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VARIÁVEIS DE INFLUÊNCIA NO DEPOIMENTO DE CRIANÇAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL 1

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VARIÁVEIS DE INFLUÊNCIA NO DEPOIMENTO DE CRIANÇAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL1

Sarah Eidt Stefanello2

RESUMO: A presente pesquisa tem como cerne as variáveis de influência do depoimento da criança vítima de violência sexual, bem como a sua repercussão dentro do processo penal. Nestes delitos, por normalmente ocorrerem no âmbito íntimo do lar e em sua maioria não deixarem vestígios físicos, o relato do ofendido costuma ser a única evidência, motivo pelo qual o estudo da confiabilidade das declarações mostra-se de suma importância. Existem diversos fatores que podem influenciar a declaração do infante, sendo o estudo da memória e sua vulnerabilidade um dos elementos decisivos para compreender a capacidade de recordação destes indivíduos. Ademais, aspectos como as falsas memórias, sugestionabilidade, o desenvolvimento cognitivo da criança, o embaraço em relatar fatos constrangedores, entre outros, também contribuem para abalar a credibilidade do testemunho. Neste sentido emerge a essencialidade do estudo destas variáveis, não somente para compreendê-las, mas também para abordar medidas de redução dos danos decorrentes dos depoimentos.

Palavras-Chave: Depoimento infantil – violência sexual – variáveis de influência – sugestionabilidade – memória

INTRODUÇÃO

Uma das principais dúvidas atuais envolvendo o processo penal refere-se à confiabilidade do depoimento infantil. Todos os dias crianças sofrem violências sexuais e, como esses atos normalmente ocorrem na clandestinidade, o seu relato acaba sendo a única evidência da prática do crime. Ademais, a maioria destes delitos não costuma deixar vestígios físicos, corroborando a importância de se analisar a prova oral e a sua respectiva credibilidade no processo penal.

Neste contexto emerge a presente pesquisa, que tem como cerne o estudo das variáveis de influência do depoimento de crianças vítimas de violência sexual, ou seja, as vulnerabilidades as quais os infantes estão sujeitos quando da coleta probatória. Visa-se aqui uma análiVisa-se conjunta e transdiscipinar entre o direito e uma gama de diferentes áreas como a psicologia, serviço social, psiquiatria e demais nichos do conhecimento, a fim de se avaliar a precisão do depoimento judicial.

1

Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovado com grau máximo pela banca examinadora composta pelo orientador Prof. Nereu José Giacomolli, Prof. Marcelo Caetano Guazzeli Peruchin e Prof. Mario Rocha Lopes Filho, em 12 de novembro de 2010.

2

(2)

Desta forma, em um primeiro momento será abordada a palavra da vítima no processo penal, com um maior destaque para os recentes procedimentos de inquirição introduzidos pelas Leis nº 11.690/2008 e 11.719/2008. Após, entrar-se-á em um estudo acerca da memória, que é a base do processo de recordação dos indivíduos, comparando o seu funcionamento em adultos e crianças, a fim de identificar as particularidades das últimas. Neste contexto insere-se o fenômeno da falsificação da memória, tão comum nas mais diversas faixas etárias, configurando uma das principais vulnerabilidades do depoimento do infante.

Ainda, serão analisados aspectos específicos acerca dos crimes sexuais envolvendo criança vítima, além de uma análise geral acerca da principais variáveis de influência, como é o caso da sugestionabilidade. Por fim, relatar-se-ão técnicas de inquirição de menores, como forma de redução de danos, incluindo-se um estudo acerca do depoimento sem dano, projeto-piloto introduzido pelo projeto de Lei nº 4.126/2004 que tem causado calorosas discussões em diversas áreas profissionais.

1 OS DEPOIMENTOS COMO PROVA NO PROCESSO PENAL 1.2. A PREPONDERÂNCIA DA PALAVRA DA VÍTIMA

A vítima no processo penal é o sujeito passivo da infração, ou ainda quem sofre a ação violatória da norma penal. Primeiramente, é preciso distinguir o sujeito passivo geral, que é sempre a sociedade representada pelo Estado, do particular, que é o titular

do bem jurídico ameaçado,3 como é o caso da criança ofendida, objeto de estudo deste

trabalho.

Visa-se aqui a análise e a valoração da palavra do ofendido, em que o legislador preferiu sabiamente tratar da matéria fora do capítulo das testemunhas, já que possuem características peculiares.

A primeira delas relaciona-se com a desnecessidade de seu arrolamento pelas partes – surgindo aqui o dever do juiz em ouvir o ofendido –, bem como a sua não inclusão no cômputo de pessoas a serem arroladas e ouvidas em juízo. Entretanto a mais relevante é, por estar diretamente envolvida com o fato probando, não precisar prestar compromisso nem dizer a verdade, não podendo, desta forma, cometer o delito de falso testemunho.

Ademais, a vítima do crime é, em geral, quem conhece e pode esclarecer de que forma o mesmo ocorreu, pois foi ela quem sofreu a ação delituosa e, por isso, está apta a prestar os necessários detalhamentos sobre o fato.

Contudo, é também necessário, que este depoimento seja visto com ressalvas, vez que a vítima está diretamente envolvida na situação, acarretando interesses desta nos mais diversos sentidos, tanto para beneficiar o acusado (por medo, por exemplo),

3

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como para prejudicar um inocente (no caso de vingança).4 Ademais, é preciso considerar que o ofendido levado pela paixão, ódio, ressentimento, e até mesmo pela emoção venha a narrar os fatos como lhe pareçam mais convenientes, ou ainda, devido à emoção intensa, mesmo acreditando estar descrevendo o ocorrido com fidelidade, acaba por omitir ou acrescentar informações.

De se ressaltar também, que não são raros os casos de pseudovítimas, criadas por

uma imaginação traumatizada,5 ou ainda, decorrentes de falsas memórias, sejam elas

espontâneas ou implantadas, as quais serão explanadas em momento oportuno.

Quanto à validade e credibilidade do depoimento, Aranha alega existirem duas

vertentes, cada qual com sua fonte própria: a pessoa da vítima e a natureza do crime.6 O

primeiro elemento diz respeito aos antecedentes, formação moral, idade, estado mental e a maneira firme ou titubeante como presta seu depoimento, sendo que a soma dos resultados com a análise de cada um dos fatores levará à maior ou menor credibilidade.

No que concerne à natureza da infração, existem certos delitos ocorridos na clandestinidade, como os crimes sexuais e os contra o patrimônio com violência e grave ameaça, na qual, conforme opinião majoritária da jurisprudência e doutrina, o depoimento do ofendido merece maior força probatória.

Nestes casos, como os delitos normalmente ocorrem às escondidas, a palavra da vítima costuma ser a única evidência do mesmo, especialmente nos crimes contra os

costumes, que em sua maioria não deixam vestígios físicos.7

Entretanto, conforme Aury Lopes Jr., para que o depoimento do ofendido embase um veredicto condenatório, este deve ser seguro, crível e verossímil, bem como

“não possuir motivos que indiquem falsa imputação” 8

, justamente a fim de evitarem-se injustiças nesta área, tão comuns na história judiciária deste país.

Por fim necessário frisar que prova oral no âmbito do processo penal ainda é muito valorizada – apesar de ser importante para a apuração do delito - sendo que a tendência é enaltecer ainda mais o ofendido, a exemplo da atual reforma do Código de Processo Penal, que determina a comunicação deste dos atos processuais relativos ao

ingresso e saída do acusado da prisão.9

4

LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 601.

5

ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 150.

6

ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 150.

7

Um estudo realizado nos Estados Unidos ao longo de 5 anos com 2.384 crianças que haviam buscado atendimento hospitalar em decorrência de possível abuso sexual, mostrou que somente 4% delas apresentou algum tipo de anormalidade no exame físico. Mesmo quando o abuso havia sido severo, incluindo penetração anal ou vaginal, o número de crianças que evidenciou algum achado positivo no exame chegou apenas a 5,5%. (STEIN, Lilian Milnitsky et al. Falsas memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 159).

8

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. 1, p. 602.

9

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1.2. PROCEDIMENTOS DE INQUIRIÇÃO

Esta seção visa analisar os atuais procedimentos de inquirição introduzidos pelas

leis nº 11.690/200810 e 11.719/2008,11 bem como demais alterações pertinentes

envolvendo a referida reforma no Código de Processo Penal12 vigente.

Pois bem, a atual redação do artigo 400 do Código de Processo Penal prevê a tomada de declarações na audiência de instrução e julgamento em ato único, sendo iniciada pelo ofendido; após é feita a oitiva das testemunhas da acusação e defesa (nesta ordem); esclarecimentos dos peritos; acareações e reconhecimentos; procedendo como último ato o interrogatório do réu. Tal mudança é considerada uma evolução em nosso sistema, vez que preconizado o contraditório e a ampla defesa ao acusado.

Relevante mencionar que o ato único da audiência pode gerar complicações no que concerne ao não comparecimento de uma testemunha, por exemplo, porém tais fatos são recorrentes na práxis forense, a qual trata de resolver o impasse da forma como melhor convier.

A reforma também alterou o procedimento de inquirição de testemunhas. Conforme artigo 212 do Código de Processo Penal, “as perguntas serão formuladas diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”.

Sobre o mencionado artigo, diversas considerações merecem ser feitas. Primeiramente, a adoção de tal sistema modificou a antiga concepção presidencialista de colheita da prova, na qual os questionamentos eram dirigidos ao magistrado, que por sua vez filtrava o conteúdo e reformulava a pergunta ao depoente. Tal prática não coincidia com o modelo acusatório, que prevê um alheamento do juiz e a gestão da prova feita pelas partes, além de correr um sério risco em se perderem informações

nesta intermediação na formulação das perguntas.13

O magistrado deve julgar com base nas provas contidas nos autos e, no caso de dúvida, absolver o réu, conforme princípio básico preconizado em nossa constituição. Ademais, a adoção desta nova metodologia também garante o contraditório e o equilíbrio processual, assemelhando-se ao cross-examination norte-americano, no que concerne à formulação dos questionamentos pelas partes. Contudo, o nosso sistema também permite a intervenção do magistrado de forma supletiva sobre pontos não esclarecidos, parecendo mais com o que os italianos chamam de esame incrociato

(perguntas cruzadas), que prevê tal manifestação.14

10

BRASIL. Lei 11.690, de 09 de junho de 2008. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11690.htm#art1>. Acesso em: 5 out. 2010.

11

BRASIL. Lei 11.719, de 20 de junho de 2008. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11719.htm>. Acesso em: 5 out. 2010.

12

BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 5 out. 2010.

13

GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Nova metodologia de inquirição das testemunhas e consequências de sua inobservância. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências

Criminais, São Paulo, n. 201, 2009. p. 16-17.

14

GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Nova metodologia de inquirição das testemunhas e consequências de sua inobservância. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências

(5)

A respeito dos questionamentos do magistrado, reza o parágrafo único do artigo 212 “sobre os pontos não esclarecidos o juiz poderá complementar a inquirição”. Assim, a norma é clara em afirmar que a atuação do juiz restringe-se a questões não esclarecidas, sendo que as partes devem primeiramente realizar suas perguntas e, conforme Giacomolli, ao final o juiz se manifesta se necessário e de maneira

subsidiária.15 Tal posição não é compartilhada por Nucci ao aduzir que o juiz continua a

formular primeiramente as perguntas às testemunhas e, somente após esgotar seu

esclarecimento, passa a palavra às partes para que, diretamente, reperguntem.16

De qualquer modo, mesmo com as alterações, o juiz continua no comando da audiência, já que a prova é destinada ao seu convencimento. Ademais, cabe a este a fiscalização da inquirição vetando perguntas sugestivas, que não tiverem relação com os fatos ou que versem sobre questões já respondidas.

Este papel é fundamental, pois, em que pese ser mais benéfico à defesa a gestão das provas concentrar-se nas mãos das partes, tal procedimento pode auxiliar na formação de falsas memórias. Ocorre que faz parte do “jogo” que é o processo qualquer

movimento que venha a induzir ou desacreditar as testemunhas adversárias.17 Ainda, no

caso de crianças, este procedimento torna-se bem mais delicado, pois, conforme será demonstrado posteriormente, estas são mais sujeitas a interferências externas quando comparadas aos adultos.

Neste sentido Cordero, citado por Gesu, adverte que “os diálogos diretos desenvolvem tensões angônicas, desconhecidas no procedimento unipessoal; os examinadores contrários se propõem a destruir os ditos desfavoráveis e, neste caso,

derrubam a antiga proibição das perguntas ilícitas sugestivas”.18

Desta forma, cabe aos magistrados a fiscalização dos questionamentos, motivo pelo qual se torna de extrema importância o preparo e o conhecimento destes quanto às vulnerabilidades dos depoimentos.

Ainda analisando o parágrafo único do artigo 212, essencial é a proibição de questionar novamente pontos já referidos, especialmente na inquirição de crianças. Diversas pesquisas já têm demonstrado que a repetição de perguntas a infantes dentro do mesmo depoimento costumam influenciar na segunda resposta, alterando-a. Isto normalmente ocorre porque compreendem a repetição como um sinal de que sua opinião não estava correta e, para agradar o adulto que as interroga, acabam

modificando sua declaração.19

Uma sugestão para a redução de danos seria a realização de um relato livre antes de iniciarem as perguntas das partes. Isto conservaria a versão apresentada pelo depoente, além de evitar a incidência de falsas memórias, conforme será amplamente

15

GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal: considerações críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 57.

16

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 474-475.

17

DI GESU, Cristina. Prova penal e falsas memórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 79.

18

CORDERO, Franco. Procedimiento penal. 2000. v. 2. apud DI GESU, Cristina. Prova penal e falsas

memórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 79.

19

(6)

demonstrado posteriormente. Sobre este assunto Giacomolli e Gesu afirmam que não ocorrerá nenhum vício processual, pois o juiz somente inicia a audiência solicitando ao

depoente que relate o ocorrido sem fazer qualquer pergunta.20

Quanto às nulidades decorrentes da não obervância da nova metodologia de inquirição, Lopes Jr. afirma que invalida o ato processual e veda a utilização do

depoimento no processo.21 Assim, configuraria uma nulidade absoluta o desrespeito às

regras previstas no referido diploma legal, somente sendo sanado pela repetição do ato ou pela posterior absolvição do acusado.

Ademais, não houve alterações nos artigos quanto à possibilidade de o juiz ouvir de ofício pessoas não arroladas pelas partes, bem como as testemunhas referidas. Contudo, a regra do artigo 212 do Código de Processo Penal parece clara em afirmar que o magistrado somente pergunta ao final sobre pontos não esclarecidos, devendo-se estender a aplicação às situações acima mencionadas.

Por fim, necessário ressaltar algumas inovações que, segundo Pacelli, são de

“remotíssima aplicabilidade prática”.22

A primeira refere-se a um espaço reservado ao ofendido no Fórum (artigo 201, §4º), bem como o encaminhamento deste à assistência psicossocial, jurídica e de saúde às expensas do Estado. Ora, correto o autor em afirmar

que esta não é a realidade da maioria das comarcas,23 pois, apesar do propósito nobre,

será muito difícil a implementação de tal norma.

No mesmo sentido é o regramento previsto no artigo 210, parágrafo único, do Código de Processo Penal, determinando a reserva de espaços nos fóruns para abrigar as testemunhas, a fim de garantir a sua incomunicabilidade. Entretanto, conforme Giacomolli, não é o local o determinante para a incomunicabilidade e sim a fiscalização dos indivíduos para que se abstenham de conversar sobre o delito, função inerente ao

oficial de justiça.24

2 MEMÓRIA

O principal meio probatório no processo penal brasileiro é o testemunhal, sendo muito comum veredictos condenatórios apenas com base em um único depoimento. Conforme já demonstrado, este é um instrumento de retrospecção de um determinado fato histórico impulsionado normalmente pelo ofendido e testemunhas, que se utilizam de sua memória para a respectiva evocação.

20

GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina Carla. Nova metodologia de inquirição das testemunhas e consequências de sua inobservância. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências

Criminais, São Paulo, n. 201, 2009. p. 16-17.

21

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. v. 2.

22

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 365.

23

Opinião contrária é a de Nucci, ao afirmar a separação de testemunhas em salas próprias é “uma situação concreta em muitos fóruns brasileiros” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo

penal e execução penal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 473-474).

24

(7)

Todavia, a neurociência já vem demonstrando que o processo mnemônico não é fidedigno à realidade, ou seja, as lembranças não reconstroem os fatos da maneira como

realmente ocorreram, o que pode acabar por macular a prova penal,25 26sendo que nas

crianças esse processo é ainda mais complexo quando comparadas aos adultos, pois incluem diversas particularidades.

Este é justamente o objetivo desta seção, demonstrar de que forma a memória influi no processo de recuperação de lembranças, por meio de uma perspectiva forense, aprofundando-se no seu funcionamento em crianças.

A memória, segundo Squire, pode ser conceituada como “o processo pelo qual

aquilo que é aprendido persiste ao longo do tempo”,27

estando esta e o aprendizado, portanto, intimamente ligados. Até o final do século XIX, o seu estudo restringia-se basicamente aos domínios da filosofia, entretanto com o advento do século XX o foco de investigação foi movendo-se para a psicologia e depois para a biologia, sendo a

tendência atual uma convergência das duas últimas para um plano comum.28 Esta visão

mais experimental e científica da memória tem provido uma nova perspectiva acerca de como o encéfalo pode aprender a recordar, modificando completamente os antigos conceitos acerca de seu funcionamento.

Neste sentido é a definição de Izquierdo, alegando que a memória é “aquisição, a

formação, a conservação e a evocação de informações”.29

A aquisição pode ser conceituada como a aprendizagem, enquanto que a formação e a conservação seriam, respectivamente, a constituição e a manutenção do fato a ser ou não recordado.

Já a evocação, por sua vez, é um dos pontos centrais na análise da prova oral, pois é a própria recordação, ou ainda, a lembrança do fato ocorrido. Assim, somente é possível avaliar a memória de um indivíduo com base nesta última, sendo que a sua

falta denomina-se esquecimento ou olvido.30

Neste diapasão relevante é o estudo acerca do esquecimento, vez que pode ter diversas origens, provocadas consciente ou inconscientemente pela pessoa, conforme demonstrado abaixo:

[...] nosso cérebro “lembra” quais são as memórias que não queremos “lembrar”, e esforça-se muitas vezes inconscientemente para fazê-lo. Escolhe cuidadosamente quais são as “más lembranças” que não deseja trazer à tona e evita recordá-las: as humilhações, por exemplo, ou as situações profundamente desagradáveis ou inconvenientes. De fato, não as esquece,

25

GIACOMOLLI, Nereu; DI GESU Cristina. As falsas memórias na reconstrução dos fatos pelas testemunhas no processo penal. In: XVII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 17., 2008, Brasília.

Anais... Brasília, 2008.

26

Para demonstrar que a lembrança não é igual à realidade, Izquierdo ilustrou o seguinte exemplo: a memória do perfume da rosa não nos traz a rosa; a dos cabelos da primeira namorada não a traz de volta, a da voz do amigo falecido não nos recupera o amigo. Há um passe de prestidigitação cerebral nisto; o cérebro converte a realidade em códigos e a evoca por meio de códigos. (IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 17).

27

SQUIRE, Larry R.; KANDEL, Erick R. Memória: da mente às moléculas. Tradução Carla Dalmaz e Jorge A. Quillfeldt. Porto Alegre: Artmed, 2003. p. 14.

28

SQUIRE, Larry R.; KANDEL, Erick R. Memória: da mente às moléculas. Tradução Carla Dalmaz e Jorge A. Quillfeldt. Porto Alegre: Artmed, 2003. p. 15.

29

IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 9.

30

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senão o contrário: as lembra muito bem e muito seletivamente, mas as torna de difícil acesso.31

Logo, o esquecimento constitui um processo ativo, ou seja, uma prática da memória, que recorrentemente pode servir como uma espécie de proteção ao indivíduo em recordações amplamente desagradáveis, como é o caso dos crimes sexuais, por exemplo. Na mesma senda, importante mencionar que existem basicamente quatro formas de esquecimento: a extinção e a repressão, responsáveis em tornar as memórias menos acessíveis, mas em geral sem perdê-las por completo; bem como o bloqueio e o

esquecimento propriamente dito, consistentes em perda real da informação.32 Desta

forma, para Izquierdo, a “arte de esquecer” se concentraria na extinção, repressão e na falsificação de uma memória, que será abordada posteriormente.

Ademais, necessário refletir acerca da possibilidade de o esquecimento ser provocado porque os mecanismos que formam e evocam memórias são saturáveis. Em verdade ainda não existem certezas acerca deste aspecto, vez que “as possibilidades de intercomunicação entre as células do cérebro são imensas, e de cada uma destas conexões ou sinapses podem surgir memórias; sem contar o fato de que cada conexão

pode participar de muitas memórias diferentes” 33, entretanto há diversas evidências

recentes de que, na hora da formação e da evocação, os sistemas cerebrais que

envolvem a memória de longa duração,34 diretamente relacionada ao hipocampo, são

saturáveis.

Além disso, é preciso considerar as perdas naturais decorrentes do processo de tradução e evocação de memórias. Isto ocorre porque existe uma tradução entre a realidade das experiências e a formação da memória respectiva; e outro entre esta e a

correspondente evocação35, sendo que em cada tradução ocorrem perdas. Não é mais

possível pensar que uma pessoa pode recordar um fato tal qual como ocorreu, como ainda o nosso sistema jurídico insiste em acreditar, pois o que lembramos nunca será idêntico à realidade.

Outro aspecto importante são as fontes das falhas ocorridas na memória de um indivíduo. Loftus considera essas deficiências na memória sobre três perspectivas diferentes: uma memória seletiva e, portanto, falha para relembrar fatos; falsas memórias por eventos não presenciados; e distorção ou alteração da memória por fatos realmente ocorridos. Neste sentido, a autora alega existirem duas causas principais para essas deficiências, quais sejam, processamento esquemático e inferencial da memória,

assim como fontes específicas de informações errôneas.36

No primeiro caso afirma existirem espécies de esquemas em nossa memória, identificados como organizadas estruturas de conhecimento que incluem crenças,

31

IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 9.

32

IZQUIERDO, Iván. A arte de esquecer. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2004. p. 22.

33

IZQUIERDO, Iván. A arte de esquecer. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2004. p. 21.

34

A memória de longa duração é uma classificação da memória de acordo com o tempo, assim como a de curta duração e a memória remota, sendo que todas serão amplamente abordadas no tópico seguinte.

35

IZQUIERDO, Iván. Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 17.

36

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expectativas, características, comportamentos, bem como função de objetos, pessoas, eventos e demais entidades reconhecíveis. Desta forma, cada experiência vivenciada vai sendo categorizada neste esquema como forma de facilitar a compreensão do evento, fazer correlações com o que já foi armazenado e trazer ou não algum significado ao fato. Em que pese este sistema seja necessário e muito útil para o ser humano, muitas vezes ele pode provocar erros de percepção e julgamento, pois as lembranças relacionam-se diretamente com quais fragmentos foram ativados quando o fato original

aconteceu.37 É o caso, por exemplo, de um evento qualquer ser ligado à outra

experiência sentimental vivida acarretando distorções no que realmente ocorreu, pois inserida toda uma carga emocional não existente.

Na situação de fontes específicas de informações errôneas, essas podem penetrar na memória por uma infinidade de estímulos externos e internos, a fim de simplesmente adicionar informações falsas, substituir a memória verídica, ou ainda distorcer a

memória e acionar o processo esquemático já relatado acima.38 De qualquer forma,

podem ser provocadas pela mídia, sugestão de terceiros inclusive de outras testemunhas que também presenciaram o fato, ou ainda do próprio entrevistador quando da formulação das perguntas. Outros aspectos que podem alterar a memória são as análises de fotografias e desenhos apresentados no auxílio de reconhecimento do autor do delito, a repetição de entrevistas, bem como a consequente reavaliação do fato ocorrido, as

quais serão devidamente analisadas na terceira parte deste artigo.39

2.1. O FUNCIONAMENTO DA MEMÓRIA EM CRIANÇAS

Inicia-se agora uma abordagem específica acerca do desenvolvimento da memória em crianças. Este estudo mostra-se de extrema importância para a análise do depoimento infantil, vez que é por meio do entendimento dos processos mnemônicos adjacentes a estes pequenos indivíduos que se tentará relatar sua capacidade de aquisição, formação, conservação e evocação dos eventos em que foi vítima de violência sexual.

Pois bem, existem diversas evidências de que crianças, inclusive em idade extremamente precoce, têm capacidade de armazenar e evocar eventos. Conforme já referido, colocar informações na memória se armazenamento e retirá-las chama-se recuperação ou evocação, chama-sendo que este último subdivide-chama-se em reconhecimento e recordação. O reconhecimento é algo que parece familiar, ou seja, um elemento

37

LOFTUS, Elizabeth. Internal and external sources of misinformation in adult witness memory. In: TOGLIA, Michael P. (Org.). The handbook of eyewitness psychology. Mahwah: Lawrence Erlbaum, 2007. v. 1, p. 195-237.

38

Como exemplo de adição de uma falsa memória a autora sugeriu a inserção da memória de um carro, sendo a subsituição e a distorção, respectivamente, substituir a memória do carro pela de um caminhão e a última trocar a cor e a localização do carro.

39

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rememorativo de algo já experimentado anteriormente.40 É o caso, por exemplo, tão presenciado nas delegacias brasileiras, de reconhecimento de supostos autores de delitos.

Já a recordação é o nome dado ao “processo de recuperar a representação

armazenada na memória”.41

No reconhecimento o objeto já está acessível na memória para servir como sua própria pista para a recuperação, entretanto na recordação os indivíduos precisam fazer um esforço maior para conseguirem o resultado esperado. Ambos muitas vezes estão interligados, no caso referido sobre o autor do delito, uma vez que este foi identificado por meio de uma comparação realizada com demais imagens que temos armazenadas, a pessoa começará a relembrar como ocorreu o crime, quais os detalhes, qual o local e demais informações que compõe o evento, isto é chamado de recordação.

Um experimento de Fagan comprovou que bebês de cinco meses expostos a uma fotografia de um rosto por apenas dois minutos deram evidências de reconhecê-lo até

duas semanas mais tarde.42 Já quanto à capacidade dos mesmos em recordar eventos

ainda é inconclusiva, entretanto as pesquisas têm apontado que é sim possível que um infante com meses de idade possa efetuar tal proeza.

Essas considerações serviram para mostrar que crianças e bebês possuem sim um sistema de memória capaz de evocar eventos cabendo, entretanto, avaliar a precisão de tais fatos. Para tanto, passa-se agora à análise das vulnerabilidades da memória infantil.

Um dos pontos centrais do desenvolvimento cognitivo consiste na representação, ou seja, como as crianças de diferentes idades representam o seu mundo. A análise deste aspecto é crucial para entender a capacidade de evocação das mesmas, pois ao examinar como indivíduos interpretam os eventos diários, bem como a forma como são capazes de expressá-lo, torna-se possível avaliar a confiabilidade de seu depoimento.

Isto inclui as habilidades dos infantes em utilizar símbolos como a linguagem, classificar objetos, compreender eventos, distinguir aparência de realidade, bem como realidade de fantasia, entre outros elementos que compõe, sendo estes últimos os mais

relevantes para este estudo.43

No que concerne à distinção entre aparência e realidade, adultos conseguem discernir com facilidade que determinados objetos ou pessoas não são quem aparentam ser, ou ainda, não necessariamente correspondem à realidade. Contudo, no caso de crianças esta diferença nem sempre é tão clara. Um estudo realizado por Rheta De

40

OLIVEIRA FILHO, Antonio de. O desenvolvimento da memória em crianças. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade) – Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002. p. 29.

41

OLIVEIRA FILHO, Antonio de. O desenvolvimento da memória em crianças. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade) – Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002. p. 29.

42

FAGAN, J.F. The intelligent infant: Theoretical implications. Intelligence. 1984. apud OLIVEIRA FILHO, Antonio de. O desenvolvimento da memória em crianças. Dissertação (Mestrado em

Psicologia Social e da Personalidade) – Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2002. p. 29.

43

(11)

Vries44 que consistia em entrevistar crianças de três a seis anos comprovou isto. Na situação os infantes eram apresentados e familiarizados a um gato adestrado chamado Maynard, sendo que após tal fato era colocado no mesmo uma máscara de cachorro somente sobre a sua cabeça, deixando o restante do corpo exposto. Embora as crianças não tenham efetivamente visto a máscara sendo posta no animal, a maioria dos indivíduos com três anos realmente acreditou que o objeto inserido no gato mudou a sua identidade, ao contrário das crianças com seis anos, que em sua maior parte entenderam o ocorrido.

Resultado semelhante ocorre na distinção entre eventos reais e imaginados. Crianças em idade precoce costumam ter dificuldade em diferenciar a realidade da fantasia, pois são mais propensas a crer em figuras irreais como monstros, super heróis,

papai noel e fadas quando comparadas às crianças mais velhas.45 Ademais, tendem a

interpretar eventos que não entendem como mágica, corroborando o que já foi afirmado.

Um estudo muito interessante realizado por Paul Harris e outros46 comprovou tal

teoria, ao colocar crianças entre quatro e seis anos em frente a uma caixa e pedir que imaginassem um mostro ou um coelho dentro da mesma. Após tal fato o entrevistador dizia para a criança que precisava sair por alguns minutos deixando-a sozinha com a caixa e o resultado foi que quatro de doze crianças que imaginaram o monstro ficaram assustadas não deixando o entrevistador ir embora. No início do experimento elas até sabiam a diferença entre realidade e fantasia, entretanto ao final do mesmo já não podiam descartar a hipótese de haver um mostro na caixa, demonstrando claramente que a distinção entre real e imaginação pode ser muito tênue em algumas crianças.

Também precisa ser considerado o fato de que crianças em idade pré-escolar normalmente prestam atenção em diferentes aspectos de um evento quando comparadas aos adultos, não tendo o necessário discernimento para saber quais detalhes são

importantes e quais são triviais.47 Neste sentido é a orientação de Altavilla:48

Vê, por exemplo, uma pessoa que, depois, se suspeita ser o autor de um delito. Um adulto fixará o rosto, olhará para o conjunto da pessoa. Uma criança pode, pelo contrário, olhar atentamente para uma flor que ela tinha na lapela, para o alfinete na gravata, tendo uma impressão sintética e superficial dos traços fisionômicos, de forma que, mais tarde, é incapaz de fornecer, numa identificação, um elemento aceitável de reconhecimento.

44

DE VRIES, R. Constancy of generic identity in the years three to six. Monographs of the society for research in child development, 34 (serial nº 127). apud BJORKLUND, David F. Children’s thinking: cognitive development and individual differences. 4. ed. Belmont: Thomson Wadsworth, 2005. p. 244 – 245.

45

BJORKLUND, David F. Children’s thinking: cognitive development and individual differences. 4. ed. Belmont: Thomson Wadsworth, 2005. p. 246–248.

46

HARRIS, P.L. et al. Monsters, ghosts and witches: testing the limits of fantasy-reality distinction in young children. British Journal of Developmental Psychology, v. 9, p. 105-123, 1991.

47

BJORKLUND, David F. Children’s thinking: cognitive development and individual differences. 4. ed. Belmont: Thomson Wadsworth, 2005. p. 278.

48

(12)

Desta forma, já analisada a capacidade de crianças em reconhecer e recordar, bem como as variáveis concernentes à memória, passa-se ao estudo da memória relacionada ao depoimento infantil.

Entre elas as mais importantes relacionam-se com a confiabilidade do relato infantil, o quanto uma criança pode recordar e por quanto tempo, ou ainda, o quão sugestionáveis podem ser esses indivíduos e a real possibilidade de acreditarem no que lhes foi insinuado. Nesta seção o foco será nas duas primeiras, enquanto que as últimas serão abordadas na terceira parte do artigo.

Iniciando o estudo, Marc Lindberg sugeriu três categorias para a análise da credibilidade do depoimento infantil: “o processamento da memória, o foco no estudo e

os fatores participantes”. 49

Como processamento da memória (memory processes), o autor relata as diferentes operações da mesma quando da codificação (encoding), armazenamento

(storage) e recuperação (retrieval).50 A codificação refere-se à representação do evento

pela criança e como esta responde à informação recebida antes do fato. Uma forma de ilustrá-la seria o quanto uma criança é influenciada quando lhe é dito que alguém que está prestes a conhecer é uma pessoa má, por exemplo. O armazenamento, por sua vez, está relacionado com informações fornecidas após o evento, podendo ocorrer por meio de questionamentos sugestivos como “ele tocou as suas partes íntimas, não é mesmo?”. Já a recuperação liga-se às manipulações no momento do teste da memória, envolvendo a maneira como são realizados os depoimentos (se com relato livre, perguntas fechadas, acareação e reconhecimento).

A segunda categoria é o foco do estudo (focus of the study), ou seja, o tipo de

informação que está sendo acessada.51 Neste caso verifica-se qual será o objetivo do

depoimento e se somente os eventos principais são relevantes (por exemplo: qual o autor do crime?) ou se os periféricos também importam (qual a cor da roupa do autor do crime? Qual a sua altura?). Lembrando que esta categoria relaciona-se diretamente com a teoria do traço difuso já explanada.

Por fim, a última categoria relaciona-se com os fatores participantes (participant factors). Aqui é avaliado o nível de desenvolvimento da criança associado às suas habilidades emocionais, sociais e cognitivas. Outros aspectos também importantes são o nível de estresse tanto no fato em si quanto na evocação; as experiências passadas envolvendo um caso semelhante; e o seu conhecimento geral acerca dos fatos

relatados.52 Essencial ressaltar que nenhum estudo conseguirá abranger a totalidade dos

fatores envolvidos neste processo, pois é muito difícil conhecer a vida pregressa do infante, entretanto essas categorias tornam-se importantes no momento em que servem

49

LINDBERG, M.A. An interactive approach to accessing the suggestibility and testimony of eyewitnesses. 1991. apud BJORKLUND, 2005, p. 278.

50

BJORKLUND, David F. Children’s thinking: cognitive development and individual differences. 4. ed. Belmont: Thomson Wadsworth, 2005. p. 279.

51

BJORKLUND, David F. Children’s thinking: cognitive development and individual differences. 4. ed. Belmont: Thomson Wadsworth, 2005. p. 283-284.

52

(13)

como um norte para a avaliação e compreensão do que pode afetar o depoimento infantil.

Além dos elementos mencionados na classificação anterior, diversos outros fatores podem influenciar a memória da criança quando do depoimento. Crianças com QI mais elevado têm demonstrado níveis maiores de precisão nos relatos, assim como as que são incentivadas a descrever o ocorrido com exatidão. Um fator curioso relaciona-se ao estresse no momento do fato, vez que esse em níveis moderados pode auxiliar posteriormente para uma melhor evocação, pois classifica o mesmo como algo importante. Entretanto, níveis muito baixos ou muito altos de estresse não costumam ter

resultado semelhante.53

Outro aspecto muito comumente questionado refere-se ao tempo de duração de uma memória. Não se refere aqui à quantidade de eventos lembrados, mas sim à precisão do que foi evocado relacionado ao que realmente ocorreu. Neste caso, os estudos têm demonstrado que a memória das crianças de eventos ocorridos em até no máximo um mês após o fato assemelha-se à dos adultos. De outra banda, a precisão dos

relatos é diversa em períodos mais longos, como de cinco meses, por exemplo.54

Desta forma, o relato de crianças torna-se menos confiável com o passar do tempo quando comparadas aos adultos, sendo esta informação de extrema relevância para o estudo da psicologia judiciária, vez que é corriqueiro no país infantes prestarem depoimentos anos após o fato.

Assim, expostas as peculiaridades da memória infantil, bem como suas vulnerabilidades, passa-se à análise de sua falsificação, tão relevante para o estudo da confiabilidade do depoimento da criança.

2.2. O FENÔMENO DA FALSIFICAÇÃO DE MEMÓRIAS

Com o passar dos anos os pesquisadores tem se interessado cada vez mais pelo estudo da falsificação da memória, ou seja, o fato de indivíduos lembrarem eventos que na realidade não ocorreram. Estes são fenômenos normais e recorrentes nas mais diversas faixas etárias e acabam por colidir com o atual sistema de valoração da prova penal, cabendo a esta seção uma abordagem prática e teórica destas colocações.

O fenômeno das falsas memórias tem sido explicado por diversos modelos teóricos, estando entre os principais o Construtivista, o do Monitoramento da Fonte e a

teoria do Traço Difuso, sendo o último o mais aceito pela doutrina atual.55

O modelo construtivista parte da idéia de que a memória é construída e os seus erros ocorrem porque “a informação inicial é integrada a informações prévias do

53

BJORKLUND, David F. Children’s thinking: cognitive development and individual differences. 4. ed. Belmont: Thomson Wadsworth, 2005. p. 283-284.

54

BJORKLUND, David F. Children’s thinking: cognitive development and individual differences. 4. ed. Belmont: Thomson Wadsworth, 2005. p. 285-286.

55

(14)

sujeito”,56

o que acaba por distorcer ou sobrepor a memória original. A crítica feita a este modelo é que tanto as memórias originais, quanto as advindas dos processos de

integração podem manter-se intactas e separadas,57 conforme será demonstrado a seguir.

A teoria do Monitoramento da Fonte caracteriza as falsas memórias como

“confusão ou erro de julgamento”,58

decorrendo da dificuldade do indivíduo em diferenciar se a fonte da informação é advinda de experiências anteriores ou do próprio evento vivenciado.

A teoria do traço difuso, por sua vez, será objeto de maior análise neste tópico, contudo, antes de adentrar no assunto, necessária é a definição de alguns conceitos do fenômeno das falsas memórias.

Conforme já explanado, as falsas memórias ocorrem quando o indivíduo lembra fatos que não ocorreram na realidade, podendo originar-se tanto de forma espontânea quanto sugerida. Na espontânea a distorção da memória se dá de maneira endógena, na qual o indivíduo lembra tão somente do significado do evento. Neste caso, somente a memória de essência é recuperada, enquanto que a literal (correspondente ao detalhes do fato) não está mais acessível devido, por exemplo, à interferência pelo processamento de novas informações.

As falsas memórias sugeridas surgem a partir da implantação externa ao sujeito, por meio de sugestão intencional ou acidental de informação falsa. Pode ser identificada como uma aceitação e subseqüente incorporação de informação falsa posterior ao evento ocorrido, sem que o indivíduo tenha consciência deste processo. A sugestão é uma das principais variáveis do depoimento infantil, motivo pelo qual será analisada no próximo capítulo em tópico específico.

Feitas as considerações introdutórias acerca do assunto, passa-se ao estudo da teoria do Traço Difuso, ou Fuzzy Trace Theory criada por Brainerd e Reyna. Pois bem, este modelo concebe a memória como dois sistemas independentes: a memória de essência e

a literal, que são codificadas em paralelo e armazenadas separadamente.59

Assim, enquanto que a primeira retém somente o significado do fato ocorrido, a última contém a lembrança dos detalhes específicos do evento, ou seja, as minúcias. Um exemplo de memória literal seria lembrar da exata posição e local onde se encontra um objeto guardado em um armário da casa. Já a memória de essência seria recordar ter

guardado o objeto em algum armário, sem poder precisar a localização exata.60

Importante mencionar também que ambos os traços têm durabilidade diversa, pois enquanto que a literal é mais suscetível aos efeitos da interferência por

56

STEIN, Lilian Milnitsky; NEUFELD, Carmem Beatriz. False memories: why do we remember things that did not happen? Arquivos de Ciências da Saúde Unipar, Umuarama, v. 5, n. 2, maio/ago. 2001.

57

STEIN, Lilian Milnitsky; NEUFELD, Carmem Beatriz. False memories: why do we remember things that did not happen? Arquivos de Ciências da Saúde Unipar, Umuarama, v. 5, n. 2, maio/ago. 2001.

58

STEIN, Lilian Milnitsky; NEUFELD, Carmem Beatriz. False memories: why do we remember things that did not happen? Arquivos de Ciências da Saúde Unipar, Umuarama, v. 5, n. 2, maio/ago. 2001.

59

BREINERD, C.J.; REYNA, V.F. The science of false memory. New York: Oxford University, 2005. p. 83-84.

60

(15)

informações, bem como do esquecimento, a de essência é mais estável e duradoura.61 Tal evento decorre das próprias características dos sistemas, sendo lógico que a memória responsável pela recordação dos fatos centrais seja mais robusta do que a encarregada dos detalhes e miudezas.

Estas informações são de extrema relevância para os depoimentos judiciais, tendo em vista que a vítima ou testemunha com o passar do tempo pode até lembrar-se do crime em si e suas características centrais, porém teria mais dificuldade em relatar a execução, as características físicas do autor, suas roupas, etc.

Pois bem, conforme já mencionado, esta teoria propõe que os dois sistemas são dissociados, com armazenamento e recuperação realizados separadamente. Assim, as falsas memórias espontâneas ocorreriam devido a um “erro de lembrar algo consistente

com a essência do que foi vivido, mas que na verdade não ocorreu”.62

Neste caso, como o significado da experiência é semelhante à lembrança falsa, pois desprovida de detalhes, a referida memória seria facilmente confundida com a verdade.

No que tange às falsas memórias sugeridas, a teoria refere que geram efeitos diversos tanto nas memórias verdadeiras quanto nas falsas. Neste sentido é a orientação

de Lilian Milnitsky Stein:63

A sugestão (p. ex., placa de “dê a preferência”) interfere e enfraquece a MV (placa de “parada obrigatória”), podendo também dificultar a sua recuperação. Assim a recuperação de traços literais das falsas informações sugeridas pode produzir dois efeitos: tanto a redução das MV quanto o aumento das FM sugeridas. Por outro lado, somente a lembrança de traços de essência do que foi sugerido (p. ex., “placa de trânsito”) levaria somente ao segundo efeito, ou seja, um aumento das FM, já que esses traços de essência são consistentes tanto com o significado geral da experiência vivida quanto com a essência da falsa informação.

Por fim, um último aspecto da teoria do traço difuso refere-se à habilidade dos indivíduos em recuperar os traços de memória e aqui se enquadram principalmente as crianças. Ocorre que ambos os sistemas são aperfeiçoados ao longo do desenvolvimento do indivíduo, sendo que a memória de crianças em idade pré-escolar é codificada e processada, prioritariamente, a partir do sistema literal, tornando a evocação neste

período um processo bem mais frágil e suscetível aos efeitos da interferência externa.64

Desta forma, as crianças pequenas estão mais sujeitas a influências externas, podendo aceitar mais falsa informação. Como conclusão, possuem mais chances de prejudicar o seu relato quando comparadas às de idade mais avançada, bem como

61

STEIN, Lilian Milnitsky; NEUFELD, Carmem Beatriz. False memories: why do we remember things that did not happen? Arquivos de Ciências da Saúde Unipar, Umuarama, v. 5, n. 2, maio/ago. 2001. p. 35.

62

STEIN, Lilian Milnitsky et al. Falsas memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 34.

63

STEIN, Lilian Milnitsky et al. Falsas memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 34.

64

BJORKLUND, D.F.; BROWN, R.D.; BJORKLUND, B.R. Children’s eyewitness memory: changing

reports and changing representations. 2002. apud FEIX, Leandro da Fonte. Efeito da emoção na memória de crianças. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade) – Faculdade de

(16)

adolescentes e adultos.65 Porém, isto não quer dizer que infantes em idade precoce não possam recordar de eventos corretamente, ou que irão assentir a todas sugestões falsas que receberem. Ao contrário, “crianças tendem a não aceitar falsa informação quando

esta é muito diferente do contexto vivenciado ou testemunhado”.66

De se destacar que existem críticas à teoria do Traço Difuso, sendo a principal delas o fato de indivíduos recordarem determinados detalhes específicos de forma mais duradoura quando comparados à essencia do evento. Entretanto, costuma-se classificar estes fatos como exceções e uma das explicações seria a “Heurística da Distintividade”, que é a tendência em recordar mais facilmente informações extraordinárias e

inesperadas, rejeitando as falsas memórias.67

Conforme demonstrado, as falsas memórias são um fenômeno recorrente em todos os indivíduos, especialmente crianças. No Brasil este assunto ainda é pouco conhecido entre os operadores do direito, em que pese a relevância da matéria para a apuração da prova penal.

3 VARIÁVEIS DE INFLUÊNCIA NO DEPOIMENTO DE CRIANÇAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL

3.1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIOLÊNCIA SEXUAL

A violência, em qualquer de suas espécies, faz parte do cotidiano e está presente em todas as classes sociais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) a conceitua como

“a imposição de um grau significativo de dor e sofrimento evitáveis”,68

pondendo

“cessar, impedir, deter ou retardar o desenvolvimento pleno dos seres humanos”,69

especialmente no caso de ser praticada contra crianças e adolescentes, que estão em uma fase peculiar de desenvolvimento. Ademais, pode ocorrer de diversas formas, sendo aqui preconizada a violência de cunho sexual contra a criança.

Atualmente, nosso ordenamento jurídico possui diversas previsões acerca do abuso sexual, a ressaltar as recentes alterações, previstas no artigo 213 e seguintes do Código Penal, que unificaram o tipo penal do estupro com o atentado violento ao pudor, o qual deixou de figurar como infração autônoma. Destaca-se também, o capítulo II do mesmo diploma legal, que prevê, em seu artigo 217-A, a figura do estupro de vulnerável, encaixando-se aqui indivíduos menores de 14 anos vítimas de conjunção carnal ou outro ato lidibinoso.

65

CECI, S.J.; BRUCK, M. Jeopardy in the courtroom: a scientific analysis of children’s testimony. Washington: APA, 1995.

66

FEIX, Leandro da Fonte. Efeito da emoção na memória de crianças. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade) – Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008. p. 23.

67

STEIN, Lilian Milnitsky et al. Falsas memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 37.

68

GUIA contra a violência.Disponível em: <http://www.serasaexperian.com.br>. Acesso em: 6 set. 2010.

69

(17)

Frisa-se que a violência sexual não está relacionada apenas à conjunção ou a prática dos atos em si, incluindo também qualquer ação de cunho sexual que venha a

afetar a criança de alguma forma,70 como a presença do menor em ambiente onde estão

sendo realizadas atividades lidibinosas, por exemplo (art. 218-A, do Código Penal). Ademais, implica também na presença de um agressor que esteja em condições superiores de força, maturidade, posição social/econômica, autoridade, entre outros, que acaba por induzir o infante às referidas situações.

Diversas são as causas apontadas para a prática dos abusos sexuais, encontrando-se problemas de saúde mental, tais como dependência ou abuso de álcool, narcóticos, problemas genéticos, histórico familiar passado ou presente de negligências

ou qualquer outra violência (incluindo a sexual).71 Contudo, são as consequências das

desigualdades sociais e da pobreza as principais responsáveis pelo aumento dos índices,

especialmente os casos de abusos sexuais intrafamiliares.72

Importante mencionar que em famílias de classe média e alta, apesar de não vivenciarem a questão social de forma intensa, os abusos, bem como outras formas de violência sexual, também ocorrem. Entretanto, o que acaba impedindo este reconhecimento é o fato de não buscarem e/ou não serem atendidas pelo serviço público, diferentemente das famílias pobres, que por serem acompanhadas por políticas

públicas (mesmo que em sua maioria precárias) geram uma maior visibilidade.73

Antes de adentrar no mérito das questões já referidas, importante mencionar que não se está sugerindo acabar com o depoimento infantil, ou alegar a sua desnecessidade, muito pelo contrário, a palavra do infante, especialmente nos crimes sexuais é de extrema relevância e quando possível deve sim ser valorada. Este trabalho visa apenas esclarecer os pontos controvertidos deste meio probatório, como forma de reflexão e maior compreensão desta ferramenta tão essencial na apuração dos delitos de forma geral.

3.2. SUGESTIONABILIDADE

Conforme relatado no capítulo anterior, as falsas memórias podem ser geradas espontaneamente - decorrentes do funcionamento endógeno normal da memória - ou por meio de sugestão, objeto de estudo desta seção.

De acordo com Welter e Feix, sugestionabilidade consiste na “tendência de um indivíduo em incorporar informações distorcidas, provindas de fontes externas, de

70

MEES, Lúcia Alves. Abuso sexual: trauma infantil e fantasias femininas. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001. p. 40.

71

PEDERSEN, Jaina Raqueli. Abuso sexual intrafamiliar: do silêncio ao seu enfrentamento. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Faculdade de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010. p. 50.

72

Mees relatou uma pesquisa realizada por Cohen (em 1990) durante 06 meses em uma delegacia brasileira. Dentre as 1.104 ocorrências, 238 foram relativas a agressão sexual, sendo que 125 delas foram vítimas de incesto. (MEES, Lúcia Alves. Abuso sexual: trauma infantil e fantasias femininas. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001. p. 40).

73

(18)

forma intencional ou acidental, às suas recordações pessoais”.74 Esta variável é considerada recorrente entre crianças, especialmente nos tribunais, que acabam expondo o infante a uma situação de excessiva inferioridade em relação ao entrevistador.

Este fenômeno é influenciado basicamente por duas categorias: os fatores relacionados às características das próprias crianças (cognitivas), bem como ao contexto da entrevista.

No que concerne às características cognitivas, destacam-se os fatores desenvolvimentais, ou seja, “as características comuns encontradas em crianças de

mesma idade”.75

É sabido que infantes em idade pré-escolar são mais suscetíveis aos efeitos da interferência externa, apresentando maiores possibilidades de distorcer seu relato, quando comparadas a crianças mais velhas, adolescentes e adultos. Entretanto, isso não quer dizer que elas não possam recordar eventos de maneira correta, ou que irão aceitar todas as sugestões que receberem, pelo contrário, crianças tendem a não

aceitar falsa informação quando esta difere muito do contexto vivenciado.76

Nesta senda, associa-se a especial vulnerabilidade das crianças pequenas aos efeitos da sugestionabilidade a três distintos aspectos:

1. crianças pequenas têm dificuldades em tarefas de recordação livre quando são solicitadas a lembrarem um evento, sem qualquer estímulo ou pista; 2. crianças pequenas são deferentes, tendendo a respeitar e se submeter às vontades dos adultos;

3. as crianças possuem dificuldades em identificar a fonte da informação recordada, se foi algo que elas viram ou que ouviram alguém dizer, por exemplo.

No que se refere ao primeiro fator, relevante mencionar que crianças, especialmente entre 02 e 05 anos, não são acostumadas a fornecer relatos completos sobre eventos vivenciados. Assim, quando são solicitadas a realizá-los, costumam centrar-se nos elementos principais, excutando-os de forma breve e resumida. Ademais, conforme já mencionado anteriormente, sabe-se que o processo de evocação livre de uma memória é complexo para crianças, principalmente as pré-escolares.

Quanto ao segundo aspecto, as crianças desde pequenas supõem que adultos têm mais conhecimento que elas, motivo pelo qual podem tornar-se altamente sugestionáveis quando alguma questão lhe é imposta. Neste caso, deve-se ter cautela ao formular uma questão a um infante, especialmente nas fases pré e pós processual, pois a visão de um adulto sobre o fato pode facilmente ser transmitida a este.

Ainda, a sugestão também pode acontecer quando o entrevistador aumenta o status de desigualdade em relação à criança. Na perspectiva forense isso ocorreria quando essa permanece em uma sala de audiências, geralmente sentada em uma cadeira posicionada de forma isolada, na presença do juiz, representante do Ministério Público,

74

WELTER, Carmen Lisbôa W.; FEIX, Leandro da Fonte. Falsas memórias, sugestionabilidade e testemunho infantil. In: STEIN, Lilian Milnitsky et al. Falsas memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 167.

75

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advogado de defesa, réu e demais presentes no ato solene, aumentando a sensação de inferioridade, bem como o estresse do indivíduo.

O terceiro ponto, por sua vez, já foi amplamente discutido no segundo capítulo deste trabalho, sendo considerado, inclusive, uma das causas que explica a gênese das falsas memórias.

Essencial referir que diversos outros fatores influenciam na tendência da criança em aceitar sugestões externas. As pesquisas atuais têm demonstrado que crianças com maior habilidade linguística, autoconfiança e que possuem boa relação afetiva com os pais tendem a ser menos sugestionáveis quando comparadas a indivíduos de mesma idade com graus inferiores.

Outro fator interessante refere-se ao temperamento do infante. Em que pese ainda ser objeto de poucos estudos na área da psicologia, alguns pesquisadores têm levantado a hipótese de que crianças mais tímidas e com dificuldades de adaptação tendem a ser mais vulneráveis no sentido aqui empregado.

Desta forma, abordadas as questões cognitivas da criança, passa-se à análise da sugestionabilidade decorrente do contexto do depoimento, tão essencial ao estudo da psicologia do testemunho.

Pois bem, são durante os depoimentos que o fenômeno da sugestionabilidade reflete-se de maneira mais frequente, sendo que a forma como a oitiva é realizada torna-se decisiva na precisão e confiabilidade do depoimento.

O primeiro elemento a ser analisado refere-se ao viés do entrevistador, ou seja, aqueles depoimentos em que o inquiridor já tem prévias convicções sobre os fatos e acaba por moldar o testemunho para produzir declarações do infante baseadas nestas convicções. Pode decorrer de “comportamentos sutis como um sorriso, um movimentar

de cabeça, o tom da voz ou a forma de formular uma pergunta”. 77

Neste caso, Ceci, Leichtman e White realizaram estudos comprovando que quando as hipóteses de quem realiza as perguntas está correta, a recordação das crianças pode ser altamente precisa. Contudo, quando essas não condizem com a realidade do evento, os infantes costumam produzir uma quantia significativa de informações

inexatas, principalmente as de idade precoce.78

Importante mencionar que este fenômeno pode ocorrer com diversas pessoas como os pais, trabalhadores de serviços de proteção à criança, operadores do direito (promotores, advogados, magistrados), terapeutas, entre outros que conduzem as conversações com os infantes convictos que o abuso ocorreu.

Complementando o viés do entrevistador, entra a variável de repetição de entrevistas. A doutrina já é pacífica ao afirmar que a repetição de forma geral auxilia na prevenção do esquecimento. Assim, de acordo com este entendimento, quanto mais vezes a vítima declarar o ocorrido, maiores serão as suas recordações acerca do crime. Contudo, as pesquisas têm demonstrado que a repetição dos depoimentos pode

77

PISA Osnilda; STEIN, Lílian Milnistky. Entrevista forense de crianças: técnicas de inquirição e qualidade do testemunho. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 33, n. 104, 2006. p. 221.

78

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aumentar o risco de reportar erros. Isso ocorre porque com o passar do tempo o traço da memória original é enfraquecido, tornando-a mais suscetível a interferências, sendo que se neste meio tempo ocorrerem sugestões, essas poderão ser facilmente aceitas.

Ademais, com a repetição das entrevistas, as informações falsas podem ser incorporadas nos relatos subsequentes das crianças, aumentando cada vez mais o número de inexatidões. Este é o motivo pelo qual especialistas têm sugerido que a primeira declaração é mais condizente com a realidade, pois menor a possibilidade de sugestões.

Ainda, vale relembrar que é corriqueiro no Brasil submeter as crianças a relatar diversas vezes os abusos (pais, conselheiros tutelares, delegados, juízes, etc.), demonstrando claramente o despreparo de nosso sistema. Uma exceção a isso é o projeto piloto do “depoimento sem dano”, que será analisado em momento oportuno.

Outro aspecto que pode comprometer o relato de uma criança é a repetição de perguntas dentro da entrevista/depoimento. Muitos adultos, ao indagarem os infantes, tendem a repetir a pergunta quando a primeira resposta não forneceu informações suficientes ou não foi satisfatória de alguma maneira. No aspecto forense, inclusive, isto é muito comum, pois costuma servir para verificar a consistência e a veracidade dos relatos. Entretanto, diversas pesquisas já têm demonstrado que quando a mesma pergunta é realizada mais de uma vez dentro de uma conversa (ou depoimento) a criança tende a mudar sua resposta.

Em alguns casos as crianças compreendem perfeitamente que a repetição de perguntas é uma solicitação para informações adicionais e seu relato não é afetado. Em outras situações, contudo, os infantes podem mudar sua resposta simplesmente para agradar o adulto que as interroga, compreendendo a repetição como um sinal de que sua opinião não estava correta. Ademais, é preciso muita cautela para o inquiridor não repassar sua visão ao menor, incorrendo aqui no viés do entrevistador.

Passa-se agora ao elemento da indução de estereótipos, consistente em uma “técnica de entrevista utilizada para ajudar crianças assustadas ou envergonhadas a

relatarem os detalhes do abuso ou de um evento testemunhado”.79

Esta ocorre quando se transmite previamente à criança uma ideia ou caracterização de um indivíduo, a fim de que esta se sinta encorajada a declarar o ocorrido. Entretanto, quando a técnica é utilizada por profissionais despreparados ou parciais, as consequências podem ser desastrosas.

Na mesma senda inclue-se o elemento referente ao tom sentimental da entrevista. Isso corresponde à criação de um ambiente anterior ao depoimento em que a criança sinta-se confortável, sem ameaças e encorajada a falar sobre o acontecido. Normalmente o indivíduo que conduzirá a oitiva passa um tempo interagindo com o infante, seja perguntando sobre o que faz na escola, seja inquirindo sobre brincadeiras que gosta, sempre prestando atenção e recebendo com seriedade as respostas. Essa técnica costuma auxiliar a criança e quando feita da maneira correta pode realmente aumentar a exatidão dos relatos.

79

(21)

Entretanto, especialistas alertam para algumas consequências negativas decorrente da utilização desta recomendação. Estas ocorrem quando os inquiridores, presumindo estar estabelecendo um ambiente encorajador, acabam configurando um tom sentimental à entrevista pelo uso (intencional ou não) de ameaças, subornos e recompensas.

Um estudo conduzido por Goodman e colaboradores80 comprovou tal teoria. Na

situação crianças brincavam com um assistente de pesquisa durante cinco minutos e decorridos quatro anos da experiência foram entrevistadas sobre o evento de maneira sugestiva, inclusive sobre abuso sexual. Naquele momento também foi criada uma “atmosfera de acusação” alertando os infantes de que seriam questionados sobre um acontecimento relevante, utilizando-se de expressões como: “você está com medo de falar?” ou “você se sentirá melhor se você falar”. Em que pese a maioria das crianças sequer lembrar do respectivo evento, elas não foram precisas nas respostas acerca do abuso sexual. A pesquisa ainda revelou que “cinco das quinze crianças concordaram com a pergunta falsa e sugestiva do entrevistador que elas tinham sido abraçadas ou beijadas pelo assistente de pesquisa, duas das quinze concordaram que foram fotografadas no banheiro e uma das crianças declarou que lhe foi dado um banho”.

Esses dados são alarmantes no que concerne à vulnerabilidade do depoimento infantil, vez que no total do experimento mais da metade das crianças aceitaram as sugestões relatando situações que sequer vivenciaram.

Ainda, necessário mencionar uma técnica por vezes utilizada chamada de “pressão de pares”. Esta consiste em dizer à criança o conteúdo relatado por outros infantes, a fim de obter informações sobre o fato ocorrido. Contudo, esta ferramenta não tem sido recomendada, em razão de que crianças costumam mudar suas repostas apenas para igualar-se ao grupo.

Por fim, deve-se considerar também a influência do status do entrevistador na declaração fornecida. Pesquisas têm demonstrado que crianças são sensíveis ao poder conferido socialmente de quem lhes questiona, podendo inclusive alterar seu relato para concordar com o adulto. Desta forma, as chances das respostas dos infantes serem inexatas quando prestam depoimento a um policial, delegado ou juiz, por exemplo, são bem maiores que quando o mesmo ato é realizado por um indivíduo neutro.

Assim, essas são as principais formas que a sugestionabilidade se apresenta no depoimento infantil, passando-se agora ao estudo de meios que possam minimizar as falhas deste ato.

3.3 TÉCNICAS DE INQUIRIÇÃO COMO FORMA DE REDUÇÃO DE DANOS

Este tópico busca esclarecer de forma prática, quais os melhores meios de proceder a oitiva da vítima. Isto é de extrema relevância tanto para reduzir eventuais

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