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3. O CASAMENTO DDE ESCRAVOS NOS ESPAÇOS DA FREGUESIA DE NOSSA

3.4 Casamento de escravos nos espaços da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação

Como foi citado no primeiro capítulo, a Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação possuía, entre 1727 a 1760, três aldeamentos e oito capelas anexas, além da Igreja Matriz. Analisando a realidade de cada uma das localidades que possuíam prédios religiosos, esta seção irá observar as especificidades do processo de territorialização e cristianização desses espaços e a função moralizadora que o matrimônio desempenhava nelas, principalmente com a população cativa. No gráfico a seguir podemos observar o número de matrimônios realizados em cada um destes prédios sagrados no recorte temporal selecionado:

Gráfico 16 – Matrimônios por templo

na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-1760)

Fonte: Elaborado por Danielle Alves a partir dos registros paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-1760). Universo amostral: 192 registros.

0 10 20 30 40 50 60 70 80 Matriz

Capela da Missão de Nossa Senhora do Ó de Mipibú Capela de Cajupiranga Capela da Missão de Santa Ana Capela da Missão de São Miguel Capela de Jundiaí Capela de Santo Antônio Capela de São Gonçalo Capela do Ferreiro Torto Capela da Aldeia Velha Capela de Utinga Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos

78 67 20 39 43 21 20 23 6 18 15 3 36 26 24 23 14 19 16 13 9 3 2 2 Escravos Livres

Podemos observar, nos dados apresentados acima, que o número de matrimônios de escravos variava muito de uma capela/igreja para outra. A maior parte foi realizada na Matriz, o que poderia indicar uma maior concentração de escravos na Cidade do Natal. Porém, os assentos de José Paulo da Costa, livre, e Beatriz, crioula escrava, moradores do Mipibú, que casaram em setembro de 1733; de Valentim Ferreira da Costa, livre, e Adriana Lopes de Macedo, escrava, moradores do Pitimbu, que se uniram em novembro de 1743; de José Barros, escravo Gentio da Guiné, e Josefa Maria da Costa, forra, que casaram em maio de 1757 e que são moradores de Ceará-Mirim; mostram que havia um deslocamento de indivíduos de outras localidades para se casarem na Matriz294. Embora concentrados nesta, o gráfico mostra que estes matrimônios se espraiavam por outras margens do território.

A Igreja de Nossa Senhora do Ó do Papari (atualmente, na cidade de Nísia Floresta), na época, um aldeamento indígena; a Capela de Nossa Senhora dos Remédios de Cajupiranga (em atual território de Parnamirim) e a Capela de Santo Antônio do Potengi (localizada onde hoje é a cidade de São Gonçalo do Amarante) apresentaram, depois da Matriz, os números mais elevados, provavelmente por serem regiões com uma economia mais dinâmica, onde a demanda por escravos era maior por causa dos engenhos e/ou engenhocas de açúcar, rapadura e cachaça que existiam nestes espaços295.

Além disso, observa-se, ainda, que em algumas capelas, o número de matrimônios de escravos era maior do que o número de casamentos de pessoas livres. Esse era o caso das Capelas de Nossa Senhora dos Remédios de Cajupiranga e de Santa Ana do Ferreiro Torto, o que demonstraria o papel relevante do casamento para os escravos em diferentes espaços da freguesia.

Analisando os batismos de escravos, os resultados diferem um pouco. A Matriz também apresentou a maior concentração, e, apesar das capelas de Santo Antônio e São Gonçalo apresentarem os números mais elevados em períodos anteriores, foram as capelas de Nossa Senhora da Conceição do Jundiaí e Nossa Senhora do Ó de Mipibú que demonstraram números maiores no período estudado, ambas tendo destaque, como nos registros matrimoniais. Por meio da análise dos registros da primeira metade do século XVIII, o número de indivíduos assistidos pela capela de Santo Antônio do Potengi, e que receberam os sacramentos nela, foi diminuindo, o que poderia indicar uma perda de importância, com pessoas se deslocando para outras partes da capitania. Pode-se aventar a hipótese, também,

294 ACMN, Assentos de casamento, Cx. única, Livros de 1727-1740; 1740-1752; 1752-1760. 1727-1760. 295 ANDRADE, Manuel Correia de. A produção do espaço norte-rio-grandense. Natal, RN: EDUFRN, 1981.

que a construção de novas capelas permitiu que estes indivíduos escolhessem templos mais próximos de sua moradia.

Em um estudo sobre os batismos na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, Carmen Alveal e Dayane Dias constataram que, entre os 957 registros de 1681 a 1714, a maioria foi realizada na Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, totalizando 288 batismos, ou cerca de 31%. Em segundo lugar, haviam os batismos realizados na Capela de Santo Antônio (atual São Gonçalo do Amarante), com 176 registros, correspondendo a 19%. Em terceiro, a Aldeia de Mipibú (atual São José de Mipibú), com 138 registros (15%). E, em quarto e quinto, a Capela de São Gonçalo do Potengi (atual São Gonçalo do Amarante) e a Aldeia de Guajirú (atual Extremoz), com 72 (8%) e 70 (7,5%) registros, respectivamente296.

A distribuição dos batismos representava a localização geográfica onde esses batismos eram realizados. Natal, por ser o núcleo de povoamento mais antigo, figurar como a cabeça da capitania e abrigar grande parte da população, possuía grande número de batismos realizados. E os aldeamentos indígenas também se destacaram, evidenciando sua grande importância no período inicial de formação da sociedade colonial. Apesar de nem todos os batizados nessas aldeias serem indígenas, a sociedade colonial da Capitania do Rio Grande construiu-se em torno dessas aldeias.

De acordo com o estudo de Alveal e Dias, a maioria dos batismos da população negra escrava ocorreu em Natal (88 registros), seguido pela Capela de Santo Antônio do Potengi (49 registros) e pela Capela de São Gonçalo do Potengi (28 registros). Os batismos da população indígena escrava ocorreram predominantemente na Igreja Matriz (20), seguido pela Capela de Santo Antônio (18), e pela Capela de São Gonçalo do Potengi (9). Esses resultados poderiam indicar que as atividades que envolviam a mão de obra escrava giravam em torno desses locais. E Natal, apesar de também não ter sido uma cidade com alto grau de dinamicidade, parece ter exercido certa centralidade das ações da Igreja ou, talvez, diante das dificuldades da ida de clérigos aos locais mais remotos, é possível que houvesse um esforço de se ir até à cabeça da capitania para garantir o sacramento. Poucos foram os registros de batismo da população indígena escrava. Assim, apesar dos indígenas terem sido escravizados no início da colonização, a preferência caiu, à medida em que foi aumentando sobre a população negra.

Quanto aos batismos de escravos encontrados nos livros de 1749 e 1754-1761, a maior parte dos registros foi de sacramentos ministrados na Matriz de Nossa Senhora da

296

DIAS, Dayane; ALVEAL, Carmen. Um estudo sobre a população da Capitania do Rio Grande com ênfase na escravidão negra e indígena no contexto da Guerra dos Bárbaros (1681-1714). Resgate: Revista Interdisciplinar De Cultura, Campinas, v. 25, 57-80. 2017.

Apresentação, com 49 batismos encontrados (32%). Em seguida, veio a Capela de Nossa Senhora da Conceição do Jundiaí, com 33 batismos (22%); São Gonçalo do Potengi, com 19 batismos (12%); a Missão de Nossa Senhora do Ó de Mipibú, com 17 batismos (11%); e a Capela de Santo Antônio do Potengi, com 14 batismos (9%).

A capela de Nossa Senhora da Conceição do Jundiaí, a Capela de São Gonçalo do Potengi e a de Santo Antônio do Potengi estavam relativamente próximas e situadas em um espaço, próximo à Ribeira do Potengi, onde residiam muitos de prestígio daquela sociedade, como, por exemplo, oficiais do Senado da Câmara da Cidade do Natal que possuíam fazendas/moradias em torno das Capelas de São Gonçalo e Santo Antônio297.

Provavelmente, a região que, hoje, compreende aos municípios de São Gonçalo do Amarante, Macaíba e Parnamirim, e que, no período colonial, eram espaços cuja assistência religiosa era dada por essas capelas – e pela Capela de Nossa Senhora dos Remédios de Cajupiranga -, eram áreas de concentração populacional, principalmente de cativos, e de atividades que demandavam uma maior presença de mão de obra escrava, como o cultivo de cana de açúcar e os engenhos de fabricação de açúcar, cachaça, e, entre outros, rapadura, propícios por causa do solo fértil nas margens dos rios Potengi e Jundiaí298. Além disso, eram consideradas “áreas de ligação” com os sertões da capitania299. A região no entorno da Capela de Nossa Senhora do Ó de Mipibú também se destacava, não apenas por causa do açúcar – cultivado às margens do Mipibú -, mas, também, por causa de atividades como criação de gado.

Sobre os nubentes cativos que casaram na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, podemos observar, nos registros de matrimônio destes indivíduos, as qualidades e condições jurídicas deles, assim como as mesclas ocorridas neste espaço. Por meio da análise destas informações, percebe-se que o número de nubentes de origem africana se destacou na maior parte das capelas. Na tabela abaixo, são apresentadas as qualidades e as condições jurídicas dos nubentes que se casaram na capela de Nossa Senhora do Ó de Mipibú e que foram registrados nos livros dos livres e no Livro dos Pretos e Pardos da paróquia:

297

Renata Costa utilizou como exemplo os casos dos oficiais da Câmara Teodósio da Rocha, Teodósio Grasiman e Antônio Dias Pereira. As famílias de oficiais também foram encontradas na documentação consultada para a realização desta pesquisa, batizando e/ou casando seus escravos nestas capelas (Nossa Senhora da Conceição do Jundiaí, São Gonçalo e Santo Antônio), como por exemplo, a família Morais Navarro e a própria família Graseman, como será esmiuçado mais adiante. Cf. COSTA, Renata Assunção da. Porta do Céu..

298 CRUZ, Luana Honório. Os caminhos do açúcar no Rio Grande do Norte: o papel dos engenhos na

formação território potiguar. 2015. 312f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. Ver também: ANDRADE, Manuel Correia de. A produção do espaço

norte-rio-grandense.

Tabela 6 – Qualidades e Condições Jurídicas dos nubentes nos casamentos de escravos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-1760)

Templo Qualidade dos

nubentes

Condição

Escravo Livre Forro

Capela da Missão do Ó de Mipibú Preto 1 - - Tapuio(a) 2 - - Crioulo (a) 5 - Gentio da Guiné 11 - - Gentio da Costa da Mina 2 - - Nação Janduí 1 - - Índio - 1 2 Gentio da Angola 1 - - Gentio Courana 1 - - Cabra - - 1 Pardo 1 - - Capela da Missão de São Miguel Gentio da Terra 1 - - Crioulo(a) - 2 - Costa da Mina 1 - - Gentio da Guiné 5 - 1 Cabra 2 - Pardo 1 - - Tapuia - - 1 Capela da Missão de Santa Ana Gentio da Terra 1 - - Gentio da Guiné 10 - - Nação Panicuassú - - 1 Crioulo 5 - - Preto 1 - Índia - - 1 Gentio de Benguela 2 - - Cabra 1 - - Capela do Ferreiro Torto Gentio da Guiné 8 Índia - - 1 Capela de Santo Antônio do Potengi Crioulo 2 - - Tapuia 1 - - Gentio de Angola 1 - Gentio da Guiné 11 - - Preto - - 1 De nação - - 1 Nação Jaguarebara - - 1 Tapuia de nação Potengi - 1 - Crioulo 3 1 1 Capela de São Gonçalo do Potengi Preto Gentio da Guiné 1 - - Gentio da Guiné 3 - - Índia - 1 - Cariboca - - 1 Cabra 1 -

Capela de Utinga Tapuia da nação Janduím

1 - 1

Crioulo - - 1

Jaguaribara Capela da Aldeia Velha Tapuio de nação Potengi 1 - - Tapuia de nação Panicuassú - - 1 Tapuia 1 - - Índio 1 Gentio da Guiné 1 - -

Capela de Jundiaí Gentio da Guiné 13 - -

Gentio da Terra 1 - - Tapuio de nação Potengi 1 - - Tapuia de nação Kaboré300 1 - - Gentio de Angola 5 - - Crioulo 2 - - Índia do gentio do Camarão - 1 - Índio - - 1 Capela de Cajupiranga Crioulo 9 1 Tapuio 4 - - Gentio da Guiné 19 - - Gentio de Angola 2 - - Índio - 1 1 Gentio de Arda 1 - - Total: 149 10 18

Fonte: Elaborado por Danielle Alves por meios dos registros de matrimônio da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Universo amostral: 116 registros

O número de escravos africanos que alcançaram o sacramento matrimonial foi expressivo, principalmente nas Capelas de Santo Antônio do Potengi, do Ferreiro Torto, Jundiaí e Cajupiranga, ou seja, algumas que apresentaram o maior número de casamentos da freguesia. Possivelmente, estes espaços eram utilizadas pelos indivíduos de grande cabedal, para casar seus escravos. A maior parte destes cativos foi classificada como Gentio da Guiné, qualidade geralmente utilizada para escravos vindos da região da África Ocidental, uma informação que poderia ajudar a descobrir a origem destes escravos, como veremos no terceiro capítulo.

Quanto à escravidão indígena, percebe-se, por estes dados, que ela coexistia com a escravidão africana e a mestiça no litoral leste da capitania, apesar do número de nubentes que receberam qualidades referentes aos indígenas ter sido menor que o de africanos. As Capelas de Nossa Senhora do Ó de Mipibú, Santa Ana de Mipibú e a Capela da Aldeia Velha se

300 Para citar os etnônimos encontrados nos registros paroquiais da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação,

foi adotada a convenção para a grafia de nomes tribais, estabelecida em 1953, em que não se utiliza a flexão dos termos e substitui a letra c pelo k. Cf. Convenção Para A Grafia Dos Nomes Tribais. Revista de Antropologia. v. 2, n. 2, dezembro 1954, p. 150-152.

destacaram neste aspecto. As duas primeiras provavelmente por serem Missões de Índios, e a última por estar localizada, na época, na antiga Aldeia do Camarão, onde atualmente está localizado o bairro Igapó, ao norte da capital norte-rio-grandense, e que abrigava uma significativa população de índios na freguesia.301 Além disso, muitos destes nubentes de origem indígena eram indivíduos livres ou forros que estavam casando com escravos, aumentando ainda mais a diferença entre nubentes cativos africanos e os indígenas.

Uma hipótese para estes números seria de que os escravos vindos da África fosse maior no entorno das Capelas de Santo Antônio, Jundiaí, Cajupiranga e Jundiaí, e a preferência por escravos índios estivesse diminuindo. Carmen Alveal e Dayane Dias defenderam a ideia de que, paulatinamente, a preferência por escravos indígenas foi decaindo em relação aos escravos vindos da África, a medida que a menção destes indivíduos nos registros paroquiais da freguesia foi decaindo no decorrer das últimas décadas do século XVII e a primeira do XVIII. O número de nubentes africanos também supera o de crioulos, levando a crer que o sacramento matrimonial era mais acessível aos cativos vindos da África302.

Outra possibilidade seria a dificuldade dos escravos indígenas de encontrarem parceiros que lhe agradassem ou que não lhe fosse impedido dentro da escravaria que pertencia. Por meio desta conjectura, podemos considerar a questão da escolha dos escravos, suas preferências e os impedimentos que poderiam lhes ter sido impostos.

Observando os termos utilizados pelo vigário para qualificar os noivos cativos nestes registros, ver-se a variedade de qualidades que apareceram nesta documentação. Os indivíduos nascidos na África e traficados para o Brasil recebiam como denominações Gentio

da Guiné, Gentio da Angola, Gentio de Arda, Gentio Courana, Gentio da Costa da Mina, Gentio de Benguela, termos que, mais do que remeter a suas origens, indicavam o nome dos

portos onde eram comercializados. De modo que os termos nação e gentio não correspondiam, necessariamente, a qualidades que representavam um grupo étnico, podendo ser resultado da reunião de vários indivíduos, de origens diversas, embarcados no mesmo porto. A historiadora Mariza Soares chamou-os de grupos de procedência303. A historiografia brasileira atualmente trabalha com a ideia de que esses indivíduos poderiam se apropriar destes termos para construir novas identidades e, isso, de certa forma, influenciava na escolha dos seus parceiros, como veremos mais adiante.

301

SPENCER. Walner Barros. Ecos de silêncio: a história indígena recusada. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais (Antropologia).UFRN. Natal, junho de 1999.

302DIAS, Dayane; ALVEAL, Carmen. Um estudo sobre a população da Capitania do Rio Grande com ênfase na escravidão negra e indígena no contexto da Guerra dos Bárbaros (1681-1714).

303 SOARES, Mariza. Os devotos da cor – Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro,

Os escravos nascidos no Brasil eram denominados pela cor ou qualidade. O termo

preto estava ligado à procedência, ou seja, originários da África. Assim, escravos pretos ou negros seriam os traficados ou descendentes destes304, enquanto crioulo referia-se aos nascidos no Brasil, filhos de mãe natural da África, como foi observado no casamento dos escravos Martinho e de Josefa, de 1740. O documento afirmou que Martinho, um crioulo, era filho legítimo de Domingos crioulo e de sua mulher Maria Angola, uma escrava de origem africana305. O mulato, segundo o dicionário Bluteau, vem do termo Mû ou mulo, animal gerado de dois outros de diferente espécie e seria designado ao filho ou filha de branco com negro306.

A categoria pardo, segundo a historiadora Hebe Mattos, era típica do final do período colonial, e tinha uma significação muito mais abrangente do que as de “mulato” ou “mestiço”. Destaca também que em todo o período escravista os termos “negro” e “preto” foram usados exclusivamente para designar escravos e forros, e que “preto” era sinônimo de natural da África, sendo os índios cativos chamados de negros da terra. A autora também esteve atenta à historicidade dessas categorias, quando escreveu que:

“Pardo” foi inicialmente utilizado para designar a cor mais clara de alguns escravos, especialmente sinalizando para a ascendência europeia de alguns deles, mas ampliou sua significação quando se teve que dar conta de uma crescente população para a qual não era mais cabível a classificação de ‘preto’ ou de ‘crioulo’, na medida em que estes tendiam a congelar socialmente a condição de escravo ou ex-escravo. A emergência de uma população livre de ascendência africana – não necessariamente mestiça, mas necessariamente dissociada, já por algumas gerações, da experiência mais direta do cativeiro – consolidou a categoria ‘pardo livre’ como condição linguística para expressar a nova realidade, sem que recaísse sobre ela o estigma da escravidão, mas também sem que se perdesse a memória dela e das restrições civis que implicava.307

A historiadora Silvia Lara destacou sobre o uso destes termos também para pessoas livres ou libertas:

As designações de ‘negro’, ‘cabra’, ‘pardo’ e até mesmo a de ‘crioulos’, embora não digam nada a respeito da condição social das pessoas assim nomeadas, mas sim de sua origem ou cor da pele, indicam a existência de outros níveis de diferenciação social que, para aqueles homens e mulheres

304

SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras,1988.

305 ACMN. Assentos dos casamentos dos pretos e pardos escravos desta matriz do Rio Grande do ano de 1727

em diante, Cx. única, Livro de 1727-1760.

306

BLUTEAU, D. Raphael. Vocabulário Portuguez &Latino., p. 628.

307 MATTOS, Hebe. Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 6-

coloniais, não eram subsumidos pelas distinções entre livres, forros e escravos.308

Haveria, pois, uma hierarquia social entre os livres, mas também entre a população cativa, que estaria impressa na qualidade designada. Esses termos os diferenciavam não apenas dos indivíduos de condição jurídica diferente, mas entre aqueles que possuíam a sua mesma condição também. Porém, na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, foi possível se deparar com escravos qualificados como pardos (2 nubentes) nos registros paroquiais, assim como cabras, geralmente associados à escravidão309, com a condição de forros (6 indivíduos). Porém, o termo Tapuia foi frequentemente utilizado para designar escravos indígenas, enquanto raramente um indivíduo qualificado como índio tinha essa condição, sendo geralmente livres ou forros.

Os pardos poderiam se apropriar desta designação e criar suas identidades por meio dela. Larissa Viana argumentou que um segmento de pardos organizou-se em confrarias, onde cultivou suas devoções e construiu redes de sociabilidades. Esses grupos acabaram por construiu uma identidade que, além de religiosa, valorizava o nascimento no Brasil, em contraponto com a África (da qual os pardos queriam distância), a condição de livre (ou de liberto) e a própria mestiçagem310. Na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, não foi encontrado indícios de algo parecido, mas não se pode descartar a possibilidade destes indivíduos se apropriarem destas qualidades para construírem noções de identidade e alteridade com os outros em uma sociedade hierarquizada. Porém, ao contrário dos africanos, não foi constatado uniões endogâmicas entre eles, provavelmente por estarem, talvez, em menor número nas escravarias.

Os escravos indígenas não-tupis geralmente eram qualificados como Tapuios ou Tapuias, acompanhados com o termo nação e o grupo indígena no qual esses indivíduos pertenciam. Assim, qualidades como Tapuia de Nação Kaboré, Tapuio de Nação Potengi e, entre outros, Tapuio de Nação Janduím eram frequentes. Também havia categorias como negro da terra e gentio da terra. Provavelmente, estes escravos foram o resultado da captura de escravos dos sertões (não tupis) durante a Guerra dos Bárbaros. Iremos discutir melhor essa questão no próximo capítulo.

308

LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 350.