Tribunal da Relação de Lisboa Processo nº 1425/18.0YRLSB-5 Relator: LUIS GOMINHO
Sessão: 16 Outubro 2018 Número: RL
Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: RECONHECIMENTO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA Decisão: RECUSADO
RECONHECIMENTO DE SENTENÇA PENAL ESTRANGEIRA
Sumário
- Em casos de pedido de reconhecimento de sentença penal estrangeira, no domínio de decisão relativa à assunção de responsabilidade pela fiscalização das medidas de vigilância ou das sanções alternativas, o art. 36.º, n.º1, da Lei 158/2015, é expresso a prever a sua recusa (entre outras hipóteses), no caso de a duração da medida de vigilância ou da sanção alternativa ser inferior a seis meses.
- A Lei 158/2015, de 17 de Setembro, resulta da transposição das Decisões- Quadro 2008/909/JAI, do Conselho, e 2008/947/JAI, do Conselho, ambas de 27 de Novembro de 2008 e no n.º 1 do art. 11.º desta última Decisão, a mesma é muito clara na afirmação de como, nas situações em epígrafe (curiosamente a da duração da medida de vigilância ou da sanção alternativa ser inferior a seis meses já se continha também na al. j), “a autoridade competente do Estado de execução pode recusar o reconhecimento da sentença, ou, se for caso disso, da decisão relativa à liberdade condicional, bem como a assunção da
responsabilidade pela fiscalização das medidas de vigilância ou das sanções alternativas.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5.ª) da Relação de Lisboa:
I - Relatório:
I - 1.) O Ministério Público junto desta Relação, nos termos e para os fins da Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro, promoveu o reconhecimento da
sentença n.º 533/2015, datada de 18 de Novembro do mesmo ano, proferida pelo 1.º Juízo Criminal de Huelva, Espanha, no processo de procedimento abreviado n.º 300/2014, que veio a condenar o Requerido N., cidadão
português, com os demais sinais dos autos, pela prática de um crime contra as finanças públicas p. e p. pelo art. 305.º, n.º1, do Código Penal Espanhol, e pela prática de um crime de falsidade de documento comercial, p. e p. pelo art.
390.º, al.ªs a), b), e c) do mesmo Diploma.
Para esse efeito, o Reino de Espanha, enquanto Estado requerente, através do Mm.º Juiz do 1.º Juízo Criminal de Huelva, F., solicitou a Portugal, com base na Lei 23/2014 de 20/11, relativa ao reconhecimento mútuo de decisões penais na União Europeia, por sua vez fundamentada nas Decisões-Quadro 2008/909/
JAI e 2008/947/JAI do Conselho, alteradas pela Decisão-Quadro 2009/299/JAI, a execução de pena alternativa, consistente na realização de um mês de
trabalhos em benefício da comunidade imposta ao condenado no processo mencionado, através da “ejecutoria” n.º 748/2015.
Terminou-se solicitando que fosse “proferida decisão de reconhecimento da sentença e após isso, ordenada a sua transmissão aos Juízos Criminais da Comarca de Lisboa para execução nos termos do disposto no artigo 34.º, n.º2, al. a) da citada Lei 158/2015”.
I - 2.) Na oportunidade que lhe foi conferida para se pronunciar sobre o pedido, o Requerido sustentou que em função da duração conferida à sanção alternativa fixada, deverá o reconhecimento ser recusado de harmonia com o preceituado na al. j) do n.º 1 do art. 36.º da Lei n.º 158/2015, o mesmo
devendo suceder, por o visado não ter sido notificado da sentença estrangeira, mais concluindo ainda, subsidiariamente, no sentido de se determinar a
rectificação do requerimento apresentado pelo Ministério Púbico, se desconsiderar qualquer referência à prática do crime de burla, quer para efeitos do processo de transmissão e reconhecimento da sentença penal estrangeira, quer para eventual e ulterior tratamento da decisão estrangeira para efeitos da sua inscrição no registo especial de decisões estrangeiras e determinar-se a não transcrição da sentença de condenação em certificados para fins laborais.
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Coube resposta, por parte do Ministério Público, rebatendo a respectiva argumentação.
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Corridos os vistos legais, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir:
II - 1.) Tal como na respectiva certidão se contém, a condenação supra- indicada teve por base a factualidade que abaixo se resume:
O arguido, actuando de comum acordo com outros e movidos com um fim fraudulento, durante o ano de 2006 e utilizando a empresa A.S.L., emitiram facturas que não correspondiam à realidade com o objectivo de através da empresa defraudar as finanças públicas espanholas.
Deste modo a liquidação do imposto sobre sociedades no exercício de 2006, tendo em conta que as facturas emitidas ascendem a uma base tributável de 458.866,11€, a que corresponde o valor de 154.593,01€ que deveria ter sido pago, no entanto apenas veio a ser pago 14.028,33€ na autoliquidação
apresentada, ascendendo assim o valor não entregue ao Tesouro Público Espanhol, pelo conceito do imposto sobre sociedades, à importância de 140.564,68€.
Todas as facturas mencionadas na certidão foram emitidas no âmbito de um plano preconcebido entre requerido e os seus co-arguidos, sabendo da falsidade das mesmas e com o objectivo de aplicar deduções fiscais às quais não tinham direito.
III – 2.) Em termos de pressupostos formais, é inquestionável que o presente Tribunal, é o competente para actuar o reconhecimento ora solicitado, nos termos do art. 13.º, n.º1, da Lei n.º 158/2015, de 17/09.
Tem-se igualmente como pacífico, que a certidão que materializa o pedido mostra-se devidamente assinada, encontrando-se também traduzido o despacho de transmissão da pena a executar.
A este propósito, confira-se que a sentença em si mesma, não tem que
observar forçosamente aquele último requisito, haja-se em vista, entre o mais, que não se trata de situação em que as respectivas partes essenciais não possam ser compreendidas (cfr. art. 8.º, n.º 5, e 19.º, n.º 2).
Sendo que a mesma se encontra devidamente transitada em julgado.
III - 3.) Como já ficou subentendido, sem prejuízo de outras incidências colocadas pelos presentes autos, a questão essencial que nele se suscita, prende-se com a natureza e expressão concreta da pena a reconhecer, que depois de toda uma sucessão de substituições, na parte que aqui releva, se
vem a cifrar num mês de trabalhos em benefício da comunidade, que se assimilará à nossa pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Sucede no entanto, que neste domínio – o da decisão relativa à assunção de responsabilidade pela fiscalização das medidas de vigilância ou das sanções alternativas – o art. 36.º, n.º1, da Lei 158/2015, é expresso a prever a sua recusa (entre outras hipóteses), no caso “da duração da medida de vigilância ou da sanção alternativa for inferior a seis meses”.
A situação dos autos.
Donde, se suscitar a controvérsia sobre se a actuação daquela consequência se traduz numa imposição ou numa mera faculdade.
Para quem sustenta esta segunda posição, alega-se, sobretudo, que tal
obrigatoriedade não se mostra congruente com as soluções previstas nos n.ºs 4 e 5 do mesmo preceito.
No fundo, a possibilidade de antes de não reconhecer a sentença nos casos previstos nas alíneas a), b), c), h), i), j) e l), serem pedidas informações
complementares e nos casos das alíneas d) ou l), haver acordo com o Estado de emissão no sentido de fiscalizar a sanção alternativa, mas não tomar as decisões previstas nas al.ªs a), b) e c) do n.º 2, do art. 40.º (modificação dos deveres ou regras de conduta, revogação da suspensão da pena, aplicação de uma pena de prisão ou privativa de liberdade no caso de sanção alternativa ou condenação condicional).
Ora se tal se possibilita, é porque aquela imperatividade não se verifica, pelo que existirá a necessidade de se introduzir naquela norma uma interpretação correctiva, no sentido de se entender que a autoridade portuguesa pode recusar o reconhecimento nas situações ali elencadas.
Não pomos em causa que possa vigorar entre os Estados da União um
princípio de reconhecimento mútuo das respectivas decisões, quiçá assente na confiança entre os mesmos, na liberdade de movimentação das pessoas e na necessidade de, ainda assim, assegurar a respectiva execução.
O que não nos demove de sustentarmos, como preferencial, a solução contrária.
Como é sabido, a letra da Lei, nos termos do art. 9.º, n.º2, do Cód. Civil traduz
um limite de interpretação das normas.
E não vemos que a expressão verbal utilizada seja diferente da empregue pelo Legislador em outros domínios para assinalar a existência de poderes
vinculados ou de poderes-deveres por parte do juiz.
Depois, como é sabido, a referida Lei 158/2015, de 17 de Setembro, resulta da transposição das Decisões-Quadro 2008/909/JAI, do Conselho, e 2008/947/JAI, do Conselho, ambas de 27 de Novembro de 2008.
Ora se bem se atentar no n.º 1 do art. 11.º desta última Decisão, a mesma é muito clara na afirmação em como nas situações em epígrafe (curiosamente a da duração da medida de vigilância ou da sanção alternativa ser inferior a seis meses já se continha também na al. j), “a autoridade competente do Estado de execução pode recusar o reconhecimento da sentença, ou, se for caso disso, da decisão relativa à liberdade condicional, bem como a assunção da
responsabilidade pela fiscalização das medidas de vigilância ou das sanções alternativas”.
Ou seja, seria uma faculdade que actuaria ou não, consoante as circunstâncias.
Logo esse seria um circunstancialismo que o Legislador não poderia ignorar, havendo que pressupor que foi cuidadoso e ponderado no regime que
entendeu transpor.
Pelo que a hipótese de lapso é pouco compreensível.
Tanto mais quando existe um propósito transversalmente por si manifestado neste domínio do Direito de Cooperação Internacional, em exigir um mínimo das respectivas molduras concretas ou das penas para que a transmissão ou intervenção nacional se justifique.
É o que sucede com a Lei nº 144/99, de 31 de Agosto em relação à extradição (art. 31.º, n.º2), à delegação num estado estrangeiro de instauração ou
continuação de procedimento penal (art. 90.º, n.º1, al. b), na execução de sentenças penais (art. 95.º, n.º 1, al i)…, ou na Lei n.º 65/2003, de 22 de Agosto, em relação ao Mandado de Detenção Europeu.
Confira-se o respectivo art. 2.º, n.º1.
O argumento retirado do n.º 4 do art. 36.º, não nos impressiona
particularmente, já que estamos perante simples pedidos de informações complementares e só isso.
Também não estaremos perante a situação prevista na al. d) daquele preceito, sendo que no dispositivo legal em questão, aparentemente, não existe sequer a referida al. l)…
Pelo que se optará por recusar o reconhecimento da referida decisão.
III - 4.) Aqui chegados as demais questões suscitadas pelo Requerido ficam prejudicadas.
Em relação a uma eventual falta de notificação da sentença estrangeira, não só este Tribunal não irá proceder ao reconhecimento solicitado, pelo
fundamento já indicado, como sobretudo, para esse efeito, o que
verdadeiramente releva é o seu trânsito – que se tem por indiscutível perante o informado - e a conformidade formal da certidão emitida.
Por outro lado, como será fácil de compreender, perante a autonomia das respectivas Magistraturas, não cabe em cenário algum corrigir o pedido formulado pelo Ministério Público, seja ao nível fáctico, seja ao nível da correspondente fundamentação ou justificação de Direito.
Finalmente, não havendo reconhecimento, o Estado Português não assume sequer a responsabilidade pela fiscalização das medidas alternativas.
Logo, a eventual determinação da não transcrição da decisão estrangeira em quaisquer registos criminais excede a nossa competência, já que não nos constituímos Estado da condenação.
Para além do que, não temos minimamente por evidente que a faculdade
constante do art. 13.º n.º1, da Lei n.º 37/2015, de 05/5, se aplique aos registos decorrentes dos art.ºs 25 a 28.º do mesmo Diploma (decisões comunicadas nos termos da Decisão-Quadro 2009/315/JAI, do Conselho, de 26 de Fevereiro de 2009), pois que, na sua essencialidade, remetem para o Estado membro da condenação.
Nesta conformidade IV - Decisão:
Nos termos e com os fundamentos indicados, acorda-se pois em recusar o
reconhecimento solicitado da decisão acima identificada, proferida pelo 1.º Juízo Criminal de Huelva, no sentido do Requerido N. vir cumprir, em
Portugal, a mencionada pena de um mês de trabalhos em benefício da comunidade.
Notifique e informe o Estado Emissor.
Sem tributação.
Lisboa, 16-10-2018 Luis Gominho José Adriano
Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário.