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O CANTO A PARTIR DA (ATU)AÇÃO

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Artes

M

ARIA

C

ORDÉLIA DE

S

OUZA

L

IMA

G

ALASSO

O CANTO A PARTIR DA (ATU)AÇÃO

UM CAMINHO POSSÍVEL DE TRABALHO DO CANTO PARA O ATOR EM FORMAÇÃO POR MEIO DOS PRINCÍPIOS DAS AÇÕES FÍSICAS

CAMPINAS

2016

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O CANTO A PARTIR DA (ATU)AÇÃO

UM CAMINHO POSSÍVEL DE TRABALHO DO CANTO PARA O ATOR EM FORMAÇÃO POR MEIO DOS PRINCÍPIOS DAS AÇÕES FÍSICAS

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Artes da Cena na área de concentração: Teatro, Dança e Performance.

Orientadora: Profa. Dra. Gina Maria Monge Aguilar

Co-orientador: Prof. Dr. Jorge Luiz Schroeder

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA MARIA CORDÉLIA DE SOUZA LIMA GALASSO, E ORIENTADO PELA

PROFA. DRA. GINA MARIA MONGE AGUILAR.

CAMPINAS

2016

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Agradeço às pessoas que estiveram comigo nessa empreitada acadêmica: Gina Maria Monge Aguilar, que prontamente aceitou me orientar, trazendo acolhimento, ação, simplicidade, firmeza e apoio em todo o processo; Jorge Schroeder que me abriu as portas para este mestrado ao ser, desde a graduação, um grande incentivador e interlocutor atento às minhas ideias; Verônica Fabrini, que na qualificação amaciou muito, por meio de suas palavras, minha maneira de pensar e, consequentemente, a escrita, inspirando uma integração de ideias no lugar de um pensamento excludente, e depois, na defesa, indicando caminhos pontuais para a continuação da pesquisa; à Ernani Maletta, pela entrevista e presença na Banca de Defesa, que enriqueceram, embasaram, complementaram muito esse trabalho. Agradeço à Unicamp, aos funcionários e professores do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes. Muito grata aos queridos Gustavo Kurlat, Lincoln Antonio e Jean Pierre Kaletrianos pela disponibilidade e generosidade nas entrevistas. Aos atores do Laboratório de Experimentação, Camila de Freitas, Giselle Mara, Lucimélia Romão, Luís Eduardo Prata e Marlon de Paula que foram uma grande inspiração; pela disponibilidade, fé e entrega ao trabalho. Agradeço a Cacá Carvalho, com quem tive o privilégio de trabalhar como atriz, que inspirou grandes transformações em meu trabalho e vida e à Regina Machado, minha professora de canto popular durante a graduação em Música na Unicamp, que abriu um espaço generoso em suas aulas para as primeiras experimentações deste processo. Agradeço à Juliana Monteiro que esteve comigo não apenas na vida profissional, mas também pessoal, companheira gigante em generosidade, firmeza, disciplina e fé, agradeço pela confiança em mim, por compartilhar os momentos de descoberta, de conquistas, de aflições e alegrias. E à minha família, por me incentivar a buscar meu próprio caminho e a desenvolver um desejo profundo de aprender a reconhecer, discernir e iluminar o que tem e não tem vida.

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Por meio de uma abordagem prático-teórica, este projeto investiga o canto para o ator a partir de processos de atuação que têm por base os princípios das ações físicas. Um de seus objetivos é contribuir com pesquisas afins. O projeto também procura explorar e aprofundar reflexões acerca da relação do canto com a cena e compreender a diferença entre o canto submetido à lógica da ação física e desprovido desta. Para tal, o ponto de partida foi um trabalho prático, que aconteceu sob duas perspectivas: numa, estive como atriz junto ao diretor Cacá Carvalho durante um período de um ano e dois meses e, na outra, orientei um Laboratório de Experimentação como professora. Além disso, foram feitas: uma revisão bibliográfica sobre os trabalhos de Constantin Stanislávski, Maria Knébel, Jerzy Grotowski e seus seguidores como Mario Biagini e Thomas Richards, e entrevistas com quatro profissionais que pesquisam o canto para o ator e a música na cena.

Palavras-chave: canto em cena; ação física; canto em ação; canto na dramaturgia; canto para o ator.

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Through a practical-theoretical approach, this project investigates the singing for the actor from processes of acting based on the principles of physical actions. One of the goals is to contribute to related research. The project also seeks to explore and deepen reflections about the relationship of singing to the scene and to understand the difference between singing submitted to the logic of physical action and devoid of it. For that, the starting point was a practical work, which happened from two perspectives: in one, I worked as an actress with the director Cacá Carvalho for a period of one year and two months, and in the other, I oriented an Experimentation Laboratory as a teacher. In addition, was done a bibliographical review of the works of Constantin Stanislavsky, Maria Knébel, Jerzy Grotowski and his followers like Mario Biagini and Thomas Richards, and interviews with four professionals who research the singing for the actor and music on the scene.

Key-words: singing in scene; physical action; singing in action; singing in dramaturgy; singing for the actor.

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INTRODUÇÃO ... 10

2. O CANTO NA FORMAÇÃO DO ATOR ... 15

2.1 Um olhar a partir da própria experiência ... 15

2.2 Canto na cena – O trabalho de alguns teatrólogos com o canto ... 18

2.3 Sobre os conceitos: “ação física”, “dramaturgia da cena” e “dramaturgia do ator” ... 31

2.3.1 Ação física - Breve contexto histórico ... 35

2.3.2 O Sistema de Stanislavski ... 37

2.3.3 Alguns desdobramentos da ação física ... 45

2.4 O caminho que se apresentou para mim: Trabalho do canto a partir da atuação por meio dos princípios da ação física ... 48

3. REFLEXÕES SOBRE O TRABALHO PRÁTICO ... 52

3.1 O olhar de fora - trabalho como professora no Laboratório de experimentação: O canto na dramaturgia do ator ... 53

3.2 O olhar de dentro - trabalho como atriz no espetáculo solo Eu nunca mais vou voltar por aí... ... 64

3.2.1 Etapas do processo criativo de Eu nunca mais vou voltar por aí ... 65

3.2.2 Ficha técnica de Eu nunca mais vou voltar por aí ... 66

3.2.3 Desafios como atriz ... 67

3.2.4 Resultado sonoro das canções na cena X gravações musicais originais...68

3.2.4.1 Breve análise das canções do solo "Eu nunca mais vou voltar por aí"...69

4. PRINCÍPIOS DE TRABALHO - UMA COMPILAÇÃO A PARTIR DA PESQUISA E DO DIÁLOGO COM OUTROS PROFISSIONAIS ... 81

4.1 O caminho de outros profissionais (do meu entorno) - Aproximações e distanciamentos com essa pesquisa ... 81

4.2 Resumo dos princípios de trabalho que possibilitam a integração do canto na atuação baseados na pesquisa desenvolvida ... 95

4.2.1 Desenvolver parâmetros técnicos musicais ... 95

4.2.2 Ter um espaço que proporcione familiaridade com o cantar por meio de jogos e de uma relação lúdica ... 96

4.2.3 O canto na cena e/ou na dramaturgia...97

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 101

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ANEXOS...109 1. Trechos do "Diário de Bordo" do solo “Eu nunca mais vou voltar por aí” ... 109 2. Currículos dos profissionais entrevistados ... 113 3. Autorizações dos profissionais entrevistados e dos atores participantes do Laboratório de Experimentação ... 117

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INTRODUÇÃO

“Outrora eu era daqui, e hoje regresso estrangeiro...” Fernando Pessoa

Uma sensação bastante frequente, desde que ingressei no mestrado, foi a de me sentir muito pequena diante de um universo de informações, no qual parecia que tudo já havia sido dito e pesquisado. Ao me aprofundar, mesmo naqueles conteúdos com os quais tinha familiaridade, percebi que sabia pouco sobre eles. Ainda assim, na minha pequenez, diante desse universo, aprendo que é possível contribuir com algo, mesmo que pequeno, porque a maneira de cada pessoa traduzir uma informação sempre passará por sua idiossincrasia, o que torna as experiências únicas.

Esta escrita foi conduzida e motivada pelas vivências práticas que me aconteceram em dois âmbitos-funções: como atriz e como professora. Assim, faz-se esclarecedor proceder a um breve memorial para mostrar como os primeiros questionamentos sobre o trabalho do canto para o ator surgiram.

Nas escolas, cursos e universidades de teatro por onde passei1, os trabalhos de voz e de canto tinham por objetivo principal desenvolver um canto e uma voz expressivos para o ator, por meio de um trabalho técnico que incluía exercícios de respiração, articulação, afinação, projeção da voz, percepção rítmica e melódica, dentre outros.

Diante disso, mas compreendendo a complexidade do trabalho do ator com diversas frentes de trabalho e prioridades e considerando que em cursos de formação, muitas vezes, os participantes apresentam deficiências artísticas básicas, eu sentia falta de compreender e desenvolver um trabalho do canto integrado à lógica de atuação do ator, porque percebia que muito frequentemente um ator, no momento de cantar em cena, passava a focar os elementos técnicos do treinamento vocal, como a colocação da voz, a postura do corpo, dentre outros, causando uma divisão de sua atenção e quebra da ação dramatúrgica.

1 Nas aulas de “Voz e música para o teatro” do Núcleo de Formação do Ator da Escola Livre de Teatro de Santo André; nas aulas de “Música para o Teatro” do Centro de Aperfeiçoamento Teatral - CAT, nos espetáculos que atuei como atriz e como professora.

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Ao conhecer o ator e diretor Cacá Carvalho, em dezembro de 2013, como participante da oficina ministrada por ele no Centro Cultural São Paulo, “A ação vocal no trabalho do ator”, encontrei uma possibilidade de integrar o canto no trabalho de atuação. Depois da oficina, tive a oportunidade de continuar, até março de 2015, como atriz na Casa Laboratório para as Artes do Teatro, espaço de experimentação teatral dirigido por Cacá Carvalho. Nesse período, o trabalho teve como foco principal desenvolver a consciência sobre a atividade de atuação com base nos princípios das ações físicas2, sabendo que as ações físicas são apenas um dos caminhos do trabalho do ator, embora fundamentais, conforme falou Biagini:

(...) um ator pode realizar um trabalho extraordinário sem saber absolutamente nada sobre ações físicas, ou utilizar técnicas completamente diferentes. Ações físicas são uma das maneiras possíveis. Sei que para Thomas e para mim, o trabalho com ações físicas foi um passo necessário. Hoje em dia, o trabalho com ações físicas é um elemento fundamental, um elemento entre outros (...) (BIAGINI, 2013, p. 306)

O trabalho de atriz, no espetáculo solo reelaborado por Cacá Carvalho “Eu nunca mais vou voltar por aí”, teve início antes de meu primeiro contato com o referido diretor, no meu ingresso na graduação em Música com habilitação em Canto Popular na Unicamp, após ter egressado de uma formação como atriz, que durou quase quatro anos na Escola Livre de Teatro de Santo André-ELT. Ao chegar à Unicamp, e me deparar com uma formação essencialmente técnica e musical senti necessidade de integrar o conhecimento anterior da experiência com o teatro na ELT, com a música, então, durante as aulas de canto da professora Regina Machado, tive um espaço generoso para experimentar essa integração da música com o teatro, do canto com a cena. O primeiro exercício que realizei nesse sentido, partiu do estudo da canção “Mamãe, coragem”, de Caetano Veloso e Torquato Neto, que apresentei no “Show dos cantores” dos alunos de Canto Popular em 2012, no qual comecei a experimentar o texto da canção como dramaturgia e um texto, que criei a partir da temática da letra da canção, como música, criando uma performance composta por texto e canção, explorando a musicalidade daquele e a teatralidade desta. Em seguida, tal trabalho motivou a criação do show musical “Encontro” que foi uma extensão desse primeiro exercício e que explorava o trabalho teatral no contexto musical. (Vide vídeo "1. Experimentações cênicas no contexto musical" no link https://www.youtube.com/watch?v=N9HdhXU_AX0 ou no DVD anexado a esta dissertação)

2 O método das ações físicas foi elaborado pela primeira vez pelo ator e encenador russo Constantin Stanislavski e posteriormente desenvolvido por grandes pensadores teatrais do séc. XX, será abordado a frente a partir do item 2.3.

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Após algumas apresentações do “Encontro”, quis aprofundar a pesquisa para entender os limites entre uma linguagem e outra, além de compreender a diferença entre cantar em um show musical e em uma cena. Foi nesse momento que conheci o diretor Cacá Carvalho, na oficina mencionada anteriormente. Falei para Cacá de minha pesquisa e do desejo de compreender o canto na cena e mostrei a ele o material que eu tinha, o qual era constituído por cenas e canções. (Vide vídeo "2. Música no contexto musical e depois a partir da dramaturgia" no link https://www.youtube.com/watch?v=jg2UzF31xz0 ou no DVD anexado a esta dissertação). A pesquisa decorrente desse processo, que será descrita à frente, teve por objetivo identificar e explorar caminhos possíveis para integrar o canto no trabalho de atuação, por meio da reflexão e análise dessa experiência cênica como atriz, e como professora, através de um "Laboratório de Experimentação: O canto na dramaturgia do ator" que ofereci para atores (Vide vídeo "3. O canto a partir da dramaturgia no Laboratório de Experimentação" no link https://www.youtube.com/watch?v=RFK7GawySIE ou no DVD anexado a esta dissertação) e também trazendo pontos de vista de outros quatro profissionais que trabalham com a música no teatro. A partir disso, compilei as informações, propondo alguns princípios de trabalho que possibilitam a integração do canto no trabalho de atuação. Dentre as perguntas iniciais que geraram essa compilação de princípios, algumas apontaram caminhos positivos, mas outras não, falarei um pouco a seguir para introduzir tais questões.

Tive, por exemplo, uma reafirmação de que é prioritário que o ator compreenda “Por que canta?”, antes de pensar em como cantar porque isso o conduzirá a um trabalho de busca da motivação da canção em cada contexto, demandando que este faça uma análise da cena, de sua linguagem e dramaturgia e mantenha o fluxo da ação cênica e da dramaturgia para alcançar sua potência expressiva, mais do que pensar em questões técnicas musicais e conforme falaram Jerzy Grotowski, Mario Biagini e Jean Pierre Kaletrianos, ficar com a atenção no aparelho fonatório, podendo causar bloqueios como uma laringe semifechada.

Por concordar com o pensamento desses referidos teatrólogos e também por ter trabalhado com Cacá Carvalho sem nenhum tipo de exercício técnico preparatório, mas somente a partir das ações, questionei-me, no início dessa pesquisa, se seria necessário, em se trabalhando com o canto para atores, fazer um treinamento musical com eles, ou, se seria suficiente trabalhar o canto apenas a partir das ações físicas, deixando que os próprios atores superassem e resolvessem, se fosse o caso, suas questões técnicas musicais. Porém, nada como a situação

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prática! Durante o “Laboratório de experimentação: o canto na dramaturgia do ator”, que será relatado à frente, orientando outros atores, dentro de circunstâncias não ideais - período curto de trabalho e dificuldades advindas de formações musicais e artísticas deficitárias -, o caminho que me pareceu mais eficaz foi o de incluir o treinamento musical para desenvolver a escuta e atenção, concomitantemente com o trabalho do canto na cena.

A partir dessa experiência, percebo que há de se ter um distanciamento das teorias e conhecimento dos mestres teatrais, distanciamento este que até já existe quando pensamos no contexto, situação e momento a que pertencem esses artistas em contraposição à experiência prática, contexto e situação com a qual estamos trabalhando, nos quais talvez tenhamos de lidar com fatores como formação artística e intelectual precária dos alunos, prazos curtos que priorizam o resultado e não o processo, estrutura e parceiros de trabalho não sintonizados com objetivos comuns.

Portanto, refletir sobre o treinamento e exercícios preparatórios, tanto os musicais como os de atuação, mostrou-se ser uma questão importante, porque a depender da maneira e da situação em que são utilizados podem ser algo supérfluo, negativo ou essencial.

De fato, conforme disse Gustavo Kurlat, diretor musical e teatral entrevistado à frente, a técnica serve para tornar possível algo que se deseja fazer e os problemas em torno da técnica não existem por causa desta, mas pela maneira de se lidar com ela, que pode acontecer por haver uma imposição de diversas coisas no lugar de uma compreensão e consciência dos motivos de se fazê-las, então, por esse motivo, é importante refletir sobre o sentido de a técnica ter sido inventada, assim como “qual o treinamento adequado em cada contexto” (KURLAT, 2015, entrevista).

Aprendizados como esses, e outros que serão mencionados no correr do presente texto, foram um pouco do resultado desta pesquisa: a necessidade de haver uma flexibilidade no olhar trocando os “ous” pelos “es” em meio a situações não ideais de produção, permitir que a consciência das prioridades de um trabalho se façam urgentes, no caso do ator, aprendendo a enxergar o todo da cena para encontrar o próprio lugar, assim como, analogamente, compreender o canto no contexto da cena, e também trazer a pergunta “existe uma técnica e um tipo de treinamento para cada pessoa e situação?”.

Em relação ao percurso do texto, na Parte I, “O canto na formação do ator”, discorro sobre o que, na minha trajetória como aluna, atriz e cantora, motivou o desenvolvimento dessa

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pesquisa, a necessidade de integração entre a atuação e o canto na cena, até o momento em que comecei a trabalhar como atriz com o diretor Cacá Carvalho, o qual me possibilitou esse caminho do canto na cena por meio dos princípios da ação física.

Em seguida, aponto trabalhos de alguns teatrólogos com o canto na cena, a partir do estudo bibliográfico e também de experiências práticas que tive em cursos e oficinas com alguns desses profissionais. Prossigo na escrita, falando sobre os princípios que identifiquei na vivência com Cacá Carvalho, além de esclarecer os conceitos básicos desses princípios: “dramaturgia da cena”, “dramaturgia do ator” e “ação física”, esta, dada sua relevância nesse estudo, é rememorada em seu contexto histórico, além de colocada, brevemente, sob a perspectiva de outros pensadores do teatro.

Na Parte II, “Reflexões sobre o trabalho prático”, faço um relato das práticas que desenvolvi nessa pesquisa como atriz e como professora, as quais me permitiram ampliar a compreensão do trabalho do ator a partir de pontos de vista diferentes; de dentro da cena, como atriz, e fora dela, como professora.

Também, por meio de entrevistas realizadas com profissionais que trabalham com o canto, com a música e com a voz no teatro, na Parte III, falo de aproximações e distanciamentos desta pesquisa com o trabalho deles e concluo o capítulo compilando alguns princípios que possibilitam a integração do canto no trabalho de atuação baseados na teoria e experiências práticas desenvolvidas.

E por fim, na Parte IV, concluo a pesquisa fazendo uma reflexão em torno das perguntas que motivaram este estudo, além de trazer outras que surgiram nesse percurso embora estas ainda estejam sem respostas.

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2. O CANTO NA FORMAÇÃO

DO ATOR

2.1 Um olhar a partir da própria experiência

O recorte que farei aqui é delineado por minha experiência como estudante de teatro, e como atriz nas cidades de Santo André-SP, São Paulo-SP, Campinas-SP e São João del Rei-MG no período de 2006 a 2016, em espaços de formação e de prática teatral, onde estive como participante de oficinas, como atriz e como professora.

Nossa civilização e, por conseguinte, o nosso ensino privilegiaram a separação em detrimento da ligação, e a análise em detrimento da síntese. Ligação e síntese continuam subdesenvolvidas. E isso, porque a separação e a acumulação sem ligar os conhecimentos são privilegiadas em detrimento da organização que liga os conhecimentos. O processo é circular, passando da separação à ligação, da ligação à separação, e, além disso, da análise à síntese, da síntese à análise. Ou seja: o conhecimento comporta, ao mesmo tempo, separação e ligação, análise e síntese. (MORIN, 2003, p.24)

Observei essa "separação" mencionada por Morin em experiências práticas, nas quais, por exemplo, havia profissionais diferentes conduzindo os trabalhos - um cuidando da voz, outro conduzindo a atuação, etc.-, e, mesmo tendo um diretor que unificava e conduzia tudo, o contexto do processo condicionava o trabalho a uma demanda de resultado em um prazo determinado que não necessariamente era suficiente para aprofundar, chegar à raiz de cada busca, mas ao contrário, poderia até induzir a uma certa mecanização já que em dados momentos era preciso usar as formas conhecidas que garantiam resultados. Então, a relação do canto com a cena, por exemplo, acabava por ficar superficial, sem que os atores compreendessem o papel da técnica e a função do canto na cena.

Ernani Maletta, diretor cênico e musical, ator, cantor e professor, menciona-nos algo que dialoga com essa questão em sua pesquisa sobre a atuação polifônica3. Ele diz que o teatro é

3 "... discurso de atuação que cada artista teatral compõe no decorrer do processo de criação do qual participa,

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uma arte polifônica, então o ator deve aprender a desenvolver essa polifonia, porém o referido autor deixa-nos uma pergunta: “Os cursos de formação de atores têm formado atores polifônicos?”, e comenta que durante dez anos de experiência como membro de bancas examinadoras de audições de espetáculos percebeu que:

(...) a grande maioria dos atores que se inscrevem e que passaram por algum curso de formação artística, seja de nível médio ou superior, ainda apresentam inúmeras dificuldades quanto ao desempenho das habilidades artísticas fundamentais, principalmente quando convidados a realizar várias ações simultâneas. (MALETTA, 2005, p.54)

E, no que concerne à formação universitária dos atores, diz que não tem sido suficiente para que os alunos incorporem esse conhecimento:

(...) por mais que os currículos dos cursos de formação incluam disciplinas direcionadas a cada uma dessas habilidades – como comprovam as grades curriculares, programas e ementas das disciplinas –, há que se observar, tendo em vista as dificuldades que a maioria dos atores apresenta, que o aprendizado de tais disciplinas não tem sido suficiente para a real incorporação de seus fundamentos, muito menos para exercitar o diálogo entre elas. (MALETTA, 2005, p.54)

Percebo em diversas situações que a consequência disso se manifesta na necessidade de cuidar de questões básicas do canto no lugar de trabalhar o canto na relação com a atuação, desenvolvendo a percepção melódica e rítmica e capacitando o ator a fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo por exemplo, para possibilitar que os atores desenvolvam um canto afinado, audível e compreensível. Nos processos que participei não foi diferente. No geral, a relação do canto com a cena aconteceu mais por uma lógica musical e independente da lógica da atuação, na qual, ao cantar, eu pensava nos elementos musicais mais do que, por exemplo, nas "Circunstâncias dadas" ou na relação de meu corpo com a situação cênica e o canto como consequência desse estado corporal.

Então, dentro desse contexto da minha formação teatral, comecei a me questionar se não haveria algum trabalho em que o canto fosse guiado, desde o início, por elementos da atuação, como a “dramaturgia da cena”4.

Ao conhecer o trabalho de Cacá Carvalho, percebi que era possível. Desde o primeiro contato com os princípios da ação física, na oficina ministrada por ele, tive clareza que abordar o

conceitos e princípios que fundamentam cada um desses múltiplos discursos criativos, é capaz de se apropriar das várias vozes autoras desses discursos - isto é, das proposições de todos os profissionais criadores do espetáculo - e atuar polifocnicamente." (MALETTA, 2016, p.67)

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trabalho vocal, somente a partir da voz, significava ignorar um universo de outros elementos relacionados à construção cênica como um todo, tantas outras “vozes” que compõem uma cena teatral como as “situações” e contextos possíveis por trás de um texto, por trás da iluminação, dos objetos de cena, do cenário, do figurino, da música, do canto, etc, reduzindo a expressão da cena e isolando o ator do contexto e “todo” da cena. Assim, longe de ser uma regra a ser seguida encontrei um caminho possível.

A partir disso, também comecei a questionar se seria necessário de fato realizar um treinamento musical para o ator que canta. Isso porque constatei que se por um lado é fundamental que este desenvolva ferramentas musicais para trabalhar sua escuta e atenção, a depender de como esse processo acontece, em que medida pode também “formatar” o artista a uma postura específica, com base em uma crença de que existe uma maneira correta de cantar, em uma lógica do “certo e errado” que busca uma precisão das alturas e durações de cada nota e efeitos relacionados ao volume, ressonância e articulação vocal. Não são poucos os relatos nesse sentido, ouço diversos alunos e também colegas atores dizendo que quando precisam cantar em cena sentem-se travados, tensos e preocupados com sua técnica musical.

Além disso, na vivência que tive como atriz com o diretor Cacá Carvalho, este nos mostrou que é possível trabalhar sem nenhum tipo de treinamento5, nem do canto e nem da atuação, ainda assim, os resultados técnicos foram visíveis, havendo mudanças notáveis no trabalho dos atores envolvidos. Porque quando falamos de voz e canto para o ator é comum vermos os trabalhos técnicos sendo priorizados, e em certas situações, sem uma consciência da função a que se destinam e de quais seriam as reais necessidades de treinamento que poderiam surgir da relação do canto com a cena em cada situação.

Busca-se uma voz ressonante, potente, articulada e imbuída de vitalidade, mas pode ser que o contexto da cena necessite, por exemplo, de uma voz esquálida e frágil. Amplia-se os recursos vocais do ator, sua consciência, tanto das suas potencialidades, assim como de seus limites, treina-se a musculatura vocal, faz-se exercícios para abrir espaço na articulação, ressonância e respiração, trabalha-se a relação do corpo com a voz, buscando, a partir disso, ampliar sua potência. Apesar disso, quando o ator está em cena, em meio a tantas relações que

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“Treinamento” aqui refere-se a uma rotina de exercícios pré-expressivos com foco em algum elemento específico do trabalho do ator na cena, como o corpo, a voz, a fala, etc. e com objetivo de desenvolver capacidades técnicas.

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precisa estabelecer, além da voz e do canto - com o espaço, com o texto, a luz, os objetos, etc.-, o quanto conseguirá utilizar desses recursos que foram treinados?

Embora estejamos, estudantes de teatro, atores e diretores, ou pelo menos uma boa parte de nós, familiarizados com o trabalho do canto, que acontece a partir de uma lógica técnico musical, e que muitas vezes é ministrado por professores da referida área, sem aprofundamento na linguagem teatral, surgem então algumas questões tais como: quanto desse trabalho instrumentalizará o ator em cena tendo que cantar e atuar simultaneamente, sob uma lógica na qual o foco de sua atenção não é o cantar em si, mas a relação com a cena? É possível absorver os treinamentos musicais mais técnicos de maneira complementar à atuação? Ou, ainda, quanto dessa técnica atua inconscientemente sobre o ator que, no momento de cantar, pode fazê-lo entrar em uma postura enrijecida?

Assim, chegamos ao cerne desta pesquisa, na qual teremos muitas linhas escritas para refletir sobre essas perguntas e outras mais: O canto pode acontecer a partir da relação com a cena desde o início do processo de criação? De que maneira? Qual a diferença entre trabalhar o canto a partir da atuação, por meio das ações, e por meio de parâmetros musicais? Se trabalharmos o canto a partir da atuação, como o treinamento musical acontece? Quais são as outras maneiras de trabalhar o canto a partir da cena com que tive contato? E desses trabalhos quais são os pontos de aproximação e distanciamento com aquele que vivenciei com Cacá Carvalho?

2.2 Canto na cena – O trabalho de alguns teatrólogos com o canto

Uma necessidade básica para cantar é que o artista desenvolva consciência musical e do canto, e para os atores em específico, é preciso também que seja priorizado o trabalho do canto na relação com a cena. Porém não é sempre assim que acontece e é comum ver situações onde a técnica musical acaba por se tornar a lógica principal e às vezes a única ferramenta de trabalho do canto para o ator em que a relação desse canto com o contexto da cena e com as ações fica em segundo plano ou até ignorada.

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Abordarei, a seguir, trechos dos trabalhos de alguns teatrólogos que em determinado momento de seus trajetos profissionais pesquisaram o canto na cena em relação direta com a dramaturgia e/ou ação física: Constantin Stanislávski, no período em que trabalhou com cantores-atores de 1918 à 19386, Jerzy Grotowski, no período de seu teatro “Arte como Veículo”7, Thomas Richards e Mario Biagini, discípulos de Grotowski, o primeiro, diretor do “Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards” e o segundo, do “Open Program of Jerzy Grotowski”.

Stanislavski começou a trabalhar com cantores-atores no momento em que Elena Konstantinovna assumiu a direção dos Teatros Acadêmicos do Estado em Moscou. Elena tinha o objetivo de “(...) elevar à altura devida a parte dramática dos espetáculos de ópera do Grande Teatro de Moscou”, dessa maneira, pediu ajuda ao Teatro de Arte onde Stanislávski trabalhava, este então sugeriu que se criasse um Estúdio no qual “(...) os cantores pudessem ser aconselhados no tocante ao jogo cênico (...) seguindo uma série de cursos de maneira sistemática”. (STANISLAVSKI, 2011, p. 418)

As atividades do Estúdio de Ópera do Teatro de Bolshoi iniciaram-se em 1918 e tinham a intenção de “(...) elevar não somente a parte vocal, mas também a cultura musical e cênica do artista de ópera” (STANISLAVSKI, 2011, p.421), que segundo Stanislávski tinham por foco a colocação da voz e a correta produção das notas sem qualquer atenção para a forma dramática, conforme podemos observar também em uma outra fala do diretor durante o ensaio de algumas cenas da ópera “O Galo de Ouro”, de Rimski-Korsakof, em 1931, no qual criticou um dos atores que fazia uso de posturas corporais definidas e expressões corporais dramáticas a fim de enfatizar a expressão artística e melhora da performance:

A coisa pior que temos de combater nos cantores são os professores de canto. Ensinam gestos horríveis e a mais ridícula das pronúncias. Convencem o cantor de que não pode obter um certo tom se não estiver de pé, nalguma posição forçada, com as mãos se apertando diante do tórax, os ombros jogados para trás e o queixo esticado para diante. Está claro que isso não é verdade. Podem-se formar tonalidades, obter volume, quer o ator esteja deitado de bruços ou de costas, de cabeça para baixo, sentado de cócoras ou

6 No Estúdio do Teatro Bolshoi, que também teve os nomes de “Estúdio de Ópera de Stanislavski” de 1924 à 1926,

“Estúdio -Teatro de Ópera” de 1926 à 1928, e “Teatro de Ópera de Stanislavski” de 1928 em diante. (SANTOLIN, 2013, p.45)

7

Última fase do trabalho de Jerzy Grotowski, desenvolvida no Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas

Richards, em Pontedera, Itália, “(...) no texto “Da Companhia Teatral à arte como veículo” dividiu seu trabalho em

quatro fases distintas: o Teatro dos Espetáculos, o Parateatro, o Teatro das Fontes e a Arte como Veículo. No livro The Grotowski Sourcebook (1997), a divisão é diferente já que o parateatro e o Teatro das Fontes são apresentados juntos, e acrescenta-se a fase do Objective Drama, período entre 1983 e 1985, no qual Grotowski trabalhou na Universidade da Califórnia, Irvine.” (Motta Lima, 2010).

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dando pinotes no ar. Só depende da vontade do ator. Os atores às vezes alegam que em certas posições o tom é feio, sua voz adquire uma cor diferente. Mas que mal há nisso? Às vezes um tom feio ou uma cor diferente é justamente o efeito que queremos. Se as palavras fossem faladas com raiva ou desdém a cor mudaria. Por que não haveria de mudar também quando são cantadas?8 (STANISLAVSKI, 2000, p. 15)

Essa fala do diretor, mostra-nos um olhar focado na atuação na qual o resultado vocal é importante, desde que esteja coerente à dramaturgia que por sua vez possui uma lógica distinta da musical, em que aquilo que é considerado “feio” pode ser “justamente o efeito que queremos” na cena.

Porém, também é importante lembrar que Stanislávski estava trabalhando em um contexto musical dos espetáculos de ópera, assim, o trabalho cênico deveria estar submetido à música, conforme ele próprio dizia para os cantores; que o trabalho cênico os prepararia para “(...) viver o papel e colocar em relevo o que expressa a música.” desde o primeiro momento em que o cantor entrasse em cena, na primeira nota do arranjo instrumental e não apenas quando este começasse a cantar:

(...) na ópera, na maioria das vezes, quem predomina é a música (...) significa que esta última parte, a cênica, tem que se orientar segundo o que a parte musical indicar, seguí-la, tratar de transmitir em uma forma plástica essa vida do espírito humano que os sons falam, e interpretá-los através de um jogo cênico. (STANISLÁVSKI, 2011, p. 422)

Então:

O objetivo principal que Stanislavski colocava para seus jovens cantores era a união de sua musicalidade, técnica vocal e vivência disso no corpo. Isso mais tarde solicitou um sensível senso rítmico musical para produzir movimentos físicos fluentes da fisicalidade completa do ator. (STANISLAVSKI; RUMYANTSEV, 1998, p.24)

No Estúdio de Ópera, os cantores recebiam um treinamento corporal que objetivava liberar tensões desnecessárias, porque no processo de projetar a voz o cantor é obrigado a tensionar certos músculos - do diafragma, dos músculos intercostais e da laringe -, que são contrações musculares necessárias. O trabalho então se propunha a distinguir entre as contrações de trabalho e as tensões supérfluas, para deixar todos os outros músculos livres. Dentre os exercícios, os cantores aprendiam a andar com suavidade, transitar por movimentos ginásticos, que iam da tensão ao relaxamento, dançar vários ritmos como mazurkas, valsas, polonaises, schottisches além de praticarem esgrima.

Stanislávski também fazia, junto com os cantores, uma análise do pensamento e caráter da composição musical, análise esta em que utilizava alguns dos elementos de seu “Sistema” (que

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nesse momento transitava da “Linha das forças motivas” para o “Método das ações físicas”) como o “Se mágico” e as “Circunstâncias dadas”.

Rumyantsev (STANISLAVSKI; RUMYANTSEV, 1998, pp.37-38) relata um desses momentos, em que o diretor trabalhava com uma das alunas do Estúdio:

A aluna, ao cantar uma das peças de Rimski-Korsakov, executava todas as convenções e regras do seguimento musical de ópera daquele tempo - os olhos fixos acima das cabeças dos expectadores, enquanto parecia ver algo imaginário, os músculos da face tensamente fixados em um sorriso forçado que objetivavam dar uma impressão de leveza -, segundo Stanislavski esta demonstrava uma técnica vocal de qualidade, mas uma atuação precária que não permitiu ao teatrólogo compreender “sobre o que ela estava cantando”, então, o diretor falou: “Esclareça para mim o que você desejava transmitir com essa balada, que pensamento impeliu você a escolher essa canção particular para cantar, o que existe nela que atraiu você?”, observou que a aluna precisava, em primeiro lugar, descobrir a lógica dos pensamentos da canção para poder chegar aos sentimentos. Disse que as motivações generalizadas não colocam a imaginação para trabalhar e pediu então que ela lesse os versos da música e dissesse qual era o fator principal deles que poderia ter motivado os autores a escrevê-los e o que compreendia daquilo.

As perguntas de Stanislavski (abaixo) conduziram a cantora de uma ideia superficial, que ela possuia da canção - “a letra da música fala de um desejo de expressar o meu amor por ele” -, para uma leitura mais profunda.

Que pensamento o autor colocou? - O mar azul seria sereno se não houvesse tempestades que causassem ondas na costa? Tudo seria sereno se a imagem dele não enraivecesse sua alma como uma tempestade? Agora, olhe para essas ideias por cada ângulo, desenvolva isso, elabore isso. Pergunte a você mesma por que você compara sua alma com o mar. Quando isso acontece na vida de alguém? Você deseja que esse mar, ou seja, sua alma, seja sempre tranquila ou, ao contrário, você anseia por uma tempestade? Faça essa pesquisa pelo poema e decida quais palavras são mais importantes e quais menos. (STANISLAVSKI; RUMYANTSEV, 1998, pp. 26-27)

A análise também perpassou a relação melodia-letra no momento em que Stanislávski pediu ao pianista acompanhante para tocar um trecho da canção, já que a “música revela o que está escondido por trás do texto”. Eles escutaram o pianista, e a cantora descobriu algo novo, que “a música enfurece-se como uma tempestade, porém com prazer e luminosidade”, então voltou a cantar a balada “como se estivesse ouvindo algo acontecendo dentro dela mesma”. Stanislavski afirmou para a cantora que ela estava no caminho, mas que, apesar de terem dado o primeiro passo, o trabalho só havia atingido uma “forma musical e uma voz musicalmente treinada”, capaz

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de prender a atenção do ouvinte somente por um ou dois momentos, e que ainda não haviam atingido a arte, que necessita de um canto o qual “(...) deve ser transformado de uma declaração musical para uma confissão feita a partir de seu coração” e para conquistar esse canto o diretor disse que seria preciso despertar o sentimento da intérprete e que o “Se mágico" e o "Objeto de atenção”, elementos de seu “Sistema” poderiam ajudá-la nessa busca da interioridade. (STANISLAVSKI; RUMYANTSEV, 1998, p.28).

Além do exemplo acima, o diretor também aplicava as “Circunstâncias dadas” em exercícios, fossem de vocalização, dicção, lógica do discurso e de trabalho físico. Pedia aos alunos que sempre tivessem uma justificativa interior para o que quer que estivessem fazendo “(...) pedia que preparássemos “Circunstâncias dadas”, alguma imagem que usássemos durante os exercícios. “Dê a cada exercício algum propósito dele mesmo, e combine tudo que você faz com sentimentos e foco na ação.”” (STANISLAVSKI; RUMYANTSEV, 1998, p.19)

Outro elemento importante que Stanislávski pôde desenvolver a partir do trabalho com os cantores-atores e depois incorporar à sua metodologia foi o tempo-ritmo9. Ele dizia aos cantores-atores:

Como vocês são sortudos (...) o compositor lhe oferece o elemento mais importante - o ritmo das suas próprias emoções. É o que nós atores precisamos criar sozinhos do vazio. Tudo que vocês têm que fazer é ouvir o ritmo da música e se apropriar dele. (STANISLAVSKI; RUMYANTSEV, 1998, p.22)

Stanislavski falava que se o ator sentisse o que diz e faz em cena o tempo-ritmo adequado surgiria por si só, porém, se não está sensibilizado para isso, então seria necessário um trabalho técnico, indo do externo para o interno para despertar esse tempo-ritmo intuitivo (STANISLAVSKI, 2009, p. 245), por exemplo, por meio de exercícios descritos pelo diretor nos quais os atores ouvindo andamentos diferentes, marcados por um metrônomo, realizavam improvisos de ações, e, a partir de cada ação, descobriam as circunstâncias dadas, as imagens e os sentimentos de cada uma. Ou, ainda, o exercício em que um pianista tocava uma música e os atores atuavam a partir dela, fazendo movimentos correspondentes ao tempo-ritmo, que também

9

Para Stanislávski, tempo é a distância entre unidades iguais, ou seja, é o que na música chamamos de andamento. E o ritmo, para ele, são as distâncias de unidades dentro desse tempo em seus mais diversos tamanhos e combinações, na música idem. (STANISLAVSKI, 2009, p. 227). Portanto, o tempo-ritmo de Stanislávski refere-se ao que, na música, chamamos de andamento-ritmo.

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suscitava estados de ânimo, imagens e cenas, então o diretor pedia aos atores que se contagiassem desse tempo-ritmo para ajudar a despertar a própria memória emotiva e os sentimentos.

Esse recurso deveria ser utilizado de maneira consciente pelos atores a partir do estudo da medida correta das sílabas, palavras e de toda a fala, além dos movimentos e ações, do ritmo preciso que iria influenciar o sentimento e vivência da ação, além do estudo da relação do

tempo-ritmo com as "Circunstâncias dadas" que criaria e influenciaria o estado de ânimo do

ator-personagem. (STANISLAVSKI, 2009, p. 242).

Foi por meio dos experimentos com o tempo-ritmo que Stanislávski resolveu o impasse entre os trabalhos interior (emotivo) e exterior (das ações do ator). Na “Linha das forças motivas”, o foco era o trabalho interior, porém, se as emoções não podem ser fixadas, então, em que o ator poderia se apoiar? Assim, ao entrar em contato com o tempo-ritmo, descobriu que era possível que um elemento externo, no caso o próprio ritmo, fosse musical, corporal, da respiração, do texto, despertasse as emoções, ou seja, a partir de um elemento externo chegar-se-ia ao trabalho interior do ator: “(...) compreendi que através da música e do canto eu poderchegar-se-ia achar a saída para o impasse a que as minhas buscas me haviam levado (...) porque nesse campo há fundamentos sólidos de técnica e virtuosidade (...).” (STANISLAVSKI, 2011, p.518).

Assim, a construção da obra e da personagem, que antes estavam embasadas na “Linha das forças motivas”, no trabalho interior, passaram a acontecer a partir de elementos concretos como o ritmo, uma linha de ações - as ações rítmicas -, que passaram a motivar o trabalho interior do ator. Essa fase do teatro de Stanislávski, que esteve em função do aperfeiçoamento da ação rítmica, marcou um período em que o diretor teatral trabalhou de maneira híbrida com a música e com a cena, em que aplicou sua experiência cênica ao trabalho musical nos espetáculos de ópera com os cantores-atores e na qual a música foi um elemento fundamental para seu trabalho cênico, auxiliando-o a, posteriormente, chegar ao seu “Sistema das ações físicas”.

Portanto, em termos de treinamento, o foco do trabalho de Stanislávski com o canto objetivava algo que estava além da produção de uma voz bonita, mas também que o cantor-ator pudesse “(...) viver o papel e colocar em relevo o que expressa a música” (STANISLÁVSKI, 2011, p. 422) e acontecia por meio de trabalhos corporais e esboços de atuação que possibilitavam outras posições do corpo; movimentos no espaço; exercícios diários de música para liberar tensões musculares desnecessárias; experimentos com o tempo-ritmo, nos quais o ritmo da música deveria ser vivido pelo cantor para alcançar estados de ânimo; análise da canção,

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tanto da letra como letra-melodia a fim de descobrir a lógica dos pensamentos do autor, e cantar árias e baladas eruditas executando uma síntese dos componentes de seu “Sistema” como as “Circunstâncias dadas”, “Se mágico” e “Objeto de atenção” para auxiliar o cantor a desenvolver a imaginação e chegar ao sentimento.

Outro teatrólogo que desenvolveu trabalhos com o canto foi Jerzy Grotowski, na “Arte como Veículo” período no qual:

(...) não teve como prioridade o teatro, mas o que chamou de a “objetividade do ritual”; onde o trabalho atua sobre as pessoas, em sua cabeça, coração e corpo, baseado em canções escolhidas de muitos lugares diferentes, provenientes, principalmente, de países da África e Afrocaribe. (RICHARDS, 2015)

Seu trabalho, nesse período, teve a Action como manifestação principal e esta, desde 1994 até hoje, faz parte dos trabalhos do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richard sendo desenvolvida por Thomas Richards e Mario Biagini. Trata-se de “(...) uma linha de ação simples e construída, sobretudo, a partir dos cantos (...), poucos fragmentos de textos e as ações físicas10” e é um “(...) veículo para um trabalho sobre si, em que a atenção à arte – nos seus aspectos mais artesanais – e a aproximação com a interioridade do ser humano caminham juntas (...)”. (MOTTA LIMA, 2014) É um trabalho específico em que os atores são chamados de atuantes, de

doers, ou seja, aqueles que agem, “porque seu ponto de referência não é o espectador, mas o

itinerário na verticalidade11” (RICHARDS, 2012, p. 150). Assim, a Action não pretende ser uma representação, mas uma vivência, uma performance na qual o público é considerado “testemunha” de um ato real. (MOTTA LIMA, 2014)

Na Action, o canto guia a performance e as ações, diferentemente do trabalho de Stanislávski no qual o canto se submete à dramaturgia da canção e da cena. Porém, apesar de serem pesquisas diferentes, existem pontos comuns de busca, já que conforme aponta Thomas Richards: “As duas extremidades (de teatro), a “Arte como Veículo” e a “Arte como apresentação” pertencem à mesma vasta família. Algo deve poder passar entre elas: as descobertas técnicas, a consciência artesanal...” como por exemplo um princípio do trabalho de

10 “(...) tais como as concebeu Stanislavski. Grotowski se via como continuador dessa pesquisa do artista russo,

desenvolvendo-a principalmente no que diz respeito aos ‘impulsos’.” (MOTTA LIMA, 2014).

11

Transformação da energia do ator de um nível da realidade mais comum a um mais sutil (RICHARDS, 2012, p. 144)

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Grotowski que dialoga muito com o que busco neste estudo: um canto que encontra sentido em uma necessidade maior, anterior e mais urgente do que apenas um pensamento técnico.

Os cantos das Actions funcionam como uma ferramenta para a transformação da energia. A ressonância e a vibração de cada canto geram impulsos e ações específicas: “(...) cada canto contém escondido dentro de si um modo próprio e distinto de se mover. (RICHARDS, 2012, p. 23)

Quando começamos a captar as qualidades vibratórias, isso encontra seu enraizamento nos impulsos e nas ações. Depois, de uma hora para outra, esse canto começa a nos cantar. Esse canto antigo me canta; não sei mais se estou descobrindo esse canto ou se eu sou esse canto. (RICHARDS, 2012, p. 143)

E:

O canto da tradição, como instrumento da verticalidade, pode ser comparado ao mantra da cultura hindu ou budista. O mantra é uma forma sonora, muito elaborada, que engloba a posição do corpo e a respiração, e que faz aparecer uma determinada vibração num tempo-ritmo tão preciso que ele influencia o tempo-ritmo da mente. (...) não serve aos espectadores, e sim a quem pratica. (RICHARDS, 2012, p. 143)

Além dos cantos, a Action também utiliza textos12 e ações definidas - como o modo tradicional de caminhar haitiano13, “(...) Nós a chamamos de uma caminhada ou, pelo seu nome haitiano, yanvalou.” (BIAGINI, 2013, p.191).

A estrutura das Actions tem uma forma definida bastante precisa nas ações, nos textos e nos cantos “(...), pois a precisão é necessária para a manifestação da qualidade vibratória da canção (...)” (MARTINS; CAMPO, 2014, p.59). No caso dos cantos, por exemplo, eles devem

12 “Que pertencem à tradição ocidental, ao “berço do ocidente” - Egito Antigo, a terra de Israel, a Grécia e a Síria

Antiga.” (RICHARDS, 2012, p.146) - e que “(...) parecem colocar questões a alguém que está realizando um trabalho sobre si (...) indicar caminhos para esta experiência interior. (...) São textos provocadores. Eles dizem o que se deve trabalhar e o que acontece se não o fazemos.” (MOTTA LIMA, 2014)

13

“A forma é específica, uma forma-em-movimento, extremamente orgânica, que pode levar anos para que se adquira a mestria. Pode-se aprendê-la como uma forma e então trabalhar procurando por sua função. Grotowski dizia que o yanvalou é um “mantra para o corpo”, fazendo uma analogia com formas repetitivas de oração. É um fluxo orgânico e estruturado que pode ser encarado como uma ferramenta para o trabalho interior. Se você examinar essa caminhada com atenção, perceberá que ela é, ao mesmo tempo, extremamente simples e complexa. Os passos são simples. Primeiro o calcanhar toca o chão, o deslocamento de um pé para outro é controlado e a coluna reage suavemente ao contato do pé com o chão. Enquanto o pé toca o chão, um suave impulso sobe ao longo da coluna. Quando o pé se ergue do chão, alguma coisa na coluna descende. Os dois movimentos, subindo e descendo, formam juntos um círculo com duas breves suspensões no zênite e no nadir.” (BIAGINI, 2013, p.191)

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respeitar sua estrutura melodia-ritmo-letra e também seguir uma organização entre a pessoa que lidera o canto e o coro que responde:

(...) o líder não improvisa, nem a melodia nem a letra da música (...). Aqueles que estão seguindo têm de ajustar-se a micro oscilações de tempo-ritmo e constantemente modular a afinação seguindo o líder. O que significa que devem cantar mais suavemente do que ele. Eles precisam permanecer conscientes em relação ao que está acontecendo e estar prontos para reagir. E reagir de um modo que auxilie e não perturbe. Há muitas regras para o jogo e todas elas incluem todas as coisas que não se deve fazer. (BIAGINI, 2013, p.188)

Além dessa estrutura, que demanda uma escuta e atenção grandes do atuante, existe ainda uma outra ação e foco do cantar: “(...) o canto tem de ser procurado enquanto se canta, pois o canto não pode trabalhar por si mesmo. Tem de haver uma investigação ativa levando você de um impulso a outro.” (BIAGINI, 2013, p.188) Biagini comenta que essa “procura do canto” é como quando se chama alguém do outro lado da sala, ou seja, é uma ação e as ações estão sempre ligadas à motivações, quais sejam “A canção chegará? Meu parceiro virá comigo?” (BIAGINI, 2013, p.188)

Ou seja, o canto acontecerá a partir de uma relação com a estrutura mencionada anteriormente, de uma precisão melódica e rítmica, concomitante com as caminhadas e os textos e a partir de uma intenção/motivação de “procurar o canto” e de se relacionar com o interlocutor - na intenção de que o parceiro “venha junto” e a canção alcance o próprio e os outros atuantes.

Thomas Richards fala sobre a motivação do atuante em contraposição à técnica, afirmando que quando o ator tem uma motivação significativa para atuar, a técnica e a organicidade chegam por si sós:

(...) os atores não estão pensando de uma forma viva, é como se eles não arriscassem transmitir o que é significativo para eles. O que é que somente eu posso dizer? Assim, coisas maravilhosas começam a aparecer e as pessoas começam a trabalhar em um território fértil. Quando a pessoa começa a trabalhar em algo que é muito significativo, ela começa a ser orgânica, natural e também muda a forma de atuar, porque a pessoa literalmente se incendeia e de repente: Onde está a técnica vocal? (RICHARDS, em entrevista dentro da programação do evento “Legado vivo de Jerzy Grotowski” realizado em Bogotá, 2015)

Grotowski corrobora com tal pensamento ao dizer que se o ator estiver em ação, a técnica emergirá, não como um procedimento mecânico, mas com uma transformação concreta desse artista, porque no que concerne à respiração por exemplo, “(...), assim, quando se está totalmente envolvido em uma ação, não é possível controlá-la, é o próprio organismo que respira. Por isso qualquer intervenção cria obstáculos ao processo orgânico (...)” (GROTOWSKI, 2001, pg.139) Esses obstáculos, segundo o teatrólogo, podem acontecer quando se canta a partir de uma

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observação técnica musical e/ou do próprio aparelho fonatório, estimulando uma cisão entre o ato e o corpo, ou entre corpo, mente e alma, que pode causar bloqueios advindos por exemplo de uma laringe semifechada e um corpo dividido no qual a energia se concentra na cabeça e no instrumento vocal apenas.

(...) Muitos atores têm dificuldade com a voz, porque observam o próprio instrumento vocal. (...) Com o simples ato do observar, interferem constantemente no funcionamento do instrumento vocal. Podemos levantar várias hipóteses para procurar a causa disso, mas o resultado objetivo é o seguinte: se se observa o próprio instrumento vocal enquanto trabalha, nesse momento, a laringe se fecha, não totalmente, apenas um pouco, fica como semifechada. Esse semifechamento ao final é rompido na luta por uma voz plena. O resultado: força-se a voz e depois começam as dificuldades; o ator torna-se rouco, violenta o seu instrumento e causa defeitos, não ainda fisiológicos, mas defeitos funcionais: da laringe, das cordas vocais etc.(...). É de importância básica evitar no trabalho vocal observar o instrumento vocal. As escolas de teatro ensinam exatamente o contrário. (GROTOWSKI, 2001, pg. 142)

Grotowski, diz que estar em ação significa usar o corpo todo para atuar, a partir de uma motivação significativa, de algo que convoque a presença toda do atuante, e quando isso não acontece e este utiliza uma técnica como motivação principal de sua atuação, tal fato pode impedir que uma ação real aconteça porque segundo ele “A presença da técnica não é o mesmo que a presença do Ato. Se executarmos o Ato, a técnica existe por si mesma. A técnica fria, consciente serve para evitar o Ato, para nos esconder, para nos cobrir. A técnica emerge da realização (...)”. (GROTOWSKI, 2001, pg.179).

Essa situação me sugere uma imagem de uma cabeça grande desconectada do resto do corpo mas que tenta controlá-lo. Grotowski, abaixo, dá um exemplo do que considera uma técnica fria, que impede que o atuante alcance uma potência criativa:

Até mesmo aqueles que ensinam têm dificuldades com a voz. E por quê? Observem atentamente um professor no trabalho: quer controlar todos os seus movimentos, pensa que deve ter gestos regulares; com frequência, quer falar com uma certa clareza de articulação; dessa forma - observei isso em um seminário de filologia - sublinha todas as consoantes: “Senhor Presidente... etc.” Quer articular bem, quer que todos o ouçam e, por esse motivo, destaca as consoantes. Resultado: a sua laringe fica semifechada. Além disso, muitas vezes, não desenvolveu seu lado físico, por isso é um cérebro em cima do nada. O seu corpo é uma planta - magra ou gorda - porém uma planta delicada, como os brotos da batata em um porão, uma espécie de planta branco-pálida. A sua energia física existe somente em sua cabeça e em seu instrumento vocal. Por outro lado, quer manter os impulsos do corpo. É assim que, em vez de usar o corpo inteiro, ele (ainda que inconscientemente) submete à tensão o seu instrumento vocal. E fala, dessa forma, por um longo tempo, várias horas por dia; no final, terá danificado o seu instrumento vocal. Enquanto que as pessoas comuns, os camponeses não têm problemas: eles cantam em ação. (GROTOWSKI, 2001, p.143)

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Um dia, estava no escritório e a mulher da limpeza estava trabalhando; começou a cantar - não cantava bem - mas cantava sem dificuldades. Estava em ação e não observava como cantava, não controlava seu modo de cantar; o resultado era que sua laringe estava aberta, tudo funcionava bem. Saí do escritório para ver como respirava: respirava muito bem, com a respiração normal, usando o diafragma etc. Era uma ação natural. Os camponeses cantam assim. (GROTOWSKI, 2001, p.143)

Mario Biagini, durante a oficina14 Comportamento orgânico e contato: um encontro

de trabalho com o Open Program do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, da

qual participei, falou de algo similar quando observou uma das participantes cantar. Ele perguntou se ela havia feito aulas de canto e a atriz respondeu que não, então, Mario disse que a postura que esta fazia, “essa preparação que o ator faz quando pensa em cantar, observando o próprio corpo e o ato de cantar” é inconsciente, é como um arquétipo. Em seguida, convidou a atriz para fazer alguns jogos/exercícios com ele, uma estratégia que utiliza para contornar o controle sobre o cantar: to play, jogar/brincar como alternativa para não ficar observando a própria voz. Relatou que os três pontos importantes que acontecem quando jogamos e brincamos são: não julgamento de certo e errado, não economizar energia corporal e não competir. Então, Mário e a atriz brincaram, imitaram um macaco, depois uma garça. Observei a diferença nas vozes produzidas pela atriz antes e depois do jogo; de uma voz controlada e contida para uma voz integrada ao corpo com nuances mais evidentes de volume e ressonância.

Um dos focos dessa oficina foi de trabalhar o canto por meio da ação, conforme dizia o programa divulgado no site da Oficina Cultural Oswald de Andrade:

(...) uma abordagem do canto através da ação, da intenção e do contato. Atores, diretores e músicos serão envolvidos em um trabalho prático e intensivo sobre cantos tradicionais do sul dos Estados Unidos. Durante o processo, os participantes se confrontarão com: vibração da voz, consciência do espaço e reação aos seus elementos constitutivos, improvisação dentro de uma estrutura. Os participantes também trabalharão sobre seu próprio material cênico, que poderá ser incluído neste fluxo de cantos.15

Na primeira metade de cada encontro, Mario e os artistas do Open Program, conduziam os participantes em sessões de canto que se iniciavam sem nenhum tipo de aquecimento vocal ou explicação prévia. Os cantos abriam os trabalhos, eventuais explicações

14

A oficina foi conduzida por ele e com assistência dos membros da equipe do Open Program14. Aconteceu na Oficina Cultural Oswald de Andrade em São Paulo-SP, em Junho de 2015, com duração de quatro dias e com seis

horas diárias.

15

Programa da oficina divulgado pela “Oficina Oswald de Andrade”. Disponível em: http://www.oficinasculturais.org.br/programacao/ver.php?idoficina=7 Acessado em 8 de junho de 2015.

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eram feitas por Mario, no decorrer do processo, conforme surgiam perguntas dos participantes. Os cantos eram propostos por ele ou algum dos membros do Open Program e tinham uma estrutura que se dividia entre os momentos cantados pela pessoa que propunha o canto e aqueles em que o coro respondia. O trabalho demandava dos participantes, dentre outras coisas, uma escuta auditiva e corporal grandes, relação com o outro e com a percepção do espaço. Observei que realizar essas demandas, além de cantar em idiomas que nem todos tinham domínio como o espanhol, o francês e o afro-caribenho, exigia uma disponibilidade que não era apenas racional, mas integral do corpo, mente, vontade, sensação, olhar, escuta, emissão da voz e intuição.

No início da oficina, senti-me deslocada das “regras do jogo”, mas nos dias que seguiram fui me familiarizando e as orientações de Biagini ajudaram nessa compreensão do trabalho. Em uma dessas explicações, ele falou de como nosso corpo-mente está sempre dividido: ou o corpo está presente, mas a cabeça está em outro lugar, ou a mente está presente, mas o corpo não responde. Disse que os atores sempre têm uma ideia, uma imagem mental da atuação, então, quando atuam, bloqueiam o processo natural, porque essa ideia se sobrepõe a outras possibilidades. Falou que em Action, não se separa voz do corpo, em seguida, pediu que cada participante buscasse fazer pequenas ações para aprender o fluxo de ações-palavras no canto. Também pediu para observarmos o espaço e descobrir como utilizá-lo a partir da pergunta “Onde devo estar?” e complementou dizendo que se alguém estivesse se sentindo perdido e sem saber o que fazer, devería imitá-lo.

Falou ainda sobre “corpo orgânico” e perguntou: “Então, quem é orgânico? E como essas pessoas fazem para ser orgânicas? Elas nem sabem. Então, como podemos nos conectar?” Disse que isso é possível por meio de associações com as intenções presentes no corpo, que não se trata de manipulá-lo, assim como não se manipula a mente; se está inquieta ou serena não dá para mudar esse estado, mas se você pensa em se relacionar com outra pessoa, “não no que quer conseguir dela, mas o que pode oferecer-lhe”, então esse “contato” pode mudar a relação mente-corpo.

Além disso, falou sobre os diferentes tipos de escuta: uma delas mais racional que “quer compreender se estou ouvindo certo ou não”, a outra que abrange outros mecanismos, diversas sinapses, sensações, olhares.

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Mario observou, ainda, que a “presença” cênica é algo que acontece a partir da relação com meu parceiro e não se trata de “mim mesmo”: focar a atenção no parceiro é um caminho para conquistar sua presença, o parceiro é real e você, “você não pode tocar o eu”.

Ao final dessa primeira parte de cada dia de trabalho da oficina os corpos estavam mais disponíveis e com uma escuta muito atenta ao outro, ao contato e à relação.

Na segunda metade dos encontros, eram apresentadas as cenas dos participantes da oficina. Após cada cena, Biagini falava sobre o que tinha observado, do ponto de vista cênico, e dava soluções dramatúrgicas e sugestões de como a pessoa poderia continuar trabalhando.

No que concerne à relação do canto com a cena, ao assistir por exemplo ao trabalho de um dos participantes com cantos afro-caribenhos, Mário disse que esse ator deveria encontrar uma maneira de unificar os impulsos do corpo com a canção e descobrir como a melodia, “as partes altas, os vales e intervalos” (BIAGINI, 2015) contêm ações. Mencionou que “é possível que as canções guardem segredos”, que ele poderia descobrir que uma canção pode ser uma senhora idosa, uma mulher bonita, dentre outras possibilidades, segredos estes que podem estar em momentos específicos da canção, mas salientou que isso se descobre no instante em que se está cantando, que a canção ganha força pela vibração e por pequenas ações, e não necessariamente, com volume. Disse também, que o ator deveria descobrir aonde a melodia quer ir, onde pode criar uma abertura e encontrar pequenas ações que acontecem em cada frase. Em suma, falou que o ator deve descobrir uma maneira de “se encontrar” com a canção: “Posso fazer a ação de procurar a canção, por exemplo, e se for uma canção verdadeira, ela vem.”

Na oficina, presenciei princípios similares aos que tinha estudado teoricamente na obra de Grotowski e Thomas Richards, entendi, por exemplo, que o canto em ação na Action busca integrar a mente com o corpo por meio do contato com o outro, quando se está disponível para aquilo que o outro precisa e também por meio da relação com o espaço, buscando os impulsos do corpo, além de cantar fazendo as caminhadas haitianas. E todas essas demandas juntas, conforme falei anteriormente, exigiam uma disponibilidade integral do corpo, mente, vontade, sensação, olhar, escuta, emissão da voz e intuição, ou seja, que cada participante estivesse inteiro e em ação.

Stanislávski, Grotowski, Thomas Richards e Mario Biagini têm em comum o trabalho com a ação, mas com uma diferença marcante; Stanislávski trabalhava com o que Richards chamou de “Arte como apresentação” e Grotowski e seus discípulos com a “Arte como veículo”,

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portanto, no primeiro, a ação parte do movimento físico, buscando a motivação dessa ação na dramaturgia e no trabalho interior, e no segundo, ela está relacionada às ações reais que acontecem nos atuantes, já que o trabalho pretende “atuar sobre as pessoas, em sua cabeça, coração e corpo” (RICHARDS, 2015) sendo um ato real e não uma representação, e objetivando transformar a energia do ator. Usando essa mesma nomenclatura, posso dizer que em minha pesquisa a ação está próxima de uma “Arte como apresentação” como no trabalho desenvolvido por Stanislávski, no qual a ação é parte de uma análise racional da dramaturgia, mas também, como no trabalho das Actions busca encontrar um “canto em ação”. De toda forma, cabe esclarecer alguns conceitos para depois falar no capitulo 2.4 sobre “O caminho que se apresentou para mim: trabalho do canto a partir da atuação por meio dos princípios da ação física”.

2.3 Sobre os conceitos: “ação física”, “dramaturgia da cena” e “dramaturgia

do ator”

Por que falar sobre “ação física”, “dramaturgia da cena” e “dramaturgia do ator” em uma pesquisa que tem como foco principal o canto, embora que seja para atores?

No teatro Brechiano, por exemplo, tradicionalmente, a música e consequentemente o canto estão distanciados das ações e da dramaturgia ficcional da cena, tendo como função principal comentar o texto sublinhando-o ou contradizendo-o, conforme nos relata ROSENFEND: “Geralmente a música assume nas obras de Brecht a função de comentar o texto, de tomar posição em face dele e acrescentar-lhe novos horizontes. Não intensifica a ação; neutraliza-lhe a força encantatória.” (ROSENFEND, 2002, pp.160-161)

Em outros contextos e linguagens teatrais, a ação pode guiar a realização cênica e musical e é esta referência que usarei, assim falarei um pouco sobre essas linguagens teatrais, já que o canto fará parte da ação, da dramaturgia da cena e dramaturgia do ator.

Começarei esclarecendo o conceito de “dramaturgia”. Conforme relata NASCIMENTO e ALVES (2015), dramaturgia, no contexto contemporâneo, possui um entendimento amplo, sendo a “(...) junção de uma multiplicidade de signos e textos, de dramaturgias que ultrapassam a escrita e se colocam mais próximas da materialidade da cena”, onde o texto escrito será opcional “(...) um elemento a ser preservado, tido como ponto de partida e/ou de chegada; ou a ser desestruturado, reformulado e até abolido (...)” e conforme discute Eugenio Barba, “texto”

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