condições da escravidão estavam sujeitos à discussão e negociação entre donos e escravos.

34 MOTA, Antônia da Silva. Família escrava nas plantations do Maranhão: demografia e sociabilidades. In:

GALVES, Marcelo Cheche & COSTA, Yuri (org.). O Maranhão Oitocentista. 2ª edição. São Luís: Café & Lápis; Editora Uema, 2015

35 FREIRE, Jonis. Escravidão e Família Escrava na Zona da Mata Mineira Oitocentista. São Paulo: Alameda,

(31)

Para Russell-Wood (2005), na América Portuguesa, a família era uma força protetora para os indivíduos de ascendência africana, não somente contra a exploração dos brancos e dos donos como também contra as pretensões do Estado. A família representava uma alternativa e confirmou que os indivíduos de ascendência africana conceberam estratégias, algumas das quais podem ter-se originado na África, enquanto outras foram criações do Novo Mundo. A formação de famílias poderia ter sido uma forma pela qual os escravos conseguiriam encontrar coesão e unidade de propósito e agir coletivamente no ambiente social e econômico da escravidão, em geral, considerado capaz de sufocar, suprimir e até erradicar tais características36.

Em Sinhás Pretas, Damas Mercadoras, Faria (2004), ao analisar as mulheres alforriadas e suas descendentes, principalmente aquelas que ascenderam economicamente por meio do comércio, principalmente de alimentos e pequenos objetos e amuletos, percebeu um padrão familiar entre elas que se caracterizava por mulheres forras chefes de domicílio, que conseguiam reunir pecúlio e um expressivo número de escravos (principalmente do sexo feminino), e a inexistência da figura masculina (pai ou marido) – muitas eram viúvas ou nunca casaram. A relação destas mulheres com seus escravos tinham uma lógica diferente da encontrada entre outros proprietários de escravos e seus cativos, chegando a referenciá-los como parte de sua “família” e alforriando a elas e seus filhos no decorrer da vida ou após a morte, em testamento. Além disso, nos seus domicílios residiam pessoas de diferentes condições, com a presença de crianças (suas filhas ou não) e de outras mulheres livres (agregadas). Percebeu a preferência destas mulheres por escravas, pelo fato de as atividades de comércio que estas cativas eram submetidas geralmente era uma atividade vista como essencialmente feminina – herança da divisão de trabalho por sexo de alguns povos africanos, em que o comércio era exercido por mulheres, este aspecto foi reproduzido no continente americano com as devidas adaptações. Na América portuguesa, essas senhoras levavam as suas cativas a assumir estes serviços a fim de aumentar o seu patrimônio. Juntas, proprietárias e cativas formavam unidades domésticas que incluíam dominação, solidariedade e influência, em que foi percebida a transmissão de conhecimentos e o controle de certas atividades. Nestes espaços domésticos nasciam novas famílias, diferentes do padrão de família nuclear (pai, mãe e filhos) e formadas por libertas, escravas, e seus filhos. Pode-se observar que, neste período, havia outros padrões familiares com a ausência de uma figura masculina, não perpassado pelo sacramento matrimonial e com a

(32)

mulher como chefe de domicílio. Este, especificamente, estava ligado à origem africana destas mulheres e a cultura que foi trazida por elas e, que diante das limitações e oportunidades encontradas na sociedade colonial, foram reproduzidas e moldadas por estas mulheres. Neste trabalho, estas famílias, que foram constituídas sem a presença do sacramento do casamento, não foram analisadas com profundidade por causa da necessidade de outros corpus documentais, não encontrados para o período estudado, para o seu desenvolvimento37.

Os trabalhos de Florentino e Góes (1997), Slenes (2000), Farias (1998), Mattos (1995), Russell-Wood (2005) e Schwartz (2001) são fundamentais para a compreensão da família escrava no Brasil. Entretanto, estas pesquisas baseiam-se em regiões conhecidas por seu dinamismo econômico durante as fases Colonial e Imperial da história do Brasil, sendo marcadas pela dependência em relação ao tráfico atlântico, por grandes escravarias e pela dedicação ao cultivo de gêneros agrícolas voltados para o mercado externo. Apesar dos estudos sobre a família escrava terem concentrando-se em áreas cujas atividades econômicas estavam fortemente ligadas à economia de exportação, com grandes escravarias, especialmente as regiões paulista e fluminense, as pesquisas não se têm limitado a esses contextos.

Heloísa Maria Teixeira (2002), ao investigar a região de Mariana, nas Minas Gerais da segunda metade do século XIX, encontrou diferenças interessantes em relação a estas regiões. A autora confirmou a importância dos laços familiares para os cativos de maneira semelhante ao que foi realizado por Florentino e Góes. Contudo, Teixeira defendeu, com base nas suas pesquisas no município mineiro, o valor da reprodução natural para a manutenção do escravismo em uma sociedade distante do tráfico Atlântico, diferindo, portanto, das conclusões daqueles autores para o agro fluminense no momento anterior à extinção definitiva do tráfico de africanos para o Brasil. Nas áreas de plantations do atual Sudeste, antes de 1850, foi constatada a necessidade da reposição da mão de obra escrava via importação, ainda que o acréscimo de escravos por meio da natalidade não pudesse ser desprezado38.

37 FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: As pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de

São João del Rei (1700-1850). Tese de professor titular defendida junto ao Departamento de História da UFF, Niterói, 2004

38 TEIXEIRA, Heloisa Maria. Reprodução e famílias escravas em Mariana 1850-1888. 2002. Dissertação

(33)

Outras pesquisas como a de Bergad (2004)39, também em Minas Gerais, e de Machado (2008)40, em São José dos Pinhais (PR), seguem a mesma tendência de Teixeira (2002), alertando para a necessidade de expansão das pesquisas referentes à escravidão e, especificamente, sobre as relações familiares entre cativos para responder aos inúmeros questionamentos suscitados ao longo dos últimos anos sobre o assunto que ainda não foram plenamente respondidos – ao menos para todo o Brasil em sua extensa história de mais de três séculos de escravidão de africanos e descendentes e um espaço geográfico imenso e diverso.

Na área que atualmente corresponde à região nordeste do Brasil, historiadores como Isabel Cristina dos Reis (2007), Ana Sara Cortez (2008), Solange Pereira da Rocha (2009) e Caetano De’ Carli (2007), ao focarem seus estudos em regiões caracterizadas por pequenas escravarias e baixos índices de entrada de escravos africanos, encontraram resultados semelhantes aos de Teixeira (2002), Machado (2008) e Bergad (2004), ao se depararem com o incentivo senhorial à reprodução natural, como uma forma de alcançar estabilidade em suas escravarias, assim como a reprodução de mão de obra cativa. Porém, o baixo número de escravos nas propriedades, assim como fatores externos ou não às vontades dos escravos, influenciou no número de casamentos destes indivíduos e na ocorrência de famílias matrifocais ou monoparentais e relações não legitimadas.

Reis (2007) encontrou, na Freguesia de São Salvador, na cidade de Salvador na Bahia, na segunda metade do século XIX, um estímulo senhorial às uniões matrimoniais entre os seus cativos e/ou à reprodução natural deles nas primeiras décadas da suspensão do comércio transatlântico de escravos; a ocorrência de uniões entre indivíduos de diferentes estatutos, uniões consideradas “ilegítimas” pelo fato da não-realização do casamento católico, porém legitimado dentro de uma concepção afro-brasileira, assim como africanos mulçumanos libertos que desposaram várias mulheres e assumiram a obrigação de zelar pelo bem estar delas41.

De’Carli (2007) e Rocha (2009) ressaltaram a ocorrência de famílias matrifocais42

: o primeiro desenvolveu a ideia de que o padrão familiar entre os cativos do sertão pernambucano

39 BERGAD, Laird W. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Bauru, São

Paulo: EDUSC, 2004.

40 MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil

escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

41 REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. 2007. Tese

(Doutorado em História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.

42 Segundo os historiadores Mary del Priore e Eduardo França Paiva, as famílias formadas pelas uniões oficializadas

(34)

era predominantemente estruturada na figura da mãe, líder do seu campo doméstico, e dos filhos, e o não-casar como uma estratégia dos escravos (principalmente das mulheres) visando acumulação de benefícios e, até mesmo, a alforria43. Rocha (2009) enfatizou que, apesar do incentivo senhorial de reprodução natural nas escravarias na Paraíba oitocentista, o envio de um grande número de homens para as lavouras cafeeiras após o fim do tráfico, provavelmente provocou um efeito negativo na possibilidade de casamento de escravos no litoral da Paraíba44.

A historiadora Cortez (2008) focou em outro viés, o qual o impedimento senhorial de casamentos de escravos de propriedades diferentes – o que, provavelmente, diminuiu os índices de casamento de escravos em detrimento do dos livres, e o convívio destes cativos com pessoas livres pobres nos mesmos espaços de trabalho e sociabilidade incentivou o casamento de pessoas de diferentes cores, origens e estatutos jurídicos. Segundo Cortez (2008), na região do Cariri (Ceará), os escravos foram empregados nas fazendas de gado, canaviais, engenhos, nos serviços domésticos e urbanos. Ao lado de homens pobres e livres, os escravos trabalhavam em todos os tipos de serviços ali existentes. Portanto, as condições sociais podem ter propiciado a formação de famílias de caráter misto (estratos sociais diferentes) e mestiças45.

Estes trabalhos ressaltam a baixa incidência de matrimônios legitimados pela Igreja nas regiões estudadas e o alto índice de ilegitimidade entre as crianças escravas batizadas, destacando

vezes por maridos ausentes, companheiros ambulantes e mulheres chefiando seus lares. Priore argumentou que, apesar da ação da Igreja, que buscava implantar a regra do matrimônio no Novo Mundo, grande parte das mulheres pobres e empobrecidas viviam em uniões consensuais, contrapondo-se as uniões da elite, geralmente contraídas no interesse de manter patrimônios. Ligado a uma antiga tradição medieval intitulada “casamento por juras”, o concubinato vivido por homens e mulheres na Colônia era algo corriqueiro. Enquanto as famílias matrifocais se destacavam igualmente entre os que a historiadora chamou de grupos subalternos. Um dos fatores que influenciavam o surgimento de famílias chefiadas por mulheres teria sido o constante deslocamento dos homens na Colônia, movimentação no espaço motivada pela busca de riquezas ou estabilidade social .Paiva encontrou também uma sociedade marcada por fluxos migratórios impulsionados pela procura de metais preciosos ao analisar os testamentos dos moradores a Minas Gerais setecentista, e uma expressiva parcela de uniões consensuais, filhos naturais e famílias matrifocais, encontrando estas estruturas também entre as libertas. O historiador destacou que um dos motivos que pode ter contribuído para o baixo número de uniões legitimadas pela Igreja, principalmente ente os menos abastados, teria sido os custos destes casamentos e a burocracia para realizá-los, além das migrações. Cf. PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. 2.ed. São Paulo: Annablume, 2000; PRIORE, Mary del. Ao sul do corpo: Condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. São Paulo: José Olympio, 1993.

43 DE' CARLI, Caetano. A família escrava no sertão pernambucano (1850-1888). 2007. 127 f. Dissertação

(Mestrado em História) - Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

44ROCHA, Solange Pereira da. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco espiritual.

São Paulo: Editora da Unesp, 2009.

45 CORTEZ, Ana Sara Ribeiro Parente. Cabras, caboclos, negros e mulatos: a família escrava no Cariri cearense

(35)

a formação de famílias escravas constituídas por uniões consensuais ou matrifocais em espaços onde as pequenas propriedades predominavam.

Embora, em certas regiões, o casamento formal não fosse comum entre os escravos, isso não quer dizer que eles não tivessem constituído família ou que os laços de parentescos não fossem importantes na sua vida. Schwartz (1988) afirma, por exemplo, com base nos registros paroquiais do Recôncavo baiano, no período colonial, não encontrou nenhum registro de escravo casado com cativo de outro senhor. A razão disso seria que o universo social dos cativos era restrito aos engenhos e fazendas de canas. No entanto, o autor observa que, em longo prazo, essa política falhou, pois a proximidade entre as propriedades facilitava o contato entre os escravos, estabelecendo laços familiares e de parentesco que levariam os cativos a arriscar e aceitar as limitações e problemas decorrentes dessas uniões46.

A historiografia da escravidão tem mostrado por meio de evidências embasadas teórica e metodologicamente que é possível uma análise mais sofisticada e complexa das diversas experiências dos cativos, em diferentes contextos e circunstâncias históricas. Dessa forma, as multiplicidades de experiências, as sociabilidades e os modos de viver dos cativos, bem como suas percepções em relação ao cativeiro e a relações familiares vem sendo constatada empiricamente em estudos acadêmicos, resultando em novas questões sobre a escravidão no Brasil.

Quanto ao Rio Grande do Norte, a historiografia clássica47 apontava a pouca importância da escravidão africana na economia e na sociedade da capitania, devido ao desenvolvimento da pecuária e a pouca utilização da mão-de-obra escrava. Cascudo (1984) cita que houve presença do negro em Natal desde janeiro de 1600, logo após a fundação da cidade. No entanto, o autor menciona que “o negro foi-nos uma constante, mas não um determinante econômico”, em virtude da ausência de indústria açucareira sólida, como havia em Pernambuco, tendo em vista que “as

46 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e senhores de escravos no Brasil Colonial, 1550-1835. Trad.

Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

47 Por Historiografia clássica norte-rio-grandense entendemos, conforme Denise Monteiro, como a produção que

corresponde a primeira fase de estudos históricos sobre o Rio Grande do Norte, que se deu nas primeiras sete décadas do século XX. Essa historiografia, cujos principais representantes foram Tavares de Lyra, Rocha Pombo e Câmara Cascudo, estava inserida ou era fortemente ligada à produção do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, cuja matriz teórica estava vinculada ao positivismo, tendo como características principais a predominância de uma História factual e descritiva. Estas pesquisas buscavam abarcar todos os acontecimentos que marcaram que ocorreram no território, desde a conquista dos portugueses até o momento em que estas obras foram escritas. Os trabalhos destes estudiosos tornou-se uma matriz para trabalhos posteriores. Cf. TAKEYA, Denise Monteiro. História do Rio Grande do Norte: questões metodológicas- historiografia e história regional. Caderno de

Referências

Documentos relacionados

de professores, contudo, os resultados encontrados dão conta de que este aspecto constitui-se em preocupação para gestores de escola e da sede da SEduc/AM, em

Nossa pesquisa foi realizada em nove Escolas de Educação Infantil Privadas de Porto Alegre, que atendem exclusivamente à Educação Infantil (etapa da Educação Básica

Desde 1994, a Embrapa Mcio Ambiente vem trabalhando com essas questões, estabelecendo uma abordagem do potencial de risco ambiental envolvido com a prática do

A realização desta dissertação tem como principal objectivo o melhoramento de um sistema protótipo já existente utilizando para isso tecnologia de reconhecimento

Pode-se, assim, dizer que os cadernos de Senise são uma forma do artista conhecer, tocar e manipular seu projeto poético, por meio de diálogos intrapessoais que as anotações

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio.. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo

Foram avaliadas três concentrações de terra diatomácea e carvão ativado como material para purificação do hidrolisado de amido de mandioca.. As alíquotas de hidrolisado foram

Realizar a manipulação, o armazenamento e o processamento dessa massa enorme de dados utilizando os bancos de dados relacionais se mostrou ineficiente, pois o