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A CRIAÇÃO DE ADÃO COMO IMAGEM SOBREVIVENTE:

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CHARLES WILLIANS SILVEIRA

A CRIAÇÃO DE ADÃO COMO IMAGEM SOBREVIVENTE:

UMA PERSPECTIVA NIETZSCHIANA

São Paulo

2017

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A CRIAÇÃO DE ADÃO COMO IMAGEM SOBREVIVENTE:

UMA PERSPECTIVA NIETZSCHIANA

Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em Educação Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Educação, Arte e História da Cultura.

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno

São Paulo

2017

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S587c Silveira, Charles Willians.

A criação de Adão como imagem sobrevivente: uma perspectiva Nietzschiana / Charles Willians Silveira.

138 f.: il. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.

Orientadora: Marcelo Martins Bueno.

Bibliografia: f. 136-138.

1. Criação. 2. Imagem. 3. Niilismo. I. Bueno, Marcelo Martins.

I. Título.

CDD 261.57

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À minha amada mãe.

E aos fantasmas...

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“Deus criou o homem à sua imagem e semelhança...”

(Gênesis 1:27)

“Mas então, o que se tornará o homem sem Deus e sem imortalidade? ”

(Dostoievsky, 2001, p. 578)

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RESUMO

O estudo da história da arte é um importante caminho nas ciências humanas. A pesquisa hermenêutica das obras de arte possibilita-nos uma compreensão mais amalgamada da própria existência humana. Um dos historiadores da arte que veio ter grande destaque na virada do século XIX para o século XX foi o alemão Aby Warburg. Segundo o historiador, profundamente inspirado pela perspectiva nietzschiana, a obra de arte carrega Imagens-fantasmas; imagens-sobreviventes que insistem em nos assombrar. Dentro desta nova perspectiva, o trabalho objetiva demonstrar, por meio da iconologia de Warburg e da genealogia nietzschiana, como a obra de arte sobrevive no decorrer do tempo, por meio de seus fantasmas, e o que ela pode dizer sobre o contemporâneo. A obra Criação de Adão, de Michelangelo, será a ferida aberta no tempo, para que possamos compreender como deter o avanço do niilismo, após a morte de Deus. O que poderia nos dizer, ainda, essa obra de arte sobre a criação, em um mundo marcado pela “morte de todas as mortes?”. Portanto, a arte surge como um caminho alternativo para o sagrado. A ferida causada pela morte de Deus é fonte de dor para contemporâneo, mas também possibilidade de salvação. A “imagem que cura”, poderia ser o título deste trabalho. Usando a dor como fonte de significação, na ausência de um criador a priori, precisamos assumir a postura artística. Tacitamente, o ato de criar é a real imagem e semelhança entre o divino e o “além-do-homem”; a conclusão e o antídoto contra o niilismo.

Palavras–chave: Criação; Imagem; Niilismo.

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RESUMEN

El estudio de la historia del arte es un importante camino en las ciencias humanas.

La investigación hermenéutica de las obras de arte nos posibilita una comprensión más amalgamada de la propia existencia humana. Uno de los historiadores del arte que ha venido a destacar en el cambio del siglo XIX al siglo XX fue el alemán Aby Warburg. Según el historiador, profundamente inspirado por la perspectiva nietzscheana, la obra de arte lleva imágenes fantasmas; Imágenes-sobrevivientes que insisten en asombrar. Dentro de esta nueva perspectiva, el trabajo objetivo demostrar, por medio de la iconología de Warburg y de la genealogía nietzscheana, como la obra de arte sobrevive en el transcurso del tiempo, por medio de sus fantasmas, y lo que ella puede decir sobre lo contemporáneo. La obra Creación de Adán, de Miguel Ángel, será la herida abierta en el tiempo, para que podamos comprender cómo detener el avance del nihilismo, después de la muerte de Dios.

¿Qué podría decirnos todavía esta obra de arte sobre la creación, en un mundo marcado por la muerte de todas las muertes? Por lo tanto, el arte surge como un camino alternativo a lo sagrado. La herida causada por la muerte de Dios es fuente de dolor para contemporáneo, pero también posibilidad de salvación. La "imagen que cura", podría ser el título de este trabajo. Usando el dolor como fuente de significación, en ausencia de un creador a priori, necesitamos asumir la postura artística. Tacitamente, el acto de crear es la real imagen y semejanza entre lo divino y el "más allá del hombre"; La conclusión y el antídoto contra el nihilismo.

Palabras clave: Creación; Imagen; Niilismo.

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1. IMAGEM:... A CRIAÇÃO DE ADÃO.

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Sumário

1. INTRODUÇÃO...11

2. UMA PINTURA SEM DEUS: O Luto Pelo Divino...19

2.1 O RETRATO DO CÉU ESVAZIADO: O Trono Vazio e os Vice-Reis...32

2.2 OS FANTASMAS DA OBRA: A Ferida no Tempo de Warburg...42

3. LUZES DO AFRESCO: O Renascimento como Supernova (Último Sopro Divino)...51

3.1 SOMBRAS DO AFRESCO: O Coração do Buraco Negro (Um Poema Primordial)60 3.2 ADÃO NA TERRA DEVASTADA: O Último Homem e Tipos de Niilismo...73

4 A MENSAGEM DE “MIGUEL- ÂNGELO”: Em Agonia e Êxtase...89

4.1 A

CRIAÇÃO DE ADÃO À BEIRA DO ABISMO

:

Como Fazer Nascer uma Estrela?.97 4.2. À IMAGEM E SEMELHANÇA: O Niilismo Criativo é Brincadeira de Criança...109

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A Mão de Adão... 128

REFERÊNCIAS... 136

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1. INTRODUÇÃO

“Uma História de Fantasmas para Gente Grande”

Michelangelo Buonarroti, escultor, pintor, arquiteto e poeta italiano; formou junto com Rafael e Da Vinci, a Santíssima Trindade do Renascimento. Sua obra é marcada pelo sentimento intenso causado pelas contradições entre o espírito e a matéria, a condição humana e o mundo divino, sofrimentos e prazeres, enfim, sua figura tornou-se a própria encarnação do gênio. Entre suas obras, selecionamos para a realização deste trabalho “A Criação de Adão”, um afresco pintado por Michelangelo próximo do ano de 1511. A obra está localizada na Capela Sistina, em Roma, e faz referência a uma passagem do livro de Gênesis 1.27: “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança”. Mas por que uma obra do Renascimento apareceria em uma tese de mestrado voltada para a pesquisa do contemporâneo?

No início de fevereiro de 2003, funcionários das nações unidas decidiram cobrir com um pano azul e uma fila de bandeiras a enorme tapeçaria que reproduz o famoso quadro de Picasso, a Guernica, que, dentro da proposta do artista cubista, descreve os horrores da guerra. A reprodução da obra estava exposta na ONU (Organização das Nações Unidas), onde o secretário dos Estados Unidos, Colin Powell, apresentava dados obtidos pelo EUA de que o Iraque estaria escondendo armas de destruição em massa e que uma guerra talvez fosse necessária para garantir a “segurança do mundo”.

Centenas de jornalistas compareceram para ouvir o relatório do inspetor chefe da UNMOVIC (comissão de controle, verificação e inspeção da ONU). As fontes da Organização negaram que a decisão de ocultar a reprodução da obra estivesse ligada ao fato de ser um constrangimento diplomático ter embaixadores falando sobre uma possível guerra em frente a uma obra que teve por finalidade denunciar os horrores bélicos.

A “Guernica”, de Picasso, retrata um pequeno vilarejo basco ao norte da

Espanha que foi bombardeado pela Alemanha como exercício preparatório para a

guerra por mais de três horas em 27 de abril de 1937. O ataque matou mais de

1.600 civis e deixou o vilarejo em chamas por três dias. Mas por que “ocultar” uma

obra de arte? O que poderia fazer uma imagem comparada ao poderio bélico das

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nações? O que a “Guernica” carrega de tão ameaçador? Após essas questões retóricas, as respostas são quase evidentes: pode-se inferir com segurança que os historiadores Aby Warburg e Didi Huberman trilhando os ditirambos de Nietzsche, compreenderam o motivo de a “Guernica” ser tão “temida”: Ela é uma ferida no tempo. Um sintoma trans-histórico e supra-histórico, que carrega a carne e o sangue da cultura. As obras de arte possuem fantasmas, espectros e espelhos que refletem nossas tragédias culturais. A denúncia de Picasso não está confinada ao evento da guerra civil espanhola, nem ao nazismo: trata-se de uma denúncia de todas as guerras, assim como a ferida de Filoctetes

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, imortalizada na tragédia de Sófocles, é sentida e lamentada por homens e mulheres de todos os tempos e nações, pois algo na arte sobrevive.

O estudo da história da arte é um importante caminho nas ciências humanas.

A hermenêutica do significado das obras de arte possibilita-nos uma compreensão mais amalgamada da própria existência humana. Um dos historiadores da arte que veio ter grande destaque na virada do século XIX para o século XX foi o alemão Aby Warburg. Segundo Warburg, o historiador da arte precisava investigar os sinais de força vital que toda obra artística “fossiliza” em suas formas registradas.

[...] A sobrevivência, portanto, abre a história – o que era a vontade de Warburg quando ele falava de uma 'história da arte no sentido mais amplo' [wohl zum Boebachtungsgebiet der Kunstgeschichte im

weitesten Sinne]: uma história da arte aberta para os problemas

antropológicos da superstição, da transmissão das crenças. Uma história da arte informada pela 'psicologia da cultura' pela qual Warburg começara a se apaixonar junto a Hermann Usener e Karl Lamprecht (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 69)

Segundo George Didi-Huberman, historiador que propôs um novo método para a pesquisa e compreensão dos estudos das obras de arte, nós deveríamos nos debruçar sobre as imagens-sobreviventes que habitam as criações artísticas.

Influenciado pelo também historiador Aby Warburg, Didi-Huberman aprende o conceito da fantasmagoria. De acordo com esta perspectiva, as obras de arte carregam fantasmas capazes de assombrar, mas também de revelar aspectos de um passado que habita simultaneamente o mundo dos vivos e dos mortos:

1 Herói grego na Guerra de Troia, único homem capaz de erguer o arco e flecha de Hércules, foi personagem de uma famosa narrativa trágica na qual é acometido por uma ferida terrível. Segundo a tradição mitológica, após sua recuperação, foi o responsável pela morte de Páris, o príncipe troiano e raptor de Helena.

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Warburg mostrou que a antiguidade havia criado, para certas situações típicas e incessantemente recorrentes, diversas formas de expressão marcantes. Certas emoções internas, certas tensões, certas soluções são não apenas encerradas nelas, mas também como que fixadas por encantamento. Em toda parte em que se manifesta um afeto da natureza, em toda parte revive a imagem que a arte criou para ele, segundo a própria expressão de Warburg, nascem “fórmulas típicas do

páthos “que se gravam de maneira

indelével na memória da humanidade. E foi através de toda a história das belas-artes que ele perseguiu esses “estereótipos”, seus conteúdos e suas transformações, sua estática e sua dinâmica”

(HUBERMAN, 2014, p. 175).

“História de fantasmas para gente grande”, assim Warburg define seu método, um olhar para os fantasmas de um passado morto, mas que, como todo espectro, insiste em habitar o presente vivo. A imagem-fantasma é uma ferida, que guarda sinais de um evento. Ela surge como um sintoma, uma febre que indica algum quadro infeccioso. Qual seria a infecção que este trabalho, que olha para os sintomas da contemporaneidade, pretende diagnosticar? Para tal tarefa que objetiva, por meio de uma obra de arte, desvelar qual fantasma nos assombra, utilizaremos o martelo nietzschiano. A filosofia labiríntica nietzschiana, muito mais acostumada a problematizar do que pavimentar estradas seguras para o pensamento, foi evocada justamente pelo seu potencial diagnóstico e sua intimidade com a arte.

Em o Crepúsculo dos ídolos ou Como Filosofar com o Martelo, Nietzsche propõe uma filosofia a “golpes de martelo”. Mas o que ele queria dizer com isso? A imagem do pensador intempestivo colore o ideário sobre o filósofo alemão, e a figura do martelo, como arma de destruição dos falsos ídolos, foi imortalizada. Todavia é necessário que tenhamos cuidado com tal perspectiva, pois o filósofo alemão, famoso por sua habilidade como escritor, não entregaria uma imagem tão óbvia ao seu público. Nietzsche, filósofo amante da diferença, sabia da multiplicidade de sentidos imagéticos que o martelo carregava, e, como todo bom escritor, brincou com tais significados.

De todas as características do martelo, sem dúvida, a vinculada ao instrumento de avaliação clínica é a mais ajustada ao “olhar de suspeita”

Nietzschiano. A filosofia do martelo não estava baseada na pura destruição dos

falsos ídolos; o “martelo nietzschiano”, comumente, reduzido a simples arma de

destruição, possui aqui a função de instrumento médico de ausculta, utilizado para

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reconhecer as partes ocas, as fraturas e os defeitos congênitos da genealogia contemporânea.

Dentro desta nova perspectiva, no primeiro capítulo, efetuaremos uma reflexão “a marteladas” sobre a Imagem-fantasma da obra A Criação de Adão, de Michelangelo; objetivando atualizar a icônica obra do Renascimento, para “os dias da pós-modernidade”; articulando com a proposta Nietzschiana em busca de novos sentidos: O que poderia nos dizer, ainda, essa obra de arte sobre a criação, em um mundo marcado pela morte de Deus?

“Minha preocupação mais íntima sempre foi a decadência”, diz Nietzsche (2006, p. 61) sobre o fenômeno da nadificação. Qual imagem poderia ter sobrevivido ao avanço do niilismo? Qual a nossa imagem e semelhança com o Criador, agora ausente? Pode uma obra de arte carregar em seu seio uma mensagem supra- histórica? Todas estas perguntas serão devidamente respondidas, dentro da perspectiva adotada por este trabalho, pois todas estão vinculadas a pergunta fulcral do tema: Qual a Imagem-sobrevivente da obra A Criação de Adão?

Ao retratar o desencantamento do mundo, Nietzsche, em “A Gaia Ciência”, demonstra que toda discussão em torno da necessidade de uma vida tomada como obra de arte está justificada pelo fenômeno testemunhado e imortalizado pelo filósofo como: A morte de Deus.

Entender o percurso do papel da arte na obra nietzschiana é de suma importância em seu projeto, uma vez que a possibilidade de invenção da vida dentro de uma perspectiva estética só tem sentido quando reconhecemos que Deus, o inventor e criador supremo em nossa tradição, não está mais presente em nosso mundo. O motivo causador da ausência divina é tão espantoso que assombrou o filósofo alemão: “Deus morreu! E nós o matamos! ”.

O avanço do nada carregou em seu ventre meios de destruir e por fim matar

sua concepção mais sagrada, gerando inúmeros efeitos relacionados à Morte de

Deus. Entre estes desdobramentos, encontramos e identificamos a luta dos

aspirantes à sucedâneo ao trono divino, agora esvaziado: Razão, Ciência, Classes,

Pátria e por fim a própria História (que ascenderia no século XIX como o grande

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discurso, principalmente após os trabalhos de Hegel e Marx). Nietzsche, no entanto, percebe que o excesso de história tornou-se uma enfermidade paralisante.

A Doença Histórica obriga o ser humano a carregar o fardo de inúmeras culturas e fatos fantasmáticos que inutilizaram a criatividade e espontaneidade, crivando a consciência em um processo de tribunalização, no qual o homem provoca a inquisição da própria consciência. O diagnóstico dado por Nietzsche encontrou, na doença histórica, o câncer que adoece o pensamento criativo, a própria antítese da espontaneidade, e o sintoma mórbido manifestado por legiões de mortos que impedem a humanidade de viver de forma espontânea.

Deveria haver necessariamente uma raça de eunucos como guardiões da história universal? Sem dúvida, a pura objetividade lhes cairia bem. Isto pareceria sua tarefa de vigiar a história, para que dela nascessem apenas histórias, mas não acontecimentos [...]

pouco importa o que pretendeis fazer, contanto que a história se mantenha preservada em sua bela objetividade, particularmente por aqueles que jamais poderão fazer história (NIETZSCHE, 2001, p.

76).

Para Nietzsche a Metafísica e suas variações nada mais são do que sucedâneos para o Deus judaico-cristão. A principal função da metafísica seria garantir certezas ao conhecimento e por consequência garantir ao homem controle e alívio do medo advindo pelo absurdo da existência. Por meio de conceitos como:

Presença, Eternidade, Consciência, História e Sujeito o pensamento metafísico tentou avaliar a vida e corrigi-la, apresentando-se como forma de saber extra-físico e suportivo da realidade. Ao esse avanço da nadificação será dedicado o segundo capítulo deste projeto.

Se a compreensão de que a falta de um sentido prévio para vida é a conclusão do niilismo – e o registro da derrota metafísica em sustentar suas heurísticas –, poderá a vida, por meio de uma postura artística criar novos sentidos?

A urgência desta questão justifica e convida a apostar na criação de um viver

experimental, sempre novo e perigoso, livre das amarras metafísicas. Um viver

trágico que tudo abriga, sem exclusões ou sistematizações. Agora, em um mundo

sem um “Criador”, será necessário, a partir da tela em branco do nada, assumir o ato

de criar e, assim, pintar novas telas existenciais do viver como obras de arte.

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A hipótese deste labor é de que a expansão da postura artística, baseada no ato de criação, transcende as obras de arte e imprime a sua marca em qualquer atividade da vida humana; podendo servir, desta forma, de antídoto contra o niilismo, pois a criação artística é a própria produção da vida, não uma forma de conhecimento confinada a um determinado campo ou esfera de estudos. Sua criação é sempre um momento de liberdade, uma forma de manifestação da própria vontade de poder ou dominação, entendida não apenas como forma de dominar e controlar, mas também como forma de lutar por objetivos mais elevados do que a mera sobrevivência dos animais.

O intento deste trabalho é ilustrar como a obra de arte sobrevive no decorrer do tempo, por meio de seus fantasmas, e o que ela pode dizer sobre o contemporâneo. A obra Criação de Adão, de Michelangelo, será a ferida aberta no tempo, para que possamos compreender como deter o avanço do niilismo, após a morte de Deus.

Tacitamente, o terceiro capítulo objetiva demonstrar a criação como a imagem sobrevivente; pois o artista, ao criar, não visa nada fora da própria atividade, pinta por pintar e toca por tocar, assim como a vida deve ser vivida pelo viver, sem sentidos dados a priori, pois tal condição oferece um sem Sentido-metafísico e possibilita novos e múltiplos significados ao inventar a vida.

É imprescindível ressaltar neste trabalho o aspecto da multiplicidade e da diferença, pois ao desejá-las nos livramos da moral de rebanho, do inautêntico, e alçamos ao status de criadores, tornando o ser humano aquilo que é, dentro da dimensão do trágico, de um mundo sem Deus, e livre, principalmente, de todos os utilitarismos e fanatismos religiosos-políticos, e mesmo científicos que visam, de forma atávica, suceder ao trono como novas divindades universais e de rebanho.

A arte é tomada como postura estética existencial, que antecede a obra, não

se resume a quadros, músicas, poemas, esculturas; assim, como não pode ser

confundida com teorias políticas, metafísicas e estéticas. A arte expande-se ao fazer

do cirurgião, do engenheiro, do professor, do atleta, ou mesmo de um trabalho

acadêmico, embora isso seja extremamente raro. A arte tem a ver com estilo, não se

trata de movimentos históricos, como o Renascimento, o Barroco, o Romantismo, -

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meras generalizações didáticas-, mas do estilo único do autor que resiste a normatização e a comunidade com suas regras acordadas.

O artista carrega o epíteto de gênio e de louco, ao artista tudo e possível e desculpável, ele carrega a marca de Caim, que o amaldiçoa, e ao mesmo tempo o protege, como prova da existência de que um dia Deus passou por este mundo; esta é sua herança, sua marca, sua aura profana e mundana, mas capaz de experimentar o sagrado no calor da invenção da obra, sempre em agonia e êxtase.

Nietzsche sonha com esta experiência inaudita e evoca novamente o mito, desta vez inspirado na música wagneriana e no lendário herói nórdico - germânico Siegfried, no final de seu livro “O Nascimento da Tragédia”:

Um dia, esse espírito se encontrará desperto no fresco vigor da manhã de um sonho inaudito, então haverá de matar dragões, aniquilará os anões pérfidos e despertará Brunilda – e a lança do próprio Wotan não poderá lhe barrar o caminho! (NIETZSCHE, 2002, p. 169).

Como o louco, que carregava uma lanterna em plena luz do dia, procuraremos os “rastros do divino”, outrora luz do mundo, e faremos uma pesquisa genealógica para descobrir qual a mensagem fantasma da obra “A Criação de Adão”

e, assim, contaremos uma “história de fantasmas para gente grande. ”

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Figura 1. A Criação de Adão / fonte: www.rome-museum.com

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2. UMA PINTURA SEM DEUS: O Luto pelo Divino.

É curioso começar um texto pelo tema do luto, é como iniciar uma história pelo final. Em certa medida, o processo do presente trabalho está baseado na lógica da retrospectiva. E ele começa por um luto; não um luto qualquer, mas o enlutamento pelo divino. “Deus morreu”, diz o famoso, e polêmico, postulado de Nietzsche. Mas como Deus morreu? Qual a causa mortis? Como matamos “aquilo que havia de mais sagrado”? Sabemos, pelo menos, que nós o matamos, mas por quê?

Michelangelo, por meio de sua arte, imortalizou a criação do universo. A Capela Sistina foi aberta ao público no dia 1° de novembro de 1512. O artista levara cinco anos para criar sua obra. O arquiteto Bramante sugeriu ao papa Julio II entregar a pintura do teto da capela a um escultor. Sozinho, Michelangelo pinta heroicamente mil metros quadrados, mais de trezentas figuras. Criou tanta beleza quanto àquela do universo que o inspirou. No centro da gravura um Deus-homem e um homem-deus, tão semelhantes que poderiam ser confundidos; tão diferentes que dificilmente poderiam ser vinculados. Pintar a Capela Sistina foi uma empresa solitária, o artista quis ser semelhante ao criador. Apagou seus afrescos iniciais e recomeçou tudo, em uma estranha coincidência com seu antecessor divino. Do nada, Michelangelo havia criado um universo repleto de luzes e sombras. O público ficou atônito, haviam visto uma fenda no tempo; contemplado um portal para a eternidade; testemunharam a criação.

Muito tempo passou, a Capela Sistina tornou-se um ponto turístico, as cores ficaram pálidas com o avanço dos anos. Continuamos a olhar, espantados, para o teto, mas vemos a mesma cena na abóbada e na parede de alto-Mor? As ciências estão avançando; o mundo contemporâneo é explicado por “leis mecânicas” e inflacionado por informações. Não se procura mais significado e sentido, mas sim como tudo funciona como se pode entender e utilizar os modos de funcionamento.

Vivemos em um mundo “desencantado” e “burocratizado”.

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Segundo o filósofo alemão, nós, assassinos de todos os assassinos, eliminamos a “corrente que nos unia ao Céu”, desde então, pairamos à deriva, sem um centro solar para gravitarmos. É verdade que muitos sucedâneos apareceram, afinal, o trono estava esvaziado, mas, como será analisado no decorrer do trabalho, eles fracassaram em sustentar suas heurísticas.

Para Nietzsche, a morte de Deus é uma expressão poética do desaparecimento do horizonte metafísico

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. Isso significa que não se pode mais sustentar a crença num conhecimento objetivo, que nos traga seguranças imutáveis.

Como Deus morreu e, com isso, nenhum sentido existe a priori no mundo, seja para vida ou para a história, os homens são impelidos a criar esse sentido eles próprios. Sobre tal condição, o filósofo questiona: “mas queremos tornar-nos aquilo que somos: os novos, os únicos, os incomparáveis, aqueles que determinaram as próprias leis, aqueles que criaram a si próprios?” (NIETZSCHE,2001, p. 335). Em face da Morte de Deus tem início o nosso luto, nesse ponto as verdadeiras dificuldades começam. Nietzsche dá sinais de insatisfação aguda com o que o homem moderno se tornou.

O homem moderno arrasta, em última análise, uma imensa quantidade de pedras de saber não digeridas, que eventualmente fazem um grande ruído em seu ventre, como diz a lenda. Com esse rumor, revela-se a quantidade mais pessoal desse homem moderno:

o singular contraste de um interior ao qual nenhum exterior corresponde, e um exterior ao qual não corresponde um interior, contraste que os povos antigos não conheciam (NIETZSCHE, 2001, p. 178).

O desencantamento provocado pela expulsão do sagrado no mundo moderno retrata a falência de seus derivados metafísicos, por serem incapazes de suprir o vazio existencial causado pela morte divina que gerou náusea e a sensação de absurdo.

Com a morte do criador, pelas nossas próprias mãos, retiramos do mundo aquilo que nos sustentava e fornecia sentido para a nossa existência. O filósofo alemão descreveu este evento cultural que, ao procurar explicações matematizadas

2 Metafísica: “ciência primeira”, ou “ciência do ser enquanto ser”. Em grego, “depois da física”. É o campo da filosofia que investiga uma teoria sobre o Real. Na filosofia de Nietzsche, o termo é vinculado diretamente à filosofia de Platão, vista como uma tentativa de negação e escape do mundo natural.

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e cientificistas para todos os fenômenos da vida e do mundo, acabou por desautorizar o papel de Deus em nossa sociedade.

Nietzsche sintetizou em um telúrico aforismo sua constatação; mantido na íntegra neste presente trabalho, devido a sua beleza estética:

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou?

– Gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?, gritou ele, já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos nos quando desprendemos esta terra de seu sol?

Para onde se move ela, então? Para onde nos movemos? Longe de todos os sois? Não nos precipitamos sem cessar? E para trás, para os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos como através de nada infinito? Não nos bafeja o espaço vazio? Não ficou mais frio?

Não vem, sem cessar sempre a noite e mais noite? Não se tem que acender candeeiros pela manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos purificar? Que cerimônias de expiação, que divinos jogos deveríamos inventar? A grandeza desse feito não é demasiado grande para nós? Não teríamos que nos tornar, nos mesmos deuses, para apenas nos parecer dignos dele? Jamais houve um feito maior – e sempre que tenha apenas nascido depois de nos pertence, por causa desse feito, a uma história até agora. — Aqui, calou-se o homem louco e mirou de novo seus ouvintes. Também estes silenciavam e olhavam-no com estranhamento. Finalmente, ele arrojou o candeeiro ao solo, de modo que esse se estilhaçou e apagou. ‘chego cedo demais’, disse ele então; ‘não estou ainda no tempo oportuno’. Esse acontecimento formidável ainda está a caminho e peregrina – ele ainda não penetrou nos ouvidos dos homens.

Relâmpago e trovão precisam de tempo, feitos precisam de tempo, a luz dos astros precisam de tempo, mesmo depois de consumados, para que serem vistos e ouvidos. Este feito, está ainda mais distante deles do que os astros mais remotos -, e todavia eles o consumaram.

Conta-se ainda que, no mesmo dia, o homem louco teria entrado em diversas igrejas e nelas entoado seu

réquiem aeternam Deo.

Conduzido para fora e incitado a falar, teria ele replicado sempre

apenas isto: “O que são as igrejas, então, se não criptas e mausoléus

de Deus?” (NIETZSCHE, p.147-148).

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O aforismo retratado é um dos momentos mais célebres da filosofía e da literatura do ocidente. É possível notar a presença de um ex-cristão que experimentou as consequências emocionais provocadas pela morte de Deus como o evento decisivo que afetará o contemporâneo de forma irreversível. A constatação

“traumática” da morte divina tornará possível uma nova elaboração da perspectiva sobre o passado e o futuro da civilização ocidental, por meio de uma “escola da desconfiança” ou “olhar da suspeita”. Em relação a isso, Nietzsche faz a seguinte observação: “De fato, eu não mesmo acredito que jamais alguém tenha visto o mundo com uma desconfiança tão profunda” (NIETZSCHE, 2003, p.112).

A desconfiança nietzschiana é dirigida a todos os domínios da tradição cultural: Religião, História, Arte, Filosofia, Direito, Ciências; ou seja, para todas as construções culturais que os homens desenvolveram em seu convívio.

Os homens frequentemente acreditaram em uma Verdade fixa, fosse ela denominada Deus, Razão, Ciência ou História. Confinados a essa ilusão produzida pela linguagem, não perceberam que não há “Verdade” alguma, mas apenas verdades convencionadas que foram criadas e produzidas por eles próprios, assim como os deuses ou as fadas. Nietzsche foi um dos primeiros filósofos a perceber o processo de feitiço da língua ou da ontologização da linguagem. “Enquanto houver a gramática, ainda haverá Deus” (NIETZSCHE, 2008, p. 122). De acordo com o filósofo, quando falamos sobre algo, não falamos sobre um mundo objetivo, mas sobre uma teia inflacionada de sentidos e perspectivas que lutam entre si, efetuando acordos simplórios para o entendimento, viabilizando, desta forma, a comunicação.

Portanto, esse foi o maior erro da civilização ocidental: sua busca desenfreada e determinada pela comunicação da verdade, mesmo quando ela poderia comprometer e matar a crença da qual teve origem. O filósofo reflete sobre esse ”ascetismo da veracidade”:A verdade tornou-se em nós uma paixão que não recua diante de nenhum sacrifício e nada teme, no fundo senão sua própria extinção e talvez a humanidade até chegue a perecer por esta paixão do conhecimento!

(NIETZSCHE, 2003, p. 121)

O homem moderno herdou a fé e o otimismo na razão dialética socrática e

tenta suportar as dores do existir por meio da racionalidade que promete desvendar

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os segredos mais “profundos” da realidade. O homem teórico continua a apostar na ciência como antídoto universal para a eterna ferida existencial e atribui ao erro (ao falso, a mentira, a ignorância, a ilusão) a causa de todo os males do mundo; hostil a arte, a imaginação criativa e ao mito, entendidos como formas infantis ou obsoletas de compreensão da realidade - incapazes de explicar, verdadeiramente, as leis causais do mundo.

Enquanto a apologia da razão bafeja as suas promessas inalcançáveis de emancipação do sujeito e felicidade prática por meio da técnica, os moralistas, racionalistas, empiristas, socialistas, iluministas e positivistas, todos herdeiros da doença socrática, excluem a dimensão do trágico e afirmam e polarizam conceitos fixos dicotomizados como o belo, o feio, o bem, o mal, a verdade e a mentira o real e o falso. A meta é revelar o que está oculto, esclarecer por meio da razão, e dissipar o mundo das sombras ou das ideologias que ocultam. Como diria Nietzsche: Oh, verdade! Circe dos intelectuais! (NIETZSCHE, 2006, p. 99).

Sim, Deus morreu! Mas está morto para a cultura. E esta é a meta da genealogia nietzschiana; compreender as consequências desse fenômeno, especialmente para a contemporaneidade, como exemplifica Oswaldo Giacóia Junior:

Se, como resultado do desenvolvimento das ciências e do aprofundamento do esclarecimento, nós chegamos à experiência da morte de Deus, então é licito colocar também em questão o único valor absoluto que ainda continua reconhecido pela consciência cientifica contemporânea: o valor absoluto da verdade. A morte de Deus implica, portanto, a possibilidade de colocar em questão a crença na origem divina e no valor absoluto da verdade (GIACÓIA, 2008, p. 25).

George Didi-Huberman, o historiador das imagens, buscou em Aby Warburg, provavelmente o mais Nietzschiano dos historiadores, um novo método para sua pesquisa no campo da arte. Os “fantasmas de Warburg’’ ofereceram esse novo caminho para os estudos. Não mais uma história sequencial, ordenada e linear, mas um historiar que logra investigar os sintomas de uma obra de arte:

Movimentos, emoções “como que fixadas por encantamento “e

atravessando o tempo: é bem essa magia figural das Phatosformeln,

segundo Warburg. Mais uma vez, sua exumação foi comandada pela

aguda percepção de um paradoxo constitutivo no renascimento

italiano: foi nas paredes dos antigos sarcófagos que os movimentos

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da vida, do desejo, das paixões sobreviveram até chegar a nos, até nos emocionarem e transformarem a nossa visão do presente (HUBERMAN, 2010, p. 175).

A obra de arte carrega Imagens-fantasmas, ou imagens-sobreviventes que insistem em nos assombrar. Como diria Warburg, “essa história de fantasmas para gente grande” é a meta deste escrito: por meio da genealogia nietzschiana, vasculharemos as antigas imagens fantasmas que sobreviveram, mais precisamente, em uma obra de arte, – “a obra de arte” para muitos – A Criação de Adão, imortalizada na capela Sistina, pelas mãos de Michelangelo.

Luto e criação devem parecer figuras que representam momentos opostos, o início de algo, pela criação e o efeito do fim, pelo luto. Todavia, como nos lembra Nietzsche (2004, p. 165), “um pesquisador precisa ter um olho de artista e o outro de médico; o nascimento e a morte são como o símbolo de Ouroboros

3

, uma serpente devorando a própria cauda em um movimento circular e infinito”.

A Criação de algo novo não só carrega a possível destruição do antigo, como possui o princípio de sua própria ruína, nos apontava Nietzsche. O afresco que registra a Criação de Adão, também, registra a Morte de Deus. Seguindo o insight nietzschiano: enquanto Michelangelo pintava a criação com uma de suas mãos, o que fazia a outra? Provavelmente, a outra mão pintava a morte de Deus simultaneamente.

A Criação de Adão é o início de uma elaboração sobre o luto do divino, tentativa esta que nunca foi concluída. Evocaremos a formulação Psicanalítica: um trauma mal elaborado gera um sintoma e esse sintoma nos assombrará como um fantasma, até que ele seja exorcizado por meio de uma nova ressignificação. De certa forma, a história do ocidente, pós-morte de Deus, é a história da elaboração desse luto.

Conforme Nietzsche postulou, sabemos que o homem elaborou a arte para que não morresse de “Verdade” (NIETZSCHE, 2001, p. 98). A Renascença foi a

“grande época da Arte”, não podemos dizer que seus esforços foram mentiras, exceto no sentido nietzschiano, de mentir contra o tempo, contra o inexorável e cruel

3 Símbolo representando uma serpente, ou um dragão, devorando a própria cauda. Ícone comumente associado à alquimia e ao movimento cíclico do eterno retorno do tempo mítico.

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“já passou”. A natureza hibrida do Renascimento anuncia essa “estranha-nova”:

Deus morreu; aconteceu; passou; mas teremos que lidar com isso; nem que seja necessário que novos deuses sejam pintados.

Daí a importância desempenhada pelo Renascimento, pois o movimento demarcou a momento fronteiriço, situado entre a Idade-Média e a Modernidade, no qual o ocidente começou a elaborar o luto pela morte de Deus. Perante a ausência do “centro-divino”, o ocidente começou a forjar novos sucessores. A razão e a História são, sem dúvida, os grandes discursos “consoladores” característicos da modernidade. Constataremos no decorrer do trabalho, que muitos “consoladores” e usurpadores serão entronizados – afinal, a dor do luto foi insuportável –, mas foi o Humanismo Renascentista o primeiro esforço de “reparação”

4

desenvolvido por nossa cultura, na tentativa de alçar o homem ao trono vazio de Deus.

Renascimento, Humanismo, Reforma, Iluminismo, Romantismo, Positivismo e Comunismo, para citar os movimentos mais importantes, carregaram todos a imagem-fantasma da morte de Deus. A afirmação pode parecer arbitrária, todavia, será devidamente explicitada no decorrer do capítulo; por ora, o objetivo desta formulação é a de inferir a proposta de que o homem buscou novos sucessores para a ausência de Deus, em uma tentativa falimentar de, na ausência do Criador, encontrar um novo fulcro para a cultura.

Infelizmente, o projeto ocidental ignorou que todo princípio carrega em si mesmo a própria ruína. A morte de Deus, automaticamente, decretou a eminente morte do homem. Não só do ponto de vista narrativo (seguindo as escrituras, afinal, se não há um criador, não pode haver uma criatura) como do ponto de vista filosófico, que culminará em interpretações como as da “morte do sujeito”, (Foucault) ou a “morte do autor” (Barthes).

Por quem os sinos dobram? A resposta é simples: pelo próprio homem. O homem enlutado, na sua busca por elaboração do trauma de todos os traumas, não levou em consideração que a morte de Deus não ocorreu por um ataque externo ao divino, uma explosão, mas a derrocada celestial foi ocasionada por uma implosão.

4 Utilizado no texto no sentido “psicanalítico”. Segundo Melanie Klein, a reparação surge como uma tentativa de

“consertar” um objeto- internalizado; danificado pela pulsão de morte.

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Nietzsche percebe que uma civilização não pode ser conquistada por forças externas até que tenha destruído a si mesma a partir de dentro.

Mas que doença é esta que nos corroeu por dentro? Que levou aquilo que tínhamos de mais sagrado e nos deixou enlutados? Seguindo a perspectiva nietzschiana, a grande doença que avança sobre a cultura ocidental é o Niilismo, a nadificação da potência.

O fenômeno do niilismo, que também será esmiuçado com mais precisão no decorrer deste trabalho, não só causou a morte de Deus, como esvaziou nossa potência para a elaboração do luto divino. O homem cansado, profetizado por Nietzsche, encontra-se no limiar da encruzilhada ocidental: como viver sem um centro referencial? Sem um sentido? Sem encantamento? A descrição de Nietzsche é terrível:

A terra terá se tornado tão exígua então, nela veremos saltitar o derradeiro último homem, que apequena toda e qualquer coisa. Sua laia é indestrutível quanto às pulgas; o Derradeiro Homem é aquele que viverá mais tempo [...]

Eles terão abandonado as paragens em que a vida é dura; pois precisam de calor. Ainda amarão o próximo e dele se aproximarão, pois precisam de calor [...]

Um pouco de veneno, de tempos em tempos; isso proporciona sonhos agradáveis.

Ainda trabalharão, pois o trabalho distrai. Mas tomarão cuidado para que distração jamais se torne cansativa. [...]

Serão espertos, e saberão tudo que se passou outrora, assim, terão com que fazer zombarias sem fim. Ainda brigarão, mas logo se reconciliarão, com medo de atrapalhar a digestão.

Terão seu pequeno prazer para o dia e seu pequeno prazer para a noite; mas venerarão a saúde.

“Inventamos a felicidade”, dirão os derradeiros últimos homens, e piscarão os olhinhos (NIETZSCHE, 2001, p. 61; 63).

Dentro da perspectiva nietzschiana, o pensamento ocidental sempre procurou pontos “fixos” para poder erguer seus edifícios teóricos: “Deus, Substância, Razão, Absoluto, História, o Outro, e mesmo o Ser de Heidegger, não passavam de tentativas de encontrar uma terra não movediça, uma ilha no mar revolto de multiplicidades sem fim. Toda a história da metafísica ocidental

5

, desde Platão, resumida à procura por uma essência originaria e atemporal.

5 Segundo Nietzsche, somente os filósofos pré-socráticos teriam escapado da influência da metafísica Socrático- Platônica. O Idealismo Alemão, o Socialismo, a Filosofia-Teológica Cristã, o Racionalismo, o Romantismo seriam só alguns dos desdobramentos da “metafísica”, (mesmo o cientista é visto como um “desenrolar do

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Agora, sem em cima ou embaixo, direita ou esquerda o homem prossegue sua suposta jornada histórica, mas para onde? A questão é relativamente simples:

sem um ponto fixo, sem uma referência, sem um princípio, consequentemente o homem perdeu seu destino. Não há mais um final feliz, nem finalidade, nem para onde ir, como nos alertou Nietzsche.

Outro autor profundamente inspirado por Nietzsche foi o sociólogo alemão Max Weber, estudioso do processo de desencantamento do mundo e do seu modo de racionalização e burocratização. Weber chegou a declarar que:

Depois da devastadora crítica feita por Nietzsche aos últimos homens que inventaram a felicidade, posso deixar totalmente de lado o otimismo ingênuo no qual a ciência –isto é, a técnica de dominar a vida que depende da ciência – foi celebrada como o caminho para a felicidade. Quem acredita nisso – à parte de algumas poucas crianças grandes, que ocupam cátedras universitárias ou escrevendo editorias (WEBER, 1995, p. 443).

A observação do sociólogo alemão demonstra como a crítica de Nietzsche explicitou que não há mais um “final feliz” para a trajetória da civilização ocidental.

Nada de Reinos Celestiais, Paraísos comunitários ou a solução científica para todos os males; não há final, nem luz no fim do túnel -- a não ser para algumas “crianças grandes”. Em um mundo desencantado, sem finalidade ou princípio, nosso luto pelo divino é ao mesmo tempo um luto pelo homem.

Em seu ensaio “A Ciência como Vocação”, Weber postula que toda a teologia pressupõe que o mundo tem significado e que só uns poucos corajosos são capazes de reconhecer que esse significado inato não existe. Segundo o sociólogo, o “super- homem”, profetizado por Nietzsche, capaz de lidar com a aspereza do mundo é o cientista social. Para aqueles incapazes de lidar com a “perigosa verdade de Nietzsche”, não podendo viver sem um consolo, Weber registra, “as portas das velhas igrejas estão ampla e compassivamente abertas” (WEBER, 1995, p. 136).

Retornemos mais uma vez a obra de Michelangelo e o que ela poderia nos dizer sobre o contemporâneo. Qual imagem poderia ter sobrevivido à tamanha devastação de sentido? No afresco de A Criação de Adão, temos um deus vigoroso,

sacerdote”) entendida pelo filósofo como um sustentáculo ficcional para o mundo real, que teria, então, sido transformado em uma “fabula”.

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voltado para sua criação, enquanto Adão experiência a potência da vida por meio do vir a ser. Agora, sabemos que este Deus morreu e, com ele, um tipo de mundo também desapareceu. Sinteticamente: em um mundo desencantado, sem finalidade ou princípio, nosso luto pelo divino é ao mesmo tempo um luto pelo homem.

Nossa primeira imagem-fantasma nos assombrou com um cenário contemporâneo desencantado e caótico. Percebemos que a morte de Deus não estipulou o renascimento do homem, mas sim o seu desaparecimento.

Os homens tornaram-se atheos, não como um ateu, alguém que não acredita em Deus, mas no sentido de que abandonamos o divino. A tragédia do homem moderno está configurada no desamparo, no enlutamento. A palavra alemã para tragédia é trauesrpiel, que pode ser compreendida como jogo ou espetáculo do luto.

Há uma “estranha” semelhança entre a época que os gregos formularam a tragédia e o século XVIII, quando Nietzsche constata a morte de Deus: não há mais lugar para a consolação das ilusões. Os gregos importaram Dionísio, um deus da Ásia menor, e viram florescer o período trágico, após a insuficiência do padrão épico-apolíneo em sustentar todos os dramas da vida. Nós, no entanto, vimos o declínio de um Deus – também vindo do oriente- e o levante de uma nova tragédia

6

, similar a de Édipo

7

, narrativa na qual o herói sobrevive ao evento trágico e, desde então, precisa vagar cego pelo mundo.

Nós sobrevivemos à tragédia do luto divino, esse evento cultural catastrófico, e continuamos a vagar cegos pelo mundo, sem um centro, sem um sentido, sem garantias e sem amparo. Nossa tragédia, como a de Édipo, não consiste tanto no evento aversivo, mas em termos sobrevivido a ele.

Segundo Nietzsche, Sócrates surge em um momento de declínio do período heróico da tragédia ática. Esta “era da cegueira”, (pós-predomínio do mito), foi o marco da ascensão do pensamento socrático e da supervalorização do pensamento lógico e dialético. Com a “Mosca de Athenas” ocorreu uma ruptura radical em relação à Grécia pré-socrática, mas tal mudança não representou uma evolução ou

6 Tragédia: gênero poético grego, especialmente vinculado aos cânticos religiosos em culto a Dionísio

7 Édipo: Herói grego, famoso por ter derrotado a Esfinge, após ter decifrado seu enigma. Segundo a lenda teria matado seu pai e casado com sua própria mãe. Curiosamente, Édipo não morre ao final da narrativa, tendo um desfecho diferenciado da maior parte dos heróis trágicos, como Aquiles, Heitor, Hércules, Ajax, etc.

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aperfeiçoamento, como somos ensinados a acreditar pela tradição ocidental, pelo contrário, a racionalidade socrática, progenitora do cientificismo moderno tem como premissa a negação do saber trágico e de sua experiência arcaica do mito.

Podemos encontrar esta atitude nos já adoentados seguidores de Sócrates que, por não terem conseguido suportar o absurdo da existência, negaram o trágico e promoveram a razão como ideal. Lembremos, no entanto, que o próprio Sócrates dedica o final de sua vida às artes, como a poesia e a música o que ilustra o fracasso de sua proposta. Nietzsche questiona: “Quem é esse que sozinho ousa aventurar-se a negar este ser grego que com Homero, Píndaro e Ésquilo, com Fídias, Péricles, Pítia e Dionísio, com seus abismos profundos e seus picos mais altos, conquistaram nossa admiração e nossa adoração?” (NIETZSCHE, 2001, p.

93).

É preciso ressaltar, contudo, que diferentemente de nossa tragédia, os gregos arcaicos (pré-socráticos), para Nietzsche, souberam integrar as dimensões apolíneas e dionisíacas, dando a vida elevação e beleza, em todos os aspectos da cultura, mesmo perante a violência, os horrores, paixões, guerras e sofrimentos.

Enquanto nós, pós-socráticos, no máximo, desenvolvemos uma mente bicameral, que vive simultaneamente a morte do divino e a crença em sua presença, ainda que travestido de razão, história ou outro sucedâneo qualquer. Passamos pelo evento da morte de Deus, mas escondemos o corpo e continuamos vivendo como se nada tivesse acontecido.

Nietzsche conheceu o livro “O Mundo como Vontade de Representação”

(1818), de Arthur Schopenhauer (1788-1860), por acaso, em uma livraria. Nesta obra encontrou as bases para as ideias que forjaria posteriormente: que o mundo não é racional em si mesmo e que a moralidade e significado histórico são relativos.

Tudo isso fez com que Nietzsche concluísse que Deus estava morto. Mas o que queria dizer com isso?

Nietzsche não matou Deus, apenas constatou um fenômeno da cultura ocidental. A morte de Deus talvez tenha tido origem nas “feridas narcísicas”

8

8 Segundo Freud, o homem foi ferido por suas próprias descobertas cientificas: a terra não é o centro do universo, a teoria da evolução das espécies e a descoberta do inconsciente como força responsável por determinar o comportamento humano.

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propostas por Freud, ou dentro dessa perspectiva, agora, “chagas divinas”.

Copérnico “desatou o sol da terra” e Darwin nos mostrou uma origem menos

“gloriosa”, enfim, não somos mais o centro da criação divina. Mas a genealogia nietzschiana nos revela algo mais sutil e espantoso:

O cristianismo chega ao fim, destruído por sua própria moralidade que acaba por se ver obrigada a negar até mesmo a existência do seu próprio Deus. O senso de veracidade, desenvolvido ao máximo pelo cristianismo, deixa-se contaminar pelas falsidades e pela desonestidade de todas as interpretações cristãs do mundo e da história. Salta de “Deus é a verdade” para “tudo é falso” (NIETZSCHE, 2006, p. 98)

O melhor trabalho de “demolição do divino” teve origem no seio do próprio Cristianismo. Em a Gaia Ciência, Nietzsche pergunta “o que fizemos quando desatamos a terra do seu sol?” Para onde ela se move agora? Copérnico (1473- 1543) foi um cônego católico que promoveu essa “chaga divina”, antes mesmo que narcísica.

A constatação da morte de Deus não é um mero ataque a religião, mas algo mais abrangente. Deus, agora, não significa somente o deus para o qual os religiosos oram e os filósofos refletem: Deus é compreendido como a soma total dos valores que a civilização ocidental havia produzido. Logo, a morte de Deus decretou o fim de todos os valores elevados que havíamos herdado da tradição.

O cristianismo, em sua busca obcecada pela verdade, procurou na natureza as leis universais e imutáveis criadas por Deus. Diferentemente da imagem equivocada e amplamente divulgada sobre o cristianismo como “inimigo da ciência” - herança da propaganda iluminista -, o cristianismo motivava o conhecimento das supostas obras divinas, até mesmo como comprovação de sua origem arquitetada, ocorreu que um problema surgiu em sua própria demanda: Ao procurar um Deus por trás das “leis naturais”, nada encontraram; a não ser uma natureza indiferente e as futuras bases para um mecanicismo autossuficiente. Mesmo teologias residuais, como a do protestante unitário, a do filósofo deísta das luzes, o Deus relojoeiro e a do racionalista integral, o Deus-natureza –são todas descendentes do platonismo e filhas do cristianismo – como nos adverte Nietzsche:

Nos últimos séculos promoveu-se o avanço da ciência, em parte

porque se esperava compreender melhor com ela e por ela a

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bondade e a sabedoria de Deus – o motivo principal na alma dos grandes ingleses, como Newton; em parte porque se acreditava na utilidade absoluta do conhecimento, particularmente na intima união da moral, do conhecimento e da felicidade- o motivo principal dos grandes franceses, como Voltaire; e em parte por que na ciência se acreditava possuir e amar alguma coisa que não tinha nada a ver com os maus impulsos humanos, alguma coisa desinteressada e inofensiva que se bastava a si mesma, algo verdadeiramente inocente o motivo principal da alma de Spinoza que se sentia divino pelo conhecimento, isto é, em razão de três erros (NIETZSCHE, 2001, p. 37).

O cristão Descartes (1596-1650), que escrevera um tratado sobre o universo, acreditara que poderia desenvolver um sistema que não apenas englobaria todo o conhecimento, mas também o unificaria. Estendendo seus estudos sobre um amplo leque de temas, como astronomia, geometria, e dioptria, o filósofo Francês decidiu estudar anatomia e passou a visitar diversos matadouros locais. Destas visitas, nasceu uma famosa anedota: segundo a historieta, Descartes notou um jovem desenhando a carcaça sem pele de um boi e perguntou-lhe por que escolhera aquele tema. “Sua filosofia arrebatou nossas almas”, respondeu o artista. E em meus quadros, eu a devolverei, mesmo aos animais mortos. Dizem que o jovem era o famoso pintor Rembrandt (1606-1669)

9

.

Independentemente da veracidade do encontro, é inegável que tal “lenda”

nos relata uma verdade sobre a pretensão cartesiana e cristã: a alma do mundo havia sido arrebatada para algum lugar distante, enquanto a arte, talvez pudesse salvá-la.

Essa rápida digressão serviu para demonstrar que a morte de Deus teve início pelas mãos de seus próprios fiéis, em uma curiosa repetição narrativa, já conhecida entre judeus e cristãos.

Nietzsche foi educado em um ambiente pietista

10

e, de certa maneira, manteve seu temperamento religioso. Autenticamente angustiado pela constatação da morte de Deus, o filósofo relatou: “O maior acontecimento dos últimos tempos – a saber, Deus morreu; que a crença no deus cristão perdeu o crédito – já começa a

9 Rembrandt Harmenszoon van Rijn, pintor e gravador holandês, expoente máximo do “Século de Ouro dos países baixos”, considerado por muitos como o “maior pintor da história”, justamente, por causa do seu domínio técnico sobre as luzes; comparadas pelo artista à alma humana.

10 Nietzsche viveu sua infância em um ambiente Pietista, educado por sua mãe e irmã. Em 1849, ficou órfão do pai, um pastor Luterano.

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projetar suas primeiras sombras sobre a Europa”. Uma crise sem precedentes dos valores ocidentais era eminente, principalmente quando a humanidade tomasse consciência disso:

As verdades e os valores são ilusões, mas esquecemos que eles o eram, que são usados e não tem mais força na experiência sensível, moedas que perderam sua imagem e que agora só são levadas em consideração como metal e não mais como moedas (NIETZSCHE, 2001, p. 84).

Desde então, vivemos esse espetáculo que configura a nossa tragédia, um teatro sem protagonista e um palco no qual os atores restantes gritam e se engalfinham pelo papel principal.

Após a morte de Deus para a cultura, tivemos que lidar com a elaboração do

“luto de todos os lutos”. A modernidade herdará tal enlutamento e sua busca ávida por um novo sucessor. Mas antes, precisaremos compreender: Por que o Renascimento produziu a arte mais elevada do cânone ocidental, justamente quando Deus estava prestes a morrer? O Renascimento irá configurar para a história do ocidente o início ambivalente da elaboração do luto pelo divino, uma espécie de supernova, uma luz intensa que antecederá as sombras confusas e erráticas do niilismo no contemporâneo.

2.1 O RETRATO DO CÉU ESVAZIADO: O Trono Vazio e os Vice- reis

Se Michelangelo fosse contratado para retratar a obra a Criação de Adão nos dias atuais, quem estaria no lugar de Deus no afresco? No decorrer da história ocidental os candidatos foram muitos: Razão, História, Ciência, Absoluto, entre outros. Kierkegaard – como Nietzsche - percebeu que “um rei sem país, na verdade, não governava nada” (KIERKEGAARD,2001, p.68), o pensador dinamarquês atacava a filosofia do Eu e do Absoluto, tão difundida em sua época, especialmente por filósofos como Hegel, Shelling e Fitche, todavia o mais interessante é a conclusão óbvia de que sem uma terra, não há nada para reinar.

Após o Renascimento Humanista, que colocou o homem no centro do

universo, o ocidente passou por inúmeras convulsões culturais: a reforma

protestante, que libertou a consciência individual do monopólio da Igreja; as

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revoluções científicas, que conferiram ao homem a capacidade de investigar e controlar os antigos mistérios da natureza; o Iluminismo e sua aposta em um homem racional, libertado da ignorância, do dogma e da intolerância; as utopias socialistas;

psicanálise e assim por diante. Todos estes movimentos contribuíram para o nascimento de novas concepções sobre o homem, mas, ainda, havia um problema pendente.

Temos aqui outro aspecto basal da constatação nietzschiana: a civilização ocidental não está ciente da morte divina. Embora o crime tenha sido consumado, o que gera a perplexidade de Nietzsche é que todos os valores morais e metafísicos ligados ao cristianismo sobreviveram. A morte de Deus foi em vão. Apenas trocamos de religião e de sucedâneos.

A ausência do Criador inutilizou a criatura, não havia mais terra para ser governada. Logicamente, o processo foi gradativo. Como a erosão de uma montanha no decorrer das eras pela força dos ventos, a pretensão ao divino foi ruindo. O excesso de racionalização foi o “sopro do vento” que aos poucos arruinou o mundo no qual Deus habitava.

Comumente a modernidade é associada ao período da História e da Razão.

Elas tentaram, heroicamente, suceder o divino. Mas se Deus morreu, para nossa cultura, quem possuiria tamanha força para sustentar uma narrativa que abrigasse a todos os aspectos da existência?

Adversário vigoroso de Nietzsche, o escritor britânico G.K. Chesterton

11

dizia reconhecer a Morte de Deus para a cultura; só não podia aceitar que qualquer

“coisa” assumisse seu lugar (CHESTERTON, 2008, p. 73). Neste aspecto, concordava com seu desafeto alemão.

Como já foi mencionado neste trabalho, inúmeros foram os sucessores divinos: Razão, História, Outro, Cérebro, Genoma, Progresso, Absoluto, Luta de Classes, Amor, Natureza, Nação, Cultura, Força Vital, Estado, Inconsciente, Moral, Sujeito, Consciência, Totalidade, Ser, Vontade, Estrutura ou mesmo a Arte, em

11 Gilbert Keith Chesterton, conhecido como G.K Chesterton, foi poeta, historiador, economista, desenhista e teólogo britânico. Autor de livros como “O Homem Eterno” e “Ortodoxia”, famoso por colocar em debate crítico as idéias de Nietzsche.

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formulações metafísicas que procuravam o Belo e o Sublime. Todas essas próteses divinas, de alguma forma, operavam nos discursos como um centro, aquele mesmo perdido com a Morte de Deus.

Heidegger foi o pensador que reconheceu Nietzsche como o “filósofo decisivo”. Diferentemente de outros comentadores, o pensador da floresta negra problematizou a obra nietzschiana de forma original, como comenta Giacoia Junior:

Heidegger se ocupou com o estudo do pensamento de Nietzsche por um período que vai do final dos anos 30 a meados dos anos 50. A publicação de seus estudos constitui um divisor de águas e uma referência obrigatória para qualquer interpretação da obra de Nietzsche (GIACÓIA, 2005, p. 32)

Mas por que a interpretação da obra de Nietzsche por Heidegger é tão vital?

Segundo Heidegger o pensamento de Nietzsche foi um marco decisivo para a filosofia ocidental:

Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica.

Essa pergunta reza: como homem, em sua essência até aqui, está o homem preparado para assumir o domínio da terra? (Heidegger, 2012, p. 102).

A crítica mais ampla de Heidegger ao pensamento de Nietzsche exigiria um trabalho à parte, mas um aspecto desta crítica, complexa e ambivalente, nos interessa: O traço ontoteológico do pensamento ocidental.

Ontologia

12

é a disciplina filosófica que estuda o ser dos entes. A palavra

“ente” traduz o termo grego Onta, que designa entidades, aquilo que é ou que existe.

Ontologia, portanto, é a ciência ou estudo metódico (logia) daquilo que é – o ente-, visando determinar sua essência ou seu ser. Teologia é o estudo sobre Deus, ou ciência que trata do divino.

Heidegger levantou a velha questão sobre o Ser a partir da distinção entre o

“ente”, esta ou aquela realidade que existe empiricamente, e o “Ser”, misteriosa fonte da presença de todo ente. Segundo o pensador da floresta negra, a filosofia teria ignorado a diferença e reduzido o Ser a um ente superior e absoluto: Deus.

12 E necessário reportar que o filósofo alemão Heidegger propõe a distinção de duas palavras: Ôntico e Ontológico; ôntico se refere à estrutura e a essência própria do ente; enquanto ontológico seria o estudo filosófico do ser dos entes.

(35)

Para fugirmos desse “erro”, precisamos abordar o sentido do ser a partir da diferença, e não à eternidade e à totalidade, como foi no caso da história do pensamento ocidental.

Para Heidegger, o pensamento ontoteológico fica evidente quando perguntamos sobre o mundo sempre da mesma maneira; procurando um fundamento absoluto, ignorando a temporalidade para que seja possível assegurar a fixidez como centro que garanta a identidade, o controle, a mensurabilidade e a funcionalidade do ente.

Os vice-reis retratados nesse capítulo, Razão, Absoluto, História, Ciência, são apenas próteses de um Deus Morto; uma maneira velha de perguntar sobre novas questões. Deus pode ter morrido para a cultura, mas continuamos a perguntar da mesma forma sobre ele, ainda que com outros nomes.

Esta forma de pergunta é o que caracterizou o pensamento ocidental, desde Platão. A própria natureza desta pergunta antecede Deus na cultura ocidental. O outrora Deus oriental e vingativo tornou-se uma necessidade da lógica, habilmente miscigenado pelos cristãos a filosofia platônica. Daí, Nietzsche afirmar que:

“Cristianismo era Platonismo para o povo” (NIETZSCHE, 2004, p. 133). As ideias de Platão, as causas de Aristóteles, as mônadas de Leibniz, a substância pensante de Descarte ou Deus como ens supremo na filosofia medieval. A Ontologia foi determinada por uma espécie de pergunta caracterizada pela busca do ser dos entes, por sua essência; sempre respondendo a essa pergunta com a identificação de um ente supremo.

Por isso a importância em mudarmos a pergunta. Desde Platão, não reformulamos a questão, mesmo que as respostas tenham sido insuficientes.

Precisamos indagar: qual o sentido do Ser? Heidegger conclui posteriormente que só os artistas poderiam demonstrar tal pergunta, especialmente a poesia, pois ela “é a linguagem do ser, o poeta faz a experiência de um poder, de uma dignidade da palavra, que não consegue ser pensada de maneira mais vasta e elevada”

(HEIDEGGER, 2012, p. 77).

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