UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE DIREITO
DEPARTAMENTO DE DIREITO PRIVADO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO
ARTHUR NOGUEIRA FEIJÓ
DA JURIDICIDADE DO FATOR PUNIÇÃO NA LIQUIDAÇÃO DA INDENIZAÇÃO
POR DANOS MORAIS NO BRASIL
FORTALEZA
ARTHUR NOGUEIRA FEIJÓ
DA JURIDICIDADE DO FATOR PUNIÇÃO NA LIQUIDAÇÃO DA INDENIZAÇÃO POR
DANOS MORAIS NO BRASIL
Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Área de concentração: Responsabilidade Civil.
Orientador: Prof. Dr. Regnoberto Marques de Melo Junior.
FORTALEZA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito
F297d Feijó, Arthur Nogueira.
Da juridicidade do fator punição na liquidação da indenização por danos morais no Brasil / Arthur Nogueira Feijó. – 2013.
107 f. : enc. ; 30 cm.
Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2013.
Área de Concentração: Responsabilidade Civil.
Orientação: Prof. Dr. Regnoberto Marques de Melo Júnior.
1. Responsabilidade (Direito) - Brasil. 2. Danos moral - Brasil. 3. Punição. 4. Indenização. I. Melo Júnior, Regnoberto Marques de (orient.). II. Universidade Federal do Ceará – Graduação em Direito. III. Título.
ARTHUR NOGUEIRA FEIJÓ
DA JURIDICIDADE DO FATOR PUNIÇÃO NA LIQUIDAÇÃO DA INDENIZAÇÃO POR
DANOS MORAIS NO BRASIL
Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito. Área de concentração: Responsabilidade Civil.
Aprovada em _____/_____/_______.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________ Prof. Dr. Regnoberto Marques de Melo Júnior (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
___________________________________________________ Profª. Ms. Maria José Fontenelle Barreira
Universidade Federal do Ceará (UFC)
___________________________________________________ Prof. Esp. Francisco de Araújo Macedo Filho
A Deus.
A minha Família.
AGRADECIMENTOS
Uma vida não se constrói sozinha, na verdade, em muito ela não se determina,
mas sim é sutilmente guiada por energias externas que, por vezes, não nos atentamos para a
fonte e cometemos a ingratidão de atribuir os bons destinos em que aportamos ao acaso, ou
mesmo, por cega e falsa vaidade, a nós mesmos.
Findo aqui mais uma etapa do ciclo da vida, o que foi conquistado não por obra de
uma álea desordenada, ou por fruto de uma só voz. Ouço uma sinfonia de contribuições e a
cada membro desse conjunto presto estes singelos agradecimentos.
Ao Maestro, que, embora não o conheça e nem sempre o compreenda, reconheço
e sinto sua presença em cada passo dado.
Aos grandes guias, bússolas que jamais oscilam, verdadeiros intérpretes dos
comandos maestrais, meus pais, Roberto e Margareth, assim como àqueles que também me
acolheram ao chegar neste mundo e acompanham com especial zelo minha caminhada: Valda
e meu irmão, Roberto, junto com sua esposa e minha irmã por afinidade, Érica.
A todos os professores que compartilharam parte do seu saber no louvável ofício
da cátedra, em especial ao Professor Regnoberto, orientador não só destas linhas, mas também
de minha iniciação na atividade docente; assim como à Professora Mazé e ao Professor
Macedo pelas lições ofertadas e por me concederem a honra de tê-los como avaliadores nesta
última etapa do bacharelado.
A todos aqueles que me deram o benefício da confiança e me oportunizaram os
primeiros ares da primorosa prática jurídica: Drs(a). Cid Peixoto, Clécio Aguiar, Marcelo
Mesquita, José Valter, André Parente, Nelson Valença, Daniel Farias, Maurício Gomes,
Ângelo Barbosa, Ticiana, Francinilda, Maria de Lourdes, Glauciene, Cristiane, Júlia, Ana,
Sérgio, Jânio e Daniele.
Aos meus grandes amigos e companheiros de geração, que comigo caminham
rumo a um futuro próximo, em que deposito a esperança de que aperfeiçoemos o mundo que
nos foi dado, em especial aos amigos de longas datas: Mateus, Rodrigo, Nilo, Brenno, Samuel,
Victor, Vitor, Sueltoni, Davi, Eric, Nicholas e Roberto; assim como àqueles que acuradamente
me prestigiaram como amigos durante a graduação, com destaque para os caríssimos Joel,
Bruno, Vicente, Célio, Antônio Vitor, Roncalli, Sidney, Sara e Daline.
A todos, meus sinceros agradecimentos.
“Vós vos deleitais em fazer leis, e mais ainda em infringi-las. Como crianças brincando a
beira mar, que constroem pacientemente
castelos de areia e depois os destroem entre
risadas. Mas enquanto construís castelos de
areia, o oceano traz mais areia para a praia. E
quando as destruís, o oceano ri convosco. Em
verdade, o oceano sempre ri com os inocentes.”
RESUMO
O presente trabalho examina a possibilidade de uso do fator punição como critério de
quantificação de indenizações por danos morais no contexto brasileiro. Nesse sentido,
inicialmente, faz-se um levantamento de noções básicas da Teoria Geral do Direito, com
ênfase no instituto da sanção, para, a seguir, ingressar no estudo das funções da
responsabilidade civil e, então, na matéria principal do trabalho, culminando com uma visão
crítica sobre a compatibilidade do elemento punitivo com a sistemática civil pátria, no intuito
de averiguar a viabilidade jurídica da inserção de tal parâmetro para o cálculo da indenização
por danos imateriais. Em conclusão, afirma-se a abstrata compatibilidade do fator punição
com o ordenamento jurídico nacional, sem, contudo, adentrar no exame da justiça de tal
critério; ademais, pondera-se que a aplicação de uma sanção imbuída de caráter repressivo
exige prévia cominação legal, o que não existe no Brasil, razão pela qual, contrariando a
doutrina e a jurisprudência majoritárias, remata-se pela injuridicidade do elemento punitivo
nas indenizações por danos morais. Destarte, partindo de tal óbice, examinam-se os vários
critérios comumente adotados para a quantificação da sanção em apreço, filtrando-os sob a
ótica ressarcitória, para, assim, identificar aqueles que podem ou não ser manejados para tanto.
Salienta-se que, como metodologia, adota-se uma forma marcantemente expositiva, pautada
em pesquisa de cunho bibliográfico e jurisprudencial, cujo fim último consiste na verificação
da congruência lógica entre os estados doutrinário e normativo atuais e a solução dada à
liquidação dos danos morais pela jurisprudência hodierna.
ABSTRACT
This paper examines the possibility of using punishment as a quantification factor of damages
for pain and suffering in the brazilian context. In this sense, initially, it makes a basics survey
of the General Theory of Law, with emphasis on the institution of punishment, then it joins in
the study of the functions of civil liability and, therefore, the main subject of the work,
culminating with a critical view on the compatibility of the punitive element with the
homeland civil systematic, in order to assess the legal feasibility of the inclusion of this
parameter for the calculation of compensation for immaterial damages. In conclusion, it is
stated the abstract punishment compatibility factor with the national law, without, however,
entering the examination of such a criterion of justice, moreover, argued that the imposition of
a penalty imbued with repressive character requires previous legal imposition, which does not
exist in Brazil, which is why, contrary to the majority doctrine and jurisprudence, the punitive
element in compensation for moral damages is illegal. Thus, starting from this obstacle,
various criteria commonly adopted for the quantification of the penalty in this case are
examined, filtering the reparatory perspective to identify those who may or may not be
managed. It is relevant to note that, as a methodology, markedly expository form is adopted,
based on research literature and jurisprudence imprint, whose ultimate goal consists in
verifying the logical congruence between the current doctrine, normative status and the
jurisprudential answers for the damages liquidation nowadays.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ... 10
2 ONTOLOGIA E TELEOLOGIA PREAMBULARES ... 12
2.1 Da sanção ... 12
2.1.1 Norma, sanção e livre arbítrio ... 13
2.1.2 Da adequação da sanção ... 15
2.2 Do dano e da indenização ... 17
2.3 Das funções da responsabilidade civil ... 22
2.3.1 Da função reparatória ... 23
2.3.2 Da função preventiva ... 26
2.3.3 Da função punitiva ... 29
3 DO DANO MORAL ... 34
3.1 Conceito ... 34
3.1.1 Do conceito negativo ... 34
3.1.2 Do dano moral como perturbação subjetiva ... 36
3.1.3 Do dano moral como violação aos direitos da personalidade ... 38
3.1.4 Da nomenclatura ... 42
3.1.5 Do dano estético ... 43
3.2 Um breve histórico do dano moral no Brasil ... 44
3.2.1 A fase de negação total ... 45
3.2.2 O reconhecimento restrito ... 45
3.2.3 O pleno reconhecimento ... 46
3.3 Da natureza jurídica da indenização por dano moral ... 47
3.3.1 Teoria da pena ... 47
3.3.2 Teoria da compensação ... 49
3.3.3 Teoria mista ... 51
4 DANO MORAL E PUNIÇÃO: UMA ANÁLISE CRÍTICA ... 56
4.1 De uma análise argumentativa ... 56
4.1.1 Da incompatibilidade sistemática da ordem de punição com o Direito Civil pátrio ... 58
4.1.2 Da violação ao princípio da vedação ao enriquecimento sem causa ... 66
4.1.3 Das repercussões socioeconômicas do fator punitivo ... 69
4.1.4 Da violação ao princípio do ne bis in idem ... 73
4.1.5 Da violação ao princípio da legalidade ... 75
4.1.6 Conclusões parciais ... 83
4.2.1 Da extensão do dano ... 85
4.2.2 Das condições específicas da vítima ... 86
4.2.3 Da conduta e das condições específicas do ofensor ... 88
4.2.4 Da proporcionalidade ... 91
4.2.5 Do número de sujeitos lesados e da repetibilidade da conduta danosa ... 93
4.2.6 Do proveito obtido pelo ofensor em decorrência do dano causado ... 95
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 99
1 INTRODUÇÃO
A restauração do equilíbrio social, tão almejada quando ocorre a frustração de um
direito, está bem relacionada com o instituto da indenização, que possui o escopo de balancear
as relações viciadas, impondo-lhes harmonia.
Tal harmonia se mostra especialmente relevante em se tratando da atual rede
principiológica vigente, em que se privilegia o ser humano como um ente dotado de
autonomia finalística, é dizer: a sua importância jurídica não tem relação com a conquista de
um fim outro que não seja o enaltecimento do valor da própria dignidade, tida em um sentido
amplo de sociedade, e não restrita à comodidade de um único ser.
Ocorre que, em paralelo com a nobre missão de elevar a virtude humana, existem
interesses diversos que, muita vez, desencadeiam choques capazes de degenerá-la, o que é
potencializado pela intensidade com a qual se desenvolvem as relações hodiernas, marcadas
pela massificação e impessoalidade, que, além de comporem uma lógica de mercado, acabam
por influenciar um modo de vivência e convivência próprio.
Têm-se, contudo, no Direito, mecanismos voltados à salvaguarda do ser humano,
nos quais, valendo-se do norte apontado pela ordem jurídica vigente, sob a liderança da
dignidade e valores correlatos, impõem-se sanções àqueles que se desvirtuam da razão de
harmonia e equilíbrio que se preza em uma sociedade axiologicamente saudável, ao que se
destaca, no âmbito civilista, a importância do estudo da responsabilidade civil, com ênfase nas
ferramentas de tutela da dignidade humana, cuja principal marca se reflete na figura da
indenização por danos morais.
Destarte, o aprofundamento do estudo da temática proposta assume relevância
ímpar, pois aponta em direção ao aperfeiçoamento teórico dessa proeminente ferramenta
jurídica, na consolidação da justiça no caso concreto. Portanto, a partir de uma melhor
compreensão do tema em voga, pretende-se, mediante um juízo crítico, aperfeiçoar sua
aplicação, adequando-a aos fundamentos teóricos que a embasam e ao contexto normativo no
qual se insere no sistema brasileiro.
Nesse sentido, as presentes linhas se propõem a expor de forma reflexiva o
modelo de responsabilidade civil vigente no atual ordenamento jurídico pátrio, com ênfase no
estudo do dano moral e seus critérios de liquidação, oportunidade em que será privilegiada a
análise do aspecto punitivo da respectiva indenização, acompanhada de uma abordagem
Dada a proposta encimada, pretende-se responder se, perante a estrutura
normativa atualmente vigente no Brasil, é realmente condizente a utilização do fator punição
como critério da quantificação da compensação por danos extrapatrimoniais. Para tanto,
adianta-se que o raciocínio em amanho será, por didática, subdividido em três momentos.
Em um primeiro capítulo, expor-se-á um breve retrato acerca do instituto da
sanção, oportunidade em que se valerá de noções oriundas da Teoria Geral do Direito, para,
logo em seguida, ingressar no estudo do dano civil e da principal ferramenta para sua correção:
a indenização, culminando com o repasse da teleologia que a envolve.
No capítulo segundo, tendo ciência dos conceitos e finalidades gerais entabulados
no momento precedente, direcionar-se-á o foco da pesquisa em prol de uma melhor
compreensão da figura dos danos morais, ao que serão apresentadas as diversas visões de tal
instituto, tanto no que concerne a sua significação, quanto à natureza jurídica, acompanhada
de um breve apanhado histórico acerca do reconhecimento jurídico de tal tipologia do dano no
contexto do ordenamento jurídico brasileiro.
Superados os dois primeiros capítulos, restarão solidificadas as bases para a
apreciação crítica do teor punitivo impresso no arbitramento da indenização por danos morais
pela doutrina e jurisprudência majoritárias, conforme será feito no terceiro capítulo, em que se
almeja a resposta ao questionamento primordialmente proposto acerca da juridicidade do fator
punição na seara da compensação por danos imateriais, para que, então, possam-se analisar os
critérios normalmente postos pela doutrina e jurisprudência naquilo que toca à quantificação
da sanção indenizatória, o que será feito sob um prisma crítico, no intuito de averiguar a real
compatibilidade dos mesmos com o todo sistemático em que se inserem.
Urge salientar que, como metodologia, adota-se um modelo voltado à pesquisa
bibliográfica e jurisprudencial, sob a ótica de um discurso aberto e expositivo, no qual será
privilegiado o incentivo à reflexão dos conceitos apresentados, à exceção do terceiro capítulo,
em que, afastando-se da neutralidade, demonstrar-se-á posicionamento conclusivo a respeito
do questionamento proposto.
2 ONTOLOGIA E TELEOLOGIA PREAMBULARES
2.1 Da sanção
Preambularmente, antes de se adentrar na matéria focal deste estudo, é salutar
realizar prévio apurado teórico acerca do Direito e sua finalidade, para que, então, viabilize-se
uma abordagem segura do instituto da indenização, a partir de sua inserção como ferramenta
de concretização do todo ao qual pertence: a Ciência Jurídica.
Sendo assim, de imediato, é imprescindível mencionar a louvável conceituação
construída pelo doutrinador Miguel Reale, em suas “Lições Preliminares”, ao apresentar a Teoria Tridimensional do Direito, veja-se:
Direito é a realização ordenada e garantida do bem comum como numa estrutura tridimensional bilateral atributiva, ou, de uma forma analítica: Direito é a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores.1
Da conceituação exposta, percebe-se elevado teor ético, por meio do qual se
ressalta a noção de bem comum como norte das relações de convivência a serem tuteladas
pelas normas. Tem-se, portanto, vinculação entre a finalidade do Direito e a concretização do
ideal de justiça, conforme conclui o mencionado autor: “Direito é a concretização da ideia de justiça na pluridiversidade de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os
valores.”2
.
Urge salientar que a opção por elevar a conceituação proposta por Miguel Reale
no patente estudo se deu em decorrência do Estado Democrático de Direito em que se vive,
consagrado por uma Constituição Federal pautada na preservação dos denominados direitos e
garantias fundamentais. Desta feita, a visão afirmativa e esperançosa do Direito como objeto
teleologicamente voltado à consagração da justiça encontra respaldo no arcabouço
principiológico da ordem jurídica pátria, no qual o norte axiológico a designar a concretização
do justo é constituído pela dignidade da pessoa humana, que assume o papel de fundamento
material da unidade da Constituição3.
1 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 67. 2
Ibidem, Loc. cit.
3 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e Unidade Axiológica da Constituição. 3. ed. Belo
Discorrido a respeito da finalidade para a qual se volta o Direito, importa perquirir
acerca de sua adequação, ou seja, potencialidade de alcançar o fim visado, afinal, no molde da
conceituação feita por Reale, estando o Direito vinculado à consecução do bem comum e da
justiça, caso não possua meios adequados à própria efetivação, estará fadado ao total
esvaziamento do sentido de sua existência.
Sabiamente, no bojo do próprio conceito de Direito, Reale não olvidou a
necessidade de adequação e já inseriu a noção de coercibilidade. Explica-se: a derradeira
adequação do direito, idealmente, identifica-se com o espontâneo cumprimento das
disposições normativas, à proporção que a ordem jurídica é aceita de forma plena pela
sociedade, que a respeita sem qualquer necessidade de imposição externa, todavia, tal
pensamento não ultrapassa os limites da utopia. Em verdade, constantemente as condutas
dissonam dos preceitos normativos, exigindo-se, assim, a imposição coercitiva para adequar
os fatos ao Direito.
Assim, superada a árdua tarefa de identificar a solução de um litígio, resta
pendente a igualmente difícil missão de assegurar a transmutação de um imperativo deôntico,
formalizado em uma decisão, na alteração da realidade fática, garantindo, assim, a efetividade
do Direito como ordenador da conduta humana, ao que se invoca o conceito de coercibilidade.
É através do potencial coercitivo do Direito que se efetiva, de fato, a norma
jurídica, destacando-se, para tanto, o instrumento da sanção, como fator constituinte da
coerção. Nas palavras de Reale, sanção “é todo e qualquer processo de garantia daquilo que se
determina em uma regra”4
, portanto, extrai-se que a adequação do Direito está enraizada no
aprofundamento do estudo das sanções.
2.1.1 Norma, sanção e livre arbítrio
A enorme variedade de condutas resultantes da volição humana redunda em
igualmente farto número de relações interpessoais, cujo desenvolvimento, em prol da
harmonia e equilíbrio social, deve ser submetido ao crivo do arcabouço jurídico vigente.
Dessa sorte, filtra-se o livre arbítrio, ou ao menos as consequências de tal
liberdade primária, mediante a cominação de normas jurídicas, manejando-se, caso necessário,
o preceito secundário da lei: a sanção.
Urge salientar que não se devem esquecer as chamadas sanções premiais, por
meio das quais se busca a consagração de uma norma através do incentivo ao seu
cumprimento, e não pela repressão ao descumprimento, no entanto, para efeitos do presente
estudo, sempre que se fizer alusão à palavra sanção, estar-se-á reportando ao seu aspecto
repressivo.
Nota-se, assim, que a sanção possui a relevante e complexa tarefa de confirmar os
comandos jurídicos, o que faz mediante dois enfoques principais: a ordem de restituição e a
ordem de pena.
Explicando as noções anunciadas, Francesco Carnelutti esclarece que a ordem de
restituição caracteriza a capacidade de a sanção devolver os fatos à forma anterior à
desobediência de um preceito normativo. No tocante à ordem de pena, aduz o mencionado
autor que a sanção denuncia ao agente que pretende ofender a ordem jurídica uma
desvantagem para fazer frente à vantagem que vislumbra ao infringir uma norma5.
Importa perceber que a sanção, através dos mecanismos de atuação prefalados,
não é capaz de, por si só, determinar a obediência à lei; em verdade, ela apenas funciona,
mediante a alteração da cadeia de causalidade, como um argumento em prol do cumprimento
da norma, a participar no processo volitivo do agente infrator.
Atento à incapacidade da sanção em determinar o respeito às normas jurídicas,
Carnelutti trata tal fato através de uma visão economicista, pela qual a sanção visa à
manipulação dos fatos, através da economia, em prol da imposição da ética. Neste sentido, é
interessante expor as palavras do autor: “[...] a sanção opera criando um interesse contrário à violação, e, por conseguinte, resolvendo o conflito intersubjetivo de interesses num conflito
entre dois interesses da mesma pessoa.”6.
Assim, nota-se que as funções da sanção podem ser categorizadas em espécies, a
partir de uma visão subjetiva do fenômeno: primeiramente, sob a ótica do agente infrator,
ressalta-se na sanção uma função repressiva, por meio da qual se almeja tornar desinteressante
a prática do ilícito; por outro ângulo, agora sobre a ótica do sujeito lesado, tem-se que a
sanção possui uma função reparadora, visando à restituição ao status quo ante daquele que
sofreu prejuízo.
Por último, analisando de forma global o papel da sanção, tem-se que nela consta
função de amparo na instauração do estado de segurança jurídica, que é essencial na formação
de uma sociedade harmônica e equilibrada, em que as pessoas sintam-se confortáveis para
relacionarem-se, já que salvaguardadas de eventual antijuridicidade.
2.1.2 Da adequação da sanção
Questão relevantíssima e que espelha incontáveis querelas práticas na ratificação
da norma jurídica, consiste na respectiva identificação da sanção adequada, para tanto, é
imprescindível estudar os efeitos sociais que ela produz, afinal, como instrumento de ação
voltado ao ser humano, seu grau de eficácia está enraizado na postura com a qual os seus
destinatários a receberão.
Nesse sentido, há de ser enaltecida a razão de proporcionalidade entre o ilícito
praticado e a consequente sanção. É interessante notar que, até mesmo em sociedades antigas,
como a babilônica, em seu Código de Hamurabi (1780 a.C), é possível identificar a
preocupação com a proporcionalidade das sanções, mesmo que de forma rudimentar,
conforme estabelecido no célebre brocardo: “olho por olho, dente por dente”.
Almejando a compreensão da necessidade do balanceamento das cominações
legais, invocam-se as palavras do pensador Charles de Montesquieu, que muito bem
desenvolveu essa ideia em sua obra “Do Espírito das Leis”, o que se constata mediante o
seguinte exemplo enunciado pelo autor:
Na China, os ladrões cruéis são esquartejados, e os outros não o são, essa diferença faz com que se roube, mas não se assassine. Na Moscóvia, onde a pena para o ladrão e para o assassino é a mesma, assassina-se sempre: os mortos, dizem, nada podem revelar.7
Apesar de a data da citada reflexão ser anacrônica e os exemplos nela utilizados
parecerem esdrúxulos perante a atual realidade constitucional, insculpida no princípio da
dignidade humana, a lição que se pode extrair de tão antigo texto ainda hoje é relevante, pois
demonstra um evidente amadurecimento do valor da proporcionalidade, permitindo a
otimização da eficácia da norma a partir da compreensão de sua repercussão social.
Portanto, a valoração das condutas a serem subsumidas em normas deverá seguir
uma razão de proporcionalidade, em que se adequem as consequências do agir considerado
ilícito à natureza da própria ilicitude, criando uma escala de valores orientadora do grau de
reprovação dos atos.
Complementando o raciocínio apresentado, é precioso mencionar que Francesco
Carnelutti enfatiza que a adequação da sanção deve ser feita de tal forma que “o contra -estímulo seja de tal ordem que supere o -estímulo, mas só na medida do necessário e não
mais”8
. Assim, o autor novamente invoca a noção de economia, pela qual a sanção deve ser
voltada a tornar desvantajosa a conduta ilícita e tão somente isso, sob pena de infligir um mal
maior do que aquele que se pretende sancionar.
Apegado à premissa do direito como imbuído da função de reduzir a economia à
ética, Carnelutti critica a adequação da sanção por meio do critério abstrato da justiça, através
do qual se entregaria a proporcionalidade da sanção a um senso subjetivo de retribuição do
mal causado com um aflitivo sancionador equivalente. Assim, defende que:
Arrogar-se alguém um poder de retribuição, isto é, de distribuição do bem e do mal, é, além do mais, um pecado de soberba, que seria imperdoável se não fosse atenuado pela ignorância. Por tal razão, no campo do direito, a justiça da pena traduz-se na relação econômica entre o mal causado e o mal a infligir para que não se cause maior mal: só ne peccetur é lícito infligi-lo quia peccatum est.9
Além da moderação da intensidade da força coercitiva, o aspecto qualitativo da
sanção também deve ser estudado sob a ótica da proporcionalidade, pois a sua forma deve ser
adequada aos sujeitos e valores que pretende tutelar. Novamente, far-se-á uso do pensamento
de Montesquieu para esclarecer a matéria:
Em nossos dias, a deserção foi muito freqüente; estabeleceu-se a pena de morte contra os desertores, mas ela não diminuiu. A explicação é bem simples: um soldado, acostumado a expor cotidianamente a própria vida, despreza ou gaba-se de desprezar o perigo. Mas ele foi acostumado a temer diariamente a desonra: bastava, pois, aplicar-lhe uma pena que o infamasse por toda a vida. Pretendeu-se aumentar a pena, mas esta, na realidade, foi diminuída.10
Enriquecendo a discussão, Carnelutti, referindo-se a sua divisão da finalidade das
sanções entre ordem de restituição e ordem de pena, elucida que a própria diferença da função
assumida pela sanção implica em distinção qualitativa de sua essência. Explica o autor:
[...] a restituição resolve-se no sacrifício de um interesse idêntico, e a pena no sacrifício de um interesse diverso do interesse a sacrificar segundo o preceito; correlativamente, a restituição tem caráter de satisfação e a pena, caráter aflitivo.11
Pelo exposto, percebe-se que a consagração de uma norma não prescinde da
sanção por ela estabelecida, dependendo de um correto balanceamento da força estatal a ser
8 CARNELUTTI, Francesco. Op. cit, p. 122. 9
Ibidem, p. 123.
aplicada no caso concreto, o que é encontrado através do princípio da proporcionalidade,
mediante a adequação da sanção em sua intensidade e qualidade.
Obtempera-se que o estudo da adequação da sanção se faz imperioso em todos os
ramos da Ciência do Direito e requer amadurecimento de noções jurídicas, a partir da
compreensão do ato ofensivo como fruto do agir humano e influenciável através da adequada
manipulação da cadeia de causalidade resultante de sua prática.
Superadas tais considerações iniciais, passar-se-á ao estudo específico da
responsabilidade civil, sob o instituto da indenização, que nada mais é do que uma das
principais formas, senão a principal, de sanções existentes na sistemática civilista hodierna.
2.2 Do dano e da indenização
O Direito, em sua comentada finalidade de consolidação da justiça12, presta-se a corrigir os desvios provocados ao longo do processo de convivência humana, o que faz
mediante o manejo de diversas ferramentas, representadas por sanções jurídicas pertencentes
aos variados ramos da ciência em discurso.
Cada desvio pode ser entendido como uma lesão a direito e, quando tal mácula
atinge a seara cível, a sanção marcantemente desencadeada é exatamente a indenização13. Percebe-se, assim, que a responsabilidade civil e a sanção indenizatória estão vinculadas ao
intuito de retificar um desvirtuamento ocorrido na esfera de direitos de que cuidam; conforme
anunciou José de Aguiar Dias: “O interesse em restabelecer o equilíbrio econômico-jurídico14
alterado pelo dano é a causa geradora da responsabilidade civil.”15
.
12 Cf. item 2.1.
13 Apesar de a sanção indenizatória ser a grande marca do Direito Civil, Sérgio Cavalieri Filho pondera que: “O
ordenamento jurídico muitas vezes admite sanções distintas da obrigação de indenizar. Ora a sanção será a nulidade do ato, ora a perda de um direito processual ou material, e assim por diante.”. (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 174).
14 Obtempera-se que o objetivo de restabelecer o equilíbrio econômico representa uma ideia afeita ao período
anterior à Constituição Federal de 1988, uma vez que, a partir do novel Diploma Maior, elevou-se a cláusula geral de proteção à dignidade da pessoa humana, em razão da qual a indenização não necessariamente será uma forma de resguardar o equilíbrio meramente econômico, alcançando, também, o escopo de tutelar o equilíbrio de direitos extrapatrimoniais, que, embora não restituíveis in natura, podem ser, na medida do possível, compensados pecuniariamente. Expondo tal vertente, Maria Celina Bodin de Moraes é clara ao
afirmar: “Se, até então, o ordenamento jurídico se ocupava apenas do patrimônio, a integridade psicofísica da
pessoa humana, e, em particular, sua dignidade, iriam transformar-se em aspecto nuclear do Direito Civil brasileiro basicamente após a Constituição de 1988; na França, esse processo já ocorria, por obra da
jurisprudência, desde o início do século XX.”. (MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 186).
Destarte, da premissa de que a causa geradora da responsabilidade cível é, de fato,
a necessidade de restaurar uma situação de estabilidade violada, outrossim em ciência de que
o mecanismo atualmente mais condizente com tal intuito é a indenização, conclui-se que,
finalisticamente, é preciso que a sanção indenizatória seja moldada a partir do desvio ao qual
prestará a correção, o que se justifica em honra ao anseio de adequação da ferramenta à tarefa
desempenhada.
Urge salientar a técnica defendida por José de Aguiar Dias em não confundir,
quando da ocorrência de um prejuízo, a natureza do direito violado com a natureza do próprio
dano, o que implica em dizer que não é a natureza do direito violado que irá determinar, a
princípio, o critério indenizatório, o que será identificado, em verdade, a partir da repercussão
danosa do desvio ocorrido16.
Esclarecendo a ideia, José de Aguiar Dias pondera que:
A distinção [entre dano moral e material], ao contrário do que parece, não decorre da natureza do direito, bem ou interesse lesado, mas do efeito da lesão, do caráter e da repercussão sobre o lesado. De forma que tanto é possível ocorrer dano patrimonial em consequência de lesão a um bem não patrimonial como dano moral em resultado de ofensa a bem material.17
Nesse sentido, exemplifica Paulo Nader:
A ocorrência do dano patrimonial não requer, necessariamente, que o agente atinja diretamente bens materiais, pois é possível que advenha, reflexamente, de ofensas morais à vítima. Se um órgão de imprensa, levianamente veicula calúnias contra um diretor de estabelecimento de ensino, envolvendo a prática de pedofilia com alunos, a conduta do agente é meio eficaz para provocar danos patrimoniais à vítima, pois inevitavelmente ocorrerá a evasão de alunos e, com ela, os prejuízos tanto por danos emergentes quanto por lucros cessantes.18
Seguindo tal linha de pensamento, diferencia-se a causa (lesão de um direito) com
os efeitos dela decorrentes (danos)19, de forma que a indenização, pautando-se na ideia de consertar o desvio ocorrido, volta-se para a essência do dano sofrido, e não do direito lesado,
portanto, nesse sentido, o estudo da indenização merece ser feito em paralelo com a tipologia
do dano a que se refere. Salienta-se que, oportunamente, tal raciocínio será retomado e
contextualizado ao estudo dos danos morais20.
16 MINOZZI. Studio sul danno non patrimoniale. 3 ed. Milão, 1917, p.59 apud MELO DA SILVA, Wilson. O
Dano Moral e sua Reparação. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 343.
17
DIAS, José de Aguiar. Op. cit, 812.
18 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Gen e Forense, 2010.
7 v, p. 84.
19
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 3 v, p. 114.
É bem verdade que parte da doutrina não vislumbra maiores querelas a respeito do
elemento “dano”, a exemplo de José de Aguiar Dias, ao afirmar que “O dano é, dos elementos
necessários à configuração da responsabilidade civil, o que suscita menos controvérsia.”21, contudo a relevância do dano não é mitigada por tal afirmação, uma vez que, em termos de
responsabilidade civil, voltam-se, cada vez mais, os olhares para a apreciação dos prejuízos,
que, no dizer de Sérgio Cavalieri Filho, protagonizam o papel de “grande vilão da responsabilidade civil”22
.
Tal importância se deve ao fato de que, nas palavras de Sérgio Cavalieri Filho:
Não haveria que se falar em indenização, nem em ressarcimento, se não houvesse o dano. Pode haver responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade sem dano a outrem. A obrigação de indenizar só ocorre quando alguém pratica ato ilícito e causa dano a outrem. O dano encontra-se no centro da regra de responsabilidade civil. O dever de reparar pressupõe o dano e sem ele não há indenização devida. Não basta o risco de dano, não basta a conduta ilícita. Sem uma consequência concreta, lesiva ao patrimônio econômico ou moral, não se impõe o dever de reparar.23
O próprio Código Civil de 2002 é claro ao anunciar o estreito vínculo entre
indenização e dano, na dicção dos arts. 186 e 927, caput e parágrafo único; neste último
verifica-se, inclusive, que a responsabilidade civil pode até mesmo prescindir da culpa, mas
jamais do dano24.
Ademais, urge salientar que o instituto do dano não parece ser de contexto tão
claro, a despeito do que afirmou José de Aguiar Dias; é certo que a premissa geral acerca da
necessidade de reparar os danos possui estabilidade, contudo a identificação do dano, assim
como sua mensuração e consequente saneamento tem sofrido severas transformações ao longo
dos tempos25.
aspecto da violação de direitos da personalidade. Nesse sentido, observar o item 3.1.3.
21 DIAS, José de Aguiar. Op. cit, p. 792. 22 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit, p. 76. 23
Ibidem, p. 77.
24 Em sentido diverso, Tereza Ancona Lopes defende que é sim possível a responsabilidade civil diante de
hipóteses em que ainda não se configurou o dano, mas, tão somente, a ameaça do dano. (LOPEZ, Teresa Ancona. Principio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010). Em contraponto, Rui Stoco pondera que os exemplos dados pela mencionada autora para embasar sua tese representam situações em que verdadeiramente resta identificado dano, e não mera ameaça, leia-se: “Não obstante o brilho da sustentação, não aderimos a esse entendimento [possibilidade de responsabilização civil sem a ocorrência de dano], seja por entender que sem dano não há reparação, seja porque os exemplos invocados para dar supedâneo à afirmação constituem hipóteses em que o dano está presente e mostra-se efetivo, não se tratando de mera ameaça ou “risco provável e incerto”de dano.” (STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2011, p. 152).
25 Nesse sentido são as palavras de Paulo Nader: “A ideia, por exemplo, de que os danos, dolosa ou
Exemplo clássico de modificação da visão sobre o dano consiste no relativamente
recente acolhimento jurídico dos danos morais, que somente ganhou expresso destaque
normativo com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Citam-se ainda as inúmeras
controvérsias surgidas a respeito da possibilidade de cumulação de danos morais e
patrimoniais, haja vista o argumento de que o dano material absorveria o moral26, entendimento que se mostrou superado com a súmula n° 3727 do Superior Tribunal de Justiça. Enaltece-se, também, a construção jurisprudencial a respeito do reconhecimento do
denominado dano estético, por meio da súmula n° 38728 do STJ.
Ademais, inúmeras construções tanto de origem jurisprudencial como doutrinária
colocam a temática da identificação do dano em relevo; sobre tal aspecto é notável que,
quando uma nova teoria sobre o dano ganha espaço, por decorrência lógica da importância do
assunto, a própria estrutura da responsabilidade civil é alterada, o que majora o imperativo de
atenção no estudo de tal matéria.
Nesse sentido, é necessário perceber que as próprias categorias de dano já
existentes tem sofrido mutações no cotidiano forense, ao que se destaca o elastério
jurisprudencial de hipóteses de configuração de danos morais29, oportunidade em que se criam novos desdobramentos da tutela da dignidade humana, a exemplo da recente doutrina do dano
existencial30 na esfera trabalhista, cuja aplicação tem relação com o dano ao projeto de vida e às relações interpessoais que sofre o empregado que presta jornada de trabalho majorada
habitualmente31.
lesar outrem”).” (NADER, Paulo. Op. cit, p. 60).
26
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit, p. 92.
27 São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato. (Súmula 37,
CORTE ESPECIAL, julgado em 12/03/1992, DJ 17/03/1992 p. 3172, REPDJ 19/03/1992 p. 3201).
28
É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral. (Súmula 387, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/08/2009, DJe 01/09/2009).
29 Maria Celina Bodin de Moraes é atenta ao anotar que: “Seja pelo significativo desenvolvimento dos direitos
da personalidade, seja pelas vicissitudes inerentes a um instituto que só recentemente tem recebido aplicação mais intensa, a doutrina vem apontando uma extensa ampliação do rol de hipóteses de dano moral
reconhecidas jurisprudencialmente.” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit, p. 165).
30 Sobre o assunto, conferir: SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade Civil por Dano
Existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
31 Os danos existenciais já se mostram presentes na jurisprudência pátria, veja-se: “DANO EXISTENCIAL.
JORNADA EXTRA EXCEDENTE DO LIMITE LEGAL DE TOLERÂNCIA. DIREITOS
FUNDAMENTAIS.O dano existencial é uma espécie de dano imaterial, mediante o qual, no caso das relações de trabalho, o trabalhador sofre danos/limitações em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo tomador do trabalho. Havendo a prestação habitual de trabalho em jornadas extras excedentes do limite legal relativo à quantidade de horas extras, resta configurado dano à existência, dada a violação de direitos fundamentais do trabalho que traduzem decisão jurídico-objetiva de valor de nossa Constituição. Do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana decorre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do trabalhador, do qual constitui projeção o direito ao
Outro aspecto de notável controvérsia é sobre o dano oriundo da perda de uma
chance32, que sequer chega a ser alvo de uma definição pacífica acerca de sua natureza jurídica, uma vez que a jurisprudência oscila, por vezes concedendo a respectiva indenização
a título de danos morais, outras vezes em sede de dano patrimonial33, variando ainda entre o reconhecimento de tal feito em sede de lucros cessantes ou danos emergentes, existindo
também quem considere a perda de uma chance como um terceiro gênero de dano patrimonial,
a se posicionar entre o conceito de lucro cessante e dano emergente34.
Interessante também mencionar o pensamento de Antônio Junqueira de Azevedo,
que defende o reconhecimento de uma nova categoria de dano denominada pelo autor de
“Danos Sociais”35, que, segundo afirma, são ofensas que extrapolam a individualidade e representam uma afronta à qualidade de vida de toda a sociedade, rebaixando, a nível geral, o
patrimônio moral social, devendo, por conseguinte, dar ensejo a um quantum indenizatório
independente da condenação por danos morais e patrimoniais.
Com efeito, a partir do exposto, notam-se consideráveis controvérsias a respeito
da amplitude do conceito de dano, que, muito embora não sejam o foco do presente estudo,
mereceram as breves considerações encimadas, como forma de enaltecer a importância de um
acurado repasse crítico dos institutos tradicionais da responsabilidade civil.
(BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 4º Região. Recurso ordinário, nº 11379320105040013 RS 0001137-93.2010.5.04.0013, Relator: JOSÉ FELIPE LEDUR, Data de Julgamento: 16/05/2012, 13ª Vara do Trabalho de Porto Alegre).
32
Sobre o tema, conferir: SAVI, Sérgio. Responsabilidade Civil por Perda de Uma Chance. São Paulo: Atlas, 2012.
33 O Superior Tribunal de Justiça já chegou a se pronunciar sobre o assunto, oportunidade em que estabeleceu a
possibilidade de a perda de uma chance ser aplicável tanto em sede de danos morais, quanto patrimoniais. Veja-se a ementa do julgado: “PROCESSUAL CIVIL E DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE DE ADVOGADO PELA PERDA DO PRAZO DE APELAÇÃO. TEORIA DA PERDA DA CHANCE. APLICAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. ADMISSIBILIDADE. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. NECESSIDADE DE REVISÃO DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7, STJ.
APLICAÇÃO. - A responsabilidade do advogado na condução da defesa processual de seu cliente é de ordem contratual. Embora não responda pelo resultado, o advogado é obrigado a aplicar toda a sua diligência habitual no exercício do mandato. - Ao perder, de forma negligente, o prazo para a interposição de apelação, recurso cabível na hipótese e desejado pelo mandante, o advogado frustra as chances de êxito de seu cliente. Responde, portanto, pela perda da probabilidade de sucesso no recurso, desde que tal chance seja séria e real.
Não se trata, portanto, de reparar a perda de “uma simples esperança subjetiva”, nem tampouco de conferir ao
lesado a integralidade do que esperava ter caso obtivesse êxito ao usufruir plenamente de sua chance. - A perda da chance se aplica tanto aos danos materiais quanto aos danos morais. - A hipótese revela, no entanto, que os danos materiais ora pleiteados já tinham sido objeto de ações autônomas e que o dano moral não pode ser majorado por deficiência na fundamentação do recurso especial. - A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial. Aplicação da Súmula 7, STJ. - Não se conhece do Especial quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles. Súmula 283, STF. Recurso Especial não conhecido.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp
1079185/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/11/2008, DJe 04/08/2009). (grifo nosso)
34
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit, p. 84.
35 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na Responsabilidade Civil: O Dano
Esclarecida a noção de dano, reitera-se que a ferramenta jurídica apta a
solucioná-lo é a sanção indenizatória. Nesse sentido é a lição conceitual de Márcus Cláudio Arquaviva,
segundo o qual o termo indenização se traduz em “tornar indene, ou seja, incólume, íntegro,
ileso, enfim, como se não ocorresse dano”36
.
Nota-se que, segundo a etimologia, o termo indenização se reporta ao teor
estritamente reparatório da responsabilidade civil, sob a presunção de que a reposição
pecuniária seria idônea para retroagir o contexto fático em que se constata prejuízo a um
momento anterior de equilíbrio, no entanto, na prática, a semântica de tal palavra é bem mais
extensa, comportando, também, a noção de sanção ao dano moral, o que estende seu
significado à sinonímia do termo compensação, cuja técnica será oportunamente explorada.
Salienta-se que, em termos constitucionais, paira sobre o assunto em apreço certa
vacância, haja vista que, embora a Lei Maior de 1988 tenha prestigiado o direito à
indenização, elevando-o à categoria de direito fundamental, na forma de seu art. 5º, V e X37,
não esclareceu a extensão do termo “indenização” empregado em seu texto, destinando tal
tarefa à doutrina, jurisprudência e aos meios normativos infraconstitucionais.
Destarte, diante da constatação de que a indenização é uma ferramenta jurídica
própria da seara cível e voltada para a eliminação de danos, a sua compreensão imprescinde
de um maior aprofundamento das funções da responsabilidade civil, que serão abordadas no
tópico seguinte.
2.3 Das funções da responsabilidade civil
Em primeiro plano, alerta-se que as reflexões até o momento expostas sobre a
finalidade das sanções e do próprio Direito devem ser mantidas em voga quando da análise da
responsabilidade civil, ao que se incentiva a criticidade, pois o ramo específico deve guardar
congruência com suas raízes gerais; dito isso, passar-se-á ao exame das funções da
responsabilidade civil.
36 ARQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Jurídica Brasileira,
2004, p. 732.
37
Tradicionalmente, a doutrina elenca três dimensões basilares da finalidade da
responsabilidade civil, quais sejam: função de reparação, prevenção e punição38, que serão a seguir destrinchadas.
Em paralelo com o padrão classificatório mencionado, mostra-se salutar a
visualização do fenômeno sob a perspectiva do Professor Regnoberto Marques de Melo Júnior,
que elenca a funcionalidade da responsabilidade civil sob dois parâmetros primordiais: função
sancionatória política e função sancionatória patrimonial39, que, nas palavras do autor, assim se diferenciam:
De um lado, a função sancionatória política, que se especa na segurança jurídica que etiologicamente garante constitucionalmente a indenização ao lesado [refere-se aqui ao art. 5º, V e X, da CRFB] [...]. Doutro, a função sancionatória patrimonial, que ao tempo em que indeniza o dano (pela reparação do prejuízo, recompondo o fato ao status quo ante), infringe punição ao lesador a título de desencorajamento à repetição.40 (grifos do autor)
2.3.1 Da função reparatória
Para compreender a função reparatória da responsabilidade civil, é importante
destacar um princípio estrutural da convivência social: o dever de não lesar outrem. Tal
obrigação se encontra assinada na máxima “honestae vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere”, ou seja, viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu41.
A partir da basilar noção de convivência pautada no dever de não lesar, denota-se
a relevante função reparatória da responsabilidade civil, à medida que viabiliza o conserto de
eventual distorção da cláusula geral de respeito ao próximo.
Salienta-se que, quanto ao efeito de saneamento dos danos, a perspectiva
reparadora se assimila a um dos aspectos da função sancionatória patrimonial retrocitada, mas
com ela não se identifica em sua plenitude, pois, na classificação de Regnoberto Marques de
Melo Júnior, reconhece-se na função sancionatória patrimonial também um teor punitivo, que
muito se assemelha com a lógica entabulada por Francesco Carnelutti, na oportunidade em
38
NADER, Paulo. Op. cit, p. 14.
39 MELO JÚNIOR, Regnoberto Marques de. Critério jurídico do quanto do dano no direito civil
brasileiro. Revista da Faculdade de Direito: Edição comemorativa dos 110 anos de fundação da Faculdade Livre de Direito do Ceará, Fortaleza, v. 34, n. 1, p.485-495, 01 jan. 2013. Semestral.
40 Ibidem, p. 487.
que vislumbrou o fenômeno sancionatório sob a perspectiva subjetiva dos efeitos por ela
provocados aos sujeitos lesante (ordem de pena) e lesado (ordem de restituição)42.
Assim, é importante notar que a razão de reparação está pautada precipuamente na
devolução dos fatos ao status quo ante ao dano causado, por meio da noção de restitutio in
integrum; seguindo essa lógica, verifica-se que a função reparatória encontra sua delimitação
no montante de dano sofrido pela vítima, pautando o paradigma de sua quantificação não na
conduta (culpa) do agente, mas sim na figura do ofendido, de tal sorte que a indenização, sob
tal ângulo, é determinada com base no exato dano sofrido pela vítima.
Logo, caso o ofensor atue com culpa grave ou dolo, para efeitos civis reparatórios
é irrelevante, pois sua responsabilidade, sob tal ótica, não será agravada por tal fator, estando
limitada à eliminação do dano causado. Outrossim, na hipótese de atuar com displicência
escusável, seu dever indenizatório restará igualmente pautado na objetividade do prejuízo
sofrido pela vítima43.
No entanto, apesar do aparente rigor empírico com que se estabelece a função
reparatória, encontra-se, no parágrafo único do art. 944 do CCB44, critério que excepciona a regra segundo a qual a indenização é escalonada estritamente com base na extensão do dano,
oportunidade em que se elege o grau de culpabilidade como parâmetro apto a mitigar o
quantumindenizatório, desde que haja “excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o
dano”.
O cotejamento do grau da culpa do ofensor, conforme aponta a doutrina, reflete a
positivação de uma hipótese em que o legislador permite ao julgador o manuseio da
ferramenta da equidade para a melhor aplicação da justiça, haja vista a ponderação segundo a
qual não seria justo que alguém, por levíssima culpa, fosse responsabilizado por danos de
grande monta. Assim explana Silvio Rodrigues:
Tal solução [indenização sem consideração do grau de culpa] por vezes se apresenta injusta, pois não raro de culpa levíssima resulta dano desmedido para a vítima. Nesse caso, se se impuser ao réu o pagamento da indenização total, a sentença poderá conduzi-lo à ruína. Então estar-se-á apenas transferindo a desgraça de uma parte para outra pessoa, ou seja, da vítima para aquele que, por mínima culpa, causou prejuízo.45
42
Cf. Item 2.1.1.
43
Tal critério possui raízes na Lex Aquilia, na qual consta que “in Lex Aquilia et levíssima culpa venit”, ou seja, ainda que a culpa fosse levíssima, a reparação deveria ser efetuada na proporção do dano causado.
44 BRASIL. CCB/02. Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver
excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.
Noutro giro verbal, assevera-se que o dispositivo legal em comento sofre severas
críticas que variam desde sua inconstitucionalidade46, até a justiça do critério político de escolha de quem irá suportar o ônus do dano, uma vez que, em última razão, alguém (sujeito
lesado ou lesante) arcará com o prejuízo, nesse sentido:
O dispositivo [art. 944, parágrafo único, do CCB] é exceção ao princípio da reparação integral do dano e tem como principal consequência reduzir o ônus excessivo que recairia sobre o agente. Todavia, não se pode deixar de notar que tal ônus é transferido para a vítima, que passa a arcar com a parcela do dano correspondente à redução procedida pelo juiz. E, sob esta ótica, o parágrafo único do art. 944 perde um pouco do seu sentido, já que, se não é justo onerar excessivamente o agente que agiu com culpa leve, menos justo ainda seria onerar a vítima que não agiu com culpa alguma.47
Em remate, reitera-se que, embora a regra seja o cotejamento da indenização a
partir do valor do prejuízo causado, o ordenamento jurídico pátrio admite, excepcionalmente,
a incidência da culpa, por motivo de equidade, para mitigar o valor da reparação, assim
conclui Rui Stoco:
Como se verifica, ressuma isento de dúvida que o sistema do nosso direito privado não se mostra arredio ou impermeável ao entendimento de que a graduação da culpa se afigure importante, em algumas hipóteses, para a atribuição de responsabilidade civil ao agente causador do dano e de que, na fixação do quantum indenizatório, não se deve, nesses casos, ater-se estritamente ao valor do prejuízo sofrido pelo ofendido.48
Do exposto, na esteira do raciocínio já apresentado de Francesco Carnelutti49, verifica-se que a função reparatória da responsabilidade civil repercute na razão de
proporcionalidade quantitativa e qualitativa de sua materialização. Dessarte,
quantitativamente, a indenização está restrita ao teto da eliminação do dano causado; quanto
ao seu teor qualitativo, importa tecer algumas considerações.
É que a reparação civil nem sempre é capaz de preencher o vácuo gerado pela
lesão, pois o meio reparatório pecuniário muita vez diverge da natureza do dano sofrido, que
pode ser oriundo do malferimento de direitos não patrimoniais.
46
Nesse sentido, pondera Marcelo Junqueira Calixto: “a interpretação literal da norma codificada fica marcada por sua inconstitucionalidade, em especial por se traduzir em fator de insegurança jurídica e, ainda, por representar inegável retrocesso no que se refere à reparação integral da vítima.” (CALIXTO, Marcelo Junqueira. Breves considerações em torno do art. 944, parágrafo único, do Código Civil. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7296#_ftn47>. Acesso em: 29 jan. 2013).
47 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina (Coord). Código
Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. v. 2, p. 860.
Dessa forma, qualitativamente, a reparação poderá assumir dois aspectos distintos:
em caso de reparação por danos patrimoniais, terá qualidade reparatória em sentido estrito,
pois será capaz de efetivamente reparar e eliminar o prejuízo sofrido pela vítima, através de
uma reposição natural50; no entanto, na hipótese de servir como remédio a resolver um dano de natureza extrapatrimonial, já que a pecúnia diverge, em essência, do bem que visa restituir,
tecnicamente não é correto qualificar tal função como reparatória em sentido estrito, mas sim
como compensatória51.
Tal subdivisão da função reparatória não é de interesse meramente teórico, afinal,
conforme já explanado, a função da sanção está vinculada com a mensuração de sua
intensidade e qualidade, em prol da adequação de seu potencial de influência na cadeia de
causalidade dos fatos, o que será aprofundando quando do estudo dos danos morais.
2.3.2 Da função preventiva
Segundo a finalidade preventiva, a responsabilidade civil cumpre o papel de
dissuadir a prática de atos lesivos, na medida em que demonstra não serem vantajosas tais
condutas, cumprindo tal papel em dois aspectos, quais sejam: prevenção especial,
oportunidade em que desincentiva o próprio sujeito lesante de repetir a prática do ato; e
prevenção geral, pela qual a sociedade como um todo se sente desinstigada a praticar um ato
danoso, por antever a consequência sancionatória52.
Embora o Código Civil de 2002 não disponha explicitamente sobre o imperativo
de prevenção como finalidade precípua da responsabilidade civil, é possível justificar tal
teleologia através das noções teóricas do conceito de sanção já entabuladas no presente
trabalho, assim como na norma positivada no art. 5°, XXXV da Constituição Federal53, em que se prestigia a proteção contra a ameaça de direito, elevando-se, por conseguinte, a
importância em antecipar a superveniência do dano (principalmente em se tratando de danos
morais, haja vista a impossibilidade fática de repará-los54), o que se viabiliza, na seara responsabilizadora, através da função preventiva55.
50 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Op. cit, p. 97. 51
“A reparação, em tais casos, reside no pagamento de uma soma pecuniária, arbitrada judicialmente, com o objetivo de possibilitar ao lesado uma satisfação compensatória pelo dano sofrido, atenuando, em parte, as
consequências da lesão.” (Ibidem, loc cit).
52 SERPA, Pedro Ricardo e. Indenização Punitiva. 2011. 387 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado
em Direito, Departamento de Direito Civil, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p. 42.
É interessante perceber que essa função está intrinsecamente vinculada com a
interpretação feita pela sociedade acerca da consequência do ilícito, o que exige, como
condição indispensável para a pacificação social, que o Estado garanta e efetive a imposição
da sanção, afinal, ela é condição essencial da função preventiva; assim pensa Paulo Nader, ao
alegar que:
É indispensável um judiciário ágil e eficiente, sem o que a previsão legal ou contratual de reparação se torna inócua, não infundindo em seus destinatários qualquer temor quanto à obrigação de reparar eventuais danos a outrem.56
Nesse sentido, impende mencionar a experiência realizada pelo psicólogo
americano Philip Zimbardo e discorrida em artigo57 publicado por KELLING, George L e WILSON, James Q, em que se construiu a Teoria das Janelas Quebradas (Broken Windows
Theory), segundo a qual o nível de criminalidade estaria intrinsecamente relacionado com o
sentimento de desordem resultante da inércia em não se reparar um dano causado, o que
incentivaria a repetição do ilícito.
Em tal experimento, Philip Zimbardo estacionou um automóvel em uma rua no
Bronx e um outro veículo equivalente em uma rua da cidade de Palo Alto. O carro deixado no
Bronx, em dez minutos de seu abandono, foi atacado e depenado por vândalos, já o que fora
largado em Palo Alto restou intocado por mais de uma semana. Diante do fato de o veículo
em solo californiano não ter sido violado, Philip Zimbardo, prosseguindo seu teste, decidiu
quebrar parte do carro; poucas horas após tal feito, esse carro também foi destruído pelos
transeuntes.
A partir da evidência empírica colhida, concluiu-se que a constatação de que uma
desordem foi causada e não obteve consequente reparo daria azo ao soerguimento no meio
social do sentimento de impunidade e de que ninguém estaria zelando pela manutenção da
ordem, o que incentivaria o vandalismo58. Segundo obtemperam os autores, as evidências
p. 227.
55 Ibidem, p. 225.
56 NADER, Paulo. Op. cit, p. 14.
57 KELLING, George L; WILSON, James Q. Broken Windows: The police and neighborhood safety.
Disponível em: <http://www.theatlantic.com/magazine/archive/1982/03/broken-windows/304465/>. Acesso em: 22 nov. 2012.
58 Nas palavras dos autores: “Untended property becomes fair game for people out for fun or plunder and even
for people who ordinarily would not dream of doing such things and who probably consider themselves law-abiding. Because of the nature of community life in the Bronx—its anonymity, the frequency with which cars are abandoned and things are stolen or broken, the past experience of "no one caring"—vandalism begins much more quickly than it does in staid Palo Alto, where people have come to believe that private
levariam a crer que um dos grandes fatores de todo o vandalismo narrado seria a
permissividade empregada ao primeiro ato ilícito, cuja permanência no mundo dos fatos seria
a nascente de todo um contexto propício à propagação da desordem (“one broken window becomes many”59), o que, inclusive, seria independente do nível econômico do meio em estudo, já que a sensação de desordem em Palo Alto (com a danificação inicial do veículo)
gerou efeito análogo ao ocorrido no Bronx60.
Apesar de o experimento narrado ter sido realizado em outra nação, envolvendo
matéria de cunho criminal e em época de hoje bem distante (ano de 1969), a ideia geral
exposta pode ser perfeitamente transplantada para esclarecer o intuito da função preventiva da
responsabilidade civil, cujos efeitos reparatórios visam à instauração do estado de ordem
fática (eliminação dos danos) e jurídica (preservação da lei), de tal sorte a incutir no espírito
social (prevenção genérica), assim como na mentalidade do próprio sujeito lesante (prevenção
específica), a noção de que o ato lesivo será combatido e, portanto, é desinteressante de ser
praticado.
Nesse sentido, é possível apreciar a função sancionatória política da
responsabilidade civil, que se reflete exatamente na instauração de um estado de segurança
jurídica, cujo sentido pode ser visto além da mera positivação de normas garantidoras,
alcançando também a necessidade de efetividade e eficácia das sanções.
Outro aspecto destacável quanto à função preventiva é a necessidade de se
antecipar a ocorrência do evento danoso através de medidas de precaução, passando-se a
exigir mecanismos de atuação voltados não só para a reparação do dano já causado, mas
também para evitar a superveniência da lesão. Em ratificação de tal função, é interessante
apresentar o pensamento de Teresa Ancona Lopez, pela qual “o princípio da precaução, que
tem como fundamento ético a prudência e jurídico a obrigação geral de segurança, deverá,
doravante, fazer parte da responsabilidade civil”61
.
Assim, prestigia-se o papel do Direito Processual como fornecedor de
mecanismos capazes de neutralizar a conduta lesiva, impedindo que a “potência se transforme
police and neighborhood safety. Disponível em:
<http://www.theatlantic.com/magazine/archive/1982/03/broken-windows/304465/>. Acesso em: 22 nov. 2012).
59 Uma janela quebrada se torna várias (tradução nossa). (Ibidem).
60 Palo Alto é uma próspera cidade localizada no Vale do Silício (Califórnia), enquanto o Bronx é um condado
do estado de Nova York, marcado por zonas de pobreza e de violência urbana.
61 LOPEZ, Teresa Ancona. Principio da Precaução e Evolução da Responsabilidade Civil. São Paulo:
em ato”62
, do que se eleva a importância da interação entre a responsabilidade civil e os meios
processuais respectivos, contudo tal estudo extrapola as fronteiras deste trabalho.
Por fim, ainda sobre a função preventiva, é oportuno rememorar a noção
economicista das sanções, conforme a lição de Francesco Carnelutti63 já apresentada, pela qual a dissuasão deve ser capaz de tornar a prática do ilícito desvantajosa, o que introduz a
noção de função punitiva, como reforço da finalidade preventiva da responsabilidade civil64.
2.3.3 Da função punitiva
Em compreensão da função punitiva da responsabilidade civil, é salutar
rememorar a classificação de Francesco Carnelutti da sanção em ordem de pena e de
restituição, oportunidade em que se fez a categorização do instituto a partir de uma visão
subjetiva do fenômeno sancionatório, que, face ao sujeito lesado, denota um fator de
eliminação de um prejuízo sofrido, já, diante do ofensor, a sanção, mesmo que indiretamente,
constitui um desincentivo à reiteração da prática do ato65.
Interessante também relacionar a função punitiva com as finalidades
sancionatórias patrimonial e política, pensadas por Regnoberto Marques de Melo Júnior; isso
porque, na punição, tem-se tanto um elemento de ordem patrimonial a repercutir no
patrimônio do sujeito lesante, quanto de ordem social, à medida que a sanção consagra o
senso de segurança jurídica, pela via preventiva especial e genérica.
Nesse contexto, exsurge a denominada função punitiva da responsabilidade civil,
que, quando abordada de forma lata, normalmente se insere como um aspecto da função
preventiva, com a limitação da função reparatória, que é alçada como finalidade precípua da
indenização na sistemática civil brasileira, mormente em se tratando de lesão a direitos de
natureza patrimonial.
Assim, a prevenção e a punição seriam representadas pela sanção decorrente da
mera reparação, que resulta, para o ofensor, em uma mitigação patrimonial que oferta efeitos
involuntariamente semelhantes ao de uma pena, embora seu intuito primário, não seja o de
punir, mas sim de reparar. Representando tal vertente, é interessante transcrever as palavras
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
62 NADER, Paulo. Op. cit, p.16. 63
Cf. Item 2.1.