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Evolução e Criação no debate contemporâneo

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Academic year: 2021

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no debate contemporâneo

Nos 150 anos de Sobre a Origem das Espécies

de Darwin

Ângelo Alves*1

I

ACTUALIDADE DO TEMA Dois factos significativos

A actualidade do tema que me foi proposto é posta em evidência por dois acontecimentos muito próximos: um, no mundo da ciência experimental, e outro, no domínio da cultura e da política.

1. No dia 10 de Setembro passado, começou a funcionar, com êxito e festa,

no CERN (Suíça), o acelerador de partículas subatómicas mais potente até hoje construído. Recebeu o nome de LHC – Grande Colisionador de Hadrões – indi-cando a sua finalidade específica: provocar colisões de partículas à velocidade de 99,9% da velocidade da luz. Trata-se de detectar partículas subatómicas, nomeadamente a já prevista há trinta anos por Peter Higgs, chamada «bosão de Higgs», e verificar a sua função de atribuir massa às outras partículas com as quais interage. É uma partícula transportadora de energia.

* Professor Jubilado da Universidade Católica Portuguesa – Porto.

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A sua comprovação experimental equivalerá a uma viagem de retorno até à explosão inicial que deu origem ao Universo, e a verificar as condições iniciais da matéria, no bilionésimo de segundo após o Big Bang. Por isso, lhe chamaram «partícula de Deus».

Esta designação metafórica, em estilo de divulgação científica, não é nova, pois apareceu antes, como título de um livro do físico americano Leon Leder-man, prémio Nobel da Física em 1988, pela sua descoberta, em 1977, do «mesão ípsilon», partícula atómica que tem massa com valor compreendido entre o protão e o electrão e veio a confirmar a existência do «quark b».

Este nome dado às duas partículas supõe e significa a atribuição a Deus de uma intervenção activa na origem e composição da matéria inicial. As partículas seriam instrumentos da acção criadora de Deus. Por isso mesmo, o físico britânico Peter Higgs, há pouco referido, declarou a seu propósito, conforme relata um jornalista (Público, 10.09.08), que desejava muito que a sua partícula fosse encontrada antes de perfazer oitenta anos, mas não gosta que lhe chamem «partícula de Deus», porque é ateu e não quer ofender os crentes.

Certamente, os crentes ficam sensibilizados com este sinal de respeito pela sua fé religiosa, mas gostariam de dizer-lhe que também eles consideram o sintagma «partícula de Deus» como denominação metafórica, simbólica. A acção própria de Deus na origem do Universo, na qual acreditam, por um lado, é espontaneamente entendida e descrita como se fosse uma acção humana, antropomorficamente; por outro, tem de ser concebida e expressa, negando o nosso modo humano de operar, para nos aproximarmos do que ela é em si mesma, isto é, do modo de agir próprio de Deus, que tem uma face transcendente, misteriosa. É que, na verdade, não podemos conceber Deus, como se Ele fosse um artífice que projecta a sua obra, utiliza uma matéria-prima já existente e instrumentos pré-fabricados. Como o oleiro (aliás, imagem bíblica para a criação do homem), que toma uma porção de argila, a coloca na placa giratória e a vai modelando com as suas mãos, até assumir a forma do vaso que idealizou. A acção de Deus é absoluta: de todo independente de uma matéria pré-existente ou de instrumentos pré-fabricados; transcendente: não situada no espaço e no tempo; é total e contínua, abrangendo a forma de ser, o ser e o agir da sua obra, o seu começo, desenvolvimento e fim, o seu passado, presente e futuro. Daí que não haja uma «partícula de Deus». Mas todas as partículas subatómicas ou macroscópicas, todos os átomos, moléculas e organismos, o sol, as estrelas e as galáxias são de Deus - Ele é o princípio absoluto de todas as coisas, em criação contínua, até à sua consumação.

2. O segundo acontecimento a dar notoriedade ao criacionismo foi a escolha

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Segundo uma articulista do mesmo jornal, no mesmo dia 10 de Setembro2, a

razão dessa escolha e o efeito pretendido foi desviar o debate eleitoral dos temas mais candentes e que mais afligem o país, para a velha guerra cultural entre conservadores religiosos republicanos e progressistas democráticos libertários. E defende o seu ponto de vista, descrevendo a personalidade da candidata, tal como apareceu no palco da convenção republicana: «electrizou a convenção com a sua grande família e as suas pequenas tragédias, que exibe com total candura. Com a sua distância de Washington e da elite política e cultural, apresentadas como origem de todos os males. Com a sua convicção de que a guerra do Iraque foi encomendada por Deus aos americanos. Com o seu fundamentalismo reli-gioso, a sua defesa do criacionismo, o seu horror à diferença e os seus hábitos simples; foi com ela que os delegados da convenção republicana melhor se identificaram. Salvou McCain, o “outsider”, a seus olhos».

A referência directa ao criacionismo, em contexto de fundamentalismo religioso, coloca a candidata entre os cristãos evangélicos tradicionalistas que se opõem ao evolucionismo, a ponto de, em 31 dos 50 Estados federados, terem recorrido sucessivamente, há décadas, aos Tribunais, para que seja proibido ensinar nas escolas públicas a teoria darwiniana da evolução ou, ao menos, seja ensinada simultaneamente com o relato bíblico da criação. Isto, porque inter-pretam o relato bíblico da criação em sentido literal, como narrativa histórica. O mundo e as espécies biológicas saíram da mão de Deus tal como se apresentam hoje. Este criacionismo é fixista e opõe-se ao evolucionismo científico, com o fundamento de que a Bíblia é revelação de Deus.

3. Daqui se vê que os termos em confronto – criacionismo e evolucionismo

– são usados em acepções diversas, mesmo entre cristãos. Chega-se a teorizar um evolucionismo filosófico e a execrar um criacionismo científico. Um e ou-tro vão contra o sentido originário e o uso corrente dos termos, caindo num certo contrasenso. Pelo que, havemos de estar atentos ao contexto em que são empregues.

O criacionismo, tomado em geral, designa a doutrina que ensina a criação do mundo, como acção de Deus. Tem origem na Bíblia judaica e é comum às religiões monoteístas. Opõe-se ao panteismo monista, ao maniqueismo dualista e ao politeísmo pluralista, que têm uma concepção diversa da divindade, e ao materialismo e niilismo, que negam qualquer divindade.

Em sentido particular, designa a doutrina segundo a qual o mundo, ou pelo menos as espécies viventes, foram criados tal como nós os conhecemos. Opõe-se ao evolucionismo, sobretudo ao evolucionismo biológico darwiniano,

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e tem-se tornado, por vezes, concordista, isto é, tem buscado na ciência natural indícios e argumentos a seu favor. Por isso, foi taxado de «científico», pelos seus adversários evolucionistas.

O segundo termo – evolucionismo, em geral, significa a doutrina segundo a qual as formas superiores da realidade procedem das formas inferiores, por evolução.

Em sentido particular e principalmente, designa a teoria científica segun-do a qual as espécies viventes descendem, por transformação evolutiva e por complexificação progressiva, das formas mais simples, ou mesmo das monoce-lulares. É sinónimo de transformismo e opõe-se a fixismo. Tornou-se a acepção mais comum, desde Darwin até hoje.

Mas há também um evolucionismo filosófico, segundo o qual a lei da evolução rege todo o real, desde o mundo inorgânico, até ao pensamento e às instituições humanas. Tem como defensor primeiro Herbert Spencer e repre-sentantes mais destacados Bergson e Teilhard de Chardin.

O primeiro estendeu a concepção evolucionista a todas as ordens da existência, genericamente e em pormenor, a todas as estruturas e funções. O segundo atribuiu ao «élan vital» um poder criador, se não de matéria, ao menos de formas novas, radicalmente novas e irredutíveis. Logo depois da publicação do livro L’ Évolution créatrice, em 1907, Sertillanges fez da expressão em título uma interpretação restritiva: «evolução criadora não queria dizer evolução que cria, mas evolução em que há criação»3.

Esta distinção subtil, a que Bergson, mais tarde deu acordo, agradecen-do-a ao seu autor, abre caminho à compatibilidade entre criação e evolução e, portanto à reconciliação entre evolucionistas e criacionistas. Para tanto, basta substituir o binómio «evolução criadora» pelo antónimo «criação evo-lutiva», deste modo retirando ao tempo, à «duração» bergsoniana, o poder gerador, quase mítico, de formas de vida cada vez mais complexas, até à emergência do espírito. Para que o mais perfeito não tenha de ser causado pelo menos perfeito, carecendo assim de razão suficiente, a evolução bioló-gica ascendente terá de ser atribuída a um agente anterior à matéria e à vida, transcendente ao espaço-tempo físicos, e ao mesmo tempo neles imanente, conduzindo os seres em evolução a patamares superiores de complexidade e perfeição entitativa, com sentido e orientação consequente, que implica um plano inteligente e um desígnio voluntário.

O terceiro defensor do evolucionismo filosófico, com base científica, foi Teilhard de Chardin, que acrescentou à visão evolutiva do Universo a dimensão teológica da convergência e consumação do cosmos e da história em Cristo

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suscitado e glorioso – verdadeiro «ponto ómega», para o qual tudo converge, na natureza e no homem.

O aprofundamento actual da fé na criação, em perspectiva trinitária, tem vindo a resgatar a visão unitária da evolução cósmica de Teilhard, terminada em escatologia Cristológica, de múltiplas reticências e algumas censuras de que foi objecto, ainda em vida do seu autor.

II

EVOLUÇÃO E CRIAÇÃO

EM COMPLEMENTARIDADE NÃO RECÍPROCA

1. Evolução Cósmica: Do Big-Bang à Expansão Infinita e Ascensional

Da acepção diversa dos termos em confronto – criacionismo e evolucio-nismo, devida certamente ao contexto polémico que os rodeou, resulta a ne-cessidade de precisar e delimitar os conceitos que lhe estão na raiz: evolução e criação, para ver em que medida se opõem ou são complementares. Comecemos pela evolução cósmica.

No estado actual do saber científico e, portanto, para a generalidade dos cientistas, a evolução, que foi comprovada primeiramente no domínio biológico e depois no domínio cosmológico, é hoje considerada como um todo: desde a explosão inicial até ao homem, e eventualmente até mais além, surge como um processo unitário. Decorre de harmonia com as leis da natureza, sem que se torne necessária qualquer intervenção de um agente exterior, para a sua explicação teórica e experimental.

No entanto, qualquer evolução, para ser completamente entendida, exige que se responda às duas perguntas essenciais pelo seu início e pelo seu fim, no espaço e no tempo, ou qualitativamente, uma vez que toda a evolução é o trânsito de um sujeito que passa de um estado a outro, que muda de forma ou de lugar: donde vem e quando começou? Para onde vai e quando chegará ao seu termo?

A elas procura responder, em relação ao Universo, a Física das Partículas, através de investigações no CERN, passadas e actuais. Destinam-se a comprovar a teoria do átomo primordial e da explosão inicial, e as condições iniciais da matéria, enquanto os teóricos se propõem encontrar uma equação ou fórmula mundial que unifique as teorias actuais sobre a origem e a evolução do Universo e que permitam prever o seu fim.

Das teorias relativística, quântica e da explosão inicial resulta o modelo de Universo, hoje aceite pela generalidade da comunidade científica: um universo

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finito no espaço e no tempo, em expansão indefinida; teve o seu início há 13,7 biliões de anos, na explosão primordial, e o seu termo, não previsto temporal-mente, poderá ser a morte térmica, segundo a lei da entropia, ou uma nova contracção, sob a forma de buraco negro.

Para tomarmos consciência das dimensões deste modelo de Universo, basta recordar que o Sol é uma estrela vulgar entre os biliões de estrelas da via Láctea; esta, por sua vez, é apenas uma galáxia entre biliões de outras galáxias; na história do universo, que teve início há 13,7 biliões de anos, o nosso planeta Terra surgiu apenas há cerca de 4,5 biliões de anos; as formas complexas de vida na Terra passaram a existir há cerca de 3,5 biliões de anos; somente há cerca de 500.000 anos é que apareceram os primeiros hominíde-os com andar erecto; e apenas há uns 200.000 anhominíde-os é que surgiu o homem actual (homo sapiens). Portanto, o cosmos existiu quase todo o tempo sem a Humanidade e poderia, evidentemente, continuar a existir sem ela. Não parece, pois, antropocêntrico.

E, no entanto, apesar desta pequenez infinitesimal, o Homem é o único ser natural capaz de ter consciência de si e do mundo, e de os ultrapassar pelo conhecimento metafísico de outros seres; de dizer «eu» e reconhecer no outro um «tu», com o qual se relaciona em diálogo e amor; que se interroga sobre as formas diferentes das coisas e sobre o porquê e para quê da sua existência; que unifica os seus conhecimentos sobre o mundo em leis e teorias comprovadas experimentalmente, as quais lhe permitem uma explicação imediata dos fenó-menos e dominá-los em seu proveito, através de instrumentos por si construí-dos; que abrange a totalidade do cosmos, colocando-se, pelo pensamento, fora dele, para indagar o porquê e para quê da sua existência, primeiro, segundo os dados da experiência científica, e depois, absolutamente, segundo os princípios da metafísica e os dados da fé religiosa.

Quer dizer, é capaz de ultrapassar, pela abstracção do pensamento até ao horizonte do ser simplesmente, ou do Ser puro, as barreiras do espaço-tempo do mundo físico, para entrar no patamar último do conhecimento e da realidade e perguntar: por que razão existe algo e não antes nada? A resposta justificada e ordenada constitui a ciência metafísica e nela faz afirmações primordiais, com verdade e certeza absolutas: «o que é, é e o que não é, não é; o ente é ente-sendo e o ente-não-sendo pode ser»; estes são os primeiros princípios ônticos e lógicos, isto é, do pensamento e da realidade, ou os primórdios da ontologia.

É aqui, neste patamar da metafísica, que surge rigorosamente o problema da criação divina do Universo, ou seja da atribuição da sua existência, origem e evolução, a um agente exterior, transcendente pela sua prioridade e superio-ridade ontológica, e imanente pela sua acção realizadora, dando a forma de ser, o ser e o agir às coisas e ao cosmos no seu todo; agente capaz de um desígnio inteligente, ordenador e eficaz, concebendo um plano para cada coisa e para o seu conjunto e comunicando-lhe o ser e o agir, para que subsista em si e para

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si; um agente, por consequência que seja espiritual-pessoal, infinito, necessário, absoluto, a quem, em religião, chamamos Deus.

Ao afirmar a criação divina como solução última para o problema da origem e da evolução do Universo, já não estamos, do ponto de vista epistemológico no plano do conhecimento científico, físico-matemático, mas no plano do conheci-mento metafísico, com as suas leis próprias, graus de verdade e certeza propor-cionados. O cientista nunca poderá encontrar Deus como detonador da explosão inicial, porque Deus não é uma causa física na série das causas conhecidas, série indefinida, pois haverá sempre a hipótese de uma outra por conhecer. Deus é a causa, ou princípio absoluto, de todas as coisas, não situado no espaço e no tempo, por ainda inexistentes. A criação divina não é uma transformação de matéria ou energia pré-existentes, uma metamorfose, mas um começo absoluto, a partir do nada. Quer dizer, mesmo que a energia e a matéria fossem eternas, ou o nosso universo fosse acompanhado de múltiplos universos, sempre exigiriam, pela sua evolução e multiplicidade, uma causa absoluta, razão suficiente da sua existência contingente, porque múltipla e mutável, não podendo explicar-se ou existir por si mesma, nem pelo nada, que nada explica naturalmente, nem pelo acaso que é a ignorância da causa, ou o nada do nosso conhecimento. Isto é, o cientista como cientista não pode afirmar nem negar a criação divina do Universo. Não pode identificar o acto da criação divina com um começo no tempo e no espaço, com o Big Bang ou outro fenómeno inicial. Estes são apenas um indício da necessidade da criação divina, causa absoluta de qualquer fenómeno observado.

Mas, o cientista, que é também metafísico, porque todo o homem é virtual-mente um metafísico, pode afirmar o Big Bang, como começo do nosso modelo de Universo, e o bosão de Higgs, como originador da massa das partículas subatómicas, e, simultaneamente, a criação divina do mesmo Universo e que o bosão de Higgs é «partícula de Deus». Não há incompatibilidade entre as duas afirmações, antes complementaridade e conexão necessária, pois, à luz da metafísica, nada há no ser e no agir do Universo que não seja criação de Deus, porque ela está antes do tempo e acima do tempo, mas também dentro do tempo e para além dele, pois é contínua no efeito e eterna na causa.

Não é esta, porém, a posição teórica dos cientistas que se dizem ateus. Cito apenas um exemplo. O astrofísico Michel Cassé, em entrevista publicada em 2003 e conduzida por Edgar Morin, também ele confessadamente ateísta, afirma: «A criação no sentido teológico é absoluta e para mim o que é absoluto não existe absolutamente»4.

Esta é uma afirmação rotundamente metafísica, sem qualquer demonstra-ção científica possível; e é contraditória: afirma absolutamente que o absoluto

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não existe. Logo, existe pelo menos um absoluto: o modo absoluto da sua afirmação.

E continua, noutro passo: «O problema está precisamente em saber como conceber que o universo possa ser uma espécie de degradação do infinito, que não tem forma, nem tempo, nem espaço. E, ao mesmo tempo, que esta degra-dação possa ser uma génese, a criação de qualquer coisa, de tantas coisas, a criação de partículas, de átomos, de estrelas»5.

Aqui põe-se um problema metafísico, que é inerente à sua própria concepção da origem do universo: como pode a degradação, a desordem, o caos (ele concebe a criação como degradação, como emanação do infinito) dar origem a uma estrutura ordenada, dinâmica e harmoniosa como a do universo, que a ciência descobre e comprova com leis constantes? Como pode o mais sair do menos?

Este é, de novo, um problema metafísico de fundo – o da razão suficiente da evolução ascensional, que passa do menos perfeito para o mais perfeito. Infelizmente não lhe dá resposta positiva, nem aplica, como crítica decisiva, a falta de razão suficiente à sua própria hipótese complementar do Big Bang, a hipótese do vazio quântico originário. Segundo ele, antes da explosão inicial, não havia o nada absoluto, mas o vácuo quântico, ou quase vácuo, um fundo de flutuações energéticas, do qual proveio a luz; e desta proveio a matéria e a anti-matéria em oposição, tendo a primeira aniquilado a segunda, pelo que a anti-matéria passou a ocupar 96% do espaço do universo, como matéria negra e energia negra.

Simplesmente, esta hipótese do vazio quântico não tem fenómenos empí-ricos que a fundamentem, é uma hipótese sobre outra hipótese não confirmada experimentalmente; embora se mantenha dentro dos limites da metodologia científica, tem algo de ousado, arbitrário, mais parecendo uma tentativa de afas-tar da mente dos cientistas e do homem comum o problema da criação divina, inculcando a suposição de que não faltam hipóteses de solução científica para o início do universo, que um dia poderão ser comprovadas.

Com efeito, o propósito de afastar a hipótese da criação divina do universo, é seguidamente e de modo enfático declarado por ele, nestes termos: «Anuncio solenemente que a noção do Big Bang, que parecia dar crédito à tese dos mono-teísmos judeu, cristão e islâmico, de uma criação única – até «ex nihilo», o que é uma aberração para o pensamento racional – se vê banalizada. Na realidade, falarei, na linha de Andrei Linde e de Alan Guth, de criação plural»6. Aqui alude

a outra hipótese que tenta afastar qualquer apoio à tese da criação divina – a

5 Ibidem, p. 34. 6 Ibidem, p. 34.

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das múltiplas bolhas de universo, ou de múltiplos universos, surgindo a par ou sucessivamente ao nosso universo, relativizando-o, banalizando-o, quanto à sua origem e também quanto ao seu fim.

Mas, que da teoria do Big Bang se não pode deduzir a criação divina do universo, acautelou-o precisamente o seu autor, George Lamaître, sacerdote católico, professor da Universidade de Louvaina, por estas palavras: «Tanto quanto consigo ver, esta teoria fica inteiramente fora de qualquer questão meta-física ou religiosa»7. Quer dizer, não pode servir para apoiar ou afastar, afirmar

ou negar, a tese da criação divina do universo.

Esta é precisamente a posição de João Varela, investigador português no CERN e responsável por uma das unidades de observação de colisões de par-tículas, no recém inaugurado acelerador LHC. Em entrevista longa, de 21 de Outubro, ao «Jornal de Letras», declarou:

«Por definição, o objectivo das ciências físicas nunca foi, nem o será no futuro, uma aproximação à ideia de Deus (…) No caso presente, as investigações procuram compreender o universo nos instantes iniciais do Big Bang e, eventu-almente, conhecer as suas leis físicas. Não nos informará sobre o que provocou o Big Bang, sobre o que eventualmente existia antes, ou se este foi apenas um entre muitos Big Bang de outros universos a que teremos acesso»8.

Portanto, as hipóteses, que Michel Cassé subscreve, do vazio quântico anterior ao Big Bang e dos múltiplos universos, anteriores ou posteriores ao nosso, não serão confirmadas pela presente investigação, pois não é esse o seu objectivo, mas, mesmo que fossem confirmadas, não constituiriam uma apro-ximação ou afastamento da ideia de Deus e da criação divina.

Assim é no plano científico experimental, mas não no plano metafísico. Neste plano e segundo os seus princípios, essas hipóteses, se forem confir-madas, constituem, como acontece com a explosão inicial, um indício, um sinal da contingência do universo, da sua possibilidade radical de ser e de não ser.

E, por isso, são tomadas como primeiro pilar, ou primeira premissa do raciocínio da causalidade metafísica que conclui na existência de Deus e na ne-cessidade da criação divina para explicar a existência e evolução do universo.

7 Cit. em Deus no século XXI e o Futuro do Cristianismo, Porto, 2007, p.232. 8 Jornal de Letras, 8-21 de Outubro, 2008, p.37.

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2. A Evolução Biológica e o Fim Último do Universo. Ciência, Filosofia e Teologia Cristã

Finalmente, algumas considerações sobre a evolução biológica, no que ela tem de particular.

Notemos, antes de mais, que a vida surge como segmento temporal da evolução cósmica. Teve início há 3.5 biliões de anos, quando a idade do universo atinge os 13,7 biliões de anos. Mas também surge como um seg-mento estrutural, pois nela se mantêm as constantes físicas e químicas da matéria. No entanto, com uma diferença fundamental: enquanto a evolução cósmica se processa no espaço-tempo, em linha horizontal, entre o infinita-mente pequeno do átomo primordial e o infinitainfinita-mente grande dos biliões de galáxias, a evolução biológica expande-se também verticalmente, em linha ascensional de complexificação crescente, em interiorização e aperfei-çoamento das espécies, até atingir o homem. Aqui emerge a consciência, o conhecimento reflexo, independente das condicionantes do espaço-tempo, aberto a conceitos universais e a princípios absolutos, necessários e eternos, válidos para além de toda a quantificação de grandezas, mesmo das abstrac-ções lógico-matemáticas.

O homem surge no topo da árvore da vida como uma flor insignificante, do ponto de vista físico e biológico, mas é a única espécie vivente capaz de dar frutos que a transcendem ilimitadamente, frutos de vida espiritual: a ciência, a moral e a religião. São frutos de um novo plano ou nível de conhecimento e de vida, que acompanha o homem desde os primórdios da sua existência e constituem o sinal e a prova da sua abertura estrutural e dinâmica para o universal, necessário e infinito. Esses frutos constituem um património de sabedoria e conhecimento, de costumes e de civilização, de cultura e arte, que é o verdadeiro património da Humanidade, ou pa-trimónio de humanidade, que nenhum cientista – astrofísico, cosmólogo, biólogo ou matemático – pode ignorar ou desprezar, mesmo sendo inteira-mente fiel à metodologia própria, e para ele obrigatória, do conhecimento e investigação científicos.

Porquê e para quê esta evolução biológica ascensional? Terá tido a evolução cósmica como finalidade o aparecimento da vida? E a evolução biológica terá tido, como finalidade, o aparecimento do homem? Haverá um princípio antrópico, uma lei meta-científica da evolução global do universo, que, para além do acaso ou da necessidade de uma lei da matéria, signifique um sentido, a orientação para um fim de toda a evolução cósmica e bioló-gica? Pode a Humanidade ser a etapa última, o fim terminal da evolução ascensional, se o próprio homem vive a exigência de dar um sentido último à sua existência, para além de si, e não o pode encontrar senão na Verdade,

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no Bem e na Beleza transcendentais, infinitos, a que aspira idealmente, para os quais dirige virtualmente toda a sua vida espiritual, identificando-os, em religião, com Deus?

O princípio antrópico, que começou a ser discutido, em 1970, por alguns físicos de língua inglesa, possivelmente não encontrará uma fundamentação última de ordem lógico-matemática, apesar das expectativas. Mas encontrá-la-á, certamente, na ordem metafísica, pois não é mais do que o princípio ontológico da finalidade, aplicado à evolução cósmica e biológica, e que se enuncia deste modo: todo o agente age por causa de um fim – mesmo o agente físico ou ir-racional. Isto, porque todo o agente é determinado pelo seu acto (antes de agir era indiferente para este ou aquele acto). E todo o acto é determinado pelo seu objecto (aquele efeito ou comunicação de ser que resulta do acto). Portanto, o objecto é que determina o agente a agir, a pôr o acto. Mas não o pode fazer antes de existir como objecto do acto realizado, ou de ser posto na realidade como efeito do acto (o objecto é o último na ordem da realidade). Logo, só pode determinar o agente previamente, se for na ordem do conhecimento, ou na or-dem intencional, isto é, enquanto concebido intelectualmente como exemplar e intentado voluntariamente como fim do agente, ou seja, antes de ser posto na realidade pelo acto do agente.

Vemos, assim, que a exigência de uma finalidade para a evolução biológica ascensional, desloca a problemática da evolução global do universo, do seu início e do seu termo físico, espacio-temporal, para o seu fim espiritual e metafísico, que é a realização plena do homem, na posse cognitiva e amorosa da Verdade, do Bem e da Beleza, identificados com Deus. O fim de toda a imensidade do cosmos é o seu princípio. A criação e a consumação do universo é obra de Deus, que, segundo a fé cristã, fez de Cristo ressuscitado e glorioso a meta e o modelo da nova criação que acontecerá no fim dos tempos, como ple-nificação da obra criadora e salvadora, para glória das três Pessoas divinas, sempiterna Trindade.

Em síntese e em conclusão: a teoria da explosão inicial e a fé na criação do cosmos, a teoria da evolução (biológica) e a fé na criação da vida e do homem, não estão em contradição, porque se sobrepõem, pertencem a níveis diferentes de conhecimento e de realidade. Mas estão em conexão necessária, em comple-mentaridade desnivelada, não recíproca. Por consequência, temos de afirmar a criação evolutiva teista e cósmica e negar a evolução criadora, materialista ou vitalista; temos de afirmar a criação divina, pela razão e pela fé; a criação evolutiva, pela ciência, contra o aparente fixismo da natureza; temos de negar a evolução criadora, por acaso ou lei de necessidade interna da matéria, por um impulso físico ou vital, porque é um contrasenso, um absurdo, tornando o universo opaco, ininteligível, sem sentido.

Termino com palavras de Teilhard de Chardin, o cientista e sacerdote jesuíta francês, palavras inspiradoras, místicas, embora ousadas:

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«Creio que o universo é uma evolução; Creio que a evolução se dirige para o espírito; Creio que o espírito se completa no pessoal; Creio que o pessoal máximo é Cristo universal».9

Para ele, Cristo é o «ponto ómega» para o qual, subindo, tudo converge, a natureza e a mística, até que Deus seja tudo em todos e em todo o universo. Deixo à vossa reflexão esta perspectiva teológico-mística, a visão mais optimista da evolução universal.

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