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Reflexões sobre a construção de uma perspectiva de gênero no jornalismo

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Academic year: 2022

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Reflexões sobre a construção de uma perspectiva de gênero no jornalismo

Jessica Gustafson1

O presente artigo discute as possibilidades de construção de uma perspectiva de gênero no jornalismo e as suas características a partir do trabalho realizado por um portal independente de jornalismo feminista. Reflete-se sobre as potencialidades de ampliar a ideia de especialização/segmentação da atuação, comumente chamada de jornalismo especializado, para se tornar uma proposta transversal presente no tratamento de todos os conteúdos. A iniciativa estudada demonstrou estar perpassada pela reflexão constante sobre o fazer jornalístico a partir da necessidade encontrada de construção cotidiana de novos referenciais que alicercem as práticas jornalísticas para a superação das abordagens hegemônicas da mídia tradicional.

O ponto de partida para a discussão é o trabalho realizado historicamente pela imprensa feminista no Brasil, entendendo o atual momento como uma nova fase de articulação entre o jornalismo e o feminismo. Se no século XIX, a atuação das feministas na imprensa teve como objetivos primordiais a circulação de suas críticas sobre a condição das mulheres e a busca por mais participação nas lutas do movimento na época, no século XX, o olhar também se volta para a mídia, mas principalmente na contestação dos estereótipos que estão presentes nela. A maneira como são representadas, reforçando os papeis atribuídos ao seu gênero ganham atenção. A partir deste descontentamento, elas defendem “a necessidade de criar um discurso próprio, capaz de fazer questionamentos e promover mudanças” (WOITOWICZ; PEDRO, 2010, p. 1).

Neste contexto é que se podem notar os motivos da aproximação do movimento feminista com a mídia alternativa. Karina Janz Woitowicz e Joana Maria Pedro (2010)

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPGJOR) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista Capes. E-mail: je.g.costa@gmail.com.

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2 identificam a ideia de mídia alternativa como aquela surgida no Brasil nos anos de 1960, durante o regime militar, mas que permanece ao longo das décadas relacionada aos movimentos sociais, defendendo o direito à comunicação e à expressão das minorias sociais, figurando como parte integrante de suas lutas por cidadania. As pesquisadoras especificam:

[...] compreende-se a mídia alternativa a partir do seu caráter contra- hegemônico e dos parâmetros diferenciados dos meios tradicionais no que se refere às suas formas de produção, circulação e consumo, assumindo características próprias. Em outros termos, está se considerando mídia alternativa a produção de grupos e movimentos sociais, que criam canais de resistência e promoção de lutas através dos seus espaços de comunicação, em diferentes suportes (WOITOWICZ; PEDRO, 2010, p. 3).

Embora os cenários políticos sejam distintos, atualmente o enfrentamento aos retrocessos conservadores presenciados nos últimos anos se soma a luta contra a histórica desigualdade que permeia a vida das mulheres e se refletem no surgimento de portais de jornalismo alternativo que apostam na perspectiva de gênero. Eles são entendidos como integrantes de um novo momento político de contestação dos valores e hierarquias sociais e da chamada “Primavera das Mulheres”, iniciada em 2015. As críticas ao papel da mídia hegemônica na cristalização dos estereótipos também continuam fazendo parte desta articulação, pois “nota-se um tratamento recorrente dos meios de comunicação que confirmam um maior protagonismo masculino e a tendência à invisibilidade das mulheres” (ROCHA, WOITOWICZ, 2013, p. 12). São exatamente as características contra-hegemônicas das organizações feministas que são potencializadas nas mídias alternativas, figurando como resistência às abordagens tradicionais e produzindo novos sentidos.

A partir da compreensão de que o jornalismo é uma das instâncias que inscrevem nos corpos as normas que devem ser seguidas, incluindo as de gênero e sexualidade (LOURO, 2008), entendo que nos últimos anos a imprensa tem dado destaque às temáticas de gênero e sexualidade, refletindo uma mobilização mais ampla da sociedade e, principalmente, dos movimentos feministas. Por outro lado, esta atenção pontual parece esconder uma premissa importante, que é o fato do jornalismo falar

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3 sobre gênero e sexualidade sempre, em todas as suas matérias, pois trata sobre sujeitos desde sempre generificados, sexualizados e racializados, como afirma Judith Butler (2015).

A produção de sentidos não acontece apenas nas reportagens específicas, mas quando aborda a política, a economia e a saúde, até quando escolhe quais repórteres serão designados para cada pauta e as fontes ouvidas porque, para relembrar Joan Scott (1990), gênero é a forma primeira de significar as relações de poder2. Para este artigo a reflexão é construída a partir de um estudo de caso (YIN, 2005) realizado durante a minha pesquisa de Mestrado, em que foi analisado o trabalho de cinco jornalistas integrantes de um portal independente de jornalismo feminista, criado em 2016 no Sul do País. As técnicas utilizadas para a realização do estudo foram a observação participante com o acompanhamento do processo de construção de pautas e a aplicação de entrevistas em profundidade. Em decorrência da opção pelo anonimato das jornalistas e do nome da plataforma, a iniciativa será chamada de Portal de Notícias Feministas.

A ideia das fundadoras foi desenvolver um portal que pudesse ser um guarda- chuva que abarcasse a produção de conteúdo, a curadoria de informação e a observação dos debates públicos sobre gênero, principalmente aqueles desencadeados pelos meios de comunicação tradicionais. Em sua linha editorial, o portal se define como um veículo de jornalismo especializado em gênero, que tem como objetivo produzir conteúdo jornalístico, com perspectiva feminista, na área de direitos humanos e com enfoque no direito das mulheres. O portal se identifica como feminista, pretendendo o diálogo com as diversas linhas teóricas e políticas do feminismo, mediando suas abordagens diante da realidade.

2 Esta maneira de entender o gênero e sua ligação com o poder se refere a uma visão ocidentalista e localizada, mas que entendemos ser potente para compreender a generificação presente no contexto atual.

Algumas teóricas ( OYEWÙMÍ, 2004; LUGONES, 2008; 2014) entendem o gênero como uma herança do processo colonizador moderno e defendem a posição de que em comunidades pré-intrusão (antes da colonização) as formas de significar as relações de poder e sociais não apresentavam a centralidade do gênero, mas sim na idade cronológica, por exemplo.

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4 Dentro da compreensão ética do exercício profissional do jornalismo, define-se como uma “unidade ativista do jornalismo enquanto direito e do feminismo enquanto estratégia de ação para a superação desta sociedade que ainda reserva lugares para as mulheres” (PORTAL DE NOTÍCIAS FEMINISTAS, 2017, S/N). Ao trazer para a definição do portal a palavra “gênero”, termo em disputa atualmente e que tem sido constantemente atacado por setores conservadores da sociedade, as jornalistas demonstram o viés político da empreitada e o engajamento na disseminação do sentido que tem sido defendido ao longo de décadas pelo movimento feminista. A demarcação da perspectiva também está relacionada a uma crítica às falhas do campo do jornalismo detectadas por elas, a partir da consideração de que o jornalismo em si deveria ter perspectiva de gênero, sendo assim, não deveria precisar ter uma especialidade para garantir esse olhar.

Ao longo do contato com as interlocutoras, fui percebendo que existia a necessidade de reformulação da proposta do portal, pois a maneira como se definiam no início não parece ser a mesma após quase dois anos da construção. A questão estava relacionada a tratar da perspectiva de gênero como uma especialidade do jornalismo e em oposição ao chamado jornalismo feminino, uma forma de especialização jornalística principalmente no seguimento de revistas e historicamente voltado para o público de mulheres, mas sem posições políticas muito demarcadas.

Ao abordarem a superação da pauta e a fonte, compreendi que o jornalismo que elas estão realizando não está limitado a cobrir apenas as pautas do movimento feminista, como os eventos e atos, mas também sobre questões que sempre foram invisibilizadas de modo geral e que não estão presentes na mídia hegemônica. A perspectiva defendida por elas demonstrou ultrapassar a escolha das fontes, não apenas colocando as mulheres para falar sobre temas que não são costumeiramente atribuídos a elas. Ao valorizar a voz de mulheres anônimas, sobre qualquer temática, também atuam no sentido de trabalhar com o protagonismo das mulheres e na capacidade que elas têm de significar e interpretar as situações em que estão inseridas, trazendo a visibilidade de pontos de vista ocultados cotidianamente pela grande mídia.

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5 Além disso, mesmo as pautas mais presentes no jornalismo tradicional podem ser contempladas no portal, mas sob outra perspectiva. Interpretei o incômodo delas em enquadrar o portal como um seguimento do jornalismo especializado devido às características desse tipo de conteúdo, voltado para a tematização de assuntos e interesses destinados a grupos mais específico da sociedade. A definição de quais pautas devem ser contempladas por um jornalismo feminista é complexa, pois todos os assuntos que circulam na sociedade impactam a vida das mulheres e, por isso, são temas que merecem ser tratados ou se enquadrariam no interesse das mulheres. Igualmente, as temáticas de gênero não devem ser consideradas como assuntos voltados apenas às mulheres e, sim, à sociedade de forma mais ampla, sendo direcionadas, pelo menos intencionalmente, a um público mais variado.

De forma mais aprofundada, deve-se destacar ainda que nas mídias convencionais as temáticas sociais são tratadas a partir de um prisma masculinista, mantendo os homens no estatuto de sujeito universal. A perspectiva de gênero, então, pode ser contemplada em qualquer notícia no intuito de superar essa tendência. A abordagem dos fenômenos sociais sem uma perspectiva de gênero resulta na invisibilização dos impactos específicos e diferenciais na vida das mulheres. Por exemplo, se existe um aumento da pobreza no País, é importante que se dê destaque a feminização da pobreza, fenômeno que ocorre no mundo. As mulheres costumam ser as mais pobres entre a população pobre.

Na cobertura de um pleito eleitoral, pode-se destacar não só a baixa representatividade de mulheres no âmbito político, assim como os motivos e impactos sociais dessa configuração, mas também o assédio sofrido dentro dos espaços políticos pelas mulheres que conseguem ocupá-los. Da mesma forma, as articulações de raça e classe precisam ser contempladas na perspectiva de gênero das matérias jornalísticas.

Um indicativo explícito dessa necessidade são os recentes dados sobre feminicídio, que apresentou queda entre as mulheres brancas, mas aumento entre as mulheres negras.

Ao se oporem às práticas da grande mídia consideradas negativas, as jornalistas se defrontam com o grande desafio da crítica feminista, como destaca Cecília

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6 Sardenberg (2001). Tal desafio refere-se à necessidade de construção de outros princípios e práticas, no sentido de atender aos interesses sociais, políticos e cognitivos de grupos historicamente subordinados, entre eles as mulheres, pois um feminismo que destrói tudo e não constrói nada é potencialmente perigoso.

Desta forma, a proposta do Portal de Notícias Feministas inicial era atuar com jornalismo especializado em gênero, feminismos e direitos humanos, mas essa definição vai sendo aprofundada ao longo da consolidação da iniciativa para se tornar um olhar transversal, em que todos os assuntos podem ter experimentada essa perspectiva. As jornalistas demonstram atuar a partir do entendimento de que a generificação das relações sociais se reflete em experiências diferentes na vida das mulheres, demandando enquadramentos diferenciais nas pautas tratadas. Faz-se ainda possível delinear certas características deste enfoque construído pelo Portal que se refere ao tratamento das pautas, com a valorização de vozes que comumente são invisibilizadas na mídia tradicional, e ao enfoque não estereotipado das mulheres, buscando a multiplicidade das fontes. Assim como também está relacionado a diferentes abordagens em temáticas mais amplas, relativas à política, economia, saúde, cidade e meio ambiente, levando em consideração a desigualdade de gênero presente em todas as áreas.

Além disso, a perspectiva feminista das jornalistas demonstrou estar relacionada a construção de novas práticas jornalísticas, com a subversão da lógica masculinista do jornalismo (VEIGA DA SILVA, 2014). O cuidado com as fontes; o contato subjetivo nas trocas com as mulheres que se relacionam com o trabalho do portal; a demonstração de desvalorização do furo jornalístico que indica a competitividade da profissão; e a valorização da colaboração e cooperação, indicaram que a proposta de uma perspectiva de gênero no campo do jornalismo ultrapassa não só a escolha das fontes e das pautas, mas também o próprio conteúdo, refletindo em uma ressignificação do fazer jornalístico.

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7 Palavras-chave

Jornalismo; Feminismo; Estudos de Gênero

Referências bibliográficas

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero - Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro- Posições, v, 19, n.2, Campinas: Unicamp, 2008.

ROCHA, Paula Melani; WOITOWICZ, Karina Janz. Representações de Gênero na mídia: um estudo sobre a imagem de homens e mulheres em jornais e revistas segmentadas. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013.

SARDENBERG, Cecília. Da Crítica Feminista à Ciência a uma Ciência Feminista?

[p.89-120]. In: COSTA, Ana Alice. SARDENBERG, Cecília. (org.). Feminismo, Ciência e Tecnologia. Salvador: UFBA, 2001.

SCOTT, J. Gênero, uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade, v. 20, n. 2, Porto Alegre: Ufrgs, 1995.

VEIGA DA SILVA, Marcia. Masculino, o gênero do jornalismo: modos de produção das notícias. Florianópolis: Insular, 2014.

WOITOWICZ, Karina Janz; PEDRO, Joana Maria. Feminismo e ativismo midiático:

o jornalismo como estratégia de ação política. In: Fazendo Gênero 9 - Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, Anais, Florianópolis, 2010.

YIN, Robert K. Estudo de Caso – Planejamento e Métodos. Porto Alegre: Bookman, 2005.

Referências

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