• Nenhum resultado encontrado

FACULDADE UNYLEYA LICENCIATURA EM HISTÓRIA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "FACULDADE UNYLEYA LICENCIATURA EM HISTÓRIA"

Copied!
45
0
0

Texto

(1)

FACULDADE UNYLEYA LICENCIATURA EM HISTÓRIA

A TUMBA DE VESTORIUS PRISCUS: MONUMENTOS FUNERÁRIOS ROMANOS COMO ESPAÇOS DE MEMÓRIA E AFIRMAÇÃO SOCIAL

Por: Raphael Meza de Andrade

Orientador

Profª. Me. Úrsula Pinto Lopes de Farias

Rio de Janeiro

2020

(2)

FACULDADE UNYLEYA LICENCIATURA EM HISTÓRIA

A Tumba de Vestorius Priscus: Monumentos Funerários Romanos Como Espaços de Memória e Afirmação Social

Apresentação de monografia à Faculdade UNYLEYA como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura em História.

Por: Raphael Meza de Andrade

(3)

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao “Deus de Conhecimento”, que nos dá a vida, força e tudo o mais.

À minha esposa, que, além do apoio diário em todos os sentidos, pacientemente me ouviu dezenas de vezes falar sobre minhas ideias para este trabalho e sobre coisas que eu descobria em minhas pesquisas que eu achava interessantíssimas, mas que para ela eram tediosas; apesar disso, ela sempre teve um comentário inteligente ou engraçado para fazer.

Aos amigos que me ajudaram e deram dicas durante o planejamento deste trabalho, em especial o Caio e o João Vinícius, e ao amigo Ricardo, que me ajudou quando meu notebook deu defeito.-

À Faculdade UNYLEYA e aos seus professores, com quem eu aprendi muito ao longo

dos anos de Licenciatura, em especial à professora Úrsula Farias, pois sua orientação

na produção desta pesquisa contribuiu para aperfeiçoá-la.

(4)

DEDICATÓRIA

Ao meu filho Theo, o contratempo mais feliz que

eu tive durante a produção desse trabalho.

(5)

RESUMO

Essa pesquisa se debruçou sobre o tema de como a arte funerária nos informa a respeito da história social do Império Romano, tomando um estudo de caso, a tumba de Vestorius Priscus, à luz da comparação com outros monumentos funerários contemporâneos e com a descrição de sua própria tumba feita pelo personagem Trimalquião na obra Satyricon, de Petrônio. Assumimos, para isso, o modelo teórico de Geza Alföldy de sociedade romana dividida em ordens e estratos, e a hipótese de que as representações visuais em uma tumba romana testemunham a respeito da sociedade em que essa tumba foi concebida.

PALAVRAS-CHAVE: Império Romano; História Social; Arte Funerária.

(6)

METODOLOGIA

Primeiramente, essa pesquisa investigou o contexto histórico-social da produção da tumba de Vestorius Priscus, através de revisão bibliográfica. A principal obra de referência sobre a ordem social no período do Principado Romano, em que a tumba foi produzida, foi o livro “Historia Social de Roma”, de Géza Alföldy (1996).

Ainda com o objetivo de contextualizar a obra, foi feito um estudo comparativo da tumba de Vestorius Priscus com outras formas de representação visual contemporâneas a ela, especialmente na arte funerária. Para isso, realizou-se pesquisa bibliográfica exploratória, usando-se como principal obra de referência o livro

“Art in the Lives of Ordinary Romans: Visual Representation and Non-elite Viewers in Italy, 100 BC – AD 315”, de John Clarke (2006). Além das representações visuais reais, utilizou-se também, em especial no último capítulo da pesquisa, a comparação com o “Banquete de Trimalquião”, episódio da narrativa Satyricon, a partir de análise crítica da própria obra e das informações sobre esse texto trazidas na bibliografia historiográfica (em especial MARTINS, 2018).

O método comparativo nos permitiu investigar e analisar as semelhanças das pinturas na tumba de Vestorius com outras imagens na arte e literatura contemporâneas a ela como forma de entender o que aquelas imagens buscavam comunicar aos seus expectadores originais, utilizando-se de informações trazidas por estudos posteriores à obra de Clarke (2006) para aprofundar alguns aspectos trazidos à luz por ele. Essa comparação contribui de maneira geral para uma melhor compreensão das maneiras pelas quais a arte funerária romana funcionava como um sistema semiótico, considerando que os pontos em comum indicam que havia uma linguagem visual bem desenvolvida, acessível a muitos.

A tumba de Vestorius Priscus foi escolhida como centro desse trabalho porque, embora tecnicamente fizesse parte da elite romana, sua tumba apresenta aspectos que a assemelha com representações visuais relacionadas aos estratos inferiores, de modo que ela serve para testar as fronteiras entre as ordens superiores e inferiores.

xxxxxx

(7)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 08

CAPÍTULO I – ORDEM SOCIAL À ÉPOCA DO

PRINCIPADO ROMANO 10

CAPÍTULO II – ARTE FUNERÁRIA ROMANA 19

CAPÍTULO III – VESTORIUS PRISCUS E O

BANQUETE DE TRIMALQUIÃO 29

CONSIDERAÇÕES FINAIS 37

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 39

ÍNDICE 44

(8)

INTRODUÇÃO

Segundo Géza Alföldy, em sua História Social de Roma (1996), embora haja bastantes fontes sobre as relações sociais na Antiguidade, produziu-se ainda pouca bibliografia especificamente sobre as estruturas sociais no mundo romano.

Ainda que nos últimos anos essa realidade possa ter mudado, o campo de estudo da história social continua sendo muito relevante e atual, como uma historiografia alternativa ao foco nas grandes instituições e nos grandes heróis.

Esta pesquisa se debruça sobre o tema de como a arte funerária no território romano nos informa a respeito daquela sociedade, em especial como ela se relaciona com as estruturas sociais e as relações entre os diferentes estratos.

Assumindo como pressuposto a importância de se levar em consideração as grandes massas no estudo histórico, fica clara a necessidade de se tomar como fontes históricas os registros produzidos pelos estratos inferiores da sociedade romana para melhor compreendê-la. Optou-se nessa pesquisa, entretanto, pelo estudo de caso da tumba do edil Vestorius Priscus, porque ela tem uma peculiaridade importante: embora a pessoa que ela abrigava tenha pertencido, tecnicamente, à elite romana, sendo um oficial menor, sua tumba pode ser considerada relativamente pobre (CLARKE, 2003). Isso a torna um caso aparentemente sui generis e, portanto, uma fonte proveitosa para perspectivas diferentes sobre a sociedade romana a partir de uma representação artística relacionada a uma pessoa “comum”.

A hipótese principal dessa pesquisa é que é possível entender melhor o contexto social em que uma pessoa está inserida através do estudo da representação visual relacionada a ela. Assim, assumindo que as tumbas romanas em geral nos fornecem informações importantes sobre a estrutura social romana, investigaremos a hipótese de que a de Vestorius Priscus também é uma fonte histórica frutífera sobre a sociedade romana à época do principado.

No primeiro capítulo, investigaremos o contexto histórico-social da produção da

tumba de Vestorius Priscus, através de revisão bibliográfica. No segundo

começaremos o estudo do monumento funerário propriamente dito, através da

análise de alguns elementos que compõe a tumba de Vestorius Priscus pelo

método comparativo com obras de arte funerária contemporâneas, atestadas

(9)

arqueologicamente, produzidas ou pagas por pessoas que não faziam parte da elite social romana. No terceiro capítulo, analisaremos a tumba a partir da comparação com o “Banquete de Trimalquião”, episódio da narrativa Satyricon, a partir de análise crítica da própria obra e das informações de outras pesquisas sobre o texto.

No trecho escolhido, o personagem Trimalquião encomenda um túmulo, tornando-

o um proveitoso testemunho do imaginário romano naquele período.

(10)

CAPÍTULO I

ORDEM SOCIAL À ÉPOCA DO PRINCIPADO ROMANO

Neste capítulo, faremos uma investigação do contexto histórico da produção da tumba de Vestorius Priscus – ou seja, o início do Principado Romano. Abordaremos esse contexto à luz de bibliografia relevante, com o objetivo de situar a arte dessa tumba historicamente e oferecer as bases para o argumento que se seguirá nos capítulos posteriores. Primeiro, será feito um comentário sobre a transição da República para o Principado Romano, depois será feita uma introdução à estrutura social do Império Romano no período estudado.

1.1 – Transição da República para o Principado

Conforme Alföldy (1996), os dois primeiros séculos da era imperial romana foram o auge dessa civilização. Entretanto, as estruturas sociais de Roma, o foco de nossa pesquisa, permaneceram basicamente as mesmas da República por muito tempo depois da transição para a monarquia. Economicamente também não houve grandes variações; ainda que pese o grande boom da manufatura e comércio que Roma experimentou na era imperial, ela permanecia como um estado agrário. A grande maioria da população continuava ligada à agricultura.

Isso significa, portanto, que a agricultura também era a principal fonte de riqueza, embora muitos tenham enriquecido nesse período também através do comércio; o próprio personagem Trimalquião, no Satyricon, de um escravo liberto fez fortuna, em grande parte, investindo em bens imóveis (PETRONIUS, 2006, cap. 75- 76). 1 Isso explica porque um dos critérios fundamentais de divisão social no mundo romano não era apenas o dinheiro, mas a propriedade de terras (ALFÖLDY, 1996).

Isso tornava, segundo Alföldy, a sociedade romana profundamente conservadora, devido à natureza estável da agricultura, o que explica continuidades duradouras entre a república tardia e o principado romano.

Mas um elemento de mudança importante entre a república e o império é, obviamente, a casa imperial, o poder máximo no Estado romano. Um exemplo que

1 Chama a atenção, por exemplo, a menção de Trimalquião de que com a ajuda de Mercúrio, deus

relacionado ao comércio, ele transformou seu casebre em um palácio.

(11)

ilustra essa supremacia pode ser lido nos Anais (TACITUS, 1942), no livro XI, em que durante o governo de Cláudio discutiu-se a inclusão da nobreza gaulesa na ordem senatorial, que àquela época já possuía o direito de cidadania romana. Os senadores conservadores lutaram contra isso, mas o imperador não se impressionou com os seus argumentos, e a sua vontade prevaleceu.

A relação entre o Imperador e os distintos grupos sociais se baseou muito nos modelos da República. Alföldy distingue as relações republicanas em duas: a amiticia, um tipo de paridade de poder, ou, pelo menos, uma diferença não tão grande; e o binômio patronus-cliens, quando os sujeitos se diferenciavam claramente em termos de riqueza, poder e prestígio. Assim, o imperador tinha uma relação de amiticia com os aristocratas, enquanto se colocava como patronus do resto do império.

Embora não tenha alterado a estrutura social, a introdução da monarquia redefiniu alguns aspectos das ordens sociais existentes. Entretanto, permaneceu a dinâmica de que os cargos públicos mais importantes eram exercidos pela ordem senatorial, embora, de modo novo, esse serviço público estivesse estritamente ligado ao serviço à casa imperial. Apesar disso, a ordem equestre parece ter exercido maior influência durante o principado em relação à república.

1.2 – Estratos Superiores

Podemos considerar como “elite” na sociedade romana as ordens senatorial e equestre, e, regionalmente, a ordo decurionum, responsável pela administração das cidades (COELHO, 2017). Ana Coelho enumera como condições para fazer parte dessa elite uma riqueza mínima e uma linhagem nobre, a que podemos acrescentar também como fatores importantes a região de origem, dotes individuais, formação e lealdade ao imperador (ALFÖLDY, 1996). Como exemplo da importância da riqueza pessoal, no Satyricon (PETRONIUS, 2006), Trimalquião nos informa que na sociedade romana as pessoas eram avaliadas pelo que elas tinham; segundo ele, quando era pobre, era um “sapo”; quando tornou-se rico, tornou-se um rei. Entretanto, a origem de nascimento era um marco social que dificilmente podia ser superado. Em certo sentido, o prestígio social de uma família era hereditário (ALFÖLDY, 1996).

Novos ricos, como Trimalquião, até podiam alcançar as ordens superiores, mas

enfrentariam para isso forte resistência, pelo que precisavam, nas palavras de Tácito

(1942), de boa sorte ou muita energia (Ann. 3, 55). Por isso, o fato de homens como

(12)

Trimalquião, com toda sua riqueza, não alcançarem as ordens superiores, não se constituía uma exceção.

A ordem social mais ilustre na sociedade romana era a senatorial. Este era um grupo bem heterogêneo e, ao longo da época do Principado, teve uma composição bastante flutuante (ALFÖLDY, 1996), em parte porque os chamados homines novi receberam muito espaço na ordem senatorial nesse período, substituindo famílias que por um motivo ou outro perdiam o direito a integrarem o estamento principal.

Figura 1 – Augusto e senadores em uma procissão sacrificial

Fonte: KAAL e SLOOTJES, 2019, pg. 21

A hierarquia interna do estamento senatorial estava relacionada aos diferentes

cargos públicos que um senador podia exercer. Normalmente, o senador começava

sua carreira entre 18 e 20 anos; com 25, formalmente se tornavam membros do

Senado como questores, mais tarde tornando-se um tribuno da plebe ou um edil

(como veremos adiante, Vestorius Priscus, por sua vez, era um edil com apenas 22

anos) e aos 30 tornavam-se pretores, cargo em que havia diversas oportunidades

políticas, como a de ser um procônsul de uma província senatorial ou liderar uma

legião. Aos 40 ou, no caso da maioria, aos 43, o senador poderia tornar-se cônsul,

havendo algumas duplas consulares todos os anos. As funções mais importantes na

administração do Império eram confiadas aos cônsules, como a curadoria da cidade.

(13)

As diferentes habilidades dos senadores em galgar boas posições em suas carreiras políticas, o apoio ou não do Imperador, a origem familiar e outros fatores acabavam criando uma hierarquia de poder dentro da própria ordem senatorial, o que fazia com que, em geral, as principais funções de liderança militar e os melhores cargos civis estivessem nas mãos de um grupo seleto.

Quanto à ordem equestre, seu número de membros era consideravelmente maior. Se à época de Augusto havia centenas de senadores, os equestres estavam na casa dos milhares (BLEICKEN, 2015). Conforme Alföldy (1996), essa era uma nobreza mais baseada no indivíduo do que no sangue, embora Tácito (Hist. 1.52) fale em famílias equestres, o que indica que ser filho de um equestre fosse um fator importante para ser aceito nessa ordem também. Essas famílias eram, inclusive, a principal fonte de recrutamento para preencher vacâncias na ordem senatorial.

Também era comum o movimento dos equestres “para baixo”, para exercer o decurionato, em especial por aqueles que não aspiravam por uma carreira na administração estatal e aqueles que, por falta das qualidades necessárias, não podiam entrar nesta, sendo revestidos de cargos municipais e pertencendo, ao mesmo tempo, à ordem equestre e à dos decuriões.

Aliás, alguns autores, como Hopkins (1961), apontam que havia intensa mobilidade social no interior dos estratos superiores da sociedade romana. Dois elementos aqueciam essa dinâmica: a partibilidade de heranças e altos níveis de mortalidade. Os dois fatores combinados faziam com que o número de filhos vivos na morte de um dos pais fosse, em geral, altamente imprevisível e, portanto, o tamanho das heranças (e dotes) podiam variar consideravelmente. Em um contexto em que riqueza era obtida principalmente por herança, isso levou automaticamente a diferenças substanciais de riqueza, e consequentemente de poder e prestígio social, de uma geração a outra em uma mesma família.

Segundo Hopkins (1961), essa é uma característica geral do mundo pré-

moderno, mas o fato de na sociedade romana a riqueza ser profundamente

determinante do status social torna esse fenômeno ainda mais importante,

intensificando a mobilidade social tanto “para cima” como “para baixo”. Isso significa

que grande parte das famílias que faziam parte dos estratos superiores da sociedade

romana não conseguia ficar muito tempo nas mais altas posições. Vestorius Priscus

pode ser um exemplo de alguém que, embora faça parte, em certo sentido, da elite

(14)

romana, pelas suas baixas condições financeiras testemunhadas por seu túmulo, como veremos no capítulo seguinte, possivelmente estivesse na fronteira com o estrato inferior.

Por essa mobilidade social, apesar da ordem equestre não exercer a liderança política do Império Romano na mesma medida que os senadores, e pela grande influência que muitos deles obtiveram (por exemplo, no papel de prefeito pretoriano), aos olhos da sociedade romana essas duas ordens praticamente não constituíam duas elites separadas (ALFÖLDY, 1996).

Outro grupo integrante da elite romana, também mesclado às ordens senatorial e equestre, era a ordem decurional. Mendes (2004) conceitua o Império Romano como uma entidade política centralizada, fundamentada em uma estrutura celular cujo epicentro era Roma, em volta do qual giravam distintos sistemas econômicos regionais que pouco a pouco se integraram ao Império – as civitates, vastos territórios limitados por fronteiras geográficas, étnicas e/ou políticas, compostos por aglomerados urbanos secundários e uma população rural dispersa. Os detentores do poder político local – a ordo decurionum – eram aqueles cidadãos ricos chamados a fazerem parte do conselho local (ALFÖLDY, 1996).

Ainda segundo Alföldy, embora os cidadãos não se tornassem decuriões exatamente pela via hereditária, considerando que os filhos de decuriões geralmente herdavam a fortuna de seus pais, era comum no Alto Império que os membros da mesma família continuassem ao longo de várias gerações a exercer o decurionato.

Essa era uma ordem com muitos membros, em comparação com os senadores e equestres. No auge do Império, pode-se estimar a presença de mais de 100 mil indivíduos pertencentes à ordo decorionum (Neto, 2010; Alföldy, 1996). Eles eram responsáveis por manter o funcionamento autônomo das civitates na administração da justiça, na organização das finanças, no abastecimento de alimentos, na construção, ordem pública, etc.

De certa forma podemos incluir entre os estratos superiores a familia Caesaris, ou

seja, os escravos e libertos empregados na administração imperial. Isso porque,

conforme Joly (2008), citando os decretos senatoriais da época de Tibério como prova

(como a Tabula Siarensis, a Tabula Hebana, e o senatus consultum de Cn. Pisone

patre), Augusto não estabeleceu o poder de um homem só, mas de uma casa

dinástica, onde mulheres tinham papéis públicos, jovens eram promovidos como

(15)

potenciais sucessores imperiais e escravos e libertos podiam ter, na prática, uma influência invejável até para os senadores.

1.3 – Estratos Inferiores

Conforme Alföldy (1996), a composição social das camadas mais baixas da população do Império Romano era muito mais heterogênea que a dos estratos mais altos. Isso decorreu, acima de tudo, da diversidade econômica, social e cultural das diferentes partes do Império; embora, durante o Principado, elas tenham experimentado um processo de integração. Além disso, as linhas de separação verticais entre as ordens inferiores eram muito mais claras do que as horizontais (como as que separavam senadores e equestres, por exemplo); aquelas incluíam local de residência, profissão, atividade econômica, estilo de vida, possibilidades de promoção, cultura, tradições e costumes.

Um fator importante de hierarquização entre os estratos inferiores era a moradia na área urbana ou rural. Segundo Rebelo (2015), a cidade era o centro da vida política, cultural e social, e era aí que se discutiam políticas e se tomavam decisões que afetavam todo o império; isso explica, em parte, essa distinção social entre os que habitavam na cidade e no campo.

A imensa maioria do Império Romano consistia na plebs rustica, os habitantes das zonas rurais. Conforme Coelho (2017), essa grande massa tinha as condições de vida mais difíceis, sem praticamente nenhuma oportunidade de ascensão social e a limitação quase total ao trabalho de cultivo agrícola. A plebs urbana gozava de uma posição social um pouco melhor, tendo em vista que nas cidades existiam possibilidades de ganhos maiores e mais margem de acesso à vida pública. Alguns libertos, inclusive, conseguiam se tornar tão ricos que chegavam à ordem decurional.

Outro fator importante de distinção entre os estratos sociais mais baixos era a

liberdade. Nesse sentido, as pessoas podiam ser distinguidas em três categorias: o

escravo, o libertini (escravo libertado da condição de escravidão) e o ingenui (nascido

livre). Por exemplo, a lex Iulia de maritandis ordinibus (18 a.C.) proibia matrimônios

entre senadores e seus descendentes até à terceira geração na linha masculina com

libertos (TEIXEIRA, 2007), o que colocava os nascidos livres em uma posição

claramente superior. Além disso, apesar dos filhos de um liberto poderem ser

(16)

considerados livres, o status de filho de um ex-escravo traria certo desprestígio social e jurídico. Não era permitido, por exemplo, aos filhos de libertos aspirar ao cursus honorum, sendo-lhes vedado também o acesso à ordem equestre (VALÉRIO, 2017).

Se havia diversas maneiras de um escravo ser liberto, também era possível, na sociedade romana, que um habitante livre do império se tornasse servo. Por exemplo, era frequente, segundo Alföldy (1996), que as famílias pobres vendessem seus filhos.

Até mesmo os adultos em condições financeiras precárias podiam acabar vendendo a si mesmos. De fato, parece que um servo à época do Principado podia esperar condições melhores do que na República Tardia. Embora os legisladores hesitassem em interferir na relação senhores-servos, considerada de âmbito privado, os imperadores gradualmente produziram uma legislação para proteger os escravos.

A partir de Augusto, conforme Alföldy (1996), a libertação de escravos se tornou tão mais frequente que alguns a consideravam um perigo social, já que poderia acontecer que um grande número de ex-escravos se tornassem cidadãos romanos e, consequentemente, tivessem grande influência na vida pública; outros estudiosos, entretanto, afirmam que a literatura disponível prova não mais do que a manumissão frequente era muito mais um ideal do que uma prática (WIEDEMANN, 1985). Talvez o melhor argumento a favor da tese de que a manumissão durante o principado romano tenha sido quantitativamente significativa é que, de outro modo, Augusto não consideraria necessário regulá-la. Depois dele, outras leis limitando os direitos dos libertos foram surgindo, buscando preservar a estrutura da sociedade romana.

1.4 – Uma Estrutura de Ordens e Estratos

Como vimos, o Principado Romano era governado por uma pequena elite, que não se limitava ao Imperador, mas incluía um seleto grupo de senadores e equestres mais importantes. É claro que em poucas páginas não podemos descrever detalhadamente toda a estrutura social dos dois primeiros séculos do Império Romano, mas pudemos destacar alguns pontos importantes.

Note-se que nessa pesquisa usamos o modelo baseado em ordens e estratos de

Géza Alföldy (fig. 2) para caracterizar a sociedade romana, e não um modelo baseado

em classes sociais. Segundo ele, uma classe social é definida com base em que seus

membros ocupem o mesmo lugar no processo de produção econômico, em especial

(17)

a partir da propriedade ou não dos meios de produção. Se a sociedade romana da era do Principado fosse uma sociedade de classes, então duas classes teriam que ocorrer: a alta, cujos membros possuíam os meios de produção, não estavam envolvidos em tarefas de produção e viviam dos benefícios de ativos trabalhados por terceiros; e a classe baixa, cujos membros não tinham terra nem instrumentos próprios para o serviço artesanal, contribuíam com seu trabalho direto para a produção e alimentavam com seus ativos a classe alta. Certos grupos da sociedade romana se encaixariam perfeitamente nesses critérios econômicos: os senadores poderiam ser colocados sem dificuldades no primeiro tipo, e os escravos dos latifúndios no segundo.

Entretanto, esse modelo não faria jus à realidade total da sociedade romana.

Figura 2 – Representação do modelo de Géza Alföldy da ordem social no Principado Romano

Fonte: ALFÖLDY, 1996, pg. 113.

Para começar, teríamos que inserir entre as classes alta e baixa uma classe média, cujos membros teriam meios de produção e, no entanto, teriam se mantidos como produtores diretos. Aqui precisaríamos inserir grupos bem diferentes, como os camponeses independentes, com terra própria; os colonos, que pelo menos tinham terras arrendadas; e os artesãos com negócio próprio.

O fato é que a sociedade romana não se articulou com base nos critérios acima

mencionados, mas também com base em questões sociais e jurídicas que não

coincidiam totalmente com o fator econômico. Os decuriões das cidades, por exemplo,

(18)

embora fossem uma elite local, não raras vezes eram produtores diretos. Por outro lado, os ex-escravos ricos, como o personagem Trimalquião, certamente atendiam a todos os critérios econômicos de uma classe dominante, uma vez que possuíam meios de produção, não eram produtores diretos e viviam do trabalho alheio; no entanto, eles foram impedidos de se inserir em uma ordem privilegiada, ocuparem os mais altos cargos e terem prestígio naquela sociedade. Assim, nas palavras de Alföldy (1996), o Império Romano à época do Principado era uma sociedade dividida em ordens e estratos, com uma estrutura verdadeiramente peculiar, que apesar das características comuns difere consideravelmente das demais sociedades pré- industriais.

Essa definição é importante porque o objetivo dessa pesquisa é refletir especialmente sobre os estratos inferiores (e não uma classe inferior) da sociedade romana. Essa parcela, que compõe a maioria esmagadora da população, não pode ser definida a partir de conceitos generalizantes, mas entendida como um grupo muito heterogêneo.

Nos dois próximos capítulos, vamos abordar a arte produzida pelos estratos

inferiores, considerando como inferiores aqueles grupos que não atendem pelo menos

um de quatro critérios: riqueza, importantes compromissos públicos, prestígio social e

associação a uma ordem – senatorial, equestre ou decurional (CLARKE, 2006). Esse

estudo da representação visual pode oferecer exemplos concretos das relações

dinâmicas e mutáveis entre os estratos. Assim, poderemos ter parâmetros para situar

o túmulo de Vestorius Priscus em seu devido contexto – cujo dono fazia parte dos

estratos superiores da sociedade romana, mas a tumba parece estar em desacordo

com isso.

(19)

CAPÍTULO II

ARTE FUNERÁRIA ROMANA

Nesse capítulo abordaremos a arte produzida pelos estratos inferiores da sociedade romana à época do principado (o que podemos chamar de arte “popular”, no sentido de produzida ou consumida pelo povo comum), em especial a arte funerária, por meio de um estudo de caso da tumba de Vestorius Priscus.

Primeiramente, faremos uma breve introdução à arte dos estratos inferiores nesse período, depois nos concentraremos especificamente na arte funerária, e finalmente entraremos no estudo do túmulo em si.

2.1 – Arte Pública dos Romanos Comuns

No passado, em geral, os historiadores da arte romana se preocuparam especialmente com a produção da ou para a elite. Entretanto, nos últimos anos, em especial com o desenvolvimento do campo da História Social, muitos estudiosos têm se preocupado com a maioria esmagadora da população que integra os estratos inferiores: os trabalhadores pobres, escravos, libertos, estrangeiros, etc. A presente pesquisa seguirá essa tendência, preocupando-se com a arte paga e produzida pelos romanos “comuns” – aqueles que não faziam parte das ordens superiores. Especificamente, nosso objeto de estudo será a tumba de Vestorius Priscus.

O pressuposto assumido é que, no mundo romano, a representação visual funcionava dentro de um sistema de comunicação multicamada (CLARKE, 2006).

Através do questionamento crítico das informações arqueológicas dessas obras de arte, podemos analisá-las à luz de seus contextos originais e, assim, compreender melhor as atitudes, sistemas de crenças e cultura praticadas pelos romanos comuns.

Ao comparar a arte da elite e a arte popular, podemos ver algumas diferenças

importantes. Conforme Clarke (2006), por exemplo, romanos comuns geralmente

escolhem representar a si mesmos ou a outros realizando tarefas. Quando as elites

à época do principado se representam, elas favorecem imagens que as mostram

realizando práticas oficiais e de prestígio, usando a linguagem visual da casa

(20)

imperial. Embora as não-elites às vezes façam o mesmo, mais frequentemente tendem a comissionar arte que os retrata em uma grande variedade de atos comuns (ou pelo menos não-oficiais): sacrificando aos deuses da casa, transportando grãos, lutando no anfiteatro, bebendo em tabernas, defecando, etc.

Apesar disso, não vamos assumir nesse trabalho uma teoria generalizante sobre a representação visual popular romana. Dada a complexidade dessa sociedade, é difícil seguir a proposta de alguns trabalhos de generalizar a arte a partir de conceitos como classe, gênero ou status social. Ao invés disso, vamos estudar a arte romana em geral a partir de um estudo de caso e avaliar esse caso a partir, principalmente, da comparação com outras obras de arte individuais.

Podemos inserir a arte funerária na categoria de arte pública. O fato é que os romanos tinham uma noção de vida pública muito mais ampla que nós hoje. Por exemplo, se no Ocidente contemporâneo há o costume de enterrar os mortos em locais fechados, separados da vida cotidiana, no mundo romano do início do Império e antes disso, túmulos eram feitos de modo a chamar a atenção das pessoas; por isso, as representações visuais contidas neles devem ser estudadas como arte feita para que um grande número de pessoas visse.

A arte funerária é pública não no sentido de estar em um local público, mas no sentido de ser feita para ser vista pelas pessoas. Um exemplo comparativo interessante é o da arte religiosa no interior das casas. Devido às representações visuais contidas nelas, as casas eram importantes veículos de comunicação de status, riqueza e relações sociais (GEORGE, 2004). De fato, os testemunhos escritos nos mostram a natureza pública da casa romana, clara especialmente em dois eventos sociais particulares: a salutatio (fig. 3), e a cena, ou banquete. Quanto à salutatio, por exemplo, ela era tradicionalmente realizada no átrio da casa, e por isso os átrios de muitos lares eram projetados e decorados com o claro objetivo de impressionar os visitantes através da integração de elementos monumentalizantes, como colunas, fontes e esculturas (GEORGE, 1998).

2.2 – Arte Funerária Romana

Na sociedade romana, encontramos muitos túmulos e sarcófagos que

recordam – ou melhor, comemoram – os prazeres da vida. De fato, isso faz todo o

(21)

sentido se levarmos em consideração que, na mentalidade romana, era algo de muita importância religiosa preservar a memória pública sobre a vida de uma pessoa.

Figura 3 – Ilustração de uma das figuras no interior da tumba de Vestorius Priscus representando- o em sua casa, possivelmente durante a salutatio.

Fonte: CLARKE, 2006, pg. 190

Conforme Clarke (2006), a arquitetura e a decoração dos túmulos distinguiam entre dois tipos de visualização pública: de fora e de dentro da tumba. As áreas dentro dos limites do túmulo abordavam a família das pessoas enterradas ali, que, em geral, visitariam-no quatro vezes por ano: além de visitar a tumba no dia da morte e aniversário do falecido, houve dois festivais religiosos públicos dedicados à comemoração dos mortos: a Parentalia e a Lemúria. Essa comemoração pública era importante porque os romanos eram muito preocupados em serem lembrados pela posteridade. Conforme Plínio, o Jovem:

Todo mundo que fez alguma ação excelente e memorável deveria (...) não

apenas ser perdoado, mas até elogiado, se ele deseja garantir a imortalidade

que conquistou, e pelas próprias palavras de seu epitáfio procura perpetuar

a glória eterna de seu nome (in CARROLL, 2011, tradução própria).

(22)

Essas palavras refletem o pensamento de sua época de que as tumbas eram um meio de exaltar o nome de uma pessoa para garantir sua sobrevivência na memória dos vivos. Para os membros dos estratos inferiores, elas eram um veículo primordial de promoção de seu status político e social, ao ilustrar ou aludir seus grandes feitos, por exemplo (CLARKE, 2006). Uma dos mais conhecidos exemplares de uso de um monumento funerário por uma pessoa que não é da elite romana para exaltar suas virtudes e as de sua família são as de Naevoleia Tyche.

Encontrada no início do século XIX, o monumento construído em uma base elevada em forma de altar fica na necrópole do portão Herculaneum. 2 Em destaque podemos ver um busto espiando por uma moldura fechada, supervisionando a cerimônia de distribuição de grãos que ocorre abaixo. À esquerda, homens, mulheres e crianças comuns, alguns carregando cestas, estão próximos de uma figura diminuta que parece estar colhendo grãos de um saco em uma cesta. À direita, homens de toga observam a generosidade – segundo Clarke (2006), provavelmente responsabilidade do marido liberto de Naevoleia, Munatius Faustus.

Conforme Hagen (2016), abaixo do pequeno busto emoldurado que se supõe ser Naevoleia Tyche, há uma inscrição, acima da representação da distribuição de grãos. No lado oriental do altar, há uma representação de um bisellium 3 , e no lado ocidental figura uma embarcação – como veremos adiante, também há embarcações na tumba de Vestorius Priscus. O epitáfio diz (tradução própria, a partir da tradução para o inglês de Campbell, 2015):

Naevoleia Tyche, liberta de Lucius, para si mesma e para Gaius Munatius Faustus, Augustalis e Paganus, a quem foi ordenado o bisellium por seus méritos pelos decuriões e pelo consentimento do povo. Este monumento foi construído por Naevoleia Tyche para seus libertos e libertas, e os de Gaius Munatius Faustus, enquanto vivos.

Nessa inscrição, a responsabilidade de Neavoleia em comissionar o túmulo é destacada e as honras do marido mencionadas. Uma delas, descrita no epitáfio, o

2 O site do Parque Arqueológico de Pompeia possui informações úteis sobre a necrópole do portão Herculaneum em:

<http://pompeiisites.org/en/archaeological-site/necropolis-of-the-herculaneum-gate/>.

3 Assento de luxo em que cabiam duas pessoas, símbolo de honra.

(23)

bisellium, como vimos, também é registrado na forma de representação visual no túmulo. A embarcação, por sua vez, segundo Clarke (2006), pode ser uma referência à atividade mercantil da família ou à passagem para o outro mundo.

Curiosamente, ainda segundo a inscrição, o túmulo provavelmente não foi usado pelos próprios donos, mas foi feito apenas para seus libertos.

Conforme Clarke (2006), o cenário mais provável é que havia um túmulo mais simples para Naevoleia e seu marido anterior a este, mas que, havendo ela sobrevivido ao cônjuge, decidiu aumentar sua glória e a de sua família, erguendo um segundo monumento mais elegante. Ele serviria como um memorial para o casal, e também como um lugar de descanso final de seus ex-escravos. O túmulo mais pomposo serviria inclusive para preparar o terreno para as carreiras dos filhos de Naevoleia, nascidos livres e, portanto, com maiores possibilidades de ascensão social.

2.3 – A Tumba de Vestorius Priscus

Conforme Mols e Moormann (1993), a tumba de Vestorius Priscus é um monumento funerário localizado na cidade de Pompeia, próximo à porta Vesúvio.

Ela é muito conhecida por suas raras representações visuais, mas têm como uma das principais dificuldades de ser estudada a ausência de documentação arqueológica detalhada sobre ela. Seu epitáfio diz (tradução minha a partir da tradução para o inglês em Clarke, 2006):

A Gaius Vestorius Priscus, edil, que viveu 22 anos. Este local de enterro e 2.000 sestércios para seu funeral foram dados por decreto dos decuriões. A mãe dele, Mulvia Prisca, pagou por esta tumba com seu próprio dinheiro.

Pelo que lemos, o habitante do túmulo morreu bastante jovem, mas sendo um edil, a simplicidade da tumba aparentemente não combina com sua posição social, especialmente se levarmos em consideração que ele foi construído em duas etapas, mesmo sendo um túmulo bem pequeno; aparentemente, ela não podia pagar uma decoração em bronze ou mármore, por isso optou pela pintura de estuque e afresco (MOLS e MOORMANN, 1993).

Segundo Jean Andreu (1987), em Roma, vários libertos com o nome Priscus

foram identificados, mas a maioria das pessoas com esse nome era de nascidos

(24)

livres; em Pompeia, por sua vez, ele registra que foram encontradas 10 pessoas com esse nome, das quais a maioria parecia, segundo ele, ter origem humilde. Isso explicaria porque há uma variedade relativamente grande de representações visuais concorrentes no túmulo, que indicariam, para Clarke (2006), uma grande ansiedade em relação a status social, que poderia indicar um fervoroso desejo da mãe de ampliar a glória de seu filho e o de sua família.

As únicas imagens diretamente relacionadas à morte que um espectador pode ver do exterior são duas figuras de estuque que flanqueiam o epitáfio. Eles são homens nus, com cabelos longos, de pé sobre flores e cada um segurando um candelabro vegetal na mão direita; eles representam os gênios da morte (CLARKE, 2006).

Além deles, temos outras figuras de estuque não relacionadas à morte: um sátiro semi-reclinado (lado oeste), uma ménade voando para a esquerda (lado norte), e uma voando para a direita (lado sul). Ao redor do altar central com a inscrição e essas três figuras de estuque nas laterais há pequenos altares; em cima de cada um deles há uma serpente enrolada em torno de uma pedra oval.

Pequenos cupidos de estuque decoram a face principal do altar, e o artista preencheu as faces menores com imagens de animais.

As ménades, que na mitologia eram seguidoras do deus Dioniso, naturalmente estão associadas, juntamente com os sátiros, com os banquetes, festas, vinho e ciclos vitais. Conforme Clarke (2006), podemos encontrá-las, por exemplo, na decoração de casas, como uma forma de estabelecer uma correspondência visual e ideológica com seus proprietários.

Ainda segundo Clarke (2006) e Mols e Moormann (1993), essas imagens no exterior da tumba são comumente encontradas em pinturas e estuques nas casas e banheiros nesse período (associando-se a um estilo próprio comum entre 62 e 79 d.C.). Por isso, alguém de passagem não veria nada específico da vida ou atividades do falecido; diferente do que ocorria no interior da tumba.

Nesse capítulo, nos debruçaremos sobre as duas cenas mais significativas retratadas no túmulo. Ao entrar na tumba, a primeira imagem que alguém veria (fig.

3) seria uma representação do próprio Vestorius, trajando a toga com listras

vermelhas de seu ofício. Ele é retratado em sua casa, no cômodo onde recebia

seus clientes, olhando para o espectador.

(25)

Vestorius mantém sua mão direita levantada e traz, na esquerda, um pergaminho. Um servo vestindo uma túnica verde fica de perfil à direita. Clarke (2006) discorda dos estudiosos que entendem que essa é uma representação de Vestorius no ritual do salutatio, pois apenas membros da família de Vestorius poderiam ver essa imagem (pois só eles podiam entrar na tumba), sendo mais provável que ela exiba o jovem em seu papel de família, que ele teria assumido quando seu pai morreu – as ferramentas de escrita, os pergaminhos e até o dinheiro em cima da mesa destacam as responsabilidades de Vestorius como paterfamilias, o que contribui não apenas para comemorar as atividades do falecido, mas também para exaltá-lo. Embora o argumento dele seja inconclusivo, podemos concordar que assim como Vestorius recebia pessoas no átrio de sua casa, ele os receberia por meio dessa primeira representação em seu túmulo.

Segundo Platt (2012), a condição das tumbas romanas como um limite entre a vida e a morte é frequentemente representada na arte funerária romana na forma de portas pintadas nas paredes; na tumba de Vestorius, podemos ver essa simbologia no fato de que atrás da representação do falecido estão desenhadas portas duplas abertas de madeira, como se, atrás de si, estivesse o reino dos mortos.

Conforme Vanessa Rousseau (2019), entretanto, no mundo romano, a estrutura espacial da tumba e os rituais funerários não apenas eram uma forma de comunicação simbólica entre vivos e mortos, ajudando os enlutados a lidar com a desconfortável, triste e muitas vezes assustadora experiência da morte, mas também apresentavam um mecanismo pelo qual as pessoas podiam cumprir seus papeis sociais, mesmo depois de mortas, e afirmarem a vida em comunidade.

Um desses rituais era o banquete fúnebre. Um visitante do túmulo de Vestorius

veria, após contemplar diante de si a representação do falecido, do seu lado direito,

uma dupla referência a banquetes (fig. 4). Se, por um lado, um banquete – a cena

novendialis – marcava o fim do período oficial de luto após nove dias (ROUSSEAU,

2019), conforme Ascough (2008), banquetes são uns dos elementos mais

importantes da vida social greco-romana em geral – razão pela qual, no próximo

capítulo, será feita uma comparação entre a representação visual da tumba de

Vestorius Priscus e a descrição ficcional de um banquete –, de modo que é

(26)

perfeitamente natural esse tipo de representação em um túmulo como um modo de comemorar a vida.

Na referida representação visual, temos a imagem, não de um banquete fúnebre, mas de um symposium, uma festa voltada ao consumo do vinho, e embaixo dela uma referência metafórica aos banquetes por meio de pigmeus em barcos no Nilo. O banquete se encaixa no contexto de demonstrar a vida e papel social de Vestorius, enquanto os pigmeus no Nilo, segundo Barrett (2013), representariam a ideia de renovação e regeneração do falecido – uma adaptação da ideia egípcia de que o Nilo se originou do cadáver de Osíris e, portanto, incorporou a morte e o renascimento do deus.

Ainda conforme Barrett (2013) e Clarke (2006), foram encontradas em Pompeia outras representações visuais do Nilo datadas do século I d.C., incluindo, além da tumba de Vestorius, uma imagem em um triclinium 4 na casa de certo Publius Cornelius Tages e algumas no templo de Isis. Quanto à cena no triclinium, se trata justamente de pigmeus bebendo e festejando às margens do Nilo. No pórtico do templo de Isis, por sua vez, os pigmeus aparece-m em um contexto mais propriamente cúltico, em um programa decorativo que inclui sacerdotes e outros funcionários religiosos.

Isso nos leva a crer que um espectador romano acostumado com as representações artísticas comuns naquele período nas casas, jardins e túmulos, faria naturalmente uma associação entre as duas cenas – a do symposium e a dos pigmeus – como tendo significado paralelo. Dessa maneira, o banquete e os pigmeus no Nilo formavam uma única cena. Uma confirmação disso é que, segundo Clarke (2006), além de sua função artística associada ao symposium, os pigmeus tinham uma função importante que nos leva a uma das antigas crenças romanas mais curiosas: a de que o riso dispersava maus espíritos e o mau-olhado.

De fato, os pigmeus são, em geral, retratados como fazendo travessuras – no caso da tumba de Vestorius, por exemplo, um deles aparece defecando em um peixe grande –, como provocar animais ou dançar de um modo cômico. Um curioso exemplo comparativo citado por Clarke é a de bizarras – dentro dos padrões socialmente aceitáveis pelos romanos – imagens de encontros sexuais encontradas em um banheiro público no subúrbio de Pompeia.

4 Um tipo de sofá triplo usado em banquetes.

(27)

As duas cenas brevemente examinadas acima – a que representa Vestorius Priscus e a que representa o banquete e os pigmeus – resumem os temas desse monumento fúnebre: um desejo de auto-glorificação e perpetuação de uma família que, embora tenha exercido alguma influência na vida pública de Pompeia – já que Vestorius era um edil –, tinha ainda uma grande necessidade de afirmação social.

Provavelmente isso se dá porque eles ainda estavam ascendendo socialmente, não havendo conquistado uma posição firme entre os estratos superiores.

A tumba de Vestorius Priscus é uma interessante fonte sobre a relação entre os diferentes estratos sociais do mundo romano em suas representações funerárias. De fato, a aparente ansiedade de Mulvia Priscus em relação a status social faz sentido no contexto de competição que havia nos estratos superiores da sociedade romana, o que tornava esse ambiente político, em certo sentido, perigoso. Podemos ver um claro paralelo dos temas da tumba de Vestorius com as atitudes do protagonista da Cena Trimalchionis (PETRONIUS, 2006). Nas palavras de Martins (2018, p. 67):

Por um lado ele constantemente exibe sua riqueza em uma tentativa de firmar uma identidade social ou de se associar a uma elite ou, no mínimo, de colocar-se em posição superior aos seus convidados e dependentes, por outro, ele discursa sobre a efemeridade da vida.

A Cena Trimalchionis funcionaria, assim, como uma ridicularização da

suntuosidade e riqueza cada vez maior dos túmulos romanos em sua época,

especialmente ao pouco refreamento no autoelogio de libertos que atingiram certa

ascensão social, uma vez que, na ética romana, seria de maior decoro algo de

maior modéstia do que o túmulo que Trimalquião projeta para si próprio. Os

aristocratas também acabavam fugindo desse necessário decoro, mas aqueles

mais preocupados com afirmação social tendiam a desenvolver práticas artísticas

que contrastavam nitidamente com um idioma de simplicidade e modéstia de

maneira proporcional à sua necessidade de autoafirmação.

(28)

Figura 4 – Fotografia da representação de um banquete na tumba de Vestorius Priscus.

Fonte: DUNN e DUNN, 2006b.

(29)

CAPÍTULO III

VESTORIUS PRISCUS E O BANQUETE DE TRIMALQUIÃO

Nesse capítulo, faremos uma comparação entre a representação visual da tumba de Vestorius Priscus com o “Banquete de Trimalquião”, episódio da narrativa Satyricon, a partir de análise crítica da própria obra e de revisão de bibliografia recente, além de identificarmos alguns paralelos entre elas e outras fontes históricas contemporâneas. No trecho que será analisado para a comparação, o personagem Trimalquião encomenda um túmulo, tornando-o um proveitoso testemunho do imaginário romano naquele período.

3.1 – A Tumba de Trimalquião

Conforme Martins (2018), o trecho entre os capítulos 29 e 78 do Satyricon é o mais conhecido e estudado dessa obra, que inclui a Cena Trimalchionis, ou Banquete de Trimalquião. A passagem mais importante para essa pesquisa é aquela em que o protagonista relata o seu desejo para seu túmulo e epitáfio, uma vez que estes representam um rico conjunto de elementos imagéticos comuns na arte e sociedade romanas, tornando-o uma fonte proveitosa para o estudo da história social do Império Romano.

É claro que essa obra, sendo ficcional, não pretende apresentar um retrato fidedigno da realidade contemporânea a ela. Mas os estudos sobre a obra que a comparam com temas funerários reais (como o de MARTINS, 2018) revelam que, de fato, há muitos paralelos entre a descrição de Trimalquião e os achados arqueológicos que nós temos – inclusive com a tumba de Vestorius Priscus.

No capítulo setenta e um do Satyricon (PETRONIUS, 2006), Trimalquião narra que queria que fosse construído um monumento de acordo com os planos que ele havia feito. Dever-se-ia esculpir uma cadela aos pés da sua estátua, algumas grinaldas e alguns frascos de perfume e todas as lutas do gladiador Petraites. Assim, ele poderia viver mesmo depois da sua morte. A fachada da tumba deveria ter cem pés de largura e duzentos de profundidade. Assim como no túmulo de Vestorius, uma representação do próprio Trimalquião seria esculpida, sentado em sua tribuna, exercendo seu ofício.

Também lembra a tumba de Vestorius o desejo de Trimalquião de que houvessem

(30)

navios esculpidos em seu túmulo. Ainda temos o paralelo de que Trimalquião desejava que um salão de banquetes fosse representado, com pessoas se divertindo.

O elemento de luta de gladiadores tem antecedentes na narrativa. No capítulo 29, lemos que em um corredor na ficcional casa de Trimalquião havia figuras de jogos de gladiadores oferecidos por Laenas; e o 53 menciona copos com gravuras de competições de Hermeros e Petraites. Essa associação de Trimalquião com os jogos de gladiadores faz todo sentido porque os seviri augustales, os sacerdotes augustais, como Trimalquião se identifica no epitáfio que pede para inscreverem em seu túmulo, sendo geralmente pessoas de origem humilde que, por conta disso, mesmo tendo boas condições financeiras, não conseguiam alcançar os estratos superiores, costumavam oferecer jogos de gladiadores como forma de ganhar prestígio (CLARKE, 2006).

3.2 – Trimalquião e a Arte Funerária Romana

Representações de jogos de gladiadores, portanto, eram usadas em túmulos como uma comemoração do fato de que aquela pessoa havia patrocinado esses jogos, preservando essa glória para além da vida do falecido. Por exemplo, Clarke (2006) cita esse tipo de representação no túmulo de Lusius Storax, um sevir augustalis que vivia na região onde hoje fica a comuna italiana de Chieti.

Na tumba de Vestorius Priscus, vemos na parede norte a representação da cena

de dois gladiadores lutando: um trácio em pé prestes a dar o golpe mortal em um

hoplômaco que caiu sobre seu escudo. O artista detalhou cuidadosamente cada

equipamento dos gladiadores. Segundo Clarke (2006), como não temos registro de

que Vestorius já patrocinou algum jogo, essa gravura poderia significar simplesmente

que ele gostasse muito deles, ou ainda pode ser uma simbologia da compaixão do

falecido, uma vez que o perdedor da luta largou o escudo e estende o dedo indicador

direito, que são claros sinais de pedido de misericórdia. De uma forma ou de outra, a

pintura alude à generosidade cívica e pessoal de Vestorius – seja patrocinando jogos,

seja de outras maneiras que são simbolizadas pela pintura – de maneira análoga à

distribuição de grãos na tumba de Naevoleia Tyche, e preserva a tradição da elite de

Pompeia de patrocinar jogos.

(31)

Representações de embarcações eram muito comuns na arte funerária (WHITEHEAD, 1993), sendo usada em diversos sentidos. Na tumba de Vestorius, como vimos, a figura dos pigmeus em embarcações no Nilo está associada a um banquete, aludindo ao exótico e aos prazeres da vida. Na narrativa de Trimalquião, por sua vez, conforme Martins (2018), pode estar associada com alguma forma de crença na vida após a morte, e por isso essas embarcações são navios com velas, ao contrário das embarcações sem velas que são mais comuns na arte funerária romana (como a presente na tumba de Naevoleia Tyche), e deveriam ser retratadas partindo, e não chegando, vendo a morte como um tipo de viagem para algum lugar.

Trimalquião também aparece na Cena distribuindo dinheiro publicamente, de forma análoga ao que vemos na tumba de Naevoleia, e em outras, como a de M. Valerius Anteros Asiaticus, na Bréscia, que também era um augustal, e que aparece sentado em um pódio e detém um saco de dinheiro (MARTINS, 2018). Conforme Clarke (2006), em uma das paredes da tumba de Vestorius ele é retratado em sua função de edil, sentado em uma cadeira de bronze suportada por um pódio alto de madeira. Dois grupos de seis homens vestindo togas flanqueiam o pódio. O tempo destruiu parte da pintura, tornando-se difícil distinguir certos elementos dela, mas podemos identificar que pelo menos dois deles são lictores.

Há muita discussão acadêmica a respeito do significado dessa cena, de maneira que Clarke (2006) nos informa três interpretações principais. Embora os estudiosos, em geral, concordem que ela retrata Vestorius em sua função de edil, alguns sustentam que é uma cena de julgamento, outros que é uma cena de audiência e outros que é uma distribuição de dinheiro.

É preciso deixar claro, entretanto, que os paralelos que podemos encontrar entre a descrição de Trimalquião e os túmulos de libertos que alcançaram alguma ascensão econômica e social, augustais e aqueles que atingiram baixas magistraturas (como Vestorius), não significa que há um estilo funerário próprio de alguma classe social.

Por isso, J. R. Clarke, cuja obra Art in the lives of ordinary Romans é uma das

principais referências nesse trabalho, ao não dar tanta atenção às possíveis

incertezas quanto ao status social das pessoas ligadas aos monumentos que ele

aborda (não sendo o caso da tumba de Vestorius, já que a própria nos informa

claramente que ele era um edil), corre o risco de cometer erros graves em suas

análises. Assim, concordamos com Martins (2018) de que essas indefinições apontam

(32)

para certo compartilhamento de símbolos e elementos artísticos nas tumbas dos diferentes estratos sociais do principado romano.

Clarke (2006), entretanto, afirma que embora muitos ex-escravos tenham escolhido pinturas de túmulos que imitavam modelos das elites para tudo, até para penteados, muitos outros insistiram em mostrar-se como eram e se envolver no trabalho ou rituais mais significativos para eles. A vontade individual frequentemente se sobressai em relação a alguma tendência de classe. Não havia, portanto, uma arte exatamente da elite, dos pobres ou dos libertos.

Isso nos leva a pensar que os estratos superiores e os estratos inferiores não tinham visões de mundo marcadamente separadas por suas posições na sociedade.

Os diferentes grupos, à sua maneira, queriam se representar na esfera pública (mesmo que esse público se limite ao restrito grupo que poderia visitar o interior de uma tumba). Mas, como é óbvio, uma grande parcela da população não tinha condições financeiras de se fazer que sua memória se eternizasse tão bem quanto Vestorius ou Trimalquião. Segundo Clarke (2006), a maioria desses eram camponeses engajados na agricultura de subsistência.

Assim, talvez, libertos, pessoas livres que viviam em cidades e tinham uma condição financeira relativamente boa em relação à maioria dos camponeses pobres, augustais e aqueles que atingiam uma baixa magistratura tinham mais em comum do que eles mesmos podiam perceber, o que explica em parte o compartilhamento artístico e cultural.

Conforme Joly (2010), em suma, as representações visuais citadas no Banquete de Trimalquião se aproveita de lugares comuns da tradição iconográfica tanto dos estratos inferiores quanto dos superiores da sociedade romana. Isso significaria que o desejo do personagem Trimalquião não era apenas imitar a elite, mas exaltar os valores dos ex-escravos. Em última instância, conclui Joly (2010), esse tema da escravidão e manumissão em Roma que o Satyricon acaba esbarrando ainda é um resquício da transição não totalmente concluída da República para o Império, cuja reprodução política era consideravelmente mantida na libertação de escravos.

As similaridades, além disso, apontam para outra questão: conforme High-Steskal

(2016), embora a arte romana possa parecer repetitiva, sua força estava justamente

em sua capacidade de recorrer a tipos pictóricos comuns e conhecidos para transmitir

mensagens e significados específicos. Os tipos funcionavam como elementos em um

(33)

sistema semântico próprio. Consequentemente, os espectadores mais ou menos educados na arte romana seriam capazes de interpretar os significados pretendidos das imagens, pelo menos até certo ponto. Isso torna esses paralelos não apenas instrumentos artísticos, mas também meios de comunicação.

Não que essa comunicação fosse sempre fácil. Identificar o significado das figuras usadas necessitava que o espectador tivesse os recursos culturais para reconhecer seus atributos, de modo que, mesmo não-intencionalmente, essa comunicação poderia ficar limitada a um grupo social. Entretanto, essa comunicação visual era muito necessária às vezes. Isso porque a decoração das diferentes partes de uma casa, por exemplo, poderia indicar se aquele local precisava de algum convite especial para ser acessado (CLARKE, 2006).

Como as casas dos vivos, os túmulos não eram espaços totalmente privados.

Conforme Clarke (2006), romanos antigos nunca entenderam o lar como um refúgio particular para os membros de uma família nos moldes atuais, como um lugar tranquilo, livre das invasões de estranhos. Para muitos, pelo contrário, a casa era o principal local de negócios. Visitas diárias de pessoas com quem os paterfamilias precisavam tratar tornava necessário que a casa estivesse aberta a todos, pelo menos determinados cômodos dela. Segundo Clarke, uma ilustração disso é que é raro encontrar imagens mitológicas complexas em espaços onde visitantes entrariam apenas de passagem, enquanto eram raros os espaços feitos para as pessoas pararem neles que não tivessem esse tipo de imagem.

3.3 – O Túmulo como Morada Eterna

Trimalquião afirma que era absurdo que os homens se preocupassem tanto em decorar sua própria casa e não tivessem o mesmo zelo por decorar seu túmulo, já que passaria nele muito mais tempo.

Uma das maneiras dos romanos prepararem as tumbas para serem moradas

adequadas era incluir a natureza nelas. Martial, por exemplo, em seus epigramas

(Livro I, CXVI), descreve que o túmulo de Antulla era cercado por um bosque e acres

de terra cultivada. Cícero, escrevendo em 45 d.C., pede que o lugar onde faria um

monumento deveria ter um jardim (CÍCERO, 1918, XXXVII). O próprio Trimalquião

(34)

pede que ao redor da sua tumba houvesse um pomar com todas as variedades conhecidas de árvores frutíferas, e uma vinha.

Essa vinha, possivelmente, pudesse também ser usada para oferecer vinho para as libações pelo morto. Em uma das paredes do túmulo de Vestorius vemos a representação de uma mesa com objetos de prata, próxima de onde há uma abertura no centro do altar em cima da estrutura central com um tubo de chumbo para permitir que a libação de vinho flua sobre a urna que contém as cinzas de Vestorius. Além da prataria elegante fazer uma referência à própria libação – já que igualmente poderia ser usada para beber vinho – também faz referência à riqueza e sofisticação real ou imaginada de Vestorius (CLARKE, 2006).

Figura 5 – Lado interno da parede norte da tumba de Vestorius Priscus.

Fonte: DUNN e DUNN, 2006a

(35)

Conforme Clarke (2006), à direita da figura dos objetos de prata, um espectador veria um jardim. Próximo a ele, outras duas cenas: uma de natureza-morta e outra retratando vários animais. Segundo ele, aqui não se trata de uma representação de um jardim típico de tumbas, mas uma referência geral ao luxo; seria mais um jardim doméstico. As outras duas cenas também seriam referências à cultura da elite. Essas pinturas de fauna e flora eram a maneira mais fácil e barata de incorporar a natureza ao local de descanso final.

Um visitante colocaria comida como oferenda para homenagear Vestorius no pequeno banco circular de alvenaria abaixo da pintura de natureza-morta. A comida na pintura rima com a comida real colocada abaixo dela de forma semelhante ao modo como o serviço de pratas rimaria com a libação de vinho que deveria ser oferecida para o falecido. Se houvesse um jardim real no entorno da tumba, como acontecia em outras, provavelmente mesmo os produtos cultivados ali poderiam ser usados como oferenda, inclusive rosas.

Virginia Campbell (2008) cita alguns exemplos de jardins em tumbas romanas. Ela destaca o fator competitivo dos túmulos, uma vez que esses jardins também serviriam para chamar a atenção das pessoas, e argumenta que a existência deles demonstram o fato que as tumbas eram feitas para serem espaços para serem sempre visitados e utilizados pelos vivos, ao contrário dos cemitérios contemporâneos, que são alienados da vida comum.

Segundo Rice (2010), o jardim de uma tumba, principalmente se estivesse protegido por paredes ou muros, carregava conotações associadas a recintos funerários dos períodos gregos Clássico e Helenístico. Além disso, também evocava concepções de reinos paradisíacos, como os Campos Elísios ou o Jardim das Hespérides. Conforme Clarke (2006), alguns dos temas que vemos no interior do túmulo de Vestorius Priscus, como um jardim, animais selvagens e pigmeus, eram comuns nas paredes de jardins (não necessariamente jardins de túmulos), repetindo a mesma associação à riqueza e a gozar uma boa vida que vemos nas outras representações.

É justamente o fato das tumbas serem a última casa dos mortos que as tornam,

além de espaços de memória, um lugar onde as famílias solidificavam sua identidade

e posição social. Um evento curioso que testemunha isso ocorreu quando Augusto

(36)

tentou banir sua filha e sua neta da estrutura familiar com base em sua moral abaixo do padrão, excluindo-as do enterro no mausoléu da família (RICE, 2010).

Finalmente, considerando que a maioria esmagadora da população do Império Romano não tinha condições de bancar um monumento funerário tão caro, a tendência era que apenas os estratos superiores tivessem o direito de eternizar a memória de seus mortos de maneira plena, mas alguns dos membros dos estratos mais baixos, ou aqueles que pertenciam a uma elite, mas não eram assim tão ricos, poderiam usar a criatividade para manter vivos, de alguma forma, os que partiram.

Nas palavras de Campbell (2008, p. 43, tradução própria):

Os mortos podiam ir embora, mas certamente não eram esquecidos pelos antigos romanos. Além dos festivais e aniversários que celebravam os mortos e exigiam visitas e sacrifícios feitos no túmulo, a prática de enterro ao longo das estradas assegurava que os mortos fossem constantes no cotidiano de quem entra ou sai de uma cidade. Como a principal motivação na construção de uma tumba era a lembrança, a chave era atrair a atenção dos que passavam. Incluir jardins luxuosos, flores com cheiro doce ou fornecer simplesmente a sombra de uma única árvore sob a qual um viajante cansado poderia descansar teria garantido um lugar contínuo entre os vivos.

Figura 6 – Pintura de gladiadores lutando na tumba de Vestorius Priscus.

Fonte: DUNN e DUNN, 2006c

(37)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa pesquisa se debruçou sobre o tema de como a arte funerária no território romano nos informa a respeito daquela sociedade, em especial como ela se relaciona com suas estruturas sociais. Nossa hipótese inicial era de que é possível entender melhor o contexto em que uma pessoa está inserida através do estudo da representação visual relacionada a ela.

Tomamos como principal objeto de pesquisa a tumba de Vestorius Priscus. Ele fazia parte dos estratos superiores – assumindo o modelo teórico de Geza Alföldy de sociedade romana dividida em ordens e estratos, evitando uma dicotomia engessada de elite e povo – mas, não tendo deixado provas de grande riqueza ou prestígio, estava perigosamente na fronteira com o estrato inferior. Uma evidência disso, como apresentamos, era que, além do túmulo ser relativamente pequeno, aparentemente sua mãe não podia pagar uma decoração em bronze ou mármore, que seria mais apropriado ao status social do filho, pelo que optou pela pintura de estuque e afresco.

Para os romanos, como ficou claro, as tumbas eram veículos de comunicação de status, riqueza e relações sociais; por isso, claramente eram projetadas para serem vistas tanto pelas pessoas que entravam nela quanto por transeuntes. Isso revela uma preocupação em preservar a vida dos mortos na memória dos vivos. Mais do que isso, as tumbas estavam, no imaginário romano, na fronteira entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Elas eram meios de comunicação simbólica entre vivos e mortos, ajudavam os enlutados a lidarem com a experiência da morte e permitiam aos que se foram continuarem, de certa forma, cumprindo um papel social. Isso tornava os túmulos romanos verdadeiros espaços de memória, interação e afirmação de laços filiais e sociais.

Nesse contexto, concluímos que as representações visuais da tumba de Vestorius demonstram um intenso desejo de sua família por afirmação social, apesar da falta de condições de construir um monumento mais elaborado. Mesmo que ele tenha morrido como um edil e, portanto, com um importante poder político em sua cidade, os Priscus não haviam conquistado uma posição firme entre os estratos superiores de uma sociedade com uma considerável mobilidade social (para cima ou para baixo).

As características dessa tumba nos levaram, nessa pesquisa, a aproximar aqueles

que alcançam uma baixa magistratura, como Vestorius, com aqueles libertos ricos

Referências

Documentos relacionados

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

O score de Framingham que estima o risco absoluto de um indivíduo desenvolver em dez anos DAC primária, clinicamente manifesta, utiliza variáveis clínicas e laboratoriais

Assim, cumpre referir que variáveis, como qualidade das reviews, confiança nos reviewers, facilidade de uso percebido das reviews, atitude em relação às reviews, utilidade

segunda guerra, que ficou marcada pela exigência de um posicionamento político e social diante de dois contextos: a permanência de regimes totalitários, no mundo, e o

Além desta verificação, via SIAPE, o servidor assina Termo de Responsabilidade e Compromisso (anexo do formulário de requerimento) constando que não é custeado

Para Oliveira (2013), a experiência das universidades a partir da criação do Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras – PAIUB e mais

Declaro que fiz a correção linguística de Português da dissertação de Romualdo Portella Neto, intitulada A Percepção dos Gestores sobre a Gestão de Resíduos da Suinocultura: