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4 DANO MORAL E PUNIÇÃO: UMA ANÁLISE CRÍTICA

4.1 De uma análise argumentativa

4.1.3 Das repercussões socioeconômicas do fator punitivo

Muitas são as críticas que apontam preocupações de cunho socioeconômico quanto à aplicação da indenização punitiva, dentre as principais, têm-se: a) o temor de que o aspecto punitivo das indenizações incentive o deletério sentimento de vingança; b) o medo de que o efeito dissuasório seja concretizado a partir de indenizações excessivas, podendo, assim, prejudicar atividades empresariais de forma a causar ônus maiores que bônus; c) o receio de que a agregação às indenizações de maiores valores pecuniários desenvolva processo de mercantilização das relações existenciais e de incentivo à litigância frívola; d) a possibilidade de ineficácia do instituto punitivo diante dos meios de diluição de despesas e contratação de seguros pelos grandes agentes causadores de dano, ou mesmo no caso de morte do sujeito

Ricardo e. Op. cit, p. 124). 212

O que nos Estados Unidos é denominado de “private attorney general”. 213 SERPA, Pedro Ricardo e. Op. cit, p. 122.

214 BRASIL. CPC. Art. 20. A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Esta verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria.

lesante. Tais pontos serão agora analisados.

No que tange ao suscitado fomento ao sentimento de vingança, importa asseverar que se tal for o motivo por trás de uma demanda indenizatória, isso se deve mais a uma característica psicológica da vítima, cuja moralidade não compete ao Direito julgar, do que a uma falha do instituto em comento, que possui finalidade de todo nobre e eminentemente voltada ao desincentivo de atos atentatórios a direitos da personalidade.

Outrossim, é possível argumentar que a lógica que leva à repugnância da indenização punitiva com base no argumento do incentivo à vingança também se aplica a todas as hipóteses em direito admitidas em que uma sanção de cunho repressivo é desencadeada por ato de particular, a exemplo, inclusive, dos crimes de ação penal privada. Dessa forma, haver-se-ia de concluir pela ilegitimidade de todos esses preceitos cominatórios, o que não seria plausível.

Nessa oportunidade também é importante apresentar o argumento balizado por

Boris Starck de que a pena privada representaria uma espécie de “válvula de escape” capaz de apaziguar eventuais “explosões” de justiça privada, naturais ao sentimento humano de revolta

perante um evento danoso216. Apresentando ideia parecida, André Gustavo Corrêa de Andrade argumenta que a vingança é própria da natureza humana e que o Direito não seria o meio capaz de alterar tal verdade, competindo-lhe, tão somente, civilizar e institucionalizar de forma adequada a retribuição pelo mal sofrido217.

Quanto ao argumento referente à mercantilização das relações existenciais, é interessante perceber que tal pensamento novamente traz à baila o já discutido e superado posicionamento segundo o qual os danos morais não poderiam ser objeto de compensação, haja vista a imoralidade de comparar valores correlatos à dignidade humana com dinheiro.

Destarte, considerar o teor punitivo do dano moral, ou mesmo a própria compensação por tal tipologia de lesão, como fator de reificação e mercantilização da personalidade humana, é um extremismo que peca por visualizar somente a degeneração do instituto que, embora eventualmente ocorrente pela sua banalização, não justifica que a sanção seja suplantada, pois, ai sim, estar-se-ia negando tutela jurídica e mitigando a consagração dos direitos da personalidade, mormente em relação àqueles que utilizam tal instituto adequadamente e com seriedade. Nesse sentido:

Com o argumento de que o caráter punitivo da indenização do dano moral constitui

216

STARCK, Boris. Essai dùne theorie générale de La responsabilité civile consideré em as Double

fonction de garantie et de peine privée. Paris: L. Rodstein. 1947 apud DIAS, José de Aguiar. Op. cit, p. 817.

uma forma de mercantilização das relações existenciais e incentivaria a malícia de alguns, repele-se uma sanção que, em situações excepcionalmente graves, se propõe a proteger de forma mais eficaz a dignidade humana e os direitos da personalidade. Também neste caso, procura-se ver um instituto pelo seu ângulo menos favorável, desprezando o tanto de positivo que ele pode apresentar.218

Com relação ao argumento do incentivo à litigância frívola e à denominada

“indústria do dano moral”, é importante não olvidar o direito fundamental do acesso à justiça,

consagrado no art. 5°, XXXV, da CRFB, o que torna o temor da enxurrada processual mais um resultado da incapacidade do Poder Judiciário de gerir o fluxo de demanda, do que uma falha do instituto sancionatório. Em verdade, estabelecendo uma jurisprudência firme e repressiva sobre causas de notória desqualificação, incentivar-se-ia uma maior racionalização por parte dos jurisdicionados ao ingressarem com ações, mormente tendo em vista os institutos processuais próprios para tanto, a exemplo da litigância de má-fé219.

Outro fator de ordem socioeconômica que se volta ao combate da indenização punitiva tem relação com a repercussão que tal sanção pode desencadear em face dos agentes lesantes, dentre os quais se destacam as empresas. Isso porque tais pessoas jurídicas desempenham uma função social própria, seja empregando pessoas, fomentando a economia, ou exercitando atividade de interesse social. Dessa forma, indenizações excessivas poderiam ocasionar a ruína das empresas e, por conseguinte, prejuízos de ordem social maiores que aqueles que a sanção visa reprimir, o que, em última análise repercutiria no desencorajamento da iniciativa empresarial220.

Em ângulo oposto, aspecto que também merece reflexão consiste no argumento segundo o qual as empresas possuem mecanismos de diluição das indenizações no preço de seus produtos e serviços, o que faz com que toda a sociedade pague o preço da sanção punitiva, eliminando, assim, a eficácia do instituto.

Rebatendo tais argumentos, é importante frisar que a preocupação com excesso no valor das indenizações é um fator de maior relevância no contexto norte americano, haja vista que lá a condenação é inicialmente estipulada por um corpo de juízes leigos, o que, todavia, não ocorre no Brasil, em que as indenizações são escalonadas por magistrados togados, do que se presume que o quantum indenizatório esteja menos sujeito a desproporções motivadas

218

Ibidem, p. 297.

219 BRASIL. CPC. Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.

220 PIZZARO, Ramón Daniel. Daño Moral. Buenos Aires: Hammurabi. 2000, p. 389 apud ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Op. cit, p. 279.

por juízos passionais221.

Além disso, enfatiza-se que ao sistema recursal compete a uniformização e adaptação de eventuais incongruências na liquidação da indenização, o que, inclusive, tem sido feito pelo Superior Tribunal de Justiça, em hipóteses que se julga o valor da condenação fora dos padrões de proporcionalidade222, oportunidade em que se faz relevante retomar a lição de Francesco Carnelutti, ao afirmar que “a justiça da pena traduz-se na relação econômica entre o mal causado e o mal a infligir para que não se cause maior mal”223.

Ainda em combate a tal visão, tem-se no Brasil, conforme já mencionado, noticia de reiteradas decisões judiciais em que se pacificou a adoção do fator punitivo nas indenizações por danos morais, o que demonstra que a previsão de uma catastrófica repercussão socioeconômica da inserção do fator punitivo nos danos morais é mais uma especulação exagerada, do que uma realidade empírica.

Quanto à ineficácia do instituto punitivo por meio da capacidade de diluição dos custos da indenização, não se deve esquecer que, mesmo que tal diluição seja efetivamente realizada, tal feito acabaria por aumentar o custo dos produtos e serviços, o que tornaria a empresa menos competitiva no mercado. Dessa forma, a capacidade de repartição dos prejuízos não desmerece a eficácia da indenização punitiva.

Ademais, constatando-se a ineficácia da punição, dado o mencionado mecanismo de repasse de despesas, nada obsta que o julgador majore o valor indenizatório, como forma de preservar o intuito do instituto, o que será aprofundado quando do estudo sobre os critérios de quantificação da punição.

Por fim, salienta-se que, quanto à questão da contratação de seguros para cobertura das indenizações punitivas, de fato existe a possibilidade de mitigação da eficácia do dano moral punitivo, o que, todavia, também não desmerece a utilidade do instituto: a uma

221

VAZ, Caroline. Op. cit, p. 86.

222 Nesse sentido: “RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. ENTREVISTA CONCEDIDA EM PROGRAMA DE TELEVISÃO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO

OCORRÊNCIA. ILEGITIMIDADE PASSIVA. SÚMULA N. 221/STJ. QUANTUM INDENIZATÓRIO. DESPROPORCIONALIDADE. 1. Não há por que falar em violação do art. 535 do CPC quando o acórdão recorrido, integrado pelo julgado proferido nos embargos de declaração, dirime, de forma expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões recursais. 2. "São civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação" (Súmula n. 221/STJ). 3. Nas hipóteses em que se verifica desproporcionalidade entre o dano e o valor arbitrado a título de reparação por danos morais, é permitido afastar-se a incidência da Súmula n. 7 para adequação do quantum. 4. Recurso especial interposto por Carlos Roberto Massa conhecido e parcialmente provido. Recurso especial de TVSBT Canal 4 de São Paulo S/A conhecido e provido.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1125355/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 17/08/2010, DJe 26/08/2010).

porque, mesmo a cobertura securitária, embora seja capaz de diminuir consideravelmente o ônus do agente lesivo, não o elimina, haja vista o custo da própria contratação do seguro, que a depender do valor e da frequência das condenações pode se tornar até inviável; a duas, em face do entendimento doutrinário segundo o qual esse tipo de seguro seria um contrato ilegal.

Nesse sentido, Pedro Ricardo e Serpa levanta o art. 762224 do Código Civil brasileiro para justificar a nulidade do contrato de seguro em comento. O mencionado autor também pondera que inclusive na hipótese de se considerar o contrato de seguro legal, o risco em tutela não seria acobertado pela empresa seguradora, por força do art. 768225 do mesmo código226.

Quanto à suscitada ineficácia da punição por danos morais na hipótese de morte do agente lesante, duas considerações são necessárias: primeiramente, deve-se ponderar que, em honra ao principio da personalidade das penas, a indenização jamais poderia atingir os sucessores, limitando-se, assim, ao valor deixado pelo de cujus, conforme ordena o art. 5°, XLV, da CRFB227 e art. 1792 do Código Civil228; em segundo lugar, não se deve olvidar que a finalidade da pena envolve, além do intuito de repressão e prevenção específica, também um escopo de prevenção geral, o que se conquista através da exemplaridade, que não seria descartada pelo fato morte.

Por último, considerando as benesses da hipótese de destinação da indenização punitiva para um fundo público voltado à proteção do bem jurídico lesado, tem-se por reafirmada a eficácia e utilidade do fator punitivo no caso de falecimento do provocador da lesão, na hipótese de contratação de seguros, ou mesmo no caso da diluição dos custos na atividade empresarial.